Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
996/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELDER ALMEIDA
Descritores: ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 05/24/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TOMAR
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 334.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. A lei não se basta com um qualquer excesso do titular do direito, antes exigindo um exercício em termos clamorosamente ofensivos do sentimento de justiça dominante.

2. Por isso não basta, para configurar uma situação de abuso de direito que conduza à nulidade da doação, que um Município tenha construído uma biblioteca quando o doador dos terrenos condicionou a doação ao compromisso de fazer arruamentos, parques de estacionamento e espaços verdes, uma vez que em qualquer dos casos se prosseguiu o interesse público, que cabe à autarquia promover.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:


I – RELATÓRIO
1. A... e Outros, intentaram a presente acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra o B..., alegando –em síntese- que os AA. e C... (do qual alguns dos AA. são herdeiros) eram donos de um prédio misto em relação ao qual pretendiam proceder a um loteamento; que o R., porém, apenas permitia que esse loteamento tivesse por objecto uma parcela de 900 m2 de tal prédio, exigindo ainda que os proprietários lhe doassem os prédios constitutivos de duas parcelas que seriam destacadas desse prédio misto, comprometendo-se (o R.) a destinar ambos esses prédios doados exclusivamente a arruamentos, parques de estacionamento e espaços verdes. Mais se comprometeu ainda a custear as obras de urbanização do citado loteamento e a emitir o respectivo alvará a favor dos Requerentes, AA. e predito C..., evitando assim a estes despender o valor correspondente aos encargos do loteamento, o qual estimaram em Esc. 1.082.250$00.
Este ajustado negócio –mais alegaram-, foi concluído através de escritura pública outorgada em 19-05-1975, verificando-se assim os correspondentes efeitos, designadamente a transmissão propriedade das duas parcelas, entretanto destacadas, para o R..
Esses dois prédios -prosseguiram-, situam-se no centro urbano da cidade de Tomar e o valor deles era esse de Esc.l.082.250$00 se o respectivo destino fosse o de arruamento, parques de estacionamento e espaços verdes; porém se esse destino fosse outro, permitindo construções urbanas, esse valor era substancialmente superior, sendo a alteração de tal destino dependia apenas da vontade do R..
Ora –mais aduziram-, sucede que em 1992 o R. levou a efeito justamente essa alteração e, em 7.000 m2 dos prédios doados, a que conferiu o destino de construção urbana, edificou a Biblioteca Municipal de Tomar, com 2.200 m2 de área.
Com tal finalidade construtiva conferida a esses 7.000 m2, mesmo segundo os correspondentes parâmetros de expropriação por utilidade pública, tal área valia, em 1992, Esc. 160.296.000$00.
Assim, e por isso que aquela importância Esc.l.082.250$00, dos encargos e taxas municipais, tem o valor actualizado de Esc. 19.935.045$00, com essa alteração unilateral do destino dos prédios doados o R. deixou de entregar aos AA. –e estes por seu turno de receber-, a quantia de Esc. 140.360.955$00, a qual, face à desvalorização da moeda, em 1998 se cifra em Esc. 175.451.194$00.
Ora –acrescentaram -, a alteração do destino dos prédios doados constitui abuso de direito, determinante da nulidade do negócio de doação, a qual, dada a impossibilidade da restituição em espécie, atenta a implantação de edifício de carácter público, implica a restituição do valor correspondente a esses 7.000 m2 de área utilizada.
E assim fundados, os AA. concluem pedindo a condenação do R. a pagar-lhes aquela cifra de Esc. 175.451.194$00, acrescida de juros.

