Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1014/08.8TMCBR-M.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A MENOR
PENSÃO
PROGENITOR DESEMPREGADO
INSOLVENTE.
Data do Acordão: 03/24/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – COIMBRA – 1ª SEC. F. MEN.
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1905º CC, 180º DA OTM, 3º, Nº1 DA CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA.
Sumário: Deve ser fixada e mantida pensão de alimentos devidos a menor ainda que o progenitor, a ela obrigado, se encontre desempregado e insolvente.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO


                1.1.- O requerente – P... – instaurou na Comarca de Coimbra acção de alteração das responsabilidades parentais da menor M..., com forma de processo especial, contra a requerida – G...

                Alegou, em resumo:

                O requerente e a requerida são pais da menor M..., cuja responsabilidade parental foi regulada por sentença de 14/7/2009, na qual a menor ficou entregue à mãe, impondo-se ao requerente a pensão de alimentos no valor de € 200,00 por mês.

                Contudo, porque o requerente se encontra desempregado e não aufere sequer qualquer subsídio, tendo sido declarado insolvente, por sentença de 6/2/2013 ( proc. nº ...), está impossibilitado de cumprir a obrigação alimentícia.

                Pediu que se declare o requerente exonerado de pagar qualquer quantia a título de alimentos.

Contestou a requerida, dizendo, em síntese, que o requerente está em condições de pagar a pensão de alimentos à menor, que não é afectada pela declaração de insolvência e inexistem circunstâncias supervenientes que fundamentem a alteração pretendida.

                1.2.- Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença a julgar improcedente a acção.

                1.3.- Inconformado, o requerente recorreu de apelação, com as seguintes conclusões:

                Resulta da prova documental (relatórios sociais e sentença de insolvência) que o requerente não dispõe actualmente de quaisquer rendimentos.

                Está provada a sua impossibilidade em cumprir a obrigação de alimentos.

                A sentença deve ser revogada e substituída por outra a exonerar ou reduzir a obrigação de alimentos, face ao disposto nos arts. 182 OTM, 2012, 2013 nº1 b), 2014 CC.

                Contra-alegou a requerida no sentido da improcedência do recurso.


II – FUNDAMENTAÇÃO

                2.1. – O objecto do recurso

                A questão submetida a recurso, delimitado pelas respectivas conclusões, consiste em saber se existe fundamento para a alteração da pensão de alimentos, atribuída à menor M..., fixada por sentença de 14/7/2009 (acção de regulação do exercício das responsabilidades parentais).

                2.2.- Os factos provados (descritos na sentença):

1. M... nasceu em 16 de Setembro de 2003, sendo filha do requerente e da requerida.

2. Por sentença de 14/7/2009 foi regulado o exercício das responsabilidades parentais relativamente à menor, que ficou entregue à guarda da mãe, e ficando o pai obrigado ao pagamento, a  título de alimentos, da quantia de 200 euros mensais, quantia esta actualizada todos os anos de acordo com a taxa de inflação publicado pelo INE referente ao ano civil anterior, a pagar até ao dia 20 de cada mês; bem como ao pagamento de metade das despesas escolares, extraordinárias de saúde e as relacionadas com as actividades extracurriculares que a menor frequente ou venha a frequentar.

3. O ora requerente, no apenso K, solicitou a diminuição da pensão de alimentos para 50 euros mensais, pedido este que foi julgado improcedente por sentença proferida em 21/12/2012, considerando, além do mais, os seguintes factos:

- o pai da menor encontra-se inscrito no Centro de Emprego de Coimbra desde 11/11/2009 como «desempregado-novo emprego»;

- o pai da menor não recebe subsídio de desemprego e registou as últimas remunerações na Segurança Social em Setembro de 2009;

- o pai da menor continua a ser membro de órgão estatutário da empresa «M..., Lda» e é membro de órgão estatutário da empresa «M...» com data de início a 2/10/2009;

- o pai da menor continua a guiar vários automóveis e a vender carros, nomeadamente através da internet;

- desconhece-se onde e com quem vive o pai da menor, sendo que o seu filho B... vive num apartamento na Rua do ... e o requerente tem uma namorada residente noutro local;

- o filho do requerente frequenta um curso universitário;

- no dia 17/8/2009, na 1ª Conservatória do Registo Predial de Coimbra, o requerente declarou vender ao seu pai, que declarou comprar pelo valor de 212.210 euros, o andar referido no ponto 3 e uma garagem sita no mesmo prédio.

4. Por sentença de 6/2/2013, proferida no processo nº ..., instaurado pelo pai da M..., foi o requerente declarado insolvente.

                2.4.- O mérito do recurso

As responsabilidades parentais apresentam-se como um efeito da filiação (art.1877 e segs. do CC), sendo concebidas como um conjunto de direitos e deveres (poderes funcionais) que competem aos pais relativamente à pessoa e bens dos filhos.

