Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2792/06.4TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: CASO JULGADO
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
ACÇÃO POSSESSÓRIA
DESISTÊNCIA DO PEDIDO
Data do Acordão: 01/22/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU - 3ºJUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 497º, NºS 1 E 2, 498º, Nº1, 671º, Nº 1, E 673º DO CPC
Sumário: I – A excepção do “caso julgado” pressupõe, nos termos do artº 497º, nºs 1 e 2, do CPC, a repetição de uma causa já decidida por sentença transitada em julgado e que tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.

II – O instituto do caso julgado exerce duas funções: uma função positiva e uma função negativa. Com a primeira faz valer a sua força e autoridade, que se traduz na exequibilidade das decisões; com a segunda impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo mesmo ou por outro tribunal.

III – O conceito de repetição de uma causa é-nos dado pelo artº 498º, nº 1, CPC, ao estatuir que a causa se repete “quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir”.

IV – A identidade da causa de pedir há que procurá-la na questão fundamental levantada nas duas acções.

V – A excepção de caso julgado não se confunde com a autoridade do caso julgado, já que por este se visa apenas impor a primeira decisão transitada em julgado (o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida.

VI – Uma sentença judicial homologatória de uma desistência do pedido, transitada em julgado, constitui caso julgado material, isto é, produz eficácia de caso julgado material em relação ao direito que na respectiva acção o desistente pretendia fazer valer e tendo sempre por base a relação jurídica que pelo mesmo ali foi configurada.

VII – Nas acções de reivindicação e nas acções de restituição de posse as respectivas causas de pedir e os respectivos pedidos não são (rigorosamente) coincidentes, muito embora possam, por vezes, na prática, confundir-se, nomeadamente quando na acção de reivindicação se invoca a posse conducente à aquisição originária do direito de propriedade (cujo reconhecimento é ali reclamado) por via do titulo da usucapião, e quando nas acções de restituição de posse se pede, a final, a efectiva entrega do bem de cuja posse se foi esbulhado ou privado, entrega ou restituição essa que constitui precisamente um dos pedidos que integram e caracterizam as acções de reivindicação.

VII – A desistência do pedido em acção possessória não impede que se proponha acção de reivindicação da coisa adquirida por usucapião.

Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra
I-_Relatório
1. Os autores, A... e mulher B..., instauraram contra os réus, C... e mulher D..., acção sob a forma sumária (posteriormente convertida para ordinária), e que denominaram “acção de reivindicação”, pedindo que, na procedência da mesma, sejam os últimos condenados a:
“- Reconhecer o direito de propriedade dos autores sobre o logradouro de acesso constante do artº 166 – urbano da matriz predial da freguesia de Torredeita, fazendo parte da descrição e registado a favor dos Autores sob o nº 3544 da 1º Conservatória do Registo Predial de Viseu e, em consequência, restituir o referido prédio aos autores, livre de incorporações, designadamente – passeio em cerâmica, parte de alpendre com cobertura metálica e objectos ali depositados – lenha, baldes com plantas e outros bens.

- Reconhecer e respeitar a confrontação em linha recta determinada pela cotadura existente ao lado do portão dos autores e a esquina do alpendre em granito dos réus.

- A pagar ao autor a importância de dois mil duzentos e setenta e sete euros e cinquenta e seis cêntimos, sendo dois mil euros a título de danos não patrimoniais e setenta e sete euros e cinquenta e seis cêntimos por danos patrimoniais.”

Para o efeito alegaram, em síntese, o seguinte:

Serem os autores proprietários de um prédio misto sito ao Fôjo inscrito na matriz sob o art. 166º e 2933º rústico da matriz predial da freguesia de Torredeita, concelho de Viseu, descrito e registado a favor dos AA na 1ª Conservatória do Registo Predial de Viseu sob o nº 3544, o qual adquiriram através de testamentos do pai e da mãe do autor.

Que a ligação entre a parte urbana e a parte rústica desse seu prédio se faz por uma faixa de terreno, com a área de 90 m2, denominada “logradouro de acesso” descrita no art. 166º urbano de Torredeita e sob o nº 3544 na Conservatória do Registo Predial, apresentando a forma de um rectângulo irregular, que passa defronte da casa dos réus, confrontando a nascente com o alpendre dos autores, a poente com olival dos autores, a norte com a Rua das Carvalhas e a sul com trouço de terreno rectangular situado defronte da casa dos réus e a estes pertencentes.

Que há mais de 60 anos o dito “logradouro de acesso” é utilizado pelos pais e avós do autor e por este, como ligação entre a parte rústica e a parte urbana, ali passando a pé, com carro de bois e animais, tractor, lenha, erva, estrume, alfaias, produtos da colheita do olival, parque de estacionamento, à vista de todos, sem que alguém se tenha arrogado direitos sobre o prédio, na convicção do exercício do seu legítimo direito de propriedade.

Que os réus sem autorização vêm ocupando toda a área desse logradouro, tendo ali implantado um alpendre, nivelado e cimentado o chão, depositado diversos objectos e feito do terreno parque de estacionamento, como se de coisa sua se tratasse e impedindo a sua utilização pelos autores.