O R. apresentou contestação em que, além de impugnar diversa factualidade alegada, referiu que os prédios se situavam então na zona abrangida pelo “Esquema do traçado urbano da zona do novo Liceu”, aprovado por Despacho Ministerial, onde se previam equipamentos de uso colectivo, incluindo a construção de uma sala de uso polivalente.
Mercê de tal –mais disse-, as partes tinham que se conformar com o que estava aprovado, não havendo qualquer exigência na doação.
Por outro lado, só uma parte da Biblioteca foi edificada sobre os prédios objecto da doação, que, ademais, foi feita de forma pura e simples, isto é, sem qualquer exigência de finalidade dos terrenos.
O destino dos prédios –ainda-, obedeceu ao plano obrigatoriamente traçado pelas autoridades do governo central e não à vontade do B....
E impugnando também os valores indicados pelos AA., o R. rematou peticionando a sua absolvição do pedido.
Os AA. aduziram, por seu turno, réplica, referindo que não conheciam o plano de urbanização e muito menos o Despacho Ministerial pelo R. invocado.
Em vista da documentação apresentada na contestação, aceitaram, no entanto, que apenas 1.400 m2. terão sido ocupados com a edificação da construção, sendo 4.425 m2. de terreno envolvente adstrito ao edifício.
E em tal decorrência, concluíram reduzindo o montante indemnizatório reclamado, com base nos vectores já considerados na p.i., para o quantitativo de Esc. 129.935.498$00.
O R. ainda treplicou, obtemperando que caso se aplicassem as regras das expropriações consagradas no direito administrativo, o direito à indemnização já teria prescrito, por fim reiterando a sua posição já explicitada na contestação.
Conclusos os autos, o Mm.º Juiz, considerando que no processo já se achavam reunidos os elementos bastantes para uma segura e conscienciosa apreciação do mérito, dele passou a conhecer, julgando a final a acção improcedente e do pedido contra ele formulado absolvendo o R..

2. Irresignados com a assim decidido, os AA. interpuseram o vertente recurso de Apelação, findado a respectiva alegação com as seguintes conclusões:
1. Os factos alegados pelos apelantes, se provados, permitem concluir da existência do exercício abusivo de um direito pelo apelado e, consequentemente, da nulidade do negócio e da indemnização aferida pelo valor dos prédios, devidamente actualizada, por ser impossível a restituição em espécie.
2. Esses factos encontram-se controvertidos.
3. O Meritíssimo Juiz “a quo” devia ter seleccionado a matéria de facto relevante para a decisão da causa, especificando a considerada assente e questionando a controvertida, segundo as soluções plausíveis da questão de direito-
4- Tendo decidido do mérito da causa, o douto despacho saneador-sentença interpretou erradamente o disposto no artº. 334°. do C. Civil, e, consequentemente, não aplicou, como devia as disposições constantes dos artºs. 280°.-2, 289°.-1 e 551°., do mesmo diploma legal, bem como aplicou erradamente o consignado na alínea b) do nº. 1 do artº. 510°. e violou o prescrito no artº. 511°., do C. P. Civil.


3. A Ré apresentou, por seu turno, contra-alegações pugnando pelo improvimento do recurso.

Colhidos que se mostram os competentes vistos legais, cumpre decidir.

II - FACTOS
A matéria factual a considerar e valorar, em ordem à dilucidação da problemática em apreço, traduz-se naquela já vertida no âmbito da antecedente exposição constitutiva do Relatório, complementada com a que se acha vertida no douto saneador-sentença sob o item 2.1. (teor da escritura notarial outorgada entre as partes, ao deante extractada no seu conteúdo relevante).

III – DIREITO
1. Como é sabido, e flui do disposto nos arts. 684º, nº3 e 690º, nº 1, do Cód. Proc. Civil, o âmbito do recurso é fixado em função das conclusões das alegações dos Recorrente, circunscrevendo-se, exceptuadas as de conhecimento oficioso, às questões aí equacionadas.
Assim, e atentando nas conclusões acima transcritas, consta-se que apenas a uma se circunscreve a questão aqui a decidir, qual seja, saber se o Mm.º Juiz se houve ou não incorrectamente ao decidir imediatamente e sem mais do mérito no despacho saneador (sentença) ora recorrido.
Vejamos, pois.

