Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4235/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: CRIME DE IMPRENSA
Data do Acordão: 02/22/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CELORICO DA BEIRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 180º E 181º DO C. PENAL; ART.º 30º, DA LEI DE IMPRENSA E ART.ºS 37º E 38º DO C. P. PENAL
Sumário: I- O bem jurídico “honra” traduz uma presunção de respeito, por parte dos outros, que decorre da dignidade moral da pessoa, sendo o seu conteúdo preenchido, basicamente, pela pretensão de cada um ao reconhecimento da sua dignidade por parte dos outros; Está em causa, mais do que tudo, a pretensão de se não ser vilipendiado ou depreciado no seu valor aos olhos da comunidade; A honra, cuja ofensa é penalmente censurável, não se confunde com indelicadeza, falta de polidez, grosseria ou falta de educação, estando o seu caracter injurioso fortemente dependente do lugar, ambiente, das pessoas entre as quais ocorre e do modo como ocorre.
II- A injúria e difamação não podem reclamar-se de manifestações da liberdade de informação; A ofensa à honra, no caso da imprensa, pode ser justificada se se verificarem, cumulativamente, as duas condições previstas no n.º 2, do art.º 180 do CPP (realização de interesses legítimos e prova da verdade da imputação ou fundamento sério para, em boa-fé – que impõe o dever de cuidadosa informação – a reputar verdadeira; Assim, em casos de uma formulação de juízos de valo ofensivos, falta um dos pressupostos da justificação.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.
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I – Relatório.
1.1. Pelos competentes Serviços do Ministério Público na comarca de Celorico da Beira correram termos uns autos de inquérito tendo por base a denúncia do assistente A... e em que foram constituídos arguidos B...; C...; D...; E... e F..., todos já melhor e devidamente neles identificados.
Realizadas as diligências de investigação consideradas como pertinentes, o titular do inquérito exarou despacho ordenando o seu arquivamento.
Visando comprovar judicialmente esta decisão, o dito assistente requereu a abertura de instrução a qual, depois de tramitada, terminou com a decisão instrutória constante de fls. 451 e segs. determinando a não pronuncia de todos os denunciados.
1.2. Persistindo ainda na discordância do decidido, o assistente interpôs o presente recurso de cujo requerimento, depois de motivado, extraiu as conclusões seguintes tendentes a obter a revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra que ordene a submissão a julgamento da totalidade dos arguidos:
1.2.1. A decisão recorrida viola o disposto nos artigos 180.º, n.ºs 1, 2, alíneas a) e b) e 4, bem como o artigo 184.º, ambos do Código Penal [vulgo CP, e diploma de que serão os preceitos doravante a citar, sem menção da origem], bem como ainda o estatuído no artigo 308.º do Código de Processo Penal [CPP].
1.2.2. Com efeito, os arguidos imputaram ao assistente o facto de este ter sido "suspenso judicialmente do exercício de funções", o que constituiu, por si só, facto lesivo da honra e consideração da pessoa humana.
1.2.3. Ao contrário do decidido, a conduta em causa não está, no entanto, justificada pela emergência da específica dirimente da ilicitude constante do aludido n.º 2 do artigo 180.º.
1.2.4. Na verdade, não se verifica, in casu, a prossecução de interesses legítimos nem se demonstra – uma vez que a predita imputação era falsa – que os arguidos tivessem fundamento para em boa fé, a reputarem de verdadeira.
1.2.5. Também que o artigo 180.º, n.º 4, igualmente violado, exclui a boa fé quando o agente não tiver cumprido o dever de informação postulado pelo condicionalismo da hipótese concreta.
1.2.6. Tal interpretação é corroborada pela dogmática mais atenta que põe o acento tónico no cumprimento de um "cuidado na recolha de informações, na selecção e credibilidade das fontes, no adiamento da publicação caso a versão mais provável não seja suficientemente forte, etc." (Faria Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 623).
1.2.7. Tudo isto implica que "antes da imputação de factos desonrosos a alguém identificado na notícia se dê a possibilidade ao visado de apresentar a sua própria versão dos factos" (ibidem).
1.2.8. Também a jurisprudência adopta este entendimento, nomeadamente o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (Ac. STJ), de 20 de Setembro de 1995, ao afirmar que "apenas se pode julgar justificada a ofensa à honra do ofendido cometida por meio de imprensa, com base no exercício do direito fundamental de informação, quando o agente tenha (1) actuado dentro da função pública, (2) tenha utilizado o meio concretamente menos danoso, (3) e as imputações sejam verdadeiras ou como tais tomadas depois de cumprido o dever de esclarecimento".
