Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
66/16.1T9ACB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: ESCUSA DE JUIZ
Data do Acordão: 01/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JL CRIMINAL DE ALCOBAÇA)
Texto Integral: S
Meio Processual: INCIDENTE DE ESCUSA DE JUIZ
Decisão: DEFERIDO
Legislação Nacional: ART. 43.º DO CPP
Sumário: I - O motivo sério e grave referido no n.º 1 do art. 43º, do CPP tem que resultar de uma concreta situação de facto, onde os elementos processuais ou pessoais se revelem adequados a fazer nascer e suportar as dúvidas sobre a imparcialidade do tribunal.

II - Quando o Juiz requerente do pedido de escusa tomou conhecimento do objecto dos autos através da actividade levada a cabo por este Magistrado num outro julgamento, onde ouviu depoimentos de testemunhas que, como é evidente, terão a mesma qualidade processual nestes autos, cujos depoimentos o determinaram a ter como verificados os novos factos que, através da referida certidão e do referido registo magnético da prova por declarações, comunicou ao Ministério Público, verifica-se fundamento do pedido de escusa.

III - Objectivamente, há que considerar que para qualquer terceiro colocado numa posição independente, o conhecimento prévio pelo Juiz dos factos sobre os quais deverá proferir decisão, afectará a equidistância que deve ser mantida por quem tem a função de julgar e, portanto, a sua imparcialidade, no pressuposto, natural, de que poderá já ter orientado a sua convicção num determinado sentido.

Decisão Texto Integral:







Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I.


O Exmo. Juiz Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Juízo Local Criminal de Alcobaça, Sr. Dr. A... vem, ao abrigo do disposto nos arts. 43º, nºs 1 e 4 do C. Processo Penal, formular pedido de escusa a fim de não intervir na audiência de julgamento a realizar no processo comum singular nº 66/16.1T9ACB, que lhe foi distribuído, no qual é arguido B... , acusado que está, pelo Ministério Público, da prática de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo art. 347º, nºs 1 e 2 do C. Penal e da prática de uma contra-ordenação muito grave, p. e p. pelos arts. 4º, nº 3, 146º, l) e 147º, do C. da Estrada.

Funda a pretensão, em síntese, nas seguintes razões:

- O requerente presidiu à audiência de julgamento do processo nº 4/16.1GBACB onde o aqui arguido foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez;

- Nessa audiência de julgamento depuseram como testemunhas, C... , D... e E... que relataram factos novos e autonomizáveis susceptíveis de determinarem a prática, pelo arguido, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário;

- Na sentença que então proferiu, o requerente determinou a extracção de certidão do auto de notícia, das actas da audiência de julgamento e da própria sentença e, juntamente com o registo gravado da prova por declarações, ordenou a sua remessa ao Ministério Público, para os fins tidos por convenientes;

- Estes elementos deram origem ao presente processo, onde o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido, imputando-lhe a prática de um crime de resistência e coacção sobre funcionário e de uma contra-ordenação rodoviária muito grave, processo que veio a ser distribuído ao requerente, para julgamento;

- Entende o requerente que o descrito circunstancialismo é adequado a gerar desconfiança na comunidade quanto à sua imparcialidade para realizar o julgamento de factos por si denunciados estando por tal razão preenchida a previsão do art. 34º, nº 1 do C. Processo Penal.     


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Colhidos os vistos, cumpre decidir.


II.

1. Nos termos do art. 44º do C. Processo Penal, a formulação do pedido de escusa é admissível até ao início da audiência, até ao início da conferência nos recursos ou até ao início do debate instrutório, só o sendo posteriormente, e apenas até à sentença ou até à decisão instrutória, quando os factos que o fundamentam sejam supervenientes ou de conhecimento posterior ao início da audiência ou do debate.

In casu, o pedido de escusa é tempestivo, uma vez que foi deduzido pelo Magistrado Judicial a quem competiria presidir ao julgamento e os autos aguardam que seja proferido despacho nos termos e para os efeitos previstos nos arts. 311º e 312º do C. Processo Penal.

Conforme dispõe o art. 45º, nº 1, a), do C. Processo Penal, o pedido de escusa deve ser apresentado perante o tribunal imediatamente superior. Estando em causa o pedido de escusa de um Sr. Juiz de Direito, mostra-se o mesmo correctamente apresentado perante a Relação competente.

