Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3262/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: MONTEIRO CASIMIRO
Descritores: PROCESSO CIVIL
SELECÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO - CONFISSÃO
Data do Acordão: 12/07/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTº 511º, Nº 1, DO CÓD. PROC. CIVIL
Sumário: I –.Só deve ser incluída na base instrutória a matéria de facto relevante para a decisão da causa que deva considerar-se controvertida (artº 511º, nº 1, do Cód. Proc. Civil).
II – Não obedece a esse requisito a matéria da facto que tenha sido objecto de confissão das partes, a qual deve, antes, ser considerada como assente.
Decisão Texto Integral: 6
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

A..., propôs, em 14/01/2004, pelo Tribunal da comarca de Aveiro, acção com processo sumário, contra B..., com os seguintes fundamentos, em síntese:
A autora, no exercício da sua actividade de venda de artigos de ouro ao público, vendeu à ré diversas peças em ouro, tendo sido acordado previamente os preços e condições de pagamento.
A ré não chegou a proceder ao pagamento dos bens que lhe foram vendidos e entregues, encontrando-se em débito para com a autora no montante de 5.912,00 €, acrescido de juros de mora, que à data, perfazem o montante de 137,95 €.
Termina, pedindo que, na procedência da acção, a ré seja condenada a pagar-lhe a referida quantia de 5.912,00€ e juros de mora vencidos, no valor de 137,95 €, e vincendos até integral pagamento.
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A ré contestou, por excepção, pedindo a sua absolvição da instância, em virtude de a autora carecer de personalidade judiciária, e, por impugnação, pugnando pela improcedência da acção, uma vez que, embora tenha adquirido, em meados de Outubro de 2003, no estabelecimento denominado “Pérolas Jóias” 1 pulseira e 3 fios em ouro, no valor global de 1.600,00€, ficou de pagar essa importância em prestações, sendo certo que, apesar de ter entregue a sua obrigação inicial a 20/10/2003, na quantia de 100,00 €, não pagou qualquer outra prestação em virtude de ter sido agredida e ameaçada pelo Laudelino.
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A autora apresentou réplica, concluindo como na p. i., e requerendo a condenação da ré como litigante de má-fé.
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No despacho saneador foi decidido que, atento o teor da procuração de fls. 34, estava ultrapassada a excepção suscitada pela ré.
Foi organizada a selecção dos factos considerados assentes e dos que constituem a base instrutória, sem reclamações.

Teve, depois, lugar o julgamento, com gravação da prova e, decidida a matéria de facto controvertida, sem reclamações, foi proferida a sentença, que julgou a acção parcialmente procedente, condenando a ré a pagar à autora a quantia de 1.600,00 €, acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, desde 31/10/2003 até efectivo pagamento.
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Inconformada, apelou a autora, rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:
1. A resposta dada à matéria quesitada em 1º da base instrutória não devia ter sido no sentido de considerar “provado apenas o que consta da resposta ao quesito 2º” mas no sentido de Provado.
2. O depoimento da testemunha Manuel Campos indicado para prova do quesito 1º como consta da gravação, embora, por lapso, referido na acta como indicado à resposta aos quesitos 2º e 5º, é inequívoca no sentido de se considerar provado que a ré comprou à autora os artigos discriminados no documento junto a fls. 6.
3. O depoimento de tal testemunha foi prestado de forma clara e credível e explicou ao Tribunal porque assistiu ao negócio, quantas pessoas se encontravam no estabelecimento comercial, as circunstâncias de tempo em que as pessoas saíram do local, quem acompanhava a ré, quais os artigos que a ré adquiriu à autora, em pormenor (tanto quanto a alguém pode ser exigível) e qual o valor que recorda ter sido referido (4.000,00 €).
4. Este meio probatório (depoimento), gravado na cassete é suficiente para impor decisão diversa daquela que o Tribunal recorrido encontrou e, concretamente para considerar provada a matéria constante do 1º quesito.



