Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
257/10.9JACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR OLIVEIRA
Descritores: PEDIDO CÍVEL
CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 10/19/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE OLIVEIRA DO HOSPITAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGAÇÃO PARCIAL
Legislação Nacional: ART.º 82º-A, N.ºS 1 E 2, DO C. PROC. PENAL
Sumário: A condenação em indemnização, sem observância do contraditório, nos casos especiais previstos no art.º 82º-A, do C. Proc. Penal (não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil), configura uma compressão intolerável de um direito, consubstanciando uma irregularidade processual, com evidente paridade com nulidades de natureza insanável, devendo o seu conhecimento e reparação ser oficioso.
Decisão Texto Integral: I. Relatório

Nos autos de processo comum com intervenção do tribunal colectivo nº 257/10.9JACBR do Tribunal Judicial de UU..., os arguidos A... e B..., identificados nos autos forma submetidos a julgamento acusados:

- o primeiro arguido da autoria, em concurso real de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, nºs 1, alínea a), e 2, do Código Penal, na pessoa de C..., de um crime de ofensas à integridade física p. e p. pelo artigo 143º, nº 1 do Código Penal, na pessoa de D... de um crime de coacção agravada, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 154º, nº 1, 155º, nº 1, alínea a), 22º e 23º, todos do Código Penal, na pessoa de D... de dois crimes de detenção de armas proibidas p. e p. pelo artigo 86º, nº 1, alínea d), da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pela Lei nº 17/2009, de 6 de Maio, por referência aos artigos 2º, nº 1, alínea m), e 3º, nº 1, alínea f), da mesma Lei;

- o segundo, da prática, em co-autoria, de um crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelos artigos 143º, nº 1, e 145º, nº 1, alínea a), do Código Penal, por referência ao artigo 132º, nos 1 e 2, alínea a), do mesmo Código.

Em 16 de Junho de 2011 foi proferido acórdão com o seguinte dispositivo:

Em face do exposto, decidem os Juízes que compõem o Tribunal Colectivo da comarca de UU...:

I) Absolver o arguido A... dos imputados crimes de ofensa à integridade física e de coacção agravada na forma tentada, e ainda de um dos imputados crimes de detenção de arma proibida.

II) Condenar os arguidos:

i) A..., pela prática de:

a) Um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, nos 1, alínea a), e 2, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão;

b) Um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelos artigos 2º, nº 1, alínea m), 3º, nº 1, alínea f), e 86º, nº 1, alínea d), do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, na pena de um ano de prisão;

ii) B..., pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelos artigos 132º, nos 1 e 2, alínea a), 143º, nº 1, e 145º, nº 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 14 (catorze) meses de prisão.

III) Operando o cúmulo jurídico das penas, nos termos do disposto no artigo 77º do Código Penal, condenar o arguido A... na pena única de 4 (quatro) anos de prisão;

IV) Suspender a execução da pena de prisão determinada ao arguido B... pelo período de 14 (catorze) meses, nos termos do disposto no artigo 50º do Código Penal.

V) Condenar o arguido A... a pagar a C... a quantia de € 10 000,00 (dez mil euros), nos termos do disposto nos artigos 21º, nº 2, da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro, e 82º-A do Código de Processo Penal.

VI) Declarar perdidas a favor do Estado as duas catanas apreendidas nos autos, conforme o disposto no artigo 109º do Código Penal.

VII) Condenar os arguidos no pagamento das custas do processo (artigos 513º, nos 1 a 3, e 514º do Código de Processo Penal), com taxa de justiça individual de 3 (três) UC’s para o arguido A... e 2 (duas) UC’s para o arguido B...(artigo 8º, nº 5, do Regulamento das Custas Processuais).

VIII) Condenar ainda os arguidos no pagamento de 1% (um por cento) da taxa de justiça aplicável, nos termos do artigo 13º, nº 3, do Decreto-Lei nº 423/91, de 30 de Outubro.

Inconformado, recorreu o arguido A..., extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1 - O Arguido foi errada porque exageradamente condenado pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art.º 152, nºs 1 al. a) e 2 do C.P. na pena de 3 anos e 4 meses de prisão.

2 - A sua condenação deve fixar-se muito próximo do limite mínimo da moldura penal, ou seja de 2 anos até 2 anos e seis meses de prisão.

3 - O Arguido foi ainda erradamente condenado na pena de 1 ano de prisão pela prática de um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelos art°s 2°, n° 1, al. m) 3.°, n° 1, al. f) e 86, n.º 1, al. d) do R.J.A.M.

4) Devê-lo-ia ter sido numa sanção penal de 300 dias de multa correspondendo a cada dia de multa a quantia de €20,00 perfazendo o montante global de €600,00.

5) O Colectivo, violou os preceitos legais dos critérios da escolha das penas, da determinação da medida da pena bem como da regra da punição do concurso de crimes, previstos nos art°s 70, 71 e 77 do CP, respectivamente.

6) Foi ainda violado, de forma mais incompreensível, o art° 50° do C.P., ao não ser aplicada ao Arguido a suspensão da execução da pena de prisão, em igual período ao da condenação.

7) O Colectivo, postergou o direito do Arguido ao contraditório ao decidir pela aplicação duma indemnização, sem dar previamente a oportunidade a este de se pronunciar sobre a intenção do Tribunal em a arbitrar.

8) A não se entender assim, o que só por mera hipótese académica se admite e por dever de patrocínio, sempre se dirá que o valor atribuído deve ser reduzido para metade, ou seja, €5.000.

TERMOS EM QUE, E NOS MAIS DE DIREITO QUE VOSSAS EXCELÊNCIAS DOUTAMENTE SUPRIRÃO, DEVE DAR-SE PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO REVOGANDO-SE O ACÓRDÃO E SUBSTITUINDO-O POR OUTRO CONFORME AS NOSSAS CONCLUSÕES COMO É DE INTEIRA JUSTIÇA.

Notificado, o Ministério Público respondeu ao recurso interposto, concluindo que não merece provimento quanto à parte criminal, já o merecendo na parte cível por ter o Tribunal postergado o contraditório.

Admitido o recurso e remetidos os autos a esta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, o arguido não exerceu o direito de resposta.

Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais foi realizada conferência, cumprindo apreciar e decidir.


***

            II. Fundamentos da decisão recorrida

A decisão recorrida encontra-se fundamentada de facto e de direito nos seguintes termos (transcrição):

Discutida a causa, o Tribunal julga provados os seguintes factos:

1. O arguido A....e C... casaram a …, tendo-se separado de facto Abril de 2010, altura em que esta decidiu sair da residência comum sita na Rua …, tendo passado a viver com a sua mãe D..., na …, em UU....

2. O divórcio foi decretado por sentença proferida no dia 25 de Maio de 2010, transitada em julgado a 25 de Junho de 2010, no âmbito do processo nº 242/10.0TBOHP, que correu termos neste Tribunal.

3. Da união entre o arguido A....e C... nasceram o arguido B..., F..., e G..., .

4. Ao longo dos vários anos de vivência em comum, em datas e por motivos não concretamente apurados, mas em parte associados a sentimentos de ciúme que nutria pela sua esposa, o arguido A...agrediu-a, atingindo-a em várias partes do corpo, designadamente, a partir do ano de 2001, com a muleta que utiliza para o auxiliar na locomoção, e disse-lhe que a havia de matar.

5. Por vezes, aquando das ameaças, empunhava uma catana.

6. Também em datas não apuradas e no mesmo contexto de ciúmes, por suspeitar de relacionamentos extra-conjugais, o arguido A...chamou-a de “puta” e de “porca”.

7. Em diversas das circunstâncias assinaladas e até à institucionalização das menores F..., ocorrida em 14 de Julho de 2008, na sequência de acordo de promoção protecção, homologado por despacho de 8 de Julho de 2008, no âmbito do processo de promoção e protecção nº 466/07.8TBOHP, as condutas descritas eram praticadas na presença das filhas menores do casal F....

8. Desde o momento em que C... decidiu pôr termo ao casamento, que o arguido a passou a perseguir e ameaçar, quer directamente, quer através de mensagens escritas utilizando o telemóvel com o nº 963 199 466.

9. Telefonou-lhe várias vezes dizendo-lhe que a estava a observar e, por diversas ocasiões, rondou a casa e o local de trabalho, demonstrando que estava por perto e a observar.

