Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2015/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: INÁCIO MONTEIRO
Descritores: DESCRIMINALIZAÇÃO DO CHEQUE SEM PROVISÃO
Data do Acordão: 11/17/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ÁGUEDA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 11.º, N.º 1, AL. A) E N.º 3, DO DL 454/91, DE 28 DE DEZEMBRO, NA REDACÇÃO DO DL 316/97, DE 19 DE NOVEMBRO E ART. 311.º, N.º 2, AL. A) E 3, AL. D), DO CPP.
Sumário: I - A data da entrega do cheque face à nova lei é um elemento objectivo essencial do crime e por isso deve constar logo da acusação, sob pena de ser rejeitada, por manifestamente infundada, nos termos do art. 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. d), do CPP.
II - Tendo sido deduzida acusação por crime de cheque sem provisão ao abrigo do art. 11.º, n.º 1, al. a), do DL 454/91, de 28/12, finda a contumácia do arguido, depois da entrada em vigor do DL 316/97, de 19/11, o juiz deve ordenar o arquivamento do procedimento criminal, por descriminalização da conduta do arguido se da acusação constar que o arguido entregou o cheque em data indeterminada por não haver nos autos elementos que nos permitam concluir qual a data.
Decisão Texto Integral: ***

Acordam, em conferência, os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra
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No processo supra identificado, em que é arguido A..., foi o mesmo acusado pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelo art. 11.º, n.º 1, al. a), do DL n.º 454/91, de 28 de Dezembro, com referência ao art. 217.º, n.º 1, do Cód. Penal.
A acusação foi recebida nos precisos termos em que foi formulada em 20/12/96.
Por despacho de 6/06/1997, foi o arguido declarado contumaz.
Posteriormente o arguido veio dar notícia do seu paradeiro e prestar termo de identidade e residência, a fls. 150, perante a Polícia de Segurança Pública.
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Por despacho de fls. 153 e 154, proferido em 18/09/2003, contrariando a promoção do Ministério Público, o M.mo Juiz em vez de designar dia para julgamento, declarou extinto o procedimento criminal, por entender haver descriminalização do crime em análise face ao DL n.º 316/97, de 19 de Novembro e art. 2.º, n.º 2, do Cód. Penal, uma vez que na acusação consta que o cheque datado de 1/10/1995, foi entregue em data indeterminada.
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Eis o despacho:
“Compulsando a acusação proferida nos presentes autos (fls. 30), verifica-se que da mesma consta apenas a data aposta no cheque em questão (01/10/1995) e não já a data da entrega do mesmo à queixosa.
Aquando da prática dos factos, a punição criminal da emissão de cheque sem provisão encontrava-se prevista no D.L. n.º 454/91 de 28/12.
Com a entrada em vigor do D.L. n.º 316/97 de 19/11, o regime penal do cheque sem provisão veio a ser alterado, excluindo-se designadamente do âmbito da tutela penal o cheque que seja emitido com data posterior à da sua entrega ao tomador (cfr. art. 11.º, n.º 3), verificando-se desse modo uma descriminalização dos denominados cheques pós-datados.
Assim, actualmente, a emissão do cheque com data anterior ou contemporânea da entrega do titulo ao tomador é elemento típico constitutivo do crime de emissão de cheque sem provisão, implicando na prática um regime mais favorável para o arguido do que o que anteriormente vigorava.
Não constando tal elemento típico da acusação, não pode o tribunal em sede de julgamento investigar e conhecer do mesmo, pois tal consubstanciaria uma alteração substancial dos factos descritos na acusação, que como é sabido delimita e fixa o objecto do processo, alteração essa que não poderia ser tomada em conta, conforme estabelece o art. 359.º, n.º 1, do Cód. de Processo Penal, por implicar a violação do princípio do acusatório e das garantias de defesa do arguido.
Com efeito, a investigação pelo tribunal (entidade julgadora) de um elemento típico do crime, que assume natureza substantiva (como passou a ser a data da entrega do cheque), não constante da acusação significaria repor no nosso ordenamento processual penal, de estrutura acusatória, o princípio do inquisitório, que há muito se repudiou e submeter a julgamento alguém que face aos factos pelos quais vem acusado não cometeu crime algum.
Pelo exposto e uma vez que a conduta do arguido, tal como se encontra descrita na acusação, se encontra descriminalizada, dado que da mesma não consta um dos elementos típicos que actualmente caracterizam o crime de emissão de cheque sem provisão, declara-se extinto o procedimento criminal contra ele instaurado, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 11.º, n.º 3 do D.L. n.º 454/91, de 28/12, com a redacção conferida pelo D.L. n.º 316/97, de 19/11 e 2.º, n.º 2, do Cód. Penal”.