1.2.9. Também o Acórdão da Relação do Porto (Ac. RP), de 11 de Janeiro de 1996, vai no mesmo sentido quando afirma que "não se exige ao jornalista a verdade absoluta, bastando uma crença fundada na verdade do que se noticia, através de fontes fidedignas e diversificadas".
1.2.10. De resto, é o próprio Estatuto Deontológico dos Jornalistas que logo no respectivo artigo 1.º enuncia a necessidade de contactar os visados a fim de obviar à transmissão de notícias agressivas para a honra e a consideração das pessoas, ao incluir informações desfasadas da realidade.
1.2.11. Por outro lado, uma vez que o assistente se incluía, à data dos factos, na categoria de pessoas do artigo 132.º, n.º 2, alínea j), pois que era membro de um órgão de uma autarquia local, é de considerar a agravação prevista no artigo 184.º.
1.2.12. Mostra-se, finalmente, violada a norma do artigo 308.º, n.º 1 do CPP, uma vez que, atenta a sobredita materialidade é de concluir pela existência de indícios suficientes legitimadores de uma decisão instrutória de pronúncia.
1.3. Admitido o recurso, e notificados para o efeito quer o Ministério Público, quer os denunciados, apenas o primeiro respondeu sufragando a manutenção do decidido baseado na seguinte síntese conclusiva:
1.3.1. Nada nos autos aponta para que os arguidos B... e C... tenham tido conhecimento das notícias em causa, previamente à sua divulgação.
1.3.2. Os arguidos E... e D... limitaram-se, como "pivots”, a transmitir as notícias que não foram por si elaboradas, as quais apenas continham a imputação objectiva de factos, não tendo motivo para suspeitar de qualquer incorrecção.
1.3.3. A imputação em causa é, em si, susceptível de ofender a honra e consideração do assistente, sendo também certo que o mesmo era Presidente de Câmara em exercício de funções à data em que foi efectuada.
1.3.4. Foi, no entanto, transmitida no exercício de uma função de interesse público, decorrente de valores constitucionais e legalmente protegidos, a liberdade de imprensa e o direito à informação.
1.3.5. A arguida F... reuniu os elementos informativos suficientes e possíveis, tendo em conta que os factos a que se referiu estavam abrangidos pelo segredo de justiça para, em boa-fé, os reputar como verdadeiros.
1.3.6. As afirmações efectuadas não são falsas, mas inexactas.
1.3.7. Inexistem, consequentemente, “indícios suficientes” que suportem uma decisão de pronúncia contra os arguidos que, caso venham a ser submetidos a julgamento pela prática dos factos em causa nos autos, serão, com grande probabilidade, absolvidos.
1.4. Remetidos os autos a este Tribunal, o Exmo. Procurador-geral Adjunto emitiu parecer igualmente defendendo a subsistência do decidido, vale por dizer, do não provimento do recurso.
Cumpriu-se o disposto pelo artigo 417.º, n.º 2 do CPP.
No exame preliminar a que alude o n.º 3 deste mesmo preceito considerou-se que nenhuma circunstância obstava ao conhecimento de meritis.
Colheram-se, pois, os vistos legais.
Cabe agora apreciar.
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II – Fundamentação.
2.1. Como resulta do disposto no artigo 412.º, n.º 1 do CPP, o objecto do recurso é definido através das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação.
Sendo assim, temos que a questão a decidir nos autos se traduz em aquilatarmos se, em contrário do decidido, resultam dos autos, por ora, “indícios suficientes” para que os arguidos sejam submetidos a julgamento.
2.2. Esta tarefa impõe que comecemos por precisar quais o sentido e função da fase processual de instrução e o conceito de indícios suficientes.
Tal fase facultativa visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento – artigo 286.º, n.º 1 do CPP –, no sentido de que não se está perante um novo inquérito, mas apenas perante um momento processual de comprovação.
Ora, um dos fundamentos do arquivamento do inquérito pelo Ministério Público e do despacho de não pronúncia pelo Juiz de instrução é a insuficiência dos indícios da verificação de crime ou de quem foram os seus agentes (artigos 277.º, n.º 2 e 308.º, ambos do CPP).