10. A 19 de Maio de 2010, D... apresentava queixas de dores e apresentava as lesões melhor descritas no relatório médico-legal de fls. 126 a 128, designadamente dores na cabeça à esquerda, no antebraço, punho e mão esquerdos, agravados com os movimentos e no ombro direito, equimose arroxeada com 20×9 cm na face posterior do ombro direito até ao terço médio da face postero-lateral do braço, equimose arroxeada com 1 cm de diâmetro no terço médio da face anterior do mesmo braço, equimose arroxeada com 2,5×2 cm no terço inferior da face posterior também desse braço, equimose arroxeada com 23×12 cm ao longo do terço médio da face posteromedial do antebraço e até ao dorso da mão esquerda, com ligeiro edema, e equimose arroxeada na face antero-lateral do joelho direito com 10×6 cm, sobre a qual assentou esfoliação com 1,5×1 cm.

11. Sobre tais lesões não foi possível apurar o período necessário para cura, atenta a ausência da ofendida ao exame complementar.

12. No dia 17 de Maio de 2010, pelas 23.02 horas, o arguido A...enviou uma mensagem a C..., do seu telemóvel, com o nº …, para o telemóvel desta, com o nº 966 948 495, com o seguinte teor “alguém não vai sair com vida”.

13. Igualmente no mesmo dia, pelas 23.32 horas, enviou outra mensagem do mesmo telemóvel e para o mesmo número, com o seguinte conteúdo: “ou saem para a rua ou morrem aí dentro queimados, principalmente esse animal que aí está ao teu lado não digas que é mentira que ainda agora me mandou uma mensagem que tu eras boa na cama eu posso provar eu tenho a mensagem por isso eu tenho razão não prestas”.

14. No dia 31 de Maio de 2010, o arguido compareceu numa diligência processual no âmbito do processo de promoção e protecção nº 466/07.8TBOHP, acima identificado, e caminhou em direcção a C... com o intuito de a agredir com a canadiana já anteriormente identificada.

15. Ainda logrou atingi-la na coxa esquerda, provocando uma equimose esverdeada com 3,5×2 cm, conforme relatório médico-legal de fls. 138 a 140.

16. Embora tentando, não conseguiu continuar com as agressões pelo facto de a ofendida ter sido alertada pelo arguido B..., seu filho, e ter fugido do seu encalço.

17. No dia 2 de Junho de 2010, pelas 7.30 horas, quando C... caminhava na Rua …, em UU..., no passeio do lado da fábrica …, ao virar da esquina, foi surpreendida pelo arguido A…, que se encontrava agachado atrás de um poste e se aproximou de si dando-lhe duas vezes, com a muleta que trazia consigo, na cabeça, provocando a queda ao solo de C... .

18. Como consequência directa e necessária desta conduta do arguido A...sofreu C...  dores e as lesões melhor descritas nos relatórios médico-legais de fls. 88, 89, e 137 a 139, designadamente dores na região parietal e na anca esquerda e hematoma na cabeça, que determinaram um período de doença de 2 dias, sem afectação da capacidade de trabalho geral e profissional.

19. No dia 24 de Agosto de 2010, entre as 11.30 horas e as 12 horas, quando C... caminhava na Rua …, em UU..., entre a loja da “Vodafone” e a Casa da Cultura, apareceram os arguidos A...e B....que, em comunhão de esforços e com um propósito comum, a agrediram em várias partes do corpo.

20. O arguido B....começou por agarrar a mãe pela cintura e depois por um braço, atirando-a ao solo, após o que lhe desferiu vários pontapés.

21. De imediato, também o arguido A...desferiu várias pancadas em C..., com recurso à muleta, a qual se desencaixou com a violência com que era utilizada, dividindo-se em duas partes.

22. Acto seguido, apertou-lhe o pescoço com as mãos, tentando sufocá-la.

23. Já depois de se conseguir levantar por intervenção de populares que se aproximaram, C... ainda foi novamente derrubada pelo arguido B..., após o que ambos os arguidos se ausentaram do local, tendo a ofendida sido conduzida por uma ambulância ao Centro de Saúde de UU....

24. Como consequência directa e necessária desta conduta dos arguidos sofreu C...  dores e as lesões melhor descritas nos relatórios médico-legais de fls. 212 a 214, 217 e 218, designadamente dores na cabeça e na mão esquerda, equimose amarelada com 4×3 cm na região parietal direita, equimose discretamente arroxeada com 2×1 cm na face posterior do ombro direito, escoriação com crosta cicatricial com 5 mm de diâmetro acima dessa equimose, equimose arroxeada com halo amarelado com 12×10 cm no terço superior e médio da face postero lateral do braço direito, área escoriada com crosta cicatricial com 4×1 cm na face posterior do cotovelo direito, equimose discretamente arroxeada, longitudinal com 16×8 cm no terço médio e inferior da face postero-lateral do antebraço direito, três escoriações com crosta cicatricial, a maior com 8×4 mm e a menor com 3 mm de comprimento na face dorsal da mão direita e ferimento no dedo indicar esquerdo com hematoma, sujeito a tratamento e com aplicação de ligadura, cujas dores e dificuldade de mobilidade perduraram pelo menos até 10 de Setembro de 2010, não se conhecendo o período necessário para cura, atenta a ausência da ofendida ao exame complementar.

25. No dia 30 de Novembro de 2010, pelas 10.50 horas, na sequência de mandados de busca domiciliária à residência do arguido sita na Rua …, UU..., foram aí encontradas e apreendidas, conforme auto de busca e apreensão de fls. 328 e 329, além do mais, duas catanas, devidamente examinadas nos autos (a fls. 387): a) uma das catanas, da marca Verdugo, é composta por lâmina excêntrica, terminando em bico, fabricada em aço, com um só gume, com 53,3 cm de comprimento e cabo de madeira com 13 cm de comprimento, estando este agregado à lâmina com três rebites; tem cravados na madeira múltiplos pionés em tons amarelados, alguns bastante oxidados, que não fazem parte do processo de fabrico e que se destinam a um melhor manuseamento por parte do utilizador; b) a outra catana exibe a referência “FR”, é composta por lâmina escura, com ponta excêntrica, terminando em bico, com um só gume, fabricada em aço e apresentando o terminal em túnel onde tem alojado um cabo em madeira de formato circular, preso por pressão e parafuso; a lâmina apresenta 53 cm, o que, somado ao cabo, totaliza um comprimento total de 86,5 cm.

26. Tais catanas estavam na sua residência, não têm aplicação definida e constituem potencial objecto de agressão.

27. Com as condutas supra assinaladas quis o arguido A...violar, de forma reiterada e intensa, os mais elementares deveres inerentes à vida conjugal, atingir C... na sua honra, dignidade e consideração, causando-lhe dores e lesões e fazendo-a temer pela sua vida e integridade física, o que logrou alcançar já que as ameaças foram sempre proferidas em tom agressivo, sério e intimidatório.

28. Face a tal conduta tem C... vivido apavorada, com receio que o arguido concretize as ameaças que vem proferindo.

29. Sente-se perseguida, com a sua liberdade de acção e movimentos prejudicada e necessitando de acompanhamento psicológico e psiquiátrico, que tem seguido no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Coimbra.

30. Por outro lado, o arguido B..., ao actuar, em comunhão de esforços com o arguido A...e com o mesmo propósito comum, fê-lo com a intenção de molestar a saúde e integridade física da sua mãe, causando-lhe as dores e as lesões que efectivamente causou, não se eximindo de assim proceder, apesar da relação familiar existente, na via pública, em frente a terceiros, com intensidade, por diversas formas e em várias partes do corpo.

31. Acresce que o arguido A...conhecia as características das catanas que detinha na sua posse, assim como sabia que as mesmas não estavam afectas a qualquer prática venatória, comercial, agrícola, industrial, florestal, doméstica ou desportiva, nem as possuía como objecto de colecção. Não justificou, a nenhum título, a sua posse.

32. Os arguidos actuaram sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei como ilícitos criminais.

33. O arguido A...sofreu um acidente de viação grave no ano de 2001, data a partir da qual passou a necessitar do uso de canadianas como auxílio à locomoção.

34. Recebeu então uma indemnização de montante não apurado, mas não inferior a € 70 000,00.

35. Aufere rendimentos não apurados.

36. Vive em casa própria.

37. Tem o 6º ano de escolaridade.

38. O arguido B....está desempregado, não auferindo qualquer rendimento.

39. Vive sozinho numa oficina.

40. Sobrevive com a ajuda de amigos e mediante o recurso a instituições que lhe fornecem alimentação.

41. Tem o 9º ano de escolaridade.

42. Manifestou profundo arrependimento pelo acto cometido contra a sua mãe, que, por sua vez, declarou o seu perdão ao arguido.

43. Os arguidos não têm antecedentes criminais.

44. C... . iniciou em Março de 2011 a frequência de um curso profissional, que terá duração aproximada de 2 anos.

45. Recebe € 200,00 mensais pela frequência do dito curso.

46. Beneficia do rendimento social de inserção no montante mensal de € 109,00.

47. Efectua alguns trabalhos de limpeza, recebendo € 20,00 semanais.

48. Vive em casa arrendada por € 125,00 mensais.

Não se provaram outros factos, nomeadamente:

A) No dia 17 de Maio de 2010, pelas 9 horas, o arguido dirigiu-se à residência de  …e da sua mãe D..., sita na Avª …, em UU..., apoiado com a canadiana que habitualmente trazia consigo e munido com uma catana, cujas características exactas não se lograram identificar.