Que os réus se vêm recusando a entregar aos autores tal logradouro, não obstante terem sido por várias vezes e sob diversas formas instados a fazê-lo, alegando deterem a propriedade sobre o mesmo.

Que o referido comportamento dos réus causou depressão, tristeza, desgosto, mal-estar, noites mal dormidas ao autor, obrigando-o a tomar regularmente calmantes e medicamentos para a tensão arterial e a despender a quantia de € 277,56 em electrocardiogramas, consultas e medicamentos.

2. Os réus contestaram, defendendo-se por excepção e por impugnação.

No que concerne àquele primeiro tipo de defesa começaram por invocar a existência de excepção de caso julgado, com o fundamento no trânsito em julgado da sentença proferida no processo nº 3914/05.8 TBVIS, que correu termos no 1º Juízo do mesmo Tribunal, e na identidade dos pedidos, sujeitos e causas de pedir em ambas as acções.

Com base em tal facto pediram ainda a condenação dos autores como litigantes de má fé.

3. Os autores apresentaram então novo articulado onde, além do mais, pugnaram pela improcedência da excepção do caso julgado aduzida pelos réus (nomeadamente pela inexistência da identidade de pedidos nas duas acções em confronto), e ainda pela condenação dos mesmos como litigantes de má fé.

4. No despacho saneador a srª juiz a quo conhecendo da aludida excepção aduzida pelos réus, e em consequência dessa apreciação, decidiu nos seguintes termos:

“- julgo procedente a excepção dilatória do caso julgado em relação ao pedido de reconhecimento do direito de propriedade e de condenação dos réus a restituir o logradouro reivindicado aos autores (alínea A de fls. 9) e, em consequência, absolvo os réus C... e mulher D... da instância nessa parte.
- julgo manifestamente improcedentes todos os restantes pedidos formulados e, em consequência, absolvo os réus C... e mulher D... do pedido, em relação aos mesmos.
- julgar improcedentes os incidentes por litigância de má fé suscitados por autores e réus e, em consequência, absolvo autores e réus do pedido de condenação no pagamento de multa e indemnização formulado pela parte contrária com fundamento em litigância de má fé”.

5. Não se tendo conformado com tal decisão, os autores dela interpuseram recurso, o qual (e pelas razões aduzidas no despacho de fls. 245) foi recebido como apelação.

6. Nas correspondentes alegações que apresentaram a tal recurso, os autores concluíram as mesmas nos seguintes termos:
A - No despacho saneador o juiz a quo, ao decidir pela existência de caso julgado, violou o preceituado no artº 498º nº 1 e 3 do CPC, por não se verificar identidade quanto ao pedido.
B - Na verdade, na primeira acção os AA pediram a restituição do Logradouro de Acesso através de Acção de Restituição de Posse, intentada de acordo com o preceituado no art.º 1278º do CC.; Na segunda acção os AA pediram o reconhecimento do direito de propriedade sobre o Logradouro de Acesso e consequente restituição deste, em Acção de Reivindicação, intentada de acordo com o preceituado no art.º 1311º do CC.
C - Por outro lado, nunca se estaria perante caso julgado , por na primeira acção não se ter conhecido do mérito, tendo havido tão só lugar à extinção da instância, por desistência, de acordo com o preceituado no artº. 287º, alínea d) do CPC.
D - Com a excepção de caso julgado, pretende o legislador evitar que o julgador seja colocado perante a possibilidade de contradizer uma decisão anterior, o que manifestamente nunca poderia ocorrer nestes autos.

7. Não foram apresentadas contra-alegações.

8. Corridos que foram os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.

***
II- Fundamentação
A) De facto.
Para além dos factos descritos no ponto I (vg. sob o nº 1), importa atender, para apreciação do presente recurso, ainda aos seguintes factos que foram dados como assentes pelo tribunal a quo:
1) Sob o nº 3914/05.8TBVIS do 1º Juízo Cível deste Tribunal, correu termos uma acção sumária, que denominaram “acção de restituição de posse”, proposta por A... e mulher B... contra C... e mulher D..., em que os então autores pediram que os então réus sejam condenados a restituir aos autores um terreno designado por logradouro de acesso com 90 m2 de área pertencente ao prédio descrito no art. 166º da matriz predial urbana da freguesia de Torredeita, situado entre a rua das Carvalhas e a propriedade dos réus, livre de incorporações, designadamente passeio em cerâmica, parte de alpendre com cobertura metálica e objectos ali depositados – lenha, baldes com plantas e outros bens.

2) Na acção referida em 1) - cuja petição inicial se encontra consubstanciada no documento junto a fls. 108/112, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido -alegaram os então autores, em síntese, que:

- são donos e possuidores de um prédio inscrito na matriz sob o art. 166º e 2933º rústico da matriz predial da freguesia de Torredeita, concelho de Viseu, tendo sido adquirido pelos autores através de testamentos do pai e da mãe do autor.

