Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3956/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. AGOSTINHO TORRES
Descritores: CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
Data do Acordão: 02/18/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: POMBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Legislação Nacional: ARTIGO 109°, DO CÓDIGO PENAL
Sumário:

I – A perda de objectos utilizados para a prática do facto típico só pode ser decretada no caso de aqueles colocarem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas ou oferecerem sério risco de ser usados para o cometimento de novos factos típicos.
II – Deste modo, tendo sido aplicada ao arguido, que conduzia o seu veículo sem habilitação legal, a pena de suspensão de execução da prisão, o que significa que o tribunal considerou a ameaça da pena de prisão suficiente para prevenir a pratica de futuras infracções, mostra-se desnecessário e desproporcionado o decretamento da perda daquele veículo a favor do Estado.
Decisão Texto Integral:
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ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I-RELATÓRIO

1.1-No âmbito do procº sumário nº 467/02.2GBPBL do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Pombal, foi o arguido BB, idº com os sinais dos autos, condenado, por sentença de 3 de Outubro de 2002, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p.p. no artº 3º nº 1 do DL 2/98 de 3 de Janeiro, na pena de 8 meses de prisão,.
Mas, considerando-se que a simples censura do facto e a ameaça da pena eram suficientes para prevenir a prática de futuras infracções, suspendeu-se por dois anos a execução daquela pena de prisão.
Nessa sentença foi ainda declarado perdido a favor do Estado o veículo que o arguido conduziu.

1.2- O arguido conformou-se com a toda a decisão excepto quanto à declaração de perda do veículo.
Apresentou alegações muito sucintas, dizendo ter sido violada a norma do artº 109º do CP e que a viatura pertencia à comunhão conjugal, não ser seu bem próprio e estava destinada actualmente, no seguimento de divórcio entretanto decretado, à sua ex-mulher, que necessita dela para a sua actividade laboral e para dar assistência à filha de ambos.
1.3- O MºPº na 1ª instância e nesta Relação emitiram posição no sentido de a decisão ser mantida inalterada.

II-ANALISANDO

2.1- Em primeiro lugar, há que referir que o âmbito dos recursos se encontra delimitado em função das conclusões extraídas, pelos recorrentes , da respectiva motivação, sem prejuízo, no entanto, das questões que sejam de conhecimento oficioso , cfr se extrai do disposto no artº 412º nº 1 e no artº 410 nºs 2 e 3 do Código de Processo Penal (c.p.p.)
Tais conclusões visam permitir ou habilitar o tribunal ad quem a conhecer as razões de discordância dos recorrentes em relação à decisão recorrida vide ,entre outros, o Ac STJ de 19.06.96, BMJ 458, págª 98 e o Ac STJ de 13.03.91, procº 416794, 3ª sec., tb citº em anot. ao artº 412º do CPP de Maia Gonçalves 12ª ed; e Germano Marques da Silva, Curso Procº Penal ,III, 2ª ed., págª 335
No caso concreto, o arguido concorda inteiramente com a decisão excepto quanto à declaração de perda, pelas razões que invoca.
Não se encontram nulidades ou vícios da decisão previstos no artº 410º nº 2 e 3 do CPP que importem a revogação ou anulação da decisão, para além da apreciação da questão levantada.

2.2- Conheçamos agora o problema que o arguido trouxe em recurso: a declaração de perda do veículo a favor do Estado.

Para tanto , cumprirá previamente transcrevermos os termos e razões em que aquela decisão assentou.

O julgamento decorreu sem documentação da prova, por ter sido prescindida.
Com base nas declarações do arguido, que confessou integralmente e sem reservas, de forma e vontade livre e sem coacção , o tribunal deu por assente a seguinte matéria de facto:


1. No dia 23 de Setembro de 2002, cerca das 14,15 horas, no IC 8, Outeiro Galegas Km 47,500, o arguido seguia conduzindo o veículo ligeiro de mercadorias, de matrícula KK, de que é proprietário, sem que possuísse documento legal bastante que o habilitasse a conduzir tal veículo na via pública.
2. Agiu de forma voluntária, livre e consciente, sabendo que tal conduta não era permitida por lei.
3. É casado, muito embora tendo já sido realizada a 2° conferência de divórcio, e tem dois filhos a quem paga de alimentos 100 euros.
4. Actualmente encontra-se desempregado.
5. Vive em casa própria e paga para amortização do empréstimo da mesma 150 euros.
6. Confessou os factos tal como se provaram, embora sem relevo para a descoberta da verdade material, face à simplicidade da prova nestes tipos legais de crime.
7. Dá-se aqui por reproduzido o teor do seu CRC junto aos autos. “