B) Aí chegado, depois de perguntar “onde é que está aquela puta?”, referindo-se à sua ex-mulher, e de ter forçado D... a permanecer na cozinha, aproximou-se dela e agrediu-a com a referida canadiana, batendo-lhe em várias partes do corpo e especialmente no braço esquerdo.

C) As dores e lesões descritas em 10 foram consequência directa e necessária da conduta  do arguido A… .

D) Concluídas as agressões, o arguido A...ameaçou D... que se apresentasse queixa às autoridades ia lá e matava todos quantos ali estivessem.

E) No dia 2 de Junho de 2010, além do mais, o arguido A...agarrou o braço direito de C..., puxando-o violentamente, sendo desse modo que causou a queda ao solo.

F) De seguida, voltou a desferir-lhe pancadas com a muleta, atingindo-a em várias partes do corpo.

G) Antes de se ausentar, o arguido disse-lhe que todos os dias a ia esperar, que nunca a ia deixar em paz.

H) No decurso da agressão no dia 24 de Agosto de 2010, o arguido B....agarrou na cabeça da mãe com as mãos, embatendo com ela no passeio.

I) Ao actuar da forma supra descrita contra D..., o arguido A...fê-lo com o propósito concretizado de molestar o corpo e a saúde desta e de provocar as dores e as lesões que efectivamente provocou.

J) Mais actuou expressando-se de modo sério, agressivo e intimidatório, no intuito de criar na ofendida o receio de vir efectivamente a ser lesada na sua integridade física ou mesmo na sua vida, procurando constrangê-la a não o denunciar, facto que não logrou alcançar já que esta veio efectivamente a apresentar queixa. Não obstante, não deixou de sentir receio pelo mal anunciado, sentindo a sua liberdade de movimentos e a sua autonomia seriamente condicionadas.

A convicção do Tribunal assentou na globalidade da prova produzida em julgamento, destacando-se naturalmente a prova documental existente nos autos, que não foi contrariada por outros meios de prova, servindo, em alguns casos, para a prova integral do facto a que respeitava e, noutros casos, como suporte para outros meios de prova.

O Tribunal atendeu ainda aos depoimentos da ofendida C..., uma vez que o mesmo foi, em parte, suportado pelos depoimentos de outras testemunhas, conferindo credibilidade àquele depoimento, que, por isso, foi atendido mesmo quanto a factos em relação aos quais o único meio de prova directo foi o seu depoimento. A credibilidade do depoimento da ofendida foi reforçado pela parcial consonância com o depoimento do arguido B....relativamente aos factos pelos quais este também respondia, sendo certo que o Tribunal atendeu ainda ao depoimento do dito arguido na parte em que admitiu a sua responsabilidade.

Pelo contrário, o depoimento do arguido A...foi, em geral, infirmado pelos restantes meios de prova.

Assim, o Tribunal atendeu ao teor dos documentos de fls. 315, 162, 316 e 318, respeitantes aos assentos de casamento e de nascimento a que se reportam os factos descritos sob os nos 1 e 3, atendendo ainda à certidão de fls. 147 a 174, extraída do processo de divórcio nº 242/10.0TBOHP. Ao nível estritamente documental é ainda de realçar a certidão de fls. 621 a 629, extraída do processo de promoção e protecção nº 466/07.8TBOHP.

No que tange ao modo de vivência em comum do casal, o Tribunal atendeu ao depoimento de C..., que relatou genericamente as frequentes agressões, ameaças e insultos, o que foi confirmado pelo co-arguido B..., referindo este que os problemas entre os pais se inflamaram a partir de 2006, embora, já antes do acidente sofrido pelo seu pai, este agredisse a mãe com uma frequência de cerca de 2 em 2 meses, situação que se manteve após o acidente. Mais relatou que, enquanto as irmãs estiveram em casa, algumas das agressões perpetradas no domicílio o foram em frente a elas.

O próprio arguido A...admitiu que, antes do acidente, que referiu ter ocorrido em 2001, bateu na então esposa algumas vezes, aí uma vez por ano, dizendo, em seguida, que chegou a estar anos sem o fazer.

Resulta assim manifesta a credibilidade do depoimento da ofendida, tendo ainda em conta o que resultou provado quanto a ocorrências posteriores, designadamente as frequentes perseguições por parte do arguido A..., que resultaram provadas por via do depoimento da ofendida.

O Tribunal teve ainda em conta os documentos de fls. 230 a 239 e 250 a 289, como elementos indiciadores das anteriores ocorrências.

Seguindo a ordem dos factos provados e não provados, no que tange à ocorrência envolvendo a então sogra do arguido A…, o Tribunal julgou provadas apenas as lesões apresentadas por D..., atento o teor de fls. 126 a 128, nada mais se provando, uma vez que a referida ofendida se recusou validamente a depor, não se confirmando, por isso, a prova indirecta resultante das declarações de C... .

Pelo contrário, a autoria das mensagens foi confirmada em parte pelo próprio arguido A..., que confessou o envio da segunda mensagem. Nenhuma razão plausível foi dada para a imputação da autoria da primeira mensagem a terceira pessoa, atendendo ainda o Tribunal ao teor de fls. 38 a 41 e 93 a 99.

Quanto à ocorrência de 31 de Maio de 2010, o Tribunal atendeu ao depoimento de C..., confirmado pelo teor de fls. 138 a 140, que atestam a lesão sofrida, sendo aquele depoimento apreciado nos termos globais em que foi produzido, isto é, estendendo a credibilidade que o mesmo mereceu quanto a outros pontos a esta concreta ocorrência.

O mesmo se dirá quanto à ocorrência de 2 de Junho de 2010, também esta relatada em termos coerentes e credíveis pela ofendida, sendo o seu depoimento reforçado pelo teor de fls. 88, 89, e 137 a 139.

Pelo contrário, o arguido A...procurou escudar-se no documento de fls. 78, que atesta a sua presença no Centro de Saúde de UU... nesse dia, sem que, todavia, do mesmo resulte a presença do arguido nesse local na concreta hora em que a agressão foi praticada. Daí a irrelevância desse documento em termos probatórios.

No que concerne à ocorrência de 24 de Agosto de 2010, além do depoimento da ofendida, devidamente descrito no auto de transcrição apenso, o Tribunal teve em conta os depoimentos de:

– …, que situou a ocorrência na parte da manhã, relatando que viu os arguidos, que reconheceu, envolvidos com uma mulher, vendo o arguido A...a empurrá-la e a bater-lhe com uma canadiana, que se vergou com a força das pancadas, enquanto o arguido B....deu pontapés na mulher quando esta estava no chão;

– …, situou a ocorrência no Verão do ano passado, durante a manhã, tendo visto o arguido B....empurrar uma mulher para o chão, dando-lhe, em seguida, pontapés, enquanto o arguido A...lhe bateu com a canadiana, que se desencaixou, momento em que o referido arguido agarrou a cabeça da vítima e bateu com ela no passeio;

– …, situou os factos na segunda quinzena de Agosto, perto da hora de almoço, reconhecendo ambos os arguidos como os agressores, apercebendo-se, em especial, das agressões por parte do arguido A…, a pontapé e com a canadiana.

Para além destes depoimentos, o arguido B....confessou ter praticado os factos conforme a descrição na acusação, salvo quanto ao acto de embater com a cabeça da mãe no passeio, que se limitou a admitir poder ter acontecido, sem que recordasse efectivamente esse facto.

Nessa parte, o Tribunal, considerando os depoimentos supra aludidos, mormente o declarado por …, julgou não provado que tivesse sido o arguido B....a praticar esse acto.

O Tribunal atendeu ainda nesta parte ao teor de fls. 212 a 214, 217 e 218.

Quanto à posse das catanas, além dos documentos de fls. 328, 329 e 387, ponderou-se o depoimento de …, Inspector da Polícia Judiciária, que confirmou o teor do auto de busca e apreensão, designadamente quanto aos locais em que se encontravam as catanas.

Nesta parte, o arguido A...confessou ter adquirido uma das catanas, designadamente a que ostenta a marca Verdugo, confessando ainda ter-lhe aplicado os pionés para facilitar o uso, afirmando destiná-la aos trabalhos de artesanato que, por vezes, executa, por precisar de um objecto de corte.

Quanto à outra catana, afirmou desconhecer a existência da mesma.

Quer este suposto desconhecimento, quer o uso dado àquela catana não se mostram de todo convincentes.