2. Os AA. e aqui Recorrentes começaram por alegar, como vimos, que eles e C... eram donos de um prédio misto do qual foram destacadas duas parcelas, uma a constituir o prédio rústico denominado Ribeiro das Canas, composto por terreno destinado a arruamentos e zonas verdes, com a área de 9700 m2, e outra a constituir o prédio urbano denominado Ribeiro das Canas, composto de casa de habitação, de rés-do-chão e 1° andar, com a área de 160 m2.
Mais alegaram que eles AA. e o dito C... pretendiam proceder a um loteamento do citado prédio misto, sendo que o R. apenas permitia que esse loteamento tivesse por objecto uma parcela de 900 m2 de tal prédio misto.
Além desta limitação, o R. exigiu ainda, para a emissão do respectivo alvará, que os aludidos AA e C... lhe doassem os prédios constitutivos das aludidas duas parcelas, após o respectivo destaque, comprometendo-se a destinar esses prédios doados exclusivamente a arruamentos, parques de estacionamento e espaços verdes. Mais se comprometeu a custear as obras de urbanização do citado loteamento da parcela de 900 m2 e a emitir o respectivo alvará a favor dos citados AA e C....
Em 19 de Maio de 1975, os AA, C... e o R. concluíram esse ajustado negócio mediante a escritura pública a que se reporta o doc. de fls. 64 e ss, designando-o de “Contrato de urbanização e de doação de terrenos”.
Analisando o teor dessa escritura, dela consta, como cláusula Primeira, que –e passamos a citar – “Os segundos outorgantes [AA. e C...] fazem, pela presente escritura, doação pura e simples à Câmara Municipal de Tomar, livre de qualquer ónus ou encargo das seguintes parcelas [as acima mencionadas], destinadas a arruamentos, parques de estacionamento e espaços verdes...”

O R., por sua vez, nega que a doação tenha sido feita com qualquer exigência quanto ao destino a conferir aos prédios, antes foi uma doação pura e simples, devendo-se a menção à finalidade dos prédios, constante da escritura, apenas a fundamentar a isenção fiscal referida na parte final desse mesmo instrumento.
O Mm.º Juiz, na sua decisão ora em crise, manifesta-se tendencialmente favorável à posição do R., expendendo –textualmente (fls. 114 v.º) -, que “ Da escritura, não é nada claro que o Município tenha assumido o ónus de não dar outro destino aos terrenos destacados e entregues a finalidade exclusiva de arruamentos, parques de estacionamento e espaços verdes. Bem pelo contrário, depreende-se até o contrário, isto é a entregue livre de ónus ou encargos.“

Expostas estas doutas posições, e volvendo de novo a nossa atenção para a dos AA. –por isso que, em face do objecto do recurso, é a que fundamente ora nos importa considerar-, temos que, a ser de fazer fé em tal versão, dos termos do negócio entre eles, AA., o falecido C... e o R. firmado, para este resultou a obrigação de dar aos prédios, única e exclusivamente, o conjunto de finalidades expressamente mencionadas na escritura notarial - arruamentos, parques de estacionamento e espaços verdes.
Quer dizer, conquanto dos termos da escritura a doação se assumisse como “pura e sem encargos”, isso apenas se deveu a simples inadvertência, a erro de declaração por parte dos intervenientes, desconforme com a sua verdadeira vontade.
Com efeito, conferindo-se imperativamente aos bens, no real consenso de todos, esse destino, a doação consubstanciava-se numa doação com encargos ou modal, sabido que –consoante a lição de Mota Pinto, Teoria Ger. do Dir. Civil, 3 ª ed., C. Editora, pág. 582-, tal figura se traduz “...no contrato em que, por força da declaração negocial de aceitação, o donatário assume a obrigação de adoptar o comportamento a que se refere a cláusula.”
Portanto –e repetimos, a ser esse o significado a atribuir, conforme o preconizado pelos AA, ao acordo contratual firmado pelas partes-, o R. donatário (apenas) “sub modo”, ficou vinculado a dar a esses prédios objecto da atribuição o destino adrede estipulado e não outro qualquer, pois que –como ensina Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Dir. Civil, 2 ª ed., Almedina, pág. 455-, “o modo modela funcionalmente a utilização que ele [beneficiário] deverá fazer do bem. O bem doado ou deixado deverá ser utilizado de certo modo.”
Ora, assim sendo, como se nos afigura, daí decorre que o R., ao vir posteriormente a erigir sobre parte da área desse prédio rústico doado a Biblioteca Municipal de Tomar, incorreu em incumprimento desse assumido encargo, dessa restrição incidente sobre a coisa doada. Ou seja, o R. violou, pois, o dever ou obrigação que sobre ele impendia de dar a tal prédio apenas aquelas finalidades, dever esse assumido porventura em benefício dos Donatários, mas também e certamente do interesse público, como claramente resulta da natureza das impostas finalidades e, outrossim, a parte final da escritura -como vimos-, expressa.
Mas revestindo essa inobservância do ónus ou encargo impendente sobre a liberalidade que ao R. fora deferida uma violação, pelo mesmo, de um dever jurídico, desde logo se tem de concluir pela impossibilidade de configurar tal actuação como abuso de direito.
O “abuso” (ilegitimidade) ocorreu não no exercício de um poder (do direito), mas na actuação de um dever (cumprimento de obrigação).
E nesta conformidade, a pretensão dos AA., como desde já se alcança, apresenta-se-nos fatalmente votada ao insucesso – cfr., neste pendor, Rabindranath Capelo de Sousa, Teoria Geral do Dir. Civil, I Vol., C. Editora, pp. 201 e ss.
A forma ou meio de reagir e fazer paralisar a indevida –na versão dos AA., insista-se-, conduta do R., apenas poderia residir, em princípio, no recurso à previsão do art.º 965º do Cód. Civil, ou seja, exigir do donatário o cumprimento dos encargos, usando para tanto –consoante expendem P. Lima e A. Varela, Anotado, II Vol., 4 ª ed., C. Editora, pág. 271, os meios coactivos facultados nos arts. 817º e ss. do mesmo Diploma.
Em alternativa, mas tão só para a hipótese de esse direito lhes ter sido conferido no contrato, poderiam ainda os Doadores (ou os seus herdeiros), pedir a resolução da doação, fundada nesses inadimplemento, nos termos do art.º 966º do mesmo Código.
Porém, na medida em que –se bem cuidamos-, nada a respeito do exercício de tal eventual faculdade por parte dos Doadores consta ou resulta da escritura, parece de concluir que a liberalidade por eles efectivada, independentemente de qual seja o comportamento do R. em relação ao modo donatório, nunca poderá ser objecto de resolução– cfr., neste pendor, P. Lima e A. Varela, ob. cit., pág. 273, Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, Almedina, pág. 290, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Dir. das Obrigações, Vol. II, Almedina, pág. 229 e, i. a., Ac. R.C. de 2-5-90, Col., III, pág. 41.
Como quer que seja, porém, verdade é que jamais à conduta do R. –inobservante do compromisso (supostamente) assumido-, se poderá obviar mediante a invocação do abuso de direito e consectária invalidação por nulidade da doação, sendo certo ainda que –como avisadamente observa o Mm.º Juiz -, no que tange à apreciação da legalidade de eventual deliberação camarária ou acto afim, ínsito ou determinante dessa conduta, apenas ao foro administrativo assiste competência, não podendo pois tal acto ser, nesta sede, objecto de qualquer sindicação. Parafraseando o mesmo Exmº Magistrado, “nos autos apenas está em apreciação a singela edificação da Biblioteca, independentemente dos actos administrativos subjacentes.”