A pronúncia só deve ter lugar quando tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente (artigos 283.º e 308.º, n.º1 do CPP).
Na decisão instrutória de não pronúncia, o juiz decide que os autos não estão em condições de prosseguir para a fase de julgamento por não se verificarem os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança criminais.
Isto, alicerçado nos apontados “indícios suficientes” para cujo conceito remetem os artigos 283.º e 308.º do CPP.
Por indiciação suficiente, entende-se "a possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, em razão dos meios de prova já existentes, uma pena ou medida de segurança".
Trata-se da "probabilidade, fundada em elementos de prova que, conjugados, convençam da possibilidade razoá-vel de ao arguido vir a ser aplicável uma pena ou medida de segurança criminal" (Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. II, 2.ª ed. Verbo 1999, pág. 99/100).
Ou, como refere o Prof. Figueiredo Dias (in Direito Processu-al Penal, Vol. I, Coimbra Editora, 1974, pág. 133) "os indícios só serão suficientes, e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição".
E, mais adiante: "tem pois razão Castanheira Neves quando ensina que na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final, só que a instrução preparatória (e até a contraditória) não mobiliza os mesmos elementos probatórios que esta-rão ao dispor do juiz na fase do julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação" (isto, reportando-se ao CPP de 1929, mas, com plena actualidade no presente).
No mesmo sentido afirmava já Luís Osório (in Comentá-rio ao Código de Processo Penal Português, Vol. IV, pág. 411) que devem considerar-se indícios suficientes aqueles que fazem nascer em quem os aprecia a convicção de que o réu poderá vir a ser condenado".
Indícios, no sentido em que a expressão é utilizada no artigo 308.º do CPP, são pois meios de prova enquanto são causas ou consequências morais ou materiais, recordações ou sinais, do crime.
Para a pronúncia ou para a acusação, a lei não exige a prova, no sentido da certeza moral da existência do crime, bastando-se com a existência de indícios, de sinais dessa ocorrência.
No juízo de quem acusa, como no de quem pronuncia, deverá estar sempre presente a defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardados na DUDH (seu artigo 2.º) e que entre nós se revestem de dignidade constitucional (artigo 27.º da CRP).
É por tal razão que quer a doutrina quer a jurisprudência vêm entendendo que aquela possibilidade razoável de condenação é uma possibilidade mais positiva do que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido, isto é, os indícios são suficientes quando haja uma alta proba-bilidade de futura condenação do arguido ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.
Vale por dizer, a final e em súmula, que constitui indiciação suficiente o conjunto de elementos que, relacio-nados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agen-te, fazendo vingar a convicção de que este virá a ser condenado pelo crime que lhe é imputado – sobre o conceito vindo de dilucidar pode ver-se com especial interesse os Acórdãos do Tribunal Constitucional, n.ºs 388/99 e 583/99, in, respectivamente, Diário da República, II.ª Série, de 8 de Novembro de 199, pág. 16674 e segs. e de 22 de Fevereiro de 1999, pág. 3599 e segs.
2.3. Segundo ponto igualmente relevante à apreciação do recurso interposto é também o de ponderarmos os interesses em presença (da honra do denunciante e da liberdade de informação dos denunciados) que, como é consabido, se conflituam bastas vezes.
O artigo 26.º, n.º 1 da CRP consagra, entre os vários direitos de personalidade, o direito "ao bom-nome e reputação".
O bem jurídico-constitucional assim delineado apre-senta um lado individual (o bom-nome) de par com um lado social (a reputação ou consideração), fundido numa pre-tensão de respeito que tem como correlativo uma conduta negativa dos outros.
A tutela penal desse direito é assegura-da, mormente, pelos artigos 180.º e 181.º do CP.
Dispõe aquele primeiro, ao que ora pode relevar, que, quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou considera-ção, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido (...), sendo a pena agravada quando o crime for cometido através de meio de comunicação social (artigo 183.º, n.º 2).
Na lição do Prof. Beleza dos Santos, "a honra refere-se ao apreço de cada um por si, à autoavaliação no sentido de não ter um valor negativo, particularmente do ponto de vista moral. A consideração, ao juízo que forma ou pode formar o público no sentido de considerar alguém um bom elemen-to social, ou ao menos, de o não julgar um valor negativo" – Algumas considerações jurídicas sobre crimes de difama-ção e de injúria, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 92.º, pág. 166 –.