Desde logo porque o arguido admitiu estar a residir na casa há cerca de 3 anos, sendo que habitualmente utiliza a cozinha para confeccionar as suas refeições, segundo o próprio.

Ora, confrontado com o facto de a catana ter sido apreendida em cima do louceiro existente na cozinha, o arguido logo começou a inverter o seu discurso, dizendo que, afinal, utiliza a cozinha há pouco tempo.

Não é de todo razoável que, ao longo do tempo em que o arguido já reside na casa, desconhecesse a existência de um tal objecto, considerando o local em que o mesmo foi encontrado.

Também o alegado uso da outra catana se mostra pouco razoável, pois o arguido não descreveu quais são os trabalhos de artesanato que executa, não logrando perceber o motivo para a utilização de um objecto com aquela dimensão para uma tal actividade.

A possibilidade de utilização da catana para corte de lenha, como referiu ainda o arguido, sendo admissível, não justifica, contudo, a posse do objecto, dado que não é esse o seu uso normal, por implicar uma deterioração muito rápida da lâmina, que não foi verificada aquando do exame directo.

Finalmente, o Tribunal teve em conta os respectivos depoimentos quanto às condições pessoais e económicas dos arguidos e da ofendida, além dos certificados de registo criminal daqueles.

Não se mostraram relevantes os depoimentos de …, reportando-se apenas à sua intervenção processual, e de …, que se limitou a veicular a sua opinião pessoal sobre o arguido A....

O arguido A...responde, em primeiro lugar, pela prática de crime de violência doméstica.

De acordo com o artigo 152º, nos 1, alínea a), e 2, do Código Penal:

“1 – Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:

a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;

é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

2 – No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos”.

O bem jurídico protegido nos tipos legais de crime de violência doméstica e de maus-tratos (artigo 152º-A do Código Penal) reside na dignidade da pessoa humana, incluindo-se os comportamentos que de forma reiterada lesam essa dignidade. Poderá afirmar-se, na esteira da posição defendida por Taipa de ., in Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, p. 332, que esta norma visa a protecção da saúde, enquanto bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental.

Trata-se de crimes específicos, na medida em que exigem que o agente se encontre numa determinada relação para com o sujeito passivo dos comportamentos.

As condutas previstas abrangem os maus-tratos físicos, identificados com as ofensas à integridade física; os maus-tratos psíquicos, como humilhações, provocações, molestações, ameaças, mesmo que não configurem em si o tipo de crime de ameaças; o tratamento cruel ou desumano; a utilização do subordinado em actividades perigosas, desumanas ou proibidas; a sobrecarga de trabalhos ou o não cumprimento de regras de segurança no trabalho.

Previamente à alteração empreendida pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, além da específica relação que intercedesse entre o agente e o sujeito passivo, nos casos em que as condutas daquele configurassem a prática de ilícitos como os de ofensa à integridade física, ameaças e injúrias, o que determinaria a verificação do tipo legal de crime de maus tratos seria a reiteração de tais condutas, sendo que, em tais circunstâncias, entre aqueles ilícitos e o tipo legal de crime de maus-tratos (inexistia então previsão legal de crime de violência doméstica) intercedia uma relação de especialidade, aplicando-se apenas a punição própria deste último. Se, por um lado, na actualidade se mantém essa relação de especialidade entre os crimes de violência doméstica e de maus tratos, de um lado, e crimes como os de ofensa à integridade física, ameaças e injúrias, de outro, certo é que a reforma penal veio consagrar a orientação segundo a qual a verificação dos crimes de violência doméstica e de maus tratos não exigem a reiteração de condutas, sendo suficiente a ocorrência de “um único acto ofensivo de tal intensidade, ao nível do desvalor, da acção e do resultado, que seja apto e bastante a lesar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana” (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28/04/2010, in http://www.dgsi.pt).

Refira-se que, ao nível do elemento subjectivo, está em causa um ilícito doloso.

Importa ainda salientar que, tratando-se de crimes reiterados, a sua consumação ocorre na data da última conduta que seja conhecida  (estando em causa uma única conduta, naturalmente a consumação do crime ocorre na data da prática dessa conduta).

No caso vertente, arguido e vítima foram casados desde 16 de Maio de 1987 a 25 de Junho de 2010 [1 e 2].

Ao longo dos vários anos de vivência em comum, em datas e por motivos não concretamente apurados, mas em parte associados a sentimentos de ciúme que nutria pela sua esposa, o arguido A...agrediu-a, atingindo-a em várias partes do corpo, designadamente, a partir do ano de 2001, com a muleta que utiliza para o auxiliar na locomoção, e disse-lhe que a havia de matar [4].

Por vezes, aquando das ameaças, empunhava uma catana [5].

Também em datas não apuradas e no mesmo contexto de ciúmes, por suspeitar de relacionamentos extra-conjugais, o arguido A...chamou-a de “puta” e de “porca” [6].

Se assim foi ao longo do período de vivência em comum, certo é que, após a separação de facto, ocorrida em Abril de 2010 [1], e mesmo após o divórcio, não só o referido arguido perseguiu e ameaçou C... [8, 9, 12 e 13], como chegou mesmo a ofender a integridade física desta.

Assim, nos dias 31 de Maio, 2 de Junho e 24 de Agosto de 2010, o arguido A...ofendeu a integridade física de C..., sendo que nesta última ocasião a sua actuação atingiu foros de grande violência, como resulta da descrição da agressão e das consequências, as quais, precisamente por força do apurado contributo de cada um dos arguidos, serão de imputar na sua maior parte a este arguido [14, 15, 17 a 24].

Perante o quadro de factos genérica e concretamente apurados, não temos dúvidas em considerar verificado o crime de violência doméstica.

Por outro lado, tendo-se provado que as agressões, ameaças e injúrias dirigidas pelo arguido A...à sua então esposa foram, por vezes, praticadas na presença das filhas menores do casal [3 e 7], mostra-se ainda verificado o fundamento de agravação pelo nº 2 do artigo 152º do Código Penal.

Finalmente, tendo-se provado o pressuposto elemento subjectivo do imputado crime, procederá, na íntegra, a acusação. 4.2.

O arguido A...responde ainda pela autoria de um crime de ofensa à integridade física e de um crime de coacção agravada, na forma tentada.

Sucede que, em relação a esses dois crimes, não se provou a prática de quaisquer factos susceptíveis de preencher os respectivos tipos legais.

Assim, sem necessidade de outras considerações, improcederá a acusação nesta parte.

Ao arguido A...é ainda imputada a prática de dois crimes de detenção de arma proibida.

De acordo com o artigo 86º, nº 1, alínea d), do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, na redacção que lhe foi conferida pela Lei nº 17/2009, de 6 de Maio:

“1 – Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo:

d) Arma da classe E, arma branca dissimulada sob a forma de outro objecto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, aerossóis de defesa não constantes da alínea a) do nº 7 artigo 3º, armas lançadoras de gases, bastão, bastão extensível, bastão eléctrico, armas eléctricas não constantes da alínea b) do nº 7 do artigo 3º, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, silenciador, partes essenciais da arma de fogo, munições, bem como munições com os respectivos projécteis expansivos, perfurantes, explosivos ou incendiários, é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias”.

A imputação resulta da conjugação desta norma com a do artigo 2º, nº 1, alínea m), do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, que define «arma branca» como todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante, ou corto-contundente, de comprimento igual ou superior a 10 cm e, independentemente das suas dimensões, as facas borboleta, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, os estiletes com lâmina ou haste e todos os objectos destinados a lançar lâminas, flechas ou virotões.

Tendo por certo que as armas brancas sem afectação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou que pelo seu valor histórico ou artístico não sejam objecto de colecção, se integram na classe A [artigo 3º, nº 1, alínea f), do Regime Jurídico das Armas e suas Munições], a verdade é que tal classificação é irrelevante para efeitos de imputação do crime, uma vez que estranhamente o artigo 86º omite qualquer referência a armas da classe A.

Isso não significa que a norma em questão, do artigo 3º, seja de todo irrelevante.

Na verdade, a sua relevância reside na definição das razões legais que justificam a posse de armas brancas.

Assim, o crime estará verificado caso o agente detenha arma(s) branca(s) sem que a essa detenção seja justificada pela afectação das mesmas ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou que pelo seu valor histórico ou artístico as tornem objecto de colecção.

No presente caso encontrámo-nos perante a detenção de armas brancas, uma vez que se trata de instrumentos dotados de lâmina de comprimento (igual ou) superior a 10 cm.

Por outro lado, inexiste razão justificativa da sua detenção.

Como tal mostram-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivo do imputado tipo legal de crime.

Contudo, o preenchimento desses elementos típicos aponta para a verificação de um único crime.