- a ligação entre a parte urbana e a parte rústica do seu prédio faz-se por uma faixa de terreno denominada “logradouro de acesso” descrita no art. 166º urbano de Torredeita que passa em frente da casa dos réus, compreendida na sua maior extensão entre o caminho – Rua das Carvalhas e uma faixa de terreno pertencente aos réus,

- desde 1975 o dito “logradouro de acesso” é utilizado pelos autores para passagem (de e para a parte urbana e rústica da daquele seu prédio, e do qual faz parte) de pessoas, alfaias e produtos agrícolas e estacionamento de viaturas, de forma consecutiva, com conhecimento de todos, sem que alguém tenha arrogado direitos sobre aquele prédio, estando os autores convencidos de que dele são proprietários,

- os réus, sem autorização, vêm ocupando toda a área desse logradouro, tendo ali implantado um alpendre, nivelado e cimentado o chão, depositado diversos objectos e feito do terreno parque de estacionamento, como se de coisa sua se tratasse,

- o autor tentou resolver amigavelmente a situação, através de carta e de notificação judicial avulsa dirigidas aos réus, sendo que os réus não desocuparam tal espaço alegando ser proprietários do mesmo por escritura de 1929, obrigando os autores a recorrer à via judicial para verem reconhecidos os seus direitos.

3) Na acção referida em 1), os aí autores desistiram do pedido formulado nessa acção, tendo sido judicialmente homologada tal desistência do pedido por sentença proferida em 10-05-2006 e já transitada em julgado, que declarou extinto o direito pretendido fazer valer nessa acção.


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B) De direito

1. Como é sabido, é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se define o objecto e delimita o âmbito dos recursos, isto é, a apreciação e a decisão dos recursos são delimitadas pelas conclusões das alegações dos recorrentes, pelo que o tribunal de recurso não poderá conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (cfr. disposições conjugadas dos artºs, 660, nº 2, 684, nº 3, e 690, nºs 1, todos do CPC, sendo o último na redacção anterior às alterações introduzidas pelo DL nº 303/07 de 24/8 – cfr. artºs 9, al. a), 11, nº 1, e 12, nº 1, deste último diploma –, e a cujo diploma e versão nos referiremos sempre que doravante mencionarmos somente o normativo sem a indicação da sua origem).

Vem, também, sendo dominantemente entendido que o vocábulo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a dirimir (vidé, por todos, Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Rev. nº 2585/03 – 2ª sec, e Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Agravo nº 480/03 – 7ª sec.”).
Ora, calcorreando as conclusões das alegações do presente recurso verifica-se que a única questão que importa aqui apreciar e decidir traduz-se em saber se estamos ou não perante uma situação de caso julgado.