E da fundamentação de direito contida na decisão recorrida importa também e agora reter os aspectos que consideramos mais importantes. Assim, nela se escreveu que:

“(sic)
No caso concreto, teremos que valorar a intensidade do dolo, que é directo, as exigências de prevenção são acentuadas dada a frequência com que este tipo de ilícito é posto em prática, sendo que a sociedade não compreende o comportamento irresponsável de um indivíduo que não estando habilitado a conduzir se permite fazê-lo pondo em risco a sua vida e a vida dos outros. Igualmente valoraremos a confissão, embora de diminuta relevância.
Acresce que não poderemos deixar de considerar que o arguido foi já condenado por duas vezes em pena de multa, pelo mesmo crime que aqui se discute, mas também, num dos casos por conduzir, concomitantemente, em estado de embriaguez, com intervalos de sensivelmente um ano entre as condenações, o que nos permite concluir, de acordo com as regras de experiência comum que conduz com frequência, se não mesmo reiteradamente, apesar de não estar legalmente habilitado para o efeito.
Seja como for, tais condenações anteriores não lograram afastá-lo da criminalidade e revelam uma personalidade desconforme com os ditames do direito, susceptível de alicerçar o receio de novas prevaricações.
Assim sendo, apenas com a aplicação da pena mais gravosa, lograrão ser alcançadas as finalidades da punição, no caso concreto.

**
Por todo o exposto decido condenar o arguido BB, pela prática de um crime p. p. pelo art.º 3° nº 1 do D.L. nº 2/98 de 3 de Janeiro (CE): na pena de oito (8 meses) de prisão. .../...
.../...Por se considerar que a simples censura do acto e ameaça da pena serão suficientes para prevenir o cometimento de futuros crimes, afastando o arguido da criminalidade, suspende-se a execução da pena de prisão aplicada, pelo período de 2 anos.
Declaro perdido a favor do estado veiculo automóvel ligeiro de mercadorias de matricula KK, nos termos do disposto no art° 109° do C. Penal, propriedade do arguido, posto que existe perigo de o mesmo ser usado em factos ilícitos típicos da natureza dos que são objecto da presente condenação. .../...”

**

2.3-Convém agora e também concretizar melhor o passado do arguido no que respeita ao tipo de condenações sofridas e que na sentença se indica tão somente por mera remissão para o CRC.
O arguido, por factos de 8.6.00, foi condenado a 15.06.00 por condução sem habilitações e em estado de alcoolemia, na multa por 140 dias e em 2 meses de inibição de conduzir- Ourém, procº 114/00.
Pouco mais de um ano depois, por factos de 18.10.01 e decisão de 23.10.01, foi condenado em 2 meses de prisão substituída por igual tempo de multa, também por condução ilegal- Pombal, procº 177/01-1º Juízo.