Segundo o nº 1 do artigo 30º do Código Penal, “o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente”.

O concurso real ou efectivo pressupõe uma pluralidade de resoluções criminosas que implique a renovação da intenção do agente em cometer o crime.

No que tange ao crime ora em apreciação, essa renovação manifesta-se em especial pela distinção de momentos em que se inicia a detenção das armas, quando esteja em causa a detenção de uma pluralidade de armas.

Efectivamente, em cada momento em que o agente passa a deter uma arma com conhecimento da ilicitude dessa detenção ocorre uma renovação da intenção criminosa do agente, que não se pode afirmar verificada quando o agente inicia a detenção de várias armas em simultâneo.

Ora, no caso vertente não foi possível determinar em que momentos o arguido A...passou a deter as armas, pelo que não se afirmar a verificação de uma pluralidade de resoluções criminosas.

Assim, o arguido será punido pela prática de um único crime de detenção de arma proibida.

Ao arguido B...é, por sua vez, imputada a prática, em coautoria, de um crime de ofensa à integridade física qualificada.

Dispõe nº 1 do artigo 143º do Código Penal:

“1 – Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.

O bem jurídico tutelado é a integridade física.

Trata-se de um crime material e de dano que abrange um determinado resultado, que consiste na lesão do corpo ou da saúde de outrem, fazendo-se a imputação objectiva deste resultado à acção ou omissão do agente de acordo com as regras gerais.

O tipo objectivo de ilícito fica preenchido mediante uma de duas modalidades: ofensas no corpo ou ofensas na saúde.

Como refere Paula Ribeiro de Faria, in Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, p. 205, “o tipo legal do artigo 143º fica preenchido mediante a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde, independentemente da dor ou sofrimento causados (...) ou de uma eventual incapacidade para o trabalho”.

A autora citada refere ainda que “por ofensa no corpo poder-se-á entender «todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem estar físico de uma forma não insignificante» (S / S / Eser § 223 3 e M / S / Maiwald I 80). Integram o elemento típico daquelas actuações que envolvem uma diminuição da substância corporal, com a perda de órgãos, membros, ou pele (...), lesões da substância corporal, como nódoas negras, inchaços, alterações físicas (...), a perturbação de funções físicas (...)” (ob. cit., pp. 205-206).

No que concerne à lesão na saúde, como tal deve entender-se “toda a intervenção que ponha em causa o normal funcionamento das funções corporais da vítima, prejudicando-a; pertence a este âmbito toda a produção ou aprofundamento de uma constituição patológica (...). É de considerar como lesão da saúde, em primeiro lugar, a criação de um estado de doença (...). Integra também este elemento típico a conduta de quem contribua de forma decisiva para a manutenção ou agravamento de um estado de doença ou sofrimento já existente” (ob. cit., pp. 207-208).

No que toca ao elemento subjectivo, o tipo legal em análise exige a verificação do dolo traduzido na consciência e vontade de produção da lesão.

Uma vez provado que o arguido B....começou por agarrar a mãe pela cintura e depois por um braço, atirando-a ao solo, após o que lhe desferiu vários pontapés [20], assim determinando, em parte, as dores e lesões sofridas por C... [24], é manifesto o preenchimento dos elementos típicos do crime de ofensa à integridade física.

De acordo com o artigo 145º do Código Penal:

“1 – Se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido:

a) Com pena de prisão até quatro anos no caso do artigo 143º;

b) Com pena de prisão de três a doze anos no caso do artigo 144º.

2 – São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no nº 2 do artigo 132º”.

A alínea a) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal consagra como circunstância susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade do agente o facto de este ser descendente da vítima.

Não constitui novidade afirmar-se que no artigo 132º do Código Penal o legislador combinou um critério generalizador, assente em conceitos indeterminados, determinante de um especial tipo de culpa (conforme o nº 1), com a técnica denominada de «exemplos-padrão», em que a verificação das circunstâncias descritas nas alíneas do nº 2 constitui um indício do preenchimento daquele critério generalizador.

Deste modo, a verificação das circunstâncias expressamente previstas na norma não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação, mas, por outro lado, esse tipo de culpa agravado poderá resultar da verificação de circunstâncias análogas às descritas.

Impõe-se sempre que a verificação de circunstâncias expressamente previstas ou de circunstâncias não legalmente previstas mas substancialmente análogas àquelas se traduza numa imagem global do facto agravada (conforme Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, pp. 25 e 26).

Isto não significa, contudo, na nossa óptica, que, em termos de aplicação do Direito, o juízo que o julgador faz relativamente ao preenchimento do critério generalizador previsto no nº 1 não se molde consoante as concretas circunstâncias que estejam em causa.

Assim, o elenco de circunstâncias previstas no nº 2 do artigo 132º do Código Penal integra elementos de cariz essencialmente objectivo e outros que assumem um carácter mais subjectivo, isto é, enquanto o preenchimento de algumas das circunstâncias depende apenas da verificação de determinado elemento legalmente previsto – uma especial relação entre o agente do facto e a vítima ou uma especial qualidade desta, como sucede com as alíneas a), b), l), h) e m), embora estas duas últimas apenas em parte –, as restantes circunstâncias carecem de uma concretização ou definição casuística (o Tribunal deverá concretizar previamente, por exemplo, o que seja tortura ou acto de crueldade, para integrar ou excluir o caso concreto nessa definição).

Assim, mantendo-se a necessidade de determinar se as circunstâncias verificadas in casu implicam aquela imagem global do facto agravada, não deixa, contudo, de se notar que, no que tange ao primeiro aludido grupo de circunstâncias, o juízo assumirá uma componente primacialmente excludente – na prática, haverá que determinar se, apesar da verificação da circunstância legalmente prevista, não se verifica a especial censurabilidade ou perversidade –, contrariamente ao que sucede com o segundo grupo, em relação ao qual o Tribunal deverá essencialmente determinar se a circunstância em questão revela aquela especial censurabilidade ou perversidade.

Ora, entendemos verificar-se aquela imagem global agravada do facto.

Desde logo ressalta o elevado grau de violência empregue por ambos os arguidos, ainda que em menor proporção por parte do arguido B..., sendo, porém, de notar que o mesmo agiu em co-autoria.

Por outro lado, como o arguido e a ofendida revelaram em Tribunal, o seu relacionamento era normal, não se verificando pois um relacionamento familiar atípico susceptível de determinar um corte nas qualidades da relação pressupostas pela existência de um vínculo familiar (conforme, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/09/2005, in http://www.dgsi.pt)

Acresce que, apesar de o arguido B....ter dado a entender que teria actuado por receio do seu pai, a verdade é que tal circunstância, mesmo a verificar-se, não justificaria a atitude “activa” do arguido, podendo, quando muito, justificar a omissão de auxílio à mãe.

Por tais motivos entendemos verificar-se a especial censurabilidade da conduta do arguido B..., o que implica a sua punição pelo crime qualificado, obstando ao efeito jurídico a que tenderia a desistência de queixa apresentada em julgamento pela sua mãe.

O artigo 70º do Código Penal confere prevalência às penas não privativas de liberdade perante as penas privativas de liberdade, quando aquelas realizarem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

A escolha da pena deverá ser ponderada apenas quanto ao crime de detenção de armas proibidas, uma vez que os restantes não admitem outra pena que não a pena de prisão.

Apesar da inexistência de antecedentes criminais do arguido A…, considerando a personalidade do arguido, revelada, em especial, na última agressão a C..., em conjugação com o facto de, no decurso da vivência em comum, algumas das ameaças serem acompanhadas pela exibição de uma catana, entendemos que as exigências de prevenção especial impõem a aplicação de pena detentiva.

A determinação da medida da pena obedece ao comando do artigo 71º do Código Penal, que define os critérios que devem orientar o julgador, nomeadamente a culpa do agente e as exigências de prevenção, ponderando para o efeito todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.

Do elenco de factos apurados relevam para estes efeitos:

– O longo período de tempo durante o qual o arguido A...praticou actos de violência física e psíquica contra C...;

– A exibição de armas em algumas ocasiões e contemporaneamente a ameaças àquela;

– A intensidade da resolução criminosa do arguido A…, que não cessou, antes terá sofrido um incremento com a separação do casal;

– O elevado grau de violência na agressão de 24 de Agosto de 2010, e respectivas consequências, atenta extensão das lesões causadas, circunstância especialmente imputável ao arguido A…, mas igualmente incidente sobre a conduta do arguido B..., embora em menor grau;

– As consequências de toda a violência exercida pelo arguido A...ao longo dos anos, determinando a necessidade de acompanhamento psicológico e psiquiátrico de C...;

– A pluralidade de armas proibidas detidas pelo arguido A…;

– As modestas condições culturais dos arguidos;

– O arrependimento demonstrado pelo arguido B..., que determinou o perdão por parte da ofendida;

– A ausência de antecedentes criminais dos arguidos.