                Na verdade, as crianças têm o direito fundamental à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral (art.69 nº1 da CRP e Convenção Sobre os Direitos da Criança, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20/11/89, assinada por Portugal em 26/1/90, aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº20/90 de 12/9 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº49/90, ambos publicados publicada no DR I Série nº211/90, de 12/10/90 ).

Como é sabido, a regulação do exercício das responsabilidades parentais comporta três aspectos: a guarda, o regime de visitas e os alimentos.

O critério legal de atribuição ou repartição das responsabilidades parentais é o “superior interesse da criança “ (arts.1905 CC , 180 da OTM, 3 nº1 da Convenção Sobre os Direitos da Criança).

E o “ interesse superior da criança “, enquanto conceito jurídico indeterminado carece de preenchimento valorativo, cuja concretização deve ter por referência os princípios constitucionais, como o direito da criança à protecção da sociedade e do Estado com vista ao seu desenvolvimento integral (art.69 nº1 da CRP), reclamando uma análise sistémica e interdisciplinar da situação concreta de cada criança, na sua individualidade própria e envolvência (cf. Ac RC de 3/5/2006, proc. nº681/06, do mesmo relator, disponível em www dgsi.pt).

                O exercício das responsabilidades parentais deve ter presente ainda o princípio da dignidade da pessoa humana, legitimador do menor enquanto sujeito de direitos e não como mero objecto, o princípio da continuidade das relações familiares e da convivência familiar e o princípio da igualdade dos pais.

A Lei nº61/2008 de 31/10 (com entrada em vigor em 31 de Novembro de 2008), ao regular o novo regime jurídico do divórcio, procedeu também à alteração dos arts.1901 a 1912 do CC, atinentes ao exercício das responsabilidades parentais.

É fundamento da alteração da regulação do poder paternal, em nova acção autónoma, “ quando circunstâncias supervenientes tornem necessário alterar o que estiver estabelecido “ – art.182 nº1 da OTM.

                O que deve entender-se por “ circunstâncias supervenientes”?

                Tratando-se de um processo de jurisdição voluntária, tem aqui aplicação o critério estabelecido no art. 988 nº1 do CPC - “ dizem-se supervenientes tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão, como as anteriores que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso”.

                Consagra-se tanto a superveniência objectiva (factos ocorridos posteriormente à decisão), como a subjectiva (factos anteriores não alegados por ignorância ou outro motivo ponderoso).

                A alteração reclamada reporta-se apenas à pensão de alimentos devidos à menor M..., fixada por sentença de 14/7/2009.

                A sentença recorrida desatendeu a pretensão, argumentando que, apesar da declaração de insolvência, por sentença transitada em julgado, o requerente não provou a impossibilidade de pagamento, ou seja, que não dispõe de quaisquer rendimentos.

                Em contrapartida, objecta o recorrente com a impossibilidade da prestação, por comprovada insuficiência económica, designadamente, em face da declaração de insolvência.

O direito de alimentos dos filhos menores decorre do vínculo jurídico da filiação (arts.1878, 1879 CC), e em caso de ruptura do casamento a obrigação de alimentos devidos a menores autonomiza-se do dever conjugal de assistência (art.1795-A CC).

O dever de alimentos impende por igual sobre ambos os progenitores (art.36 nº1 da CRP e 1878 nº1 do CC), mas o princípio da igualdade não significa que cada cônjuge seja obrigado a contribuir com metade dos alimentos.

Os alimentos devidos aos filhos menores compreendem as despesas com o sustento, segurança, saúde e educação ( art.1879 CC ). O conceito de “sustento” é mais vasto que a simples necessidade de alimentação, visto abarcar todas as necessidades vitais, designadamente as relacionadas com a saúde, os transportes, a segurança, a educação e instrução (art. 2003 CC), sendo maior que a exigida nos restantes casos previstos na lei (art.2009 CC).Com efeito, a obrigação de sustento não se afere aqui pelo estritamente necessário à satisfação das necessidades básicas, mas ao indispensável ao desenvolvimento físico, intelectual, moral do menor. A criança tem direito a um nível de vida suficiente e incumbe aos pais assegurar a condição de vida necessária ao seu desenvolvimento (art.27 nº1 da Convenção).

Como não há, nem seria concebível, um sistema tarifado, a lei estabelece ao juiz apenas critérios gerais de orientação, como os princípios da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana, dentro dos quais terá de ser fixada a prestação ajustada às circunstâncias peculiares de cada caso.

Impõe-se a ponderação cumulativa do binómio - possibilidade do requerido / necessidade do requerente (art.2004 do CC), embora com as especificidades próprias relativas aos filhos menores.

A este propósito, no caso de separação ou divórcio, a lei postula o critério da identidade de condições que vigoravam na constância do matrimónio (art.1906 nº1 do CC ), ou seja, a manutenção da mesma qualidade de vida, critério este que terá, no entanto, de ser conjugado com o princípio da proporcionalidade, pois deve ser assim desde que a separação ou divórcio não impliquem uma diminuição real das capacidades contributivas dos pais.