Vale por dizer que o bem jurídico honra traduz uma presunção de respeito, por parte dos outros, que decorre da dignidade moral da pessoa, sendo o seu conteúdo preenchido, basicamente, pela pretensão de cada um ao reconhecimento da sua dignidade por parte dos outros.
Está em causa, mais do que tudo, a pretensão de se não ser vilipendiado ou depreciado no seu valor aos olhos da comunidade.
Como assim, não pode considerar-se penalmente relevante a mera susceptibilidade pessoal.
E não pode confundir-se a injúria com a indelicadeza, com a falta de polidez, com a grosseria, com que relevam não mais do que na dita falta de educação.
Uma conduta pode ser censurável em termos éticos, de relação, até profissionais e não ser censurável em termos penais, pois que não integra a tipicidade de qualquer crime, designadamente dos crimes contra a honra aqui em questão.
Por outro lado, tem de reconhecer-se a relatividade que envolve a acção típica, pois que, à luz do que vem de expor-se, o carácter injurioso de determinada palavra, frase ou acto, está fortemente dependente do lugar, do ambiente em que ocorre, das pessoas entre as quais ocorre, do modo como ocorre.
Está dependente, até, da classe social do arguido e do ofendido, do respectivo grau de educação e de instrução, do seu relacionamento, dos seus hábitos de linguagem.
Dispõe o artigo 30.º, da Lei de Imprensa que: 1) a publicação de textos ou imagens através de imprensa que ofenda bens jurídicos penalmente protegidos é punida nos termos gerais, sem prejuízo do disposto na presente lei, sendo a sua apreciação da competência dos tribunais judiciais; 2) sempre que a lei não cominar agravação diversa, em razão do meio de comissão, os crimes cometidos através da imprensa são punidos com as penas previstas na respectiva norma incriminadora, elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo.
A liberdade de expressão e de informação merece, de igual modo, consagração constitucional.
Com efeito, nos termos do disposto no artigo 37.º, n.º 1 da CRP, todos têm direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações.
Por outro lado, o artigo 38.º, n.ºs 1 e 2 da dita CRP, garante a liberdade de imprensa, que implica, desde logo, a liberdade de expressão e de criação, por parte dos jornalistas.
A pulsão dos dois mencionados direitos fundamentais origina, como dito, atritos entre ambos.
Prevendo-os a própria CRP reconhece a existência de limites ao exercício do direito de exprimir e divulgar livremente o pensamento, bem como ao exercício do direito de informar e, por tal via, ao exercício da liberdade de imprensa, preceituando (artigo 37.º, n.º 3) que as infracções cometidas no exercício destes direitos (de expressão e de informação) ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua apreciação com-petência, respectivamente, dos tribunais judiciais ou de e-ntidade administrativa independente.
Anotando tal preceito, mencionam J. G. Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República, Anotada, 3.ª ed., revista, 1993, págs. 226/227: "Do n.º 3 conclui-se, porém, que há certos limites ao exercício do direito de divulgar livremente o pensamento, cuja infracção pode conduzir a punição criminal. Esses limites visam salvaguardar os direitos ou interesses constitucionalmente protegidos de tal modo importantes, que gozam de protecção penal. Entre eles estarão, designadamente, os direitos dos cidadãos à sua integridade moral, ao bom-nome e reputação (cfr. art.º 26.º); a injúria e a difamação ou o incitamento ou instigação ao crime (que não deve confundir-se com a defesa da descriminalização de certos factos) não podem reclamar-se de manifestações da liberdade de informação".
Por seu turno, Figueiredo Dias a respeito do modo como o direito penal há-de resolver as situações de conflito entre o direito à honra e o direito de expressão e de informação quando a imprensa actue no exercício da sua função pública – onde cabe toda a formação democrática e pluralista da opinião pública em matéria social, política, económica e cultural –, sustenta que, em primeiro lugar, é indispensável à correcta justificação pelo exercício da informação que a ofensa á honra cometida se revele como meio adequado e razoável do cumprimento do fim que a imprensa, no exercí-cio da sua função pública, pretende atingir no caso concreto.
Com efeito, nos termos previstos no n.º 2 do art. 180.º do CP, a conduta do difamador, prevenida no n.º 1, não é punível quando a) a imputação for feita para realizar interesses legítimos, e b) o agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.
Estamos assim em presença de uma verdadeira e específica causa de justificação que, sendo embora de aplicação geral, tem um prevalecente âmbito de incidência no ponto de conflito entre o direito à honra e o direito de informar.