No que concerne ao arguido A...é manifesta a prevalência de circunstâncias que depõem contra o mesmo ao nível do crime de violência doméstica, sendo de nível mais reduzido a incidência de tais circunstâncias quanto ao crime de detenção de arma proibida.

Já no que tange ao arguido B....verifica-se uma prevalência das circunstâncias que depõem a ser favor, embora não se possa olvidar a sua participação num acto de elevada violência.

Ponderadas as descritas circunstâncias, o Tribunal julga ajustadas as penas de 3 anos e 4 meses de prisão pelo crime de violência doméstica e de um ano de prisão pelo crime de detenção de arma proibida, julgando, por seu lado, ajustada a pena de 14 meses de prisão pelo crime de ofensa à integridade física qualificada.

Dada a pluralidade de crimes efectivamente cometidos pelo arguido A...encontram-se preenchidos os pressupostos do concurso real de crimes (artigo 30º, nº 1, do Código Penal), razão pela qual se impõe a realização de cúmulo jurídico das penas, como resulta do disposto no artigo 77º, nº 1, do Código Penal, segundo o qual:

“1 – Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.

O mínimo da pena única corresponde à mais elevada das penas parcelares (3 anos e 4 meses de prisão), identificando-se o máximo com a soma das penas parcelares (4 anos e 4 meses de prisão), como dispõe o nº 2 do artigo 77º do Código Penal.

Considerando a personalidade do arguido revelada na prática dos factos, nos termos já expostos supra, o Tribunal julga ajustada a pena única de 4 anos de prisão.

De acordo com o artigo 50º, nº 1, do Código Penal:

“1 – O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”

Em abono da eventual suspensão da execução da pena de prisão ao arguido A...o Tribunal apenas consegue vislumbrar a circunstância de o arguido não ter antecedentes criminais.

Pelo contrário, várias circunstâncias apontam em sentido inverso. Desde logo, a personalidade revelada pelo arguido em julgamento, no decurso do qual sempre revelou a ausência de um juízo crítico quanto à sua conduta, chegando ao ponto de veicular a sua indignação contra o excônjuge por o sujeitar ao julgamento.

Também a personalidade revelada na prática dos factos aponta para a necessidade de cumprimento da pena, por neles se manifestar uma personalidade desconforme com os padrões de modernidade.

O arguido actuou ao longo dos anos na convicção de ter o direito de exercer violência física e psíquica sobre o cônjuge, exercendo esse “direito” mesmo na presença dos filhos menores, com total desprezo pela integridade do desenvolvimento destes.

Acresce que o grau de violência parece estar a ser aumentado, pondo em risco a própria vida de C... .. Aliás, o descontrole do arguido levou-o a agir ilicitamente mesmo no edifício do Tribunal.

Finalmente, não podemos deixar de notar que a ausência de antecedentes criminais resulta unicamente do facto de a ofendida anteriormente não ter apresentado queixa ou não ter mantido a intenção de procedimento criminal contra o arguido, pois, como se provou, ao longo de todo o período de vivência em comum, o arguido cometeu crimes de ofensa à integridade física, ameaça e injúrias contra o cônjuge.

Conclui-se assim pela necessidade de cumprimento efectivo da pena única de prisão.

Quanto ao arguido B..., a pena concretamente determinada é passível de suspensão da execução da pena de prisão e substituição pela pena de prestação de trabalho a favor da comunidade (artigo 58º, nº 1, do Código Penal).

Em ambos os casos, o Tribunal deverá optar pela substituição da pena de prisão quando as penas de substituição realizarem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, isto é, quando assegurarem dessa forma a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (artigo 40º, nº 1, do Código Penal), sendo nomeadamente suficientes para prevenir o cometimento de novos crimes.

Por força da alteração introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, ao artigo 58º do Código Penal, cujo nº 6 passou a prever a possibilidade de cumulação da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade com as regras de conduta estabelecidas no artigo 52º, nos 1 a 3, do mesmo Código, esbateu-se, em grande medida, a distinção do campo de aplicação desta pena em relação à suspensão da execução da pena de prisão.

Efectivamente, no regime anterior, o facto de não estar prevista a imposição de deveres ou regras de conduta conferia à suspensão da execução da pena de prisão um âmbito mais abrangente permitindo associar diversas finalidades ou combater diversos factores de risco, o que não sucedia com a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade.

Todavia, esse esbatimento implica uma delimitação mais rigorosa do âmbito de aplicação de cada uma das normas.

Ora, a nosso ver, a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade justifica-se sobremaneira quando as finalidades da punição sejam asseguradas de modo especial pela inserção do arguido no meio laboral.

Tendo em mente estes considerandos importa decidir quanto à eventual substituição da pena.

O arguido B....não tem antecedentes criminais, demonstrou profundo arrependimento pelo crime que cometeu – beneficiando, por isso, do perdão da vítima.

Neste quadro afigura-se desnecessário o cumprimento efectivo da pena de prisão.

Na opção entre a suspensão da execução da pena de prisão e a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade importa ponderar a circunstância de o arguido não se encontrar inserido profissionalmente.

Se, por um lado, está aberto o caminho para a prestação de trabalho, na medida em que o arguido dispõe de tempo livre para o efeito, por outro lado, a pena poderá contender com eventuais oportunidades de trabalho que surjam para o arguido, sendo certo que a sua extremamente deficitária situação económica, mais do que justificar, impõe a obtenção de uma ocupação profissional remunerada.

Por outro lado, o tipo legal de crime em causa não está associado a quaisquer factores económicos, pelo que o trabalho não será o elemento essencial da reinserção social do arguido.

Nestes termos, o Tribunal opta pela suspensão da execução da pena de prisão da pena aplicada ao arguido B....por período correspondente ao concretamente determinado.

Após a devolução do telemóvel à proprietária, mantém-se a apreensão das duas catanas.

De acordo com o artigo 109º, nº 1, do Código Penal:

“1 – São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos”.

As catanas são objectos perigosos por natureza, cuja simples detenção constitui um crime, razão pela qual não poderão ser restituídas ao proprietário, impondo-se, por isso, a sua perda a favor do Estado, o que se determina.

De acordo com o artigo 21º, nº 2, da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro:

“2 – Para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82º-A do Código de Processo Penal, excepto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser”.

Por sua vez, determina o referido artigo 82º-A do Código de Processo Penal:

“1 - Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72º e 77º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham.

2 – No caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório.

3 – A quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta em acção que venha a conhecer de pedido civil de indemnização”.

Ao determinar a aplicação deste regime em qualquer caso, apenas se ressalvando os casos de oposição expressa por parte da vítima, o legislador afastou o pressuposto previsto na parte final do nº 1 do artigo 82º-A do Código de Processo Penal quando esteja em causa uma vítima de violência doméstica.

Assim, o Tribunal, salvo oposição expressa da vítima, deverá sempre arbitrar uma quantia a título de reparação, ainda que não se verifiquem no caso particulares exigências de protecção.

Uma vez que a ofendida C... não deduziu pedido de indemnização civil e não se opôs à aplicação do regime previsto no artigo 82º-A do Código de Processo Penal, haverá que fixar a quantia indemnizatória.

Estão em causa prejuízos não patrimoniais, que – reportando-se a valores de ordem espiritual, ideal ou moral, não se repercutem no património do lesado e portanto não são susceptíveis de avaliação pecuniária, embora sejam compensáveis – correspondem àquilo que na linguagem jurídica se costuma designar por pretium doloris ou ressarcimento tendencial de angústia, da dor física, da doença, ou do abalo psíquicoemocional.

Apenas são atendíveis os que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (conforme o artigo 496º do Código Civil) e o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo Tribunal, tendo em atenção a situação económica do agente e do lesado e demais circunstâncias do caso concreto (conforme o artigo 494º ex vi artigo 496º, nº 3, ambos do Código Civil).

No presente caso releva o elevado período de tempo em que a conduta reiterada do arguido A...foi mantida sobre a vítima, implicando uma culpa agravada; o elevado grau de violência na ocorrência de 24 de Agosto de 2010; as consequências das condutas do arguido, determinando o acompanhamento psicológico e psiquiátrico da vítima; e a deficiente condição económica da vítima.

Quanto às condições económicas do arguido A…, embora não se lograsse apurar os seus rendimentos, a imagem transmitida situará o arguido num plano mediano, embora o mesmo seja proprietário de uma casa, como declarou, e de um quadriciclo, como resulta dos autos.

A fixação da indemnização neste caso foge aos parâmetros normais, uma vez que nos encontrámos perante uma reiteração de eventos danosos, enquanto na generalidade dos casos temos um evento danoso, ainda que com consequências que se prolongam no tempo.