2.1 Por ter interesse para o caso em apreço, começaremos, antes de mais, por fazer uma abordagem teórica dessa controversa afigura processual, caracterizando-a.
Lembraremos antes que, após a revisão do Código de Processo Civil efectuada pelos DLs nºs 329-A/95 de 12/12 e 180/96 de 25/9, a figura do caso julgado passou a constituir uma excepção dilatória – ao contrário do que sucedia até então em que assumia a natureza de excepção peremptória (cfr. artº 494, al. i)).
O caso julgado constitui, assim, uma das excepções previstas na lei adjectiva, que é de conhecimento oficioso e cuja ocorrência impede que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância (cfr. artºs 495 e 493, nº 2).
Excepção essa que pressupõe, nos termos do artº 497, nºs 1 e 2, a repetição de uma causa já decidida por sentença transitada em julgado e que tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior. Isso mesmo acentua o prof. Anselmo de Castro, (in “Processo Civil Declaratório, Vol. II, pág. 242”), ao escrever “tal impedimento, destina-se a duplicações inúteis da actividade jurisdicional e eventuais decisões contraditórias.
O caso julgado, como refere o prof. Antunes Varela (in “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., p. 307”), consiste, assim, na alegação de que a mesma questão foi já deduzida num outro processo e nele julgada por decisão de mérito, que não admite recurso ordinário, ou então, como ensina o prof. Manuel de Andrade (in “Noções Elementares de Processo Civil, 1993, págs. 305 e 306”), o caso julgado consiste em a definição dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais quando lhes seja submetida a mesma relação, todos tendo de acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão e de modo absoluto, com vista não só à realização do direito objectivo ou à actuação dos direitos subjectivos privados correspondentes, mas também à paz social.
O instituto do caso julgado exerce, assim, duas funções: uma função positiva e uma função negativa. Exerce a primeira quando faz valer a sua força e autoridade, que se traduz na exequibilidade das decisões e exerce a segunda quando impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo mesmo ou por outro tribunal (vidé, por todos, o prof. Alberto dos Reis, in “CPC Anotado, vol. III, pág. 93”).
Compreende-se, desse modo, a razão de tal autoridade do caso julgado pela necessidade da certeza e da segurança nas relações jurídicas.
Tanto mais que a decisão transitada pode até ter apreciado mal os factos e interpretado e aplicado erradamente a lei, mas no mundo do Direito tudo se passa como se a sentença fosse a expressão fiel da verdade e da justiça (cfr., a propósito, o prof. Alberto dos Reis, in “Ob. cit., pág. 94).
Perante tais efeitos do caso julgado torna-se imperioso estabelecer, com nitidez, o conceito de repetição de uma causa.
Tal resposta é-nos dada pelo artº 498, nº 1, ao estatuir que a causa se repete “quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir”.
Por seu lado, os nºs 2, 3 e 4, desse mesmo preceito, concretizando melhor, dispõem que “há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica; há identidade do pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico e há identidade da causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico”. Acrescentando-se, no último normativo, e para o caso que aqui nos importa, que “nas acções reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real”.
Num esforço de ainda maior concretização daquele tríade de conceitos (e sem a existência cumulativa dos quais não se pode falar de excepção de caso julgado) podemos dizer, tal como se escreveu, entre outros, nos Acordãos do Tribunal da Relação do Porto e do Tribunal da Relação de Coimbra, respectivamente, de 6/1/94 e 9/12/81, (in, respectivamente, “CJ, ano IX, T1 - 198 e CJ, ano X, T5 - 79”), que as partes são as mesmas sob o aspecto jurídico desde que sejam portadoras do mesmo interesse substancial. Daí resulta que as partes não têm que coincidir do ponto de vista físico, sendo mesmo indiferente a posição que as partes assumam em ambos os processos, podendo ser autores numa acção e réus na outra (cfr., por todos, prof. Lebre de Freitas, in “Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, Coimbra Editora, pág. 319”).
Por sua vez, e tal como se escreveu também no 1º daqueles arestos, haverá identidade de pedidos “se existir coincidência na enunciação da forma de tutela jurisdicional pretendida pelo autor e do conteúdo e objecto do direito a tutelar, na concretização do efeito que, com a acção, se pretende obter” e que a identidade da causa de pedir “pressupõe que o acto ou o facto jurídico de onde o autor pretende ter derivado o direito é idêntico”.
A identidade da causa de pedir há, assim, que procurá-la na questão fundamental levantada nas duas acções (cfr., por todos, Ac. do STJ de 26/10/89, in “BMJ nº 390 - 379”).
Assim, em resumo e noutra linguagem, podemos dizer que a causa de pedir consiste na alegação da relação material de onde o autor faz derivar o correspondente direito e, dentro dessa relação material, na alegação dos factos constitutivos do direito (facto jurídico de que procede a pretensão deduzida) - em consonância, assim, com o principio da substanciação consagrado pelo nosso ordenamento jurídico -, enquanto que o pedido se reconduz ao efeito jurídico que o autor pretende retirar da acção interposta, traduzindo-se na providência que o autor solicita ao tribunal - trata-se de um elemento fundamental, considerando as imposições do princípio do dispositivo: são os interessados que accionam os mecanismos jurisdicionais como ainda quem realiza a escolha das providências que os direitos subjectivos invocados garantem -, e, por fim, que o conceito de sujeito a atender para o efeito coincide com a noção (adjectiva) de parte.
A excepção de caso julgado consiste, assim, e para concluir, na constatação de que a mesma questão já foi deduzida num outro processo e nele apreciada e julgada por decisão que não admite reclamação ou recurso ordinário (cfr artº 677).
Porém, e tal como já resulta do que supra deixámos expresso, importa dizer que a excepção de caso julgado não se confunde com a autoridade do caso julgado. Ambos são efeitos diversos da mesma realidade jurídica, havendo mesmo quem, a esse propósito, chegue a defender que para que autoridade do caso julgado actue não se exige sequer a coexistência das três identidades referidas no artº 498 (cfr., quanto a este último entendimento, Ac. da RC de 21/1/1997, in “CJ, Ano XXII, T1 – pág. 24” e sentença da 1ª instância publicada in “CJ, Ano IV, pág. 1654”). No desenvolvimento daquela afirmação, escreve o prof. Lebre de Freitas (in “Ob. cit., pág. 325”), que “pela excepção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito” enquanto que “a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão” (...). “Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida”.
No mesmo sentido vai o prof. Miguel Teixeira de Sousa (in “O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ 325, págs. 49 e ss”) quando escreve: “a excepção de caso julgado visa evitar que o orgão jurisdicional duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior”, já “quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade de caso julgado é o comando de acção, a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição do processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição da decisão antecedente”.(Vidé ainda, a propósito, Ac. do STJ de 26/1/1994, in “BMJ 433 – 515” e “Ac. da RC de 21/1/1997, in “CJ, Ano XXII, T1 – pág. 24”).
E tal questão (da autoridade do caso julgado) conduz-nos à polémica e muito discutida questão da extensão ou alcance do caso julgado.
Nos termos do disposto no art 671, nº 1, “transitada em julgado a sentença, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força dentro do processo e fora dele..” (sublinhado nosso).
Por sua vez, sobre a epígrafe de “alcance do caso julgado” preceitua o artº 673 que “a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga...”.
Resulta do exposto, que os limites do caso julgado são traçados pelos elementos identificadores da relação ou situação jurídica substancial definida pela sentença: os sujeitos, o objecto e a fonte ou título constitutivo. Por outro lado, é preciso atender-se aos termos dessa definição (estatuída na sentença). Ela tem autoridade - valendo como lei – para qualquer processo futuro, mas só em exacta correspondência com o seu conteúdo. Daí que ela não possa impedir que em novo processo se discuta e dirima aquilo que ela mesmo não definiu (cfr., a propósito, e para maior desenvolvimento, os profs. Manuel de Andrade, in “Ob. cit., pág. 285”; Castro Mendes, in “Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo em Processo Civil, 1968” e Miguel Teixeira de Sousa, in “Sobre o Problema dos Limites Objectivos do Caso Julgado, em Rev. Dir. Est. Sociais, XXIV, 1997, págs. 309 a 316”).
Na referida vexata quaestio vem hoje ganhando predominância a corrente que perfilha o entendimento mitigado no sentido de que muito embora a autoridade ou eficácia do caso julgado não devendo, como principio ou regra, abranger ou cobrir os motivos ou fundamentos da sentença, cingindo-se, apenas, à decisão na sua parte final, ou seja, à sua conclusão ou parte dispositiva final, mas sendo, todavia, já de estender-se também às questões preliminares que constituírem um antecedente lógico indispensável ou necessário à emissão daquela parte dispositiva do julgado (cfr., entre muitos, e para maior desenvolvimento, Ac. do STJ de 9/5/1996, in “CJ, Acs. do STJ, Ano IV, T2 – 55 e 56”, e a abundante doutrina aí citada; Ac. do STJ de 28/5/ 2002, in “Agravo nº 1043/02, 6ª sec., Sumários, 5/2002”; Ac. do STJ de 26/9002, in “Agravo nº 213/02, 2ª sec., Sumários 9/2002” e Ac. da RC de 18/10/94, in “BMJ 440 – 545”).
Daí que, e como se escreveu no Ac. do STJ de 3/4/1991 (in “AJ, 18º - 9”), no nosso ordenamento jurídico-processual, o caso julgado implícito só possa ser admitido em relação a questões suscitadas no processo e que devam considerar-se abrangidas, embora de forma não expressa, nos termos e limites precisos em que julga, tal como estipula o citado artº 673.
Porém, muitas vezes, e como escreve o prof. Lebre de Freitas (in “Ob. cit., pág. 683”), “a determinação do âmbito objectivo do caso julgado postula a interpretação prévia da sentença, isto é, a determinação exacta do seu conteúdo (dos seus “precisos limites e termos”), de que fala o citado artº 673). Relevando, nomeadamente, para o efeito “a leitura que a sentença faça sobre o objecto do processo, isto é, sobre os pedidos formulados pelo autor e pelo réu reconvinte: o caso julgado tem a extensão objectiva definida pelo pedido e pela causa de pedir”.
Daí que igualmente vem sendo defendido que não seja de excluir recorrer à parte motivatória da sentença (ou seja, aos seus fundamentos) sempre que tal se mostre necessário para reconstruir e fixar o real conteúdo da decisão, isto é, para interpretar e determinar o verdadeiro sentido e o exacto conteúdo da sentença em causa (vidé, a propósito, Ac. do STJ de 9/5/1996, in “CJ, Acs. do STJ, Ano IV, T2 – 55”; Ac. da RP de 28/1/82, in “CJ, Ano VII, T1 – 266” e os profs. Manuel de Andrade e A. Varela, in “Ob. cits., respectivamente, págs. 318 e 696/697”).
2.2 Postas tais considerações de carácter mais geral sobre tão controversa figura processual (e que por isso, como logo no inicio expressámos, se nos afiguram úteis para melhor compreensão e delimitação da problemática que nos foi colocada em “mãos” com o presente recurso), reportemo-nos agora ao caso em apreço.