Posto isto, sabidas quais as razões que na decisão recorrida constam como tendo estado na base da declaração de perda do veículo a favor do Estado, importa então reflectir sobre se as mesmas foram adequadas ao caso.
Trata-se, antes de mais, de um veículo ligeiro de mercadorias de serviço particular, de matrícula KK ( e segundo a numeração desta não é novo nem recente, tendo provavelmente mais de 10 anos)
Por um lado, os argumentos do arguido recorrente afiguram-se de todo inoperantes e sem qualquer utilidade. É que, na verdade, tendo-se provado ser ele o proprietário do veículo e ainda que estando casado, nada mais se apurou , desconhecendo-se se aquilo que refere no recurso é ou não verdade.
Seja como for, sabe-se apenas que estava separado mas era ele quem conduzia o veículo.
O facto de ser a 3ª condenação por condução ilegal permitirá, só por isso, determinar a perda do veículo pelas razões apontadas na decisão?
Entendemos que não.
É que, por um lado, desconhece-se se o veículo esteve ou não envolvido nas anteriores infracções.
Se esteve, então é de crer que a sua futura utilização é muitíssimo provável e que potencia fortemente a prática de nova condução ilegal. Se não esteve, o nível de risco é muito menor. O arguido tanto podia ter conduzido esta como outra viatura qualquer, qual delas potenciando um maior risco particular ou especial de utilização, nomeadamente por força da sua proximidade ou acessibilidade ao arguido.
Seja como for, dispõe o artº 109º do CP, aplicável no caso, que a perda deva ocorrer quando os objectos ou bens a declarar como perdidos sirvam ou tenham servido para prática de um facto típico ilícito,..., quando pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas ou oferecerem sério risco de serem utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
Foi com base nesta última circunstância que o tribunal decidiu a perda, uma vez que o arguido era novamente condenado pelo mesmo tipo de crime pela terceira vez.
Como o texto originário do artº 109º ( anterior 107º ( e que teve por fonte o artº 102º e o § 1º do projecto de Pte Geral de Código penal de 1963, discutido na 31ª sessão da Comissão Revisora em 27 de Abril de 1964 e os nº 1, 2 e 3 da Base XXI da proposta de Lei nº 9/X; cfr tb Maia Gonçalves, CP anotº e comº, ao artº 109º;), antes da revisão operada pelo DL 48/95 de 15 de Março) não era claro e “originara corrente jurisprudencial que decretava perdas de coisas ou direitos sem relação relevante com o crime e sem risco de perigosidade, a revisão orientou-se no sentido de ficar clarificado que a perda é uma espécie de medida de segurança, operando somente naqueles casos em que existe o perigo de repetição de cometimento de novos factos ilícitos através do mesmo instrumento.”(Maia Gonçalves, op. cit, p.393,10ª ed.)
A perigosidade exigida no artº 109º do CP refere-se aos objectos relacionados com o crime como seus instrumentos , não à pessoa do agente do facto ilícito-típico praticado J. Figueiredo Dias, in Dto Penal Português/ As consequências Jurídicas do crime, p. 628..
Trata-se de uma espécie de providência sancionatória de natureza análoga à medida de segurança, operando apenas nos casos de existência de perigo sério de repetição de cometimento de novos factos ilícitos através do mesmo veículo.. Maia Gonçalves, ob. cit., anot artº 109º; Figº Dias, ob.cit., p. 628;
Ora, se é verdade que o arguido antes fora condenado pelo crime de condução ilegal, desconhece-se porém ( e do processo nada consta nesse sentido) se o fizera com o mesmo veículo, reiteradamente, de forma que esta, nesse caso, constituísse factor de especial perigosidade, naqueles termos e acepção.
O arguido tanto pode praticar o mesmo tipo de crime com esse ou com outro veículo qualquer, desde que lhe esteja acessível. Este veículo concreto poderá está-lo um pouco mais que outros, sendo mais intenso o risco de uso do que em relação a outros, pertença de amigos ou de familiares.
Mas só por isso não se pode concluir automaticamente pelo argumento inultrapassável de reutilização em novas infracções.
Aliás, é na própria decisão que encontramos um argumento decisivo no sentido da desproporção do risco indicado: é ele o do próprio fundamento do regime de suspensão de execução da pena.
Na verdade, o tribunal entendeu, mesmo sendo a terceira vez, que a suspensão era adequada por se considerar que a simples censura do facto e a ameaça da pena seriam suficientes para prevenirem a prática de futuras infracções, afastando o arguido da criminalidade.
Então, se considerou tal regime o adequado e suficiente para a prevenção de novas infracções, porquê impor uma medida complementar preventiva, a da perda do veículo, se ainda considera que o arguido tem hipóteses de recuperação e lhe deu uma última oportunidade?
E isso, sendo certo também que com outro qualquer veículo o arguido poderia sempre repetir o ilícito , que não necessariamente com aquele!

Deste modo, ainda que se considere estarmos já perante um caso de fronteira, não se vê que aquele regime de suspensão, assim enquadrado e entendido, não seja suficientemente eficaz para que o arguido evite a prática de novas infracções de condução sem habilitação, tornando-se desnecessário reforçá-lo com um mais representado pela perda do veículo.
Considera-se assim que, ainda que por argumentos diferentes dos do recorrente, o veículo não deveria ter sido considerado perdido a favor do Estado, revogando-se a decisão nessa parte, única aliás impugnada pelo arguido.

III – DECISÃO
Pelo exposto, ACORDAM os Juízes em darem provimento ao recurso e em revogarem a sentença na parte em que se declarou o veículo apreendido como perdido a favor do Estado, determinando-se em consequência desta decisão revogatória que, oportunamente, se faça entrega ao arguido, na 1ª instância , do dito veículo.
Sem taxa ( o recurso)
Os honorários ao defensor serão pagos adiantadamente pelo CGT na 1ª instância, de acordo com as UR previstas em tabela anexa à Portª 150/02


Coimbra,

(texto revisto-artº 94º CPP)