Quanto ao primeiro factor, diz a lei que “ os alimentos serão proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los “, significando que não podem ser fixados em montante desproporcionado aos meios de quem se obriga, mesmo que desse modo não seja possível eliminar completamente a situação de carência do alimentado. O segundo factor, contende com a real necessidade do menor sempre variável de caso para caso.

A sentença de 14/7/2009, transitada em julgado, fixou a pensão de alimentos devidos à menor M... no valor de € 200,00 por mês, com actualização anual segundo a taxa da inflação, e no pagamento de metade das despesas escolares, despesas extraordinárias de saúde e as relacionadas com as actividades extracurriculares.

Para tanto, socorreu-se da equidade, tendo em conta, designadamente, que o pai (aqui recorrente) auferia uma quantia mensal superior a € 750,00, vivendo a menor com a mãe, desempregada.

Ignora-se actualmente o montante exacto das despesas com o sustento e educação da menor M..., mas isso não significa que não existam, até por serem factos notórios, não carecidos de alegação e prova. De resto, a alteração pretendida baseia-se na alegada impossibilidade por parte do recorrente.

A declaração de insolvência do recorrente, por sentença de 6/2/2013, transitada em julgado (proc. nº ...) constitui claramente um facto superveniente, mas tal não implica a extinção da obrigação alimentar.

Coloca-se a questão de saber se, nestas circunstâncias, em que ocorre impossibilidade económica, deve fixar-se ou manter-se a pensão de alimentos, e para a qual existem duas respostas:

Uma no sentido de que a pensão de alimentos não pode ser fixada porque os factores da medida da obrigação alimentar são também requisitos da própria existência;

Outra a sustentar que a atribuição dos alimentos se impõe, independentemente do apuro da situação económica.

Pela maior consistência argumentativa, deve acolher-se a tese (prevalecente na jurisprudência desta Relação) da obrigatoriedade da fixação e manutenção dos alimentos, porque, em síntese, se trata de um direito fundamental e irrenunciável dos menores e a intervenção do FGADM (Lei nº 75/98 de 19/11) pressupõe a prévia condenação do obrigado a alimentos ( cf., desta Relação, por ex., Ac RC de 17/6/2008, proc. nº 230/07; de 28/4/2010, proc. nº 1810/05; de 4/5/2010, proc. nº 1014/08; de 12/11/2013, proc. nº 876/1 , disponíveis em www dgsi.pt/jtrc).

Também REMÉDIO MARQUES (Algumas Notas Sobre Alimentos - Devidos a Menores, 2ª ed., pág. 72), para quem “os direitos-deveres dos progenitores para com os menores são sempre devidos, independentemente dos seus recursos económicos e dos estado de carência económica dos filhos, posto que se trata de direitos cujo exercício é obrigatório e prioritário em atenção à pessoa e aos interesses do menor. Na nossa opinião, não tem aplicação, nestas eventualidades, o disposto no art. 2004/1 do CC, de harmonia com o qual, e ao derredor do princípio da proporcionalidade se deve atender às possibilidades e económicas do devedor, para o efeito de fixar a obrigação de alimentos. Donde, faz mister fixar-se sempre uma prestação de alimentos a cargo de um ou de ambos os progenitores, mesmo que estejam desempregados e não tenham meios de subsistência “.

O princípio da proporcionalidade (art.2004 nº1 CC) contende com a medida da obrigação e não com a obrigação propriamente dita, devendo intervir depois de salvaguardado o limite mínimo da obrigação de alimentos que incumbe ao progenitor, independentemente das suas condições sócio-económicas, indispensável à sobrevivência e desenvolvimento do menor ( “superior interesse”).

O dever especial de alimentos que recai sobre os pais, por efeito da filiação, é inerente a essa qualidade, e por isso não cessa com o divórcio, separação judicial ou de facto ou com a ausência (arts.1905 e 1912 CC), tratando-se de uma obrigação indisponível, imprescritível e impenhorável (art.2008 nº1 e 2, 853 nº1 b) e 298 nº1CC).

Acresce que estando o acesso ao FGADM dependente da prévia fixação de alimentos a favor do menor (art.1º e 3º nº1 da Lei nº 75/98 de 19/11), a exoneração impediria a menor M... de beneficiar do Fundo.

Por isso, deve ser fixada e mantida a pensão de alimentos devidos a menor ainda que o progenitor, a ela obrigado, se encontre desempregado e insolvente.

                2.5. - Síntese conclusiva

Deve ser fixada e mantida pensão de alimentos devidos a menor ainda que o progenitor, a ela obrigado, se encontre desempregado e insolvente.


III – DECISÃO

                Pelo exposto, decidem:

1)

                Julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.

2)

                Condenar o Apelante nas custas, sem prejuízo do apoio judiciário.

Coimbra, 24 de Março de 2015.


( Jorge Arcanjo - Relator)

( Teles Pereira )

( Manuel Capelo )