5. Conjugados os três depoimentos das pessoas indicadas para prova do primeiro quesito, resulta claro que as duas primeiras testemunhas se referem a uma compra posterior, ocorrida em 20 de Outubro de 2003 enquanto que o Sr. Manuel Campos, foi a única pessoa a assistir à compra feita pela ré à autora em 14 de Outubro de 2003.
6. Não é exigível a um terceiro que, em trabalho assiste a um negócio de compra e venda de objectos em ouro, no interior de uma ourivesaria, saiba mais pormenores do negócio do que aqueles que foram relatados ao Tribunal pela testemunha Manuel Campos.
7. Considerando provado o quesito 1º da base instrutória, a decisão de direito devia ter sido no sentido de condenar a ré no pagamento da quantia peticionada pela autora e não apenas na quantia de 1.600,00 €, valor a que corresponde apenas a segunda factura, de 20/10/03.
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A ré contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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Na 1ª instância foi dado como provado o seguinte:
I - A autora exerce a actividade de venda de artigos em ouro – al. A) dos Factos Assentes.
II – A autora vendeu à ré, em Outubro de 2003, uma pulseira e três fios em ouro, pelo preço total de 1.600 € - resposta ao quesito 2º da Base Instrutória.

Importa, ainda ter em consideração mais o seguinte, com base no disposto no nº 3 do artº 659º do Código de Processo Civil:
III – A fls. 6 encontra-se junta fotocópia de uma factura, com o nº 157, emitida pela autora em nome da ré, com data de 14/10/2003, no montante global de 4.644,00 €, com IVA incluído, referente à venda de 1 colar, 1 fio, 1 cruz, 1 cordão e três pulseiras.
IV – A fls. 7 encontra-se junta a fotocópia de uma factura, com o nº 158, emitida pela autora em nome da ré, com data de 20/10/2003, no montante


global de 1.268,00 €, com IVA incluído, referente à venda de três fios.
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Como é sabido, o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o tribunal da relação conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo razões de direito ou a não ser que aquelas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs 664º, 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil – diploma a que pertencerão os restantes normativos citados sem menção de proveniência).
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A recorrente impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto, pretendendo a alteração da resposta ao quesito 1º da Base Instrutória, porquanto a prova testemunhal, nomeadamente, o depoimento da testemunha Manuel Campos, impunha a resposta de “provado” a tal quesito.
Esse quesito 1º tem a seguinte redacção:
“A autora vendeu à ré os produtos descritos nas facturas das folhas 6 e 7 (cujos conteúdos se dá por reproduzidos), pelo preço total de 5.912 €?”.
E teve a seguinte resposta:
“Provado apenas do que consta da resposta ao quesito 2º”.
Dado que houve gravação da prova e a recorrente deu cumprimento aos ónus impostos pelo artº 690º-A, pode a mesma impugnar tal decisão proferida sobre a matéria de facto, podendo esta Relação alterar a decisão do Tribunal de 1ª instância sobre tal matéria, reapreciando, para o efeito, as provas em que assentou a parte impugnada.
Analisando a prova testemunhal gravada, começamos por confirmar que, como alega a recorrente, a testemunha Manuel Maria Pinho de Campos foi inquirida à matéria dos quesitos 1º a 5º da Base Instrutória e não apenas à dos quesitos 2º a 5º, como consta da acta de fls. 113 e ss.
O Sr. Juiz a quo fundamentou a decisão sobre a matéria de facto nos seguintes termos: “O Tribunal formou a sua convicção na confissão feita pela ré na contestação, no que se refere aos factos dados como provados. Os depoimentos das quatro primeiras testemunhas foram vagos e insuficientes quanto aos bens vendidos e seu preço. O depoimento da última testemunha não foi credível em alguns aspectos e foi impreciso em relação a outros pontos”.