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Reagindo a este despacho o Ministério Público interpôs recurso, pugnando pela revogação do mesmo, sustentando que o senhor juiz devia ter designado data para julgamento, a fim de apurar a data em que foi entregue o cheque.
São as seguintes conclusões da motivação:
1. O conhecimento, em sede de julgamento, da data da entrega do cheque ao tomador, elemento constitutivo do tipo legal da emissão de cheque sem provisão por força da alteração introduzida pelo DL 316/97, de 19.11, ao art.11.º, do DL 454/91, de 28.12, não consubstancia alteração substancial dos factos nos termos em que a lei a define (art.1.º, n.º 1, al. f), do C. P.P.). não obstante tal facto não constar da acusação. (uma vez que foi deduzida antes daquela alteração) pois que a prova do mesmo não determinará a imputação ao arguido de crime diverso daquele por que vem acusado, nem a agravação do mesmo.
2. As garantias de defesa do arguido estarão asseguradas com a concessão de prazo para defesa, uma vez que o arguido conhece o crime de que vem acusado e os factos que lhe são imputados. Simplesmente, face à descriminalização operada dos cheques pré-datados, poderá agora o arguido recorrer a - mais - esta possibilidade de defesa. Pelo que a situação em apreço configura uma alteração não substancial dos factos, nos termos previstos no art. 358°, n01 do C.P.P.
3. Foi precisamente esta solução que o legislador teve em vista, ao estabelecer um regime transitório, e ao frisar, no anteprojecto do novo diploma, a necessidade da adopção de medidas transitórias em ordem a complementar a investigação nos processos pendentes.
4. Dos arts. 358.º e 359.º do C.P.P. resulta a possibilidade de serem tidos em conta factos novos na decisão a proferir, não sendo por isso necessário desencadear relativamente a eles novo inquérito, desde que se assegurem as garantias de defesa do arguido. Deste modo, forçosamente se há-de concluir que o legislador, em determinadas situações, quis flexibilizar a estrutura acusatória do processo penal, em ordem a efectivar também os princípios da celeridade processual e da boa administração da justiça, os quais, afinal, integram também o conteúdo das garantias de defesa do arguido.
5. Deve, pois, revogar-se o despacho recorrido, e determinar a sua substituição por outro que designe data para julgamento.
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Admitido o recurso o arguido não respondeu.
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Nesta instância o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto, seguindo os mesmos trilhos do Ministério Público na 1.ª instância, manifesta-se também pela procedência do recurso interposto.
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Cumprido que foi o disposto no art. 417, n.º 2, do CPP, não houve resposta.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre decidir.
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O Direito:
As conclusões formuladas pelo recorrente delimitam o âmbito do recurso, nos termos do art. 409.º, do Cód. Proc. Penal que impõe o princípio da proibição de reformatio in pejus.
O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação (Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, conforme escreve o Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335, sem prejuízo das de conhecimento oficioso.

Questão a decidir:
Apreciar se o facto de na acusação deduzida anteriormente à entrada em vigor do DL n.º 316/97, de 19 de Dezembro, constar que o cheque foi entregue em data indeterminada implica a descriminalização da conduta do arguido ou se deve ser designada data para julgamento, a fim de se apurar a data de entrega.

O Senhor juiz a quo proferiu o despacho recorrido, por entender que após a entrada em vigor do DL 316 / 97, de 19.11, a data da entrega do cheque à ofendida, era indispensável que constasse da acusação, para a que estivessem reunidos os elementos objectivos essenciais do crime de emissão de cheque sem provisão, assim considerando descriminalizada a conduta imputada ao arguido, e declarando assim extinto o procedimento criminal.
Vejamos os factos da acusação relacionados com esta questão:
"Com a data de emissão de 01/10/95 o arguido preencheu e assinou o cheque n.º 10614129, sacado sob a conta n.º 0154574254, do Banco Comercial Português/Nova Rede, agência de Santo Amaro, no montante de Esc. 168.730$00, posto o que, em data indeterminada, livre e sabedor do que fazia, o entregou à ordem de Sodibairro (...), destinando-se o mesmo ao pagamento de uma viatura automóvel.