Compulsando as conclusões das alegações do presente recurso, delas resulta que os autores se insurgem contra a decisão recorrida essencialmente com base em dois fundamentos: a) inexistência, no caso, de excepção de caso julgado (por inverificação de identidade dos pedidos nas acções em confronto); b) impossibilidade legal de formação de caso julgado (por na primeira acção não se ter conhecido do mérito).

2.2.1 Por razões de ordem lógica, começaremos por abordar o segundo daqueles fundamentos.

Como resulta dos factos assentes, a primeira acção (daquelas aqui em confronto) que os autores instauraram contra os aqui também réus, sob a designação de acção restituição de posse, correu os seus termos, autuada sob o nº 3914/05.8TBVIS (à qual doravante nos referiremos também somente como 1ª acção), no 1º Juízo Cível do mesmo tribunal em que foi instaurada a segunda acção, e à qual se reporta o presente recurso, e nela aqueles terminavam o seu articulado da petição inicial pedindo que os réus fossem, com base nos fundamentos ali aduzidos, condenados a restituir-lhes o terreno designado por “logradouro de acesso” – integrando o prédio misto de urbano e rústico ali identificado, de que se reclamam donos, e fazendo a ligação entre as duas partes, - livre e devoluto dos bens que nele os réus foram incorporando. Acção essa que, todavia, veio a terminar em consequência de sentença judicial, devidamente transitada em julgado, que homologou a desistência do pedido oportunamente apresentada, em requerimento, pelos autores e que declarou, na sequência de tal, extinto o direito que os autores ali pretendiam fazer valer.