Não podemos deixar de notar que, na generalidade das condenações por um crime de ofensa à integridade física ou de ameaça ou mesmo de injúrias, a indemnização não se situará abaixo do valor do salário mínimo nacional.

Qual o montante adequado quando se visa ressarcir dezenas de factos susceptíveis de constituírem crimes dessa índole, praticados ao longo de 23 anos de vivência em comum?

Só a agressão perpetrada a 24 de Agosto de 2010, apreciada singularmente, geraria uma obrigação de indemnização superior ao indicado valor correspondente ao salário mínimo nacional.

Perante estes elementos, estas dúvidas, num juízo equitativo, o Tribunal julga ajustada a quantia de € 10 000,00, sendo certo que se justificaria montante superior caso a situação económica do arguido A...fosse mais favorável.

Nem se diga, por outro lado, que esse montante é manifestamente excessivo atenta a condição económica do arguido, pois não se deixa de notar que o mesmo dispõe de património para suportar os encargos decorrentes da sua actuação voluntária e reiterada.


***

            III. Apreciação do Recurso

A documentação em acta das declarações e depoimentos prestados oralmente na audiência de julgamento determina que este Tribunal, em princípio, conheça de facto e de direito (cfr. artigos 363° e 428º nº 1 do Código de Processo Penal).

Mas o concreto objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da correspondente motivação, sem prejuízo das questões do conhecimento oficioso.

O recorrente apenas suscita questões de direito que são as seguintes:

- Se a pena correspondente ao crime de violência doméstica deve ser reduzida e fixada entre dois anos e dois anos e seis meses;

- Se no que respeita ao crime de detenção de arma proibida se deve optar pela aplicação da pena de multa;

- Se deve ser reduzida a pena única resultante de cúmulo jurídico;

- Se a pena de prisão deve ser objecto de suspensão.

Apreciando:

Da medida da pena do crime de violência doméstica

Sustenta o recorrente que a pena fixada em primeira instância (três anos e quatro meses de prisão) para o crime de violência doméstica é exagerada, devendo ser fixada entre dois anos e dois anos e seis meses.

Lembremos que o arguido foi condenado como autor de um crime de violência doméstica agravado, previsto pelo artigo 152º, nº 1, alínea a) e nº 2 do Código Penal, punível com pena de prisão de dois a cinco anos.

Sobre as finalidades da punição consignadas no artigo 40º, do Código Penal e sobre os critérios concretos a observar no doseamento da pena – cfr. artigo 71º, do mesmo Código Penal –, apenas se dirá de forma resumida, reproduzindo o Professor Figueiredo Dias, em “Direito Penal”, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2ª ed., pág. 84, que “a pena concreta é limitada no seu máximo inultrapassável pela medida da culpa; dentro desse limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função das exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais”. O quadro circunstancial a ponderar nos termos do artigo 71º do Código Penal mover-se-á dentro dos aludidos parâmetros.

A factualidade descrita revela-nos uma situação de prolongada sujeição de um ser humano a violência física e psicológica com o que tal significa de redução drástica da sua dignidade, o que não só não diminuiu com o termo do vínculo conjugal como se intensificou. Se por um lado encontramos nessa factualidade uma dimensão impressiva da gravidade objectiva do ilícito, também do mesmo modo revela a incapacidade de quem assim actua de compreender o significado do respeito devido a qualquer ser humano, porque especialmente capaz de coisificar a pessoa, de degradar a condição humana.  

Ora, atentos os factos julgados provados, o bem jurídico protegido pela incriminação, e as indicadas circunstâncias, não se vê no conspecto sedimentado no Tribunal a quo, qualquer margem para alteração, figurando-se a pena doseada em medida adequada aos factos apurados, temperada com equilibrado critério em que devidamente se ponderou o longo período de tempo durante o qual o arguido praticou actos de violência física e psíquica contra a ofendida, a exibição de armas em algumas ocasiões e contemporaneamente a ameaças dando-lhes por isso maior cariz impressivo, a intensidade da resolução criminosa, que não cessou, antes sofreu incremento com a separação do casal, o elevado grau de violência na agressão de 24 de Agosto de 2010, e respectivas consequências, atenta a extensão das lesões causadas, circunstância especialmente imputável ao arguido, as consequências de toda a violência exercida pelo arguido ao longo dos anos, determinando a necessidade de acompanhamento psicológico e psiquiátrico da ofendida.

E estando em causa actuação por longo período de tempo e que revela uma intensidade criminosa que se foi fortalecendo com o passar do tempo, adquirindo contornos de maior violência, nem se alcança, senão um muito mitigado valor, para a inexistência de antecedentes.

Em suma a pena encontrada pelo Tribunal a quo não belisca o basilar princípio da culpa e é a adequada às elevadas exigências de prevenção geral, mas também às elevadas exigências de prevenção especial que este tipo de comportamento compulsivo impõe.

Da pena do crime de detenção de arma proibida

Pretende o recorrente que relativamente ao crime de detenção de arma proibida se opte pela aplicação da pena de multa cominada na norma incriminadora, fixando-se esta em 300 dias à taxa diária de 20 euros.

Sendo certo que o artigo 70º do Código Penal preceitua que deve ser dada preferência à pena de multa quando prevista alternativamente com a pena de prisão, sujeita, porém, a concessão de tal preferência aos casos em que a pena não privativa da liberdade realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Mencionou-se a esse propósito na decisão recorrida que apesar da inexistência de antecedentes criminais do arguido, considerando a sua personalidade revelada, em especial, na última agressão, em conjugação com o facto de, no decurso da vivência em comum, algumas das ameaças serem acompanhadas pela exibição de uma catana, se entende que as exigências de prevenção especial impõem a aplicação de pena detentiva.

Mais diremos que quando se trata de analisar o peso das exigências de prevenção não podem os diversos crimes cometidos funcionar como compartimentos estanques porque sempre estaremos a debruçarmos sobre uma mesma pessoa e sobre a personalidade que reflectem os factos, todos os factos cometidos.

Acresce que no caso a posse de armas não pode deixar de ser considerada como um factor acrescido de seriedade do clima de medo criado na ofendida do crime de violência doméstica. Não estamos perante uma mera detenção de arma, mas já numa dimensão do seu uso, senão as catanas apreendidas, arma idêntica o que sempre indicará o grau de perigosidade da posse das armas pelo arguido. Estando em equação crime de perigo, trata-se de factor decisivo no sopesar da gravidade do ilícito que é acentuada.

E a acrescer à gravidade do ilícito existe a personalidade do arguido reflectida nos factos que torna manifesta a inadequação da pena de multa para satisfazer as exigências de prevenção, desde logo as exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, a que acresce a patente associalidade do arguido do ponto de vista da prevenção especial.

Não pode pois merecer qualquer censura a opção da decisão recorrida por pena de prisão. E do mesmo modo não pode merecer censura o doseamento da pena de prisão, só indirectamente questionada pelo recorrente, na senda do que já fixou expresso quanto ao crime de violência doméstica, manifestando-se, aliás, a existência de uniformidade de critério na fixação das duas penas parcelares.

Da pena única

Entende o recorrente que o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 77º do Código Penal no doseamento que efectuou da pena única.

O arguido/recorrente foi condenado na pena única de quatro anos de prisão. Tendo em consideração as penas parcelares aplicadas e o disposto no artigo 77º, nº 2 do Código Penal, a pena única devia situar-se entre três anos e quatro meses de prisão e quatro anos e quatro meses de prisão. Não era pois grande a margem de ponderação da decisão recorrida.

Tendo em consideração nos termos do artigo 77º, nº 1 do Código Penal que a pena única deve ser doseada tendo em consideração os factos e a personalidade do agente, salientando-se mais uma vez a gravidade dos factos praticados e a compulsividade e associalidade que revelam, patente se torna que a pena única encontrada se revela ajustada.

Da suspensão da execução da pena de prisão

Pretende o recorrente que a pena de prisão em que foi condenado seja suspensa.       

Embora na decisão recorrida já se discorra com pertinência sobre os pressupostos legais da suspensão da execução da pena, dir-se-á ainda assim o seguinte, começando por citar o normativo legal em causa.

Dispõe o artigo 50º, nº 1, do Código Penal, que “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior aos factos e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”.

Esta medida de conteúdo pedagógico e reeducativo só deve ser decretada quando o tribunal concluir, em face da personalidade do agente, das condições da sua vida e outras circunstâncias indicadas no texto legal transcrito, ser essa medida adequada a afastar o delinquente da criminalidade, ou seja, a suspensão da execução da pena terá sempre na base uma prognose favorável ao arguido, a esperança de que este sentirá a condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime, terá perante ela uma atitude de emenda cívica, de reeducação para o direito.