Aliás –diga-se ainda-, mesmo que assim não fosse –isto é, mesmo que o “desviante” procedimento do R. admitisse a possibilidade da sua neutralização mediante o expediente do abuso de direito, não vemos -sempre com o muito respeito por diferente opinativo-, como é que a tal figura se poderia reconduzir a conduta do R., consistente apenas –e ao que se saiba-, em implantar sobre parte do terreno, cerca de 17 anos após a concernente doação, uma biblioteca municipal e respectivo logradouro.
Como o Mm.º Juiz outrossim pondera na sua decisão ora em crise, tal implantação é “...um exercício compatível com as finalidades e atribuições próprias das Autarquias Locais, com reflexos positivos na Comunidade onde é empreendida tal edificação.”
Assim, e por isso que –uma vez mais consoante o assinalado na mesma decisão-, a lei não se basta com um qualquer excesso do titular do direito, antes exigindo um exercício em termos clamorosamente ofensivos do sentimento de justiça dominante, daí a nossa afirmada impossibilidade em perspectivarmos a conduta do R. como intolerável, atentatória da boa fé, dos bons costumes ou do fim social ou económico do direito, enfim, abusiva.

De tudo o exposto, e ainda que por fundamentos no essencial diferentes, não podemos, pois, deixar de estar com o Mm.º Juiz na sua decisão, seja, ao determinar-se pelo antecipado julgamento do mérito da acção, que –dados os seus termos (pedido e causa de pedir), se apresentava “ab initio” votada a o insucesso.
O vertente recurso é, pois, improcedente.

IV – DECISÃO
Nos termos expostos, e ainda que por razões divergentes, julga-se improcedente o douto recurso de apelação, confirmando-se a douta sentença por ele impugnada.
Custas pelos Recorrentes.

Coimbra,