Perante tal sentença homologatória, a questão que desde logo se coloca, tal como o fazem os ora recorrentes, traduz-se em saber se ela é susceptível de per si conduzir à formação de caso julgado (material)?

Vejamos.

Como resulta do estatuído no artº 296, nº 2, a desistência do pedido é (ao contrário da desistência da instância - cfr. nº 1) livre, determinando, nos termos do disposto no nº 1 do artº 295, nº 1, a extinção do direito que na acção se pretendia fazer valer.

A desistência do pedido significa ou implica, nas palavras do cons. Rodrigues Bastos (in “Notas ao CPC, vol. 2º, pág. 81”), o reconhecimento, por parte do autor, de “não lhe assistir direito à sentença de mérito que pretendia” ou, por outras palavras e no dizer do prof. Alb. dos Reis (in “Comentário ao CPC, vol. 3º, pág. 374”), que o autor “reconheceu implicitamente que a sua pretensão é infundada”.

Dissertando sobre a desistência do pedido, também a ela se refere prof. Lebre de Freitas (in Ob. cit., pág. 524”) como meio por excelência de auto-composição dos litígios, afirmando que o citado nº 1 do artº 291 exprime a “afirmação da directa actuação do negócio de auto-composição do litígio sobre a situação jurídica (material) que é objecto do pedido, a qual, quer existisse quer não anteriormente, é objecto dum negócio que opera como um facto extintivo, precludindo a questão da sua existência e conformação anteriores”. Para mais a frente (a pág. 533) voltar a afirmar que “tratando-se de negócio de auto-composição do litígio, o juiz verificado que o acto é válido e pertinente para o processo, profere sentença homologatória, que, embora não aplicando o direito objectivo aos factos provados na causa, constitui uma sentença de mérito, como tal condenando o réu no pedido ou dele o absolvendo, consoante o negócio jurídico celebrado”. E que, no caso de desistência do pedido, “a sentença homologatória tem, para além deste (referindo-se à extinção da instância), o efeito de constituir caso julgado material (artºs 301, nº 2, e 671, nº 1)”. (sublinhado nosso)

Aliás, no mesmo sentido se pronunciou o STJ na fundamentação do seu assento de 15/06/1988 (hoje com valor de acordão uniformizador de jurisprudência – cfr. artº 17, nº 2, do acima citado DL nº 329-A/95), publicado no DR, Iª S, de 1/8/1988 e no BMJ nº 233 – 474, e do qual resultou, em termos finais, a fixação da seguinte doutrina: “O desistente do pedido de simples apreciação prescinde do conhecimento do respectivo direito e, por isso, o caso julgado impedi-lo-á de estruturar nele um pedido de condenação”.

Ora, de tudo acabado de expor (doutrina e normativos legais citados), resulta a conclusão de que uma sentença judicial homologatória de uma desistência do pedido, devidamente transitada, constitui caso julgado material, isto é, produz eficácia de caso julgado material em relação ao direito que na respectiva acção o desistente pretendia fazer valer, e tendo sempre por base a relação jurídica que pelo mesmo ali foi configurada (pois muito embora não tendo procedido na realidade à apreciação do mérito da causa, tudo se passa ou equivale a como se o tivesse feito).

E daí a conclusão a que chegamos de não assistir razão aos autores/recorrentes no que concerne àquele segundo fundamento do seu recurso.

2.2.2 Apreciemos, agora, o primeiro dos fundamentos em que assentou tal recurso: inexistência, no caso, de excepção de caso julgado (por inverificação de identidade dos pedidos nas acções em confronto).

Como resulta do que acima se deixou expresso, a excepção de caso julgado pressupõe repetição de uma causa já decidida por sentença transitada em julgado. E tal ocorre quando a nova causa ou acção que se instaura é idêntica àquela outra, que já foi definitivamente julgada, quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir. Tríade (cumulativa) de conceitos cujos contornos cremos ter já supra deixado suficientemente definidos e esclarecidos.

Tríade essa que, em concreto e tal como resulta do nº 4 do citado artº 498, pode variar em função da espécie, natureza ou tipo de acção proposta, e especialmente no que concerne à causa de pedir e do pedido.

Assim, e tendo em conta os dois tipos de acções aqui em confronto, pode dizer-se, grosso modo, o seguinte:

Nas acções de reivindicação (que se encontram previstas no artº 1311 e nas quais está em causa o direito de propriedade, como expoente máximo dos direitos reais de gozo), a causa de pedir é consubstanciada pelo facto jurídico donde deriva o direito de propriedade que se invoca e reclama, ou, por outras palavras, e a final, o próprio título em que se funda o direito de propriedade invocado (cfr. artº 1316 do CC). Já quanto ao pedido, pode dizer-se que, na realidade, são dois os pedidos que integram e caracterizam esse tipo de acções: o reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatio), por um lado, e a restituição da coisa (condemnatio), por outro, sendo que hoje constitui entendimento praticamente pacífico de que o segundo contem implícito o primeiro, caso o mesmo não tenha sido formulado expressamente. Acções essas que têm a figurar, como partes, os proprietários que reclamam a titularidade do bem reivindicado ou quem os represente (lado activo), e as pessoas que põem em causa ou aquela titularidade do bem que é reivindicado ou então a obrigação de o restituir (vidé, por todos, os profs. Pires Lima e A. Varela, in “Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed. revista e actualizada, Coimbra Editora, pág. 113/116” e Ac. da RLx de 12/10/82, in “CJ, Ano VII, T4 – 124”).