O Tribunal deverá correr um risco prudente, uma vez que esperança, não é seguramente certeza, mas se tiver sérias dúvidas sobre a capacidade do arguido para compreender a oportunidade de emenda cívica e ressocialização que lhe é oferecida, a prognose deve ser negativa (cfr. Professor Jorge de Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, 1ª edição, pág. 341 e segs., Leal-Henriques e Simas Santos, “Código Penal”, 3ª edição, em anotação ao artigo 50º e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.10.2003, proferido no processo nº 03P2450, disponível em www.dgsi.pt/jstj.).

Significa o exposto que devem ser ponderadas todas as circunstâncias que tornam possível uma conclusão sobre a conduta futura do arguido à luz dos fins de prevenção especial e, sendo essa conclusão favorável, equacionar-se-á se a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para satisfazer todas as finalidades da punição.

Concluindo, a opção por esta medida de conteúdo pedagógico e reeducativo só fará sentido se for possível concluir que o agente do crime terá capacidade para interiorizar dessa forma a desvalia da sua conduta e para se determinar no futuro de acordo com o direito. A pedagogia e a reeducação apenas podem ser exercidas em relação a quem for sensível a esse tipo de apelo.

Mas na avaliação a efectuar não se pode esquecer que, antes de mais, antes da formulação de um juízo de prognose favorável em que entram as exigências de prevenção especial, o regime de suspensão está em primeiro lugar dependente da ponderação das exigências de prevenção geral, na vertente das exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico.

Por estas exigências se limita em primeira linha o valor da socialização em liberdade que dita o instituto da suspensão, havendo sempre casos em que essas exigências, não obstante prognose favorável, impedem a suspensão (cfr. Professor Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 344).

Como refere Anabela Rodrigues, em “Estudos em Homenagem ao Professor Eduardo Correia”, “que assim é quanto à prevenção geral, resulta do facto de nenhum ordenamento jurídico suportar pôr-se a si próprio em causa, sob pena de deixar de existir enquanto tal. A sociedade tolera uma certa perda do efeito preventivo geral - isto é, conforma-se com a aplicação de uma pena de substituição, mas, quando a sua aplicação possa ser entendida pela sociedade, no caso concreto, como uma injustificada indulgência e prova de fraqueza face ao crime, quaisquer razões de prevenção especial que aconselhassem a substituição cedem, devendo aplicar-se a prisão”.

E de facto, o artigo 50º, do Código Penal estipula que a suspensão apenas deve ser decretada se a ameaça da pena for adequada e suficiente a realizar as finalidades da punição e de entre elas também avulta a prevenção geral de integração.

Postos estes considerandos, vejamos o que a este propósito se afirma na decisão recorrida:

"Em abono da eventual suspensão da execução da pena de prisão ao arguido A...o Tribunal apenas consegue vislumbrar a circunstância de o arguido não ter antecedentes criminais.

Pelo contrário, várias circunstâncias apontam em sentido inverso. Desde logo, a personalidade revelada pelo arguido em julgamento, no decurso do qual sempre revelou a ausência de um juízo crítico quanto à sua conduta, chegando ao ponto de veicular a sua indignação contra o ex-cônjuge por o sujeitar ao julgamento.

Também a personalidade revelada na prática dos factos aponta para a necessidade de cumprimento da pena, por neles se manifestar uma personalidade desconforme com os padrões de modernidade.

O arguido actuou ao longo dos anos na convicção de ter o direito de exercer violência física e psíquica sobre o cônjuge, exercendo esse “direito” mesmo na presença dos filhos menores, com total desprezo pela integridade do desenvolvimento destes.

Acresce que o grau de violência parece estar a ser aumentado, pondo em risco a própria vida de C... . Aliás, o descontrole do arguido levou-o a agir ilicitamente mesmo no edifício do Tribunal.

Finalmente, não podemos deixar de notar que a ausência de antecedentes criminais resulta unicamente do facto de a ofendida anteriormente não ter apresentado queixa ou não ter mantido a intenção de procedimento criminal contra o arguido, pois, como se provou, ao longo de todo o período de vivência em comum, o arguido cometeu crimes de ofensa à integridade física, ameaça e injúrias contra o cônjuge.

Conclui-se assim pela necessidade de cumprimento efectivo da pena única de prisão."

Ora, salvo o devido respeito por opinião contrária, a decisão recorrida procede a uma cabal, correcta e equilibrada ponderação das exigências de prevenção especial que o caso requer e que se sintetizam na circunstância de a personalidade do arguido revelada nos factos provados não se coadunar com qualquer possibilidade de emenda cívica em liberdade.

Mas ainda acresce que a gravidade dos factos do ponto de vista da prevenção geral de integração também não consente a opção por pena suspensa. O decretamento de tal pena de substituição seria certamente entendida como uma injustificada indulgência e prova de fraqueza face ao crime e, por conseguinte, não se mostrariam salvaguardadas as exigências de prevenção geral, na vertente das exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico sempre especialmente presentes quando está em causa menorização prolongada, já por essa circunstância particularmente grave, da dignidade humana.

Do contraditório em matéria cível

Alega o recorrente e com razão que o Tribunal postergou o seu direito ao contraditório ao condená-lo em indemnização sem lhe dar oportunidade para se pronunciar.

Sendo certo que o artigo 21º, nº 2 da Lei nº 112/2009 impõe o arbitramento oficioso de indemnização, excepto havendo oposição da vítima, remete para a aplicação do artigo 82º-A do Código de Processo Penal que no seu nº 2 prevê expressamente que seja assegurado o respeito pelo contraditório.

O artigo 118º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal estipula que a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei (não sendo o caso) e nos casos em que a lei não cominar a nulidade o acto é irregular.

Estamos, pois, perante um vício de irregularidade que vem previsto no artigo 123º do Código de Processo Penal dispondo o seguinte:

1 - Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado.

2 - Pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado.

Como refere Maia Gonçalves em Código de Processo Penal anotado, 1999, 10ª edição, a fls. 312 “apesar das irregularidades serem consideradas em geral vícios de menor gravidade do que as nulidades, a grande variedade de casos que na vida real se podem deparar impõe que se não exclua a priori a possibilidade de ao julgador se apresentarem irregularidades de muita gravidade, mesmo susceptíveis de afectar direitos fundamentais dos sujeitos processuais.

Daí a grande margem de apreciação que se dá ao julgador nos números 1 e 2 que vai desde considerar a irregularidade inócua e inoperante até à invalidade do acto inquinado de irregularidade e dos subsequentes que possa afectar, passando pela reparação oficiosa da irregularidade. Trata-se de questões a decidir pontualmente pelo julgador, com muita ponderação pelos interesses em equação, maxime … os direitos dos interessados.”

Ou seja, o regime estatuído no artigo no artigo 123º, na parte em que permite o conhecimento oficioso de irregularidades, traduz-se numa válvula de segurança do sistema que não podia prever exaustivamente como nulidades insanáveis todas as situações que a prática processual pode oferecer.

Sempre que irregularidades processuais se traduzam em compressão intolerável de direitos, situações que têm evidente paridade com nulidades de natureza insanável, deve o seu conhecimento e reparação ser oficioso. E é precisamente uma compressão intolerável, consistente na não concessão de contraditório antes de decisão condenatória que se configura no caso.

O direito ao contraditório em todo e qualquer procedimento é emanação directa do conceito de processo "equitativo" a que alude o artigo 20º da Constituição da República.

Ora o conhecimento oficioso da irregularidade não está sujeito a prazo e, podendo o Tribunal por sua exclusiva iniciativa dela conhecer, de igual pode proceder se a mesma for suscitada pela parte interessada.

A irregularidade que diz exclusivamente respeito à condenação em indemnização e não tem qualquer efeito viciante da decisão penal, implica apenas a invalidade dessa parte do acórdão recorrido que deverá ser repetido, depois de concedido o contraditório com a possibilidade de requer prova a produzir em audiência e exclusivamente com relevância para a fixação de indemnização civil.  

Pelo exposto importa finalmente concluir que o recurso apenas nesta parte se mostra fundado, importando provê-lo. 


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IV. Decisão

Nestes termos acordam em:

1. Negar provimento ao recurso interposto em matéria penal, mantendo integralmente nessa parte o acórdão recorrido;

2. Conceder provimento ao recurso interposto em matéria de indemnização civil, declarando inválido nessa parte o acórdão recorrido que deve ser substituído depois de concedido ao recorrente o direito ao contraditório com todas as implicações acima assinaladas.

Não há lugar a tributação atento o disposto no artigo 513º, nº 1 do Código de Processo Penal.


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Maria Pilar Pereira de Oliveira (Relatora)
José Eduardo Fernandes Martins