Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
718/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALEXANDRINA FERREIRA
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 10/19/2004
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: COMARCA DE PENACOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: N.º 4 DO ARTIGO 1817.º DO CÓDIGO CIVIL; ARTIGO 13.º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
Sumário: 1. É inconstitucional o n.º 4 do artigo 1817.º do Código Civil, por violação do princípio da igualdade e não medida em que restringe a sua aplicação às situações em que o investigante é tratado como filho pelo pretenso pai, mesmo que esteja comprovada (ou quase comprovada) cientificamente.
2. Por isso o investigante pode propor a acção de investigação de paternidade após o falecimento do pretenso pai.
Decisão Texto Integral: Acordam na Relação de Coimbra

A... veio interpor recurso da sentença proferida na acção que intentou contra B... e mulher C..., D... e marido E... e F... e marido G....
Na p.i., a autora, ora recorrente, alega que o seu nascimento resultou de relação havida entre sua mãe e H..., já falecido, e pede o reconhecimento judicial da paternidade.
Para além de todo o circunstancialismo em que terá ocorrido a concepção, a autora narra um conjunto de factos que, sustenta, evidenciam ter sido reputada e tratada como filha pelo pretenso pai e reputada como tal pelo público.
Dos demandados – Joaquim e Maria Aurora, irmãos do falecido, e Dulcelina filha da Maria Aurora, chamada por testamento, à sucessão do H... – só não contestaram o réu Joaquim e sua mulher.
Na defesa apresentada, os réus, ora recorridos, sustentam que a mãe da autora se relacionou sexualmente com vários homens, não sabendo ambas – autora e sua mãe - de qual das relações, terá resultado o nascimento.
Dizendo ainda, que nunca o falecido reputou e tratou a autora como filha, nem esta era reputada como tal pelo público, pedem se declare verificada a excepção de caducidade.
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Na fase instrutória do processo, a autora requereu a realização de testes de ADN, pedido que obteve a oposição dos contestantes.
Deferido o pedido de realização de perícia, de tal decisão interpuseram os contestantes recurso de agravo, que não obteve provimento.
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A 1.ª instância deixou assente e está provado que:
1. Em 17.11.61 nasceu na freguesia de Oliveira do Mondego, concelho de Penacova, a autora A....
2. O nascimento foi registado em 18.12.61, na Conservatória do Registo Civil de Penacova apenas como filha de Leonilda dos Santos, solteira, não tendo sido feita menção à respectiva paternidade.
3. Em 22.12.43 nasceu na freguesia de Oliveira do Mondego, concelho de Penacova, Piedade Conceição Martins, filha de Leonilda dos Santos e como tal foi registado o seu nascimento, não tendo sido feita menção à respectiva paternidade.
4. Em 28.5.46 nasceu na freguesia de Oliveira da Mondego, concelho de Penacova, Nelson Santos, filho de Leonilda dos Santos e como tal foi registado o seu nascimento não tendo sido feita menção à respectiva paternidade.
5. Em 30.5.54 nasceu na freguesia de Oliveira do Mondego, concelho de Penacova, Amândio dos Santos, filho de Leonilda dos Santos e como tal foi registado o seu nascimento não tendo sido feita menção à respectiva paternidade.
6. Aquando da concepção e nascimento da autora, a sua mãe trabalhava em casa de Cecília Simões, mãe de H... regressou a Cunhedo tendo mantido, por diversas vezes, relações sexuais com Leonilda dos Santos durante a sua permanência em Portugal.
9. Desse relacionamento nasceu a ora autora.
10. Tal facto era e é do conhecimento geral da população de Cunhedo.
11. E o Anastácio Branco nunca o negou.
12. Até aos seis anos de idade a autora frequentou a casa de Cecília Simões, mãe de H....
13. Em criança brincava com os filhos dos irmãos do Anastácio.
14. O H... reconheceu e assumiu perante o seu irmão Joaquim a paternidade da autora.
15. Em conversas com pessoas mais chegadas reconhecia que era pai da autora.
16. No início do mês de Dezembro de 1999, o H... ficou acamado.
17. Faleceu em 20.12.99.
18. A autora tentou visitar o referido H..., enquanto ele esteve acamado, o que não conseguiu por ter sido impedida pela ré Dulcelina, que sempre se opôs.