Já no que concerne às acções de restituição de posse (cfr. artºs 1277 e 1278 do CC) – as quais, como se sabe, após a reforma de 95 passaram a seguir a forma de processo comum -, pode dizer-se que a sua causa de pedir se desdobra num fundamento de direito e num fundamento de facto, traduzindo-se o primeiro na posse e o segundo no esbulho (dessa posse, ou seja, no facto de o possuidor, contra a sua vontade, ter ficado, total ou parcialmente, privado do exercício ou da possibilidade de exercício dos poderes de facto correspondentes à sua posse sobre determinado bem). Já quanto ao seu pedido o mesmo é consubstanciado no pedido que possuidor faz ao tribunal no sentido de ser restituído à posse (do bem) de que foi esbulhado ou privado (e que muitas das vezes, e na prática, se traduz no pedido de entrega do bem em causa de cuja fruição se ficou privado, confundindo-se, assim, com o próprio segundo pedido da acção de reivindicação). Como partes, do lado activo de tais acções devem figurar o esbulhado (vg. que tanto poder ser o proprietário, ou qualquer outra pessoa que tenha legítima ou legalmente adquirido a posse sobre o bem em causa, vg. o locatário, o usufrutuário, o credor pignoratício, o consignatário de rendimentos, etc.) - ou seus herdeiros -, e do lado passivo, podem figurar tanto o esbulhador ou os seus herdeiros, como qualquer outra pessoa que esteja na posse do bem e tenha conhecimento do esbulho (cfr. artºs 1281, nº 2 do CC). Vidé, por todos, Moitinho de Almeida, in “Restituição de Posse e Ocupação de Imóveis, 2ª ed. actualizada, Coimbra Editora, págs. 10, 14 e ss”.

Como afirma o último autor (in “Ob. cit., pág. 46, e citando Cunha Gonçalves), “os requisitos da posse não são os mesmos para todos os efeitos, designadamente para efeitos de usucapião e para o exercício das acções possessórias, pois, para este exercício, a posse, independentemente do tempo porque é exercida, tem de ser útil, portanto desprovida dos vícios da violência, da clandestinidade, da precaridade e da má fé, enquanto a posse, para efeitos de usucapião, até pode ser violenta e de má fé, se durar mais de que certo tempo”.

Do exposto verifica-se, assim, que nas acções de reivindicação e nas acções de restituição de posse as respectivas causas de pedir e os respectivos pedidos não são (rigorosamente) coincidentes, muito embora possam, por vezes, na prática confundir-se, nomeadamente quando na acção de reivindicação se invoca a posse conducente à aquisição originária do direito de propriedade (cujo reconhecimento é ali reclamado) por via do titulo da usucapião (sendo que tal posse é, como vimos, um dos dois elementos ou fundamentos causais em que assentam aquelas outras acções possessórias) e quando nas acções restituição de posse se pede a final a efectiva entrega do bem de cuja posse se foi esbulhado ou privado (sendo certo que, como é sabido, pode-se exercer a posse sem se ter o domínio de facto sobre o respectivo bem – cfr. artº 1254 do CC), entrega ou restituição essa que, como vimos, constitui precisamente um dos pedidos que integram e caracterizam as acções de reivindicação.

E daí que tal tenha levado o acórdão da Relação do Porto de 30/1/1974 (in “BMJ 233 – 240”) a fazer a seguinte síntese conclusiva (que se nos afigura acertada): “A desistência do pedido em acção possessória não impede que se proponha acção de reivindicação da coisa adquirida por usucapião. A posse que interessa para aquela acção é apenas a do ano e dia (ou menor – artº 1278, nº 2, do CC) anterior ao esbulho ou turbação. São distintos os pedidos em ambas as acções, não obstante o efeito prático – entrega da coisa -, ser o mesmo: numa, reconhecimento de que o autor tem tido a posse e consequente entrega; noutra, reconhecimento do direito de propriedade e também consequente restituição. Por isso, mesmo que na acção possessória se tenha alegado posse de mais de 20 e 30 anos e a mesma posse por esse tempo se alegue na acção de reivindicação, não há identidade de pedido nem de causa de pedir”.

Como resulta do acima afirmado, considerando as imposições do princípio do dispositivo, são os respectivos interessados que accionam não só os mecanismos jurisdicionais como ainda quem realiza a escolha das providências que os direitos subjectivos invocados garantem. Daí que o pedido formulado (que grosso modo se consubstancia no efeito jurídico que o autor pretende retirar da acção interposta, traduzindo-se esta, a final, na providência que o mesmo solicita para o efeito ao tribunal) seja o elemento determinante para caracterizar a espécie e o tipo de acção que foi instaurada, muito embora se deva, para tal, não perder de vista a causa de pedir em que é feito assentar.