Discordamos da apreciação feita pelo Sr. Juiz no que diz respeito aos depoimentos das testemunhas Aníbal Gonçalves Garim, Maria Fernanda Moreira Meireles e Manuel Maria Pinho de Campos, visto que, da conjugação de tais depoimentos, é perfeitamente possível concluir que a ré adquiriu os objectos descritos nos documentos de fls. 6 e 7, deslocando-se, para o efeito, duas vezes ao estabelecimento comercial da autora.
Da 1ª vez estava presente a testemunha Manuel Campos, que assistiu à parte final da compra dos objectos em ouro descriminados no documento de fls. 6, referindo que a ré comprou 4 ou 5 ou 6 objectos (pulseiras, colares e um cordão) e que ouviu falar em quatro mil e tal euros.
Não é de admirar que a mesma não saiba, com absoluta certeza, especificar todos os objectos adquiridos e os respectivos preços, visto que não foi ela que procedeu à venda e, certamente, desconhecia que iria, posteriormente, ser chamada a depor como testemunha, não sendo, por isso, exigível que tomasse nota de tudo o que se passou na altura em que a ré procedeu à referida compra.
Seria de estranhar é que a mesma soubesse precisar tais factos com maior clareza do que o fez.
Por sua vez, as testemunhas Aníbal e Maria Fernanda estavam presentes quando a ré comprou os fios descriminados no documento de fls. 7, referindo que a ré queria comprar também um cordão em ouro, mas que o Sr. Laudelino se recusou a vender, por, segundo disse na altura, ela já lhe dever muito dinheiro.
Os depoimentos dessas três testemunhas levam a que seja alterada a resposta ao quesito 1º, dando-se o mesmo como “provado”.
Face à alteração da resposta ao quesito 1º, não pode subsistir a resposta dada na 1ª instância ao quesito 2º, que, como se recorda, foi a de “provado”.
A resposta a este quesito deverá considerar-se prejudicada pela resposta dada ao quesito 1º, após a alteração atrás referida.
De qualquer modo, a matéria de facto constante daquele quesito 2º não deveria ter sido levada à base instrutória, devendo, antes, ter ficado a constar dos factos assentes, uma vez que o Sr. Juiz a quo fundamentou a resposta a esse quesito na confissão feita pela ré na contestação, sendo certo que só é incluída na base instrutória a matéria de facto controvertida (cfr. artº 511º, nº 1).

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Com a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto nos termos atrás referidos, fica, assim, provado que a autora vendeu à ré, nos dias 14 e 20 de Outubro de 2003, os produtos descriminados nos documentos (facturas) de fls. 6 e 7, no valor global de 5.912,00 €.
Como efeito desses contratos de compra e venda celebrados entre a autora e a ré, incumbia a esta pagar o respectivo preço (artº 879º, al. c), do Código Civil).
O que não provou ter feito, como lhe competia nos termos do disposto no artº 342º, nº 2, do mesmo Código.
Assim, vai a mesma condenada a pagar à autora a quantia peticionada de 5.912,00 € (4.644,00 € + 1.268,00 €).
A ré vai ainda condenada a pagar os respectivos juros de mora, à taxa legal (4%, de acordo com a Portaria nº 291/03, de 8 de Abril).
Tais juros vencem-se desde 14/10/2003 sobre 4.644,00 € e desde 20/10/2003 sobre 1.268,00 €, de acordo com o disposto no artº 885º, nº 1, do Código Civil, visto não ser aqui aplicável, como pretende a ré, o disposto no artº 4º do Decreto-Lei nº 32/2003, de 17 de Fevereiro, por, como se vê do preâmbulo do mesmo, não se aplicar às transacções com os consumidores.
Os juros vencidos até à data da propositura da acção atingem o montante de 58,77 €, sendo também devidos os vincendos até integral pagamento.
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Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em, dando parcial provimento ao recurso, julgar a acção parcialmente procedente e condenar a ré nos termos acabados de referir, assim revogando nessa parte a sentença recorrida.
Custas a cargo de autora e ré na proporção do vencido.