Para que se possa afirmar esta causa de justificação, é necessário que se verifiquem, cumulativamente, duas condições: a) a imputação de facto desonroso ser feita para realizar interesses legítimos e, para além disso, b) que o agente logre demonstrar a veracidade da imputação ou tenha fundamento sério para a reputar verdadeira.
Estribados em José Faria Costa (no Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 1999, pág. 635 e segs.) e em Manuel da Costa Andrade (Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, 1996) e com recurso à síntese impressiva oferecida pelo Ac. da RP, de 27/11/02 (Proc. 0240256, em www.dgsi.pt), citado no Ac. da RL, de 18 de Maio de 2005, in Colectânea de Jurisprudência, Ano XXX, Tomo III, págs. 127 e segs. que vimos acompanhando de perto, importa, a respeito do apontado artigo 180.º, n.º 2 do CP, reter o seguinte:
Para preencher a intencionalidade ínsita na al. a) do seu n.º 2, é necessário que se demonstre a prossecução de interesses legítimos.
Esta possibilidade de justificação tem de se limitar à imprensa que cumpre uma função pública, uma actividade relativa à formação democrá-tica e pluralista da opinião pública em matéria social, política, económica, cultural. Só nestes domínios existe um interesse público no conhecimento e divulgação da notícia que concorre, de forma decisiva, para a correcta formação da opinião pública em áreas de indiscutível importância para a existência e evolução da comunidade social.
A realização de interesses legítimos, no quadro das ofensas à honra por meio da crónica jornalística, depende essencialmente do conteúdo da notícia, isto é, da circuns-tância de tal narração servir à consecução da função pública da imprensa.
A justificação jurídico-penal da conduta ofensiva da honra que se traduz na imputação de factos não depende, apenas, da realização de um interesse que se inclua na chamada função pública da imprensa – a lei impõe ainda que o agente prove a verdade da imputação ou que haja tido fundamento sério para em boa fé, a reputar verdadeira.
A boa fé não pode significar uma pura convicção subjectiva por parte do jornalista na veracidade dos factos, antes tem de assentar numa imprescindível dimensão objectiva. A boa fé está dependente do respeito das regras de cuidado inerentes à actividade de imprensa e que impõe ao profissional o cuidadoso cumprimento de um dever de informação antes da publicação da notícia.
Uma exigência que a lei consagra expressamente no artigo 180.º, n.º 4: a boa fé referida na alínea b) do n.º 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da informação.
A liberdade de expressão e informação e a liberdade de imprensa, constitucionalmente consagradas (artigos 37.º e 38.º, n.ºs 1 e 2, alínea a) da CRP), implicando a liberdade de expressão e criação dos jornalistas, não se esgota na narração de factos, antes supõe o direito de exprimir e divulgar o pensamento, estendendo-se também ao chama-do "direito de opinião" o qual se exerce mediante a exteriorização de juízos de valor.
A específica causa de justificação em referência é inapli-cável à formulação de juízos de valor ofensivos, por impossibilidade de preenchimento da condição da alínea b).
No caso de formulação de juízos ofensivos, dever-se--ão aplicar, se for caso disso, as regras gerais contidas no artigo 31.º, designadamente a constante da alínea b) do seu n.º 2, tendo-se em especial atenção o princípio da ponderação de interesses.
Embora se reconheça a impossibilidade de aplicação da causa de justificação do artigo 180.º, n.º 2, no caso de formulação de juízos ofensivos, “entendemos não ser de excluir totalmente uma apreciação e valoração por parte do julgador, sobre a verdade dos factos que eventualmente se achem subjacentes à exteriorização daqueles juízos de valor, especialmente nos casos em que a par de juízos valorativos se imputam factos que se achem em relação de causa e efeito com aqueles. É que para o juiz poderá ser decisivo, no seu “julgamento” sobre a verificação da causa exclusória atrás referida (alínea b) do n.º 2 do artigo 31.º), a circunstância de os juízos valorativos ofensivos se basearem ou não em factos verídicos.
2.4. Na posse destes considerandos, vejamos do caso sub judice.
Embora começando por tecer algumas críticas à decisão sob censura, nomeadamente referindo que a mesma não obedeceu a uma estrutura formal que destrinçasse factos dados como provados e/ou factos tidos como não provados, além de que se não mostra ela adequadamente fundamentada (como impõem os artigos 205.º da CRP e 97.º, n.º 4 do CPP), o recorrente deixa cair os fundamentos que assim poderia esgrimir, no seu entender, e acaba por assentar a tónica da sua crítica na apreciação jurídica aportada na decisão recorrida entendendo que ela questionou, então, os artigos 180.º, n.º 2, alíneas a) e b) e 184.º já citados.