Apresentado a pagamento (...), foi devolvido sem ter logrado obter o pagamento por o arguido não ter para tal dinheiro suficiente na respectiva conta corrente, a 06.10.95 (...)”
A acusação foi deduzida em 18/09/1996, encontrando-se a incriminação ao abrigo do DL n.º 454/91, de 28 de Dezembro.
O despacho recorrido foi preferido em 18/09/2003.
Ora, como refere o senhor juiz que proferiu o despacho posto em crise, face à redacção do art. 11.º, n.º 3, do DL n.º 316/97, de 19 de Dezembro, o regime penal do cheque sem provisão veio a ser alterado, excluindo-se designadamente do âmbito da tutela penal o cheque que seja emitido com data posterior à data da sua entrega ao tomador, verificando-se assim uma descriminalização dos cheques pós-datados.
Porém, constando da acusação que o cheque foi entregue ao tomador em data indeterminada, é porque na investigação não foi possível concluir qual a data em que foi entregue.
Aliás, das declarações do participante não possível apurar em que data foi entregue ao portador, pois só assim se entende que da acusação conste “…em data indeterminada…o entregou à ordem da Sodibairro…”.
Por outro lado, em bom rigor, da acusação não só consta a data concreta de entrega do cheque, que é indeterminada, como também nem tão pouco consta a data de preenchimento.
Se não vejamos a imprecisão desta peça processual nesta parte:
Com a data de emissão de 01/10/95 o arguido preencheu e assinou o cheque n.º 10614129…”.
Ora, ao constar da acusação “com a data de emissão" não quer dizer que foi emitido nessa data.
Podemos estar assim perante um cheque pré-datado ou pós-datado.
Se da acusação consta que o arguido entregou o cheque em data indeterminada é porque não foi possível determinar a data. Logo falta um elemento objectivo essencial de punibilidade para o crime de cheque sem provisão.
A conduta do arguido tal qual está descrita na acusação encontra-se descriminalizada, face ao art. 11.º, n.º 3, do DL n.º 316/97, de 19 de Dezembro, deixando de constituir crime a conduta traduzida na emissão de cheque com data posterior à da sua entrega ao tomador, verificando-se assim uma descriminalização dos cheques pós-datados.
E faltando um elemento objectivo da incriminação, hoje face à lei actual, como atrás já fizemos referência não deveria ter sido formulada acusação, logo se não deveria ter sido deduzida acusação, a falta de um elemento objectivo de punibilidade não deve ser suprida em julgamento.
E dizemos que não deve ser suprida tal deficiência em julgamento, uma vez que no despacho de saneamento do processo, nos termos do art. 311.º, n.º 2, al. a) e 3, al. d), do CPP, o juiz deve rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada, designadamente se os factos não constituírem crime.
E uma acusação manifestamente infundada, não pode ser completada ou corrigida com a introdução de um elemento essencial do crime em julgamento, sob pena de chocar com os direitos de defesa do arguido.
O próprio legislador ao alterar os elementos típicos do crime de cheque sem provisão, descriminalizando situações de cheques sem provisão pós e pré-datados, não contemplou especialmente um regime provisório para os casos em que houvesse sido deduzida acusação por crimes de cheques sem provisão, cuja data de entrega era indeterminada e ainda não tivesse havido audiência de julgamento à data de entrada em vigor da actual lei.
O que acontece no caso em apreço é que a conduta do arguido que era crime quando foi deduzida a acusação, deixou de o ser com a entrada em vigor DL 316/97, de 19/11.
Nesta conformidade há que aplicar a lei mais favorável ao arguido, nos termos do art. 2.º, n.º 2, do Cód. Penal.
Por isso, bem decidiu o senhor juiz do tribunal a quo ao proferir despacho a declarar extinto o procedimento criminal, ao declarar cessada a contumácia, em vez de designar dia para julgamento para apurar a data de entrega do cheque, nos termos dos art. 11.º, n.º 3, do DL 454/91, de 28/12, com a redacção dada pelo DL 316/97, de 19/11 e 2.º, n.º 2, do Cód. Penal.
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Decisão:
Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra, julgar improcedente o recurso interposto e consequentemente se confirma o despacho recorrido, o qual declarou extinto o procedimento criminal, nos termos dos art. 11.º, n.º 3, do DL 454/91, de 28/12, com a redacção dada pelo DL 316/97, de 19/11 e 2.º, n.º 2, do Cód. Penal, por não constar da acusação um elemento objectivo essencial do crime de cheque sem provisão.
Sem custas.
Coimbra, 17 de Novembro de 2005