Deste modo, nada obstando ao conhecimento do mérito do incidente, passemos à sua apreciação.


*

2. Aos tribunais compete, enquanto órgãos de soberania, administrar a justiça em nome do povo (art. 202º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa). Nesta função, os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei (art. 203º, da Constituição da República Portuguesa).

O princípio constitucional da independência dos tribunais impõe a independência dos juízes e a sua imparcialidade, qualidades igualmente garantidas pela Constituição da República Portuguesa (cfr. art. 216º), e asseguradas pela lei ordinária (art. 4º da Lei da Organização do Sistema Judiciário).

Na verdade, o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, bem como que as causas em que intervenham sejam objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo, que a Constituição da República garante a todos os cidadãos (cfr. art. 20º, nºs 1 e 4), tem como pressuposto a imparcialidade de quem julga pois, sem ela, é impossível alcançar a realização do direito no caso concreto.

Visando assegurar a efectiva imparcialidade do julgador, o C. Processo Penal regula, no seu Livro I, Título I, Capítulo VI, o regime dos impedimentos, recusas e escusas do juiz.

Relativamente às recusas e escusas, estabelece o art. 43º:

1 – A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.”.

2 – Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do nº 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40º.

            3 – A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis.

4 – O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos nºs 1 e 2.”.

Recusa e escusa são pois, duas figuras processuais que comungam o mesmo objecto qual seja, o de obstar a que um juiz intervenha num processo quando exista um motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

O que as distingue é a diferente legitimidade para a respectiva dedução. A recusa pode ser deduzida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis (art. 43º, nº 3, do C. Processo Penal), enquanto a escusa só pode ser pedida pelo próprio juiz (nº 4 do mesmo artigo).

A imparcialidade, enquanto atributo do juiz, vem sendo concebida numa perspectiva subjectiva e numa perspectiva objectiva.

Na perspectiva subjectiva, ela respeita à posição pessoal do juiz sobre qualquer circunstância que possa favorecer ou desfavorecer qualquer interessado na decisão. Como afirma Paulo Pinto de Albuquerque, o teste subjectivo da imparcialidade visa apurar se o juiz deu mostras de um interesse pessoal no destino da causa ou de um preconceito sobre o mérito da causa (Comentário do Código de Processo Penal, 2007, Universidade Católica Editora, pág. 127). Esta imparcialidade presume-se, pelo que só a existência de provas da parcialidade, podem afastar a presunção.

Na perspectiva objectiva, relevam as aparências – circunstâncias de carácter orgânico e funcional, ou circunstâncias externas – que, sob o ponto de vista do cidadão comum, e não tanto do destinatário directo da decisão, possam afectar a imagem do juiz e, nessa medida, suscitar dúvidas sobre a sua imparcialidade. Aqui, a dúvida sobre a imparcialidade do juiz resulta de uma especial relação sua com algum dos sujeitos processuais, ou com o processo.

Como se escreveu no Ac. do STJ de 06/07/2005 (CJ, S, XIII, II, 236), os motivos que podem afectar a garantia da imparcialidade objectiva, que mais do que juiz e do “ser” relevam do “parecer”, têm de se apresentar, nos termos da lei, “sério” e “grave”. (…) não basta um qualquer motivo que impressione subjectivamente o destinatário da decisão relativamente ao risco de algum prejuízo ou preconceito que possa ser tomado contra si, mas, antes, que o motivo invocado tem de ser de tal modo relevante que, objectivamente, pelo lado não apenas do destinatário da decisão, mas também de um homem médio, possa ser entendido como susceptível de afectar, na aparência, a garantia da boa justiça, por poder ser externamente (…) como susceptível de afectar (gerar desconfiança) a imparcialidade.  

O motivo sério e grave referido no nº 1, do art. 43º, do C. Processo Penal, tem que resultar de uma concreta situação de facto, onde os elementos processuais ou pessoais se revelem adequados a fazer nascer e suportar as dúvidas sobre a imparcialidade do tribunal.  