Não constituindo objecto do recurso aquelas veladas críticas primeiramente assumidas pelo recorrente, concedendo-se embora que em termos estritamente formais a decisão recorrida não fez uma destrinça entre a factualidade que expressamente considerou provada e não provada, lendo-se em toda a sua extensão, dela decorre, porém, o manancial probatório considerado/valorado, bem como o acervo fáctico considerado.
Na verdade, escreve-se a certo passo:
“ (…) Escalpelizando o tipo legal em apreço cumpre agora fazer referência à factualidade indiciada nos autos.
Os elementos probatórios mais relevantes dos autos são as cassetes de vídeo onde se encontram reproduzidas as notícias veiculadas e a informação trazida aos autos a fls. 208 na qual constam a indicação dos crimes pelos quais o aí arguido (aqui assistente) foi acusado e das medidas de coacção aplicada e, finalmente, cópia do pedido de suspensão de funções este datado de 04.04.02 (fls. 8).
O primeiro serviço noticioso constante da cassete é apresentado pelo pivot E... e nele a mesma refere – com relevância para a matéria sub judice – que o assistente A... foi suspenso judicialmente de funções. Esclarece ainda que o mesmo foi detido pela PJ de Coimbra e presente a tribunal, tendo saído em liberdade provisória mediante a prestada caução.
O segundo serviço noticioso constante da mesma videocassete é apresentado pelo pivot C... que relata sumariamente que o assistente foi suspenso judicialmente das suas funções e depois a emissão passa, tudo leva a crer, para Celorico da Beira, onde a arguida F..., em voz off trata mais minuciosamente o caso, explicando que o arguido foi presente a tribunal e que prestou caução em substituição da prisão preventiva. (…)
Da informação constante dos autos a fls. 208 resulta que, no âmbito do Inq. N.º 154/01.9 JACBR A... foi sujeito a 1.º interrogatório judicial no dia 03.04.05 na sequência do qual lhe foram aplicadas, além de TIR, as medidas de coacção de proibição de estabelecer contactos pessoais ou por telefone, em quaisquer circunstâncias, com o co-arguido Fernando Gouveia e com funcionários e outras entidades que prestem serviço na Câmara Municipal de Celorico da Beira, bem como não se dirigir nem frequentar a mesma e a prestação de caução por depósito no montante de 9.975,96 Euros.

Resulta também dos autos que o arguido pediu a suspensão de funções na Câmara Municipal com a data de 04.04.02.
Desde já se diga que, em parte nenhuma das reportagens constantes dos autos se afirma que o arguido tenha sido preso mas apenas que foi detido para 1.º interrogatório.

Quanto à expressão “suspenso do exercício de funções” constata-se que a mesma foi, efectivamente, usada nos dois serviços noticiosos em apreço, pelos arguidos E..., D... e F....
(…)”.
Por outro lado, mostra-se a decisão controvertida devidamente fundamentada. Sendo certo que não como reclama o recorrente!
Isto dito, indaguemos se todos (ou algum/alguns dos arguidos) devem ser submetidos a julgamento.
Na denúncia apresentada o assistente pretendia que tal sucedesse relativamente aos arguidos B... (na qualidade de Director Geral da G...); C... (enquanto Director de Informação da estação televisiva) e àquele (s) repórter (es) que nos dias 4 e 5 de Abril de 2002 divulgaram as notícias, visando-o.
Ora, no particular dir-se-á:
- Decorre dos preceitos legais convocáveis que para a emergência da responsabilização penal do director de órgão de informação se torna mister a prova de que o mesmo tomou conhecimento do conteúdo da notícia e, mau grado ter tido a possibilidade de se opor à respectiva divulgação, não o haja feito, através de acção adequada.
Da prova produzida nos autos até ao momento da prolação do despacho recorrido nenhuma prova emergia que nesses termos viesse a conceder a “indiciação” e provável condenação dos arguidos B... e C..., uma vez que nada denuncia que eles hajam tido prévio conhecimento prévio das notícias participadas e que estiveram em condições de, por forma adequada, impedirem a sua divulgação.