Ora, posto isto e compulsando a respectiva petição inicial (respectiva causa de pedir nela alegada e, sobretudo, o seu pedido final formulado) facilmente se conclui que esta segunda acção (onde foi interposto o presente recurso) configura uma típica acção de reivindicação, tendo por objecto o tal Logradouro de Acesso, que ali se identifica. Ou seja, nessa acção os autores pedem (para aquilo que ora nos interessa) não só a condenação do réus ao reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o aludido Logradouro, cuja aquisição fundam na usucapião (através da alegação de correspondentes actos de posse, exercidos há mais de 60 anos), como, em consequência, pedem ainda a condenação dos mesmos a restituírem-lho (dado que se encontram, segundo alegam, a ocupá-lo, contra a sua vontade), livre e devoluto dos bens que nele entretanto incorporaram, assim como ainda a indemnizarem o autor por danos que alegadamente sofreu por causa da referida ocupação. Logradouro que, na alegação dos autores, fará parte do prédio misto (urbano e rústico), ali igualmente identificado, de que também se afirmam proprietários – propriedade essa que, todavia, não é directamente objecto de discussão na acção -, que alegam ter adquirido, quer por via derivada (através de deixa testamentária), quer por via originária (através do instituto da usucapião).

Por sua vez, compulsando a petição inicial daquela primeira acção, verifica-se que os mesmos autores, depois de a começarem por identificar como sendo uma acção de restituição de posse, se limitam a final a pedir a condenação dos mesmos réus a restituírem-lhes aquele mesmo Logradouro (livre e devoluto dos bens que, entretanto, nele incorporaram) e depois de terem antes alegado uma série de actos caracterizadores da sua posse sobre o mesmo (exercidos desde o ano de 1975), e da qual terão alegadamente sido esbulhados pelos referidos réus (com a alegada ocupação que os mesmos, contra a sua vontade, dele passaram ultimamente, em data que não conseguem precisar, a fazer). Também ali os autores começam por invocar o seu direito de propriedade (obtido da mesma forma que foi alegada na segunda acção) sobre o sobredito prédio de que alegadamente fará parte o referido logradouro. Mas tal alegação poderá e deverá, de algum modo, ser entendida como uma justificação para a fonte da sua posse sobre o referido Logradouro e com vista a assegurar a sua legitimidade activa para a instauração dessa acção.

Muito embora se nos afigure que a referida acção (a primeira) não seja um modelo de estruturação e clarividência, cremos, todavia, e por tudo aquilo que supra deixámos expresso, que a mesma reúne em si os predicados necessários e suficientes para poder ser caracterizada (tal como o fizeram os autores) como uma acção de restituição de posse. O facto de os autores serem então pretensamente já os proprietários do referido Logradouro (tal como agora invocam nesta acção), tal não os impede de pedirem um menos em relação ao mais que podiam pedir, ou seja, tal não constitui só por si facto impeditivo de apenas pedirem a restituição da sua posse ao mesmo, e nem igualmente constitui facto impeditivo de tal a circunstância de da respectiva matéria factual alegada resultar que a ocupação que os réus passaram a fazer do aludido imóvel é alicerçada no fundamento de arrogarem a sua propriedade sobre o mesmo. Como supra deixámos expresso, é às partes, em obediência ao princípio dispositivo, que compete (dentro do leque legal fornecido pelo ordenamento jurídico) a escolha das providências destinadas a garantir ou a proteger os direitos subjectivos que invocam.

Ora, chegados à conclusão de que a primeira acção configurava uma acção de restituição de posse e a segunda uma acção de reivindicação, é igualmente de concluir, por tudo o supra deixámos exarado a tal propósito, que as mesmas não coincidem (rigorosamente) quer quanto às suas causas de pedir, quer quanto ao seus respectivos pedidos, muito embora, e como acima deixámos igualmente expresso, qualquer um daqueles pressupostos processuais apresentem elementos que, no mundo real, se possam confundir (dada a similitude dos seus efeitos úteis e práticos).

Logo, a conclusão final a extrair de não estarmos na presença de uma excepção de caso julgado, e nem mesmo (por tudo o que supra deixámos expresso) perante uma ofensa à autoridade ou eficácia do caso julgado resultante da sentença proferida na primeira acção (e no caso de a segunda a acção vir porventura a proceder).

Termos, pois, em que se decide revogar a decisão recorrida (proferida no despacho saneador), ordenando-se, em consequência, que os autos prossigam os seus ulteriores trâmites legais, assim, se concedendo provimento ao recurso (embora com base em fundamentos não inteiramente coincidentes com os ali aduzidos).


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III- Decisão


Assim, em face do exposto, acorda-se, na procedência do recurso, revogar a decisão recorrida proferida pela 1ª instância, ordenando-se, em consequência, que os autos prossigam os seus ulteriores trâmites legais.

Custas do recurso pelos réus (que suscitaram a excepção que motivou a decisão recorrida) – artº 446, nºs 1 e 2, do CPC.

Coimbra, 2008/01/22