 

3. Tendo presente que o deferimento de qualquer escusa constitui, sempre, uma derrogação do princípio do juiz natural, constitucionalmente garantido (cfr. art. 32º, nº 9 da Constituição da República Portuguesa), visando a isenção e imparcialidade da decisão a proferir, atentemos nos factos invocados pelo Sr. Juiz requerente que fundamentam o pedido.

i) Como ponto prévio, na perspectiva subjectiva de imparcialidade, há que dizer que não está em causa qualquer concreto comportamento do Sr. Juiz requerente susceptível de levantar suspeita, por mínima que seja, sobre a sua imparcialidade. Nem de outro modo poderia ser já que, tendo o incidente sido por si deduzido, o que se evidencia é a conduta escrupulosa do Magistrado requerente.

 ii) Atentemos agora na questão, à luz da perspectiva objectiva de imparcialidade.

Face à certidão junta, resulta que ao Sr. Juiz requerente foi distribuído para julgamento um processo criminal no qual é arguido o cidadão B... , aí acusado da prática de um crime de resistência e coacção sobre funcionário e de uma contra-ordenação rodoviária muito grave.

Por outro lado, o Sr. Juiz requerente invoca a circunstância de denunciado ao Ministério Público os factos por cuja prática veio o arguido a ser acusado, dos quais teve conhecimento no âmbito de um outro julgamento a que presidiu.

É este o circunstancialismo que o Sr. Juiz entende ser susceptível de tornar suspeita a sua intervenção nos autos e, por essa via, constituir motivo sério, adequado a gerar a desconfiança dos intervenientes processuais e da comunidade quanto à sua imparcialidade, o seu conhecimento prévio dos factos que integram o thema decidendum do processo.

Pois bem.

Como se sumariou no Ac. do STJ de 13 de Fevereiro de 2013, processo nº 1475/11.8TAMTS.P1-A.S1, «A seriedade e gravidade do motivo resultam de um estado de forte verosimilhança (desconfiança) sobre a imparcialidade do juiz (propósito de favorecimento de certo sujeito processual em detrimento de outro), formulado com base na percepção que um cidadão médio tem sobre o reflexo daquele facto concreto na imparcialidade do julgador.» (in www.dgsi.pt). A lei não define, no entanto, os conceitos de seriedade e gravidade do motivo da escusa, pelo que terão eles que ser densificados, em cada caso, a partir de regras de razoabilidade e do senso comum. 

Em matéria de imparcialidade do juiz, a este não basta sê-lo [imparcial], é também preciso parecê-lo. In casu, a denúncia feita pelo Sr. Juiz requerente dos factos que vieram a integrar o objecto dos autos não é, por assim dizer, uma denúncia vulgar mas uma denúncia qualificada, querendo-se com isto significar apenas que ela resulta da actividade levada a cabo por este Magistrado num outro julgamento, onde ouviu depoimentos de testemunhas que, como é evidente, terão a mesma qualidade processual nestes autos, cujos depoimentos o determinaram a ter como verificados os novos factos que, através da referida certidão e do referido registo magnético da prova por declarações, comunicou ao Ministério Público.

Perante isto, objectivamente, há que considerar que para qualquer terceiro colocado numa posição independente, o conhecimento prévio pelo Sr. Juiz dos factos sobre os quais deverá proferir decisão, afectará a equidistância que deve ser mantida por quem tem a função de julgar e, portanto, a sua imparcialidade, no pressuposto, natural, de que poderá já ter orientado a sua convicção num determinado sentido.

4. Em síntese conclusiva:

- O conhecimento prévio que o Sr. Juiz requerente tem dos factos que integram o objecto do processo leva-nos a concluir que a sua intervenção na fase do julgamento é susceptível de gerar a desconfiança dos intervenientes processuais e da comunidade sobre a sua imparcialidade;   

- Estando assim, verificados os pressupostos da escusa, previstos no art. 43º, nºs 1 e 4, do C. Processo Penal, relativamente ao processo comum singular nº 66/16.1T9ACB, deve a mesma ser concedida.


III


Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em deferir o pedido de escusa do Sr. Juiz, Dr. A... , relativamente ao processo comum singular nº 66/16.1T9ACB.

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Incidente sem tributação.

Coimbra, 10 de Janeiro de 2018



Heitor Vasques Osório (relator)


Helena Bolieiro (adjunta)