Vale por dizer que se impunha a sua não pronúncia, como decretada.
- Por outro lado, e relativamente aos demais arguidos – D..., E... e F..., escalpelizando-se as diversas situações que merecem ponderação, decorre dos autos que:
Se verifica no que concerne aos crimes alegadamente imputados ao assistente no processo em que é arguido no DIAP de Coimbra, que o mesmo se encontrava, à data da divulgação das notícias aqui em causa, indiciado, entre outros, por um crime de corrupção passiva para acto ilícito e de um crime de branqueamento de capitais.
Já no que diz respeito ao facto da detenção, embora o mesmo mencione que naqueloutro processo em que figura como arguido não tivesse sido detido, antes comparecido voluntariamente no DIAP de Coimbra, o certo é que no nosso ordenamento processual penal para que alguém seja interrogado judicialmente e aplicada uma medida de coacção é necessário que se trate de alguém que já tenha sido formalmente constituído como arguido e que se encontre detido (cfr. artigos 141.º; 192.º, n.º 1; 194.º e 254.º, n.º 1, alínea a), todos do CPP).
Nestas circunstâncias as afirmações dos ditos arguidos dizendo que o assistente foi detido e, nessa sequência, lhe haviam sido impostas medidas de coacção, não se podem considerar como atentatórias da sua honra. Precise-se, ademais, que nas peças emitidas se não diz nunca que ele foi “preso”.
No que tange às medidas de coacção indicadas como alegadamente impostas ao assistente resulta do teor do depoimento do próprio e ainda do documento entretanto junto a fls. 208/9 destes autos que, na verdade, lhe foi aplicada a medida coactiva de caução no valor de € 9.975,96, correspondendo, pois, a afirmação divulgada à verdade.
Por fim, e no que se reporta à suspensão do mandato, embora a mesma não tivesse sido imposta judicialmente, tendo, antes, resultado de um acto voluntário do aqui denunciante, o certo é que ela foi coeva ao interrogatório do assistente no âmbito do processo que corria no DIAP de Coimbra. Como assim, e ponderando-se também a medida de proibição de se dirigir ou frequentar a Câmara Municipal de Celorico da Beira então igualmente imposta, era normal conceber-se, como sucedeu com os arguidos, que a mesma tivesse sido resultante do interrogatório a que ele foi sujeito.
De ressaltar também que tudo se verificou numa altura em que tal processo se encontrava em segredo de justiça, tornando, pois, mais difícil para os arguidos obterem a informação sobre se a suspensão do mandato ocorreria voluntariamente ou como corolário de medida de coacção então imposta judicialmente.
Mais cumpre não olvidar que não resulta dos autos que o assistente tenha solicitado qualquer rectificação à estação televisiva dos factos noticiados a seu respeito, não exercitando o seu legal direito de resposta, antes se limitando, volvidos mais de cinco meses sobre a difusão da notícia aqui em causa, a apresentar a queixa que a estes autos deu causa. Também que a jornalista F... o tentou contactar antes da divulgação da notícia, embora em vão (cfr. fls. 324).
Da conjugação de todos estes elementos decorre haverem os visados actuado com o intuito de realização de interesses legítimos e na convicção da verdade das imputações.
De referir ainda e concretamente a dois dos visados – D... e E... – que os mesmos não participaram na elaboração nem na investigação da notícia, e que atenta a sua qualidade de pivots dos serviços noticiosos se limitaram a lê-las como se lhes apresentaram. Nestas concretas circunstâncias não era exigível que sobrestassem à sua divulgação, impondo uma prévia “certificação” do que iam relatar.
Em conclusão, e sem que se repise a argumentação expendida no despacho recorrido, porquanto meramente redundante, bem aí se decidiu que também estes arguidos não deveriam ser submetidos a julgamento, uma vez que agiram todos eles na prossecução do interesse legítimo do exercício da sua actividade profissional de liberdade de informação e com fundamentos sérios para, em boa fé, mesmo não relatando factos totalmente verídicos, mas apenas parcialmente inexactos, os considerarem como verdadeiros.
O que se traduz na emergência da causa justificativa plasmada no citado artigo 180.º, n.º 2, alíneas a) e b) do CP.
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III – Decisão.
São termos em que perante todo o exposto se nega provimento ao recurso, mantendo-se, consequentemente, o despacho recorrido.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 8 UCs.
Notifique.
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Coimbra, 22 de Fevereiro de 2006