19. A autora sempre foi e ainda é hoje reputada como filha de H..., por toda a população de Cunhedo.
20. Ao longo da sua vida, a mãe da autora manteve relações sexuais com outros homens.
21. A autora pronunciou a palavra pai em relação ao Anastácio, em voz alta, no dia do funeral deste.
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Na sentença recorrida entendeu-se que «nos casos de investigação de paternidade, cabe ao réu provar o decurso dos prazos dos 2 anos subsequentes à maioridade ou emancipação do investigante» e que «o prazo estabelecido no n.º 1 do art.º 1817º se reporta à regra geral da caducidade nestas acções».
Entendeu-se, ainda, que «se o investigante pretende beneficiar de um prazo especial, mais longo e só aplicável em determinadas circunstâncias, como é o caso do art.º 1817º, n.º 4 do CC e é o do caso proposto pela autora, então tal situação deverá considerar-se como uma contra excepção, cuja prova incumbirá ao investigante, enquanto situação especial, impeditiva do funcionamento da regra geral».
Finalmente, entendendo-se que «não existe qualquer facto que contenha o elemento nomen, enquanto integrante da situação de posse de estado», julgou-se verificada a caducidade.
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A apelante apresentou as seguintes conclusões de recurso:
1. O acórdão dá como provado que o H...: a) reconheceu e assumiu perante o seu irmão Joaquim a paternidade da autora; b) em conversas com pessoas mais chegadas reconhecia que era pai da autora; c) nunca o negou perante a população de Cunhedo.
2. A autora foi e ainda é hoje reputada como filha de H....
3. Durante o período legal de concepção o H... manteve relações sexuais com a mãe da recorrente e que desse relacionamento nasceu esta.
4. No início do mês de Dezembro de 1999, o H... ficou acamado, tendo falecido a 20/12/1999.
5. A partir da data em que ficou acamado, a recorrente foi impedida pela recorrida, Dulcelina, de visitar o pai.
6. Incumbe ao réu a prova da cessação do tratamento no ano anterior à propositura da acção (art.º 1817º, n.º 6 CC).
7. “Quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz”. (art.º 350º CC).
8. A maternidade e a paternidade constituem valores sociais eminentes (art.º 67º, n.º 2 CRP) .
9. “Os filhos nascidos fora do casamento não podem, por esse motivo, ser objecto de qualquer discriminação e a lei e ou as repartições oficiais não podem usar designações discriminatórias relativas à filiação (art.º 36º, n.º 4 CRP).
10. “A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal…ao bom nome e reputação, à imagem…e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação” (art.º 26º, n.º 1 CRP).
11. “A lei garantirá a dignidade pessoal e a identidade genética do ser humano…” (art.º 26º, n.º 3 CRP).
12. O direito ao conhecimento e reconhecimento da paternidade decorre de vários princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa humana, do direito à identidade pessoal e à integridade moral.
13. Desde a aprovação do Código Civil, a lei sofreu alterações determinantes, nomeadamente através do DL n.º 496/77 de 25.11, e mais recentemente, através da Lei n.º 21/98 de 12.05, tentando “regularizar” situações de injustiça e desigualdades que foram criadas.
14. A manutenção dos mesmos prazos de caducidade, constitui uma violação clara do princípio da igualdade, na medida em que não foram atendidas e regularizadas as situações que se verificaram anteriormente.
15. O progresso científico possibilita, hoje em dia, afirmar com certeza quase absoluta, quer a maternidade, quer a paternidade, o que à data da aprovação do CC e do DL n.º 496/77, não acontecia.
16. No presente caso, e sendo a Recorrente sujeita aos testes de ADN devidos, deu um índice de paternidade IP = 35568 e uma probabilidade de paternidade de W = 99,997% que corresponde a uma paternidade praticamente provada.
17. Os próprios RR reconhecem nas alegações de direito que apresentaram nos termos do art.º 657º CPC, que a paternidade biológica se encontrava assente, com toda a segurança.
18. Aquando da reforma de 1977, em alguns sectores da doutrina estrangeira, era defendida a tese de que a investigação da paternidade, por respeitar a interesses inalienáveis do cidadão, incorporados no seu estado pessoal, não devia ser limitada no tempo, tese que é acolhida na Alemanha e na Itália.
19. É absurdo e iníquo que alguém fique inibido de investigar a paternidade, principalmente quando existem meios científicos concludentes, e a conclusão seja a da paternidade praticamente provada (99,997%), como acontece no caso concreto.
20. O tratamento pai-filha e as relações pai-filha, têm sofrido uma (r)evolução profunda, na medida em que, e, felizmente, o tratamento que antigamente era dado a um filho, designadamente a nível punitivo, não é o mesmo que ocorre nos dias de hoje.
21. O H... evitava falar com a recorrente em público, sempre que se encontravam, e mostrava-se sorridente quando lhe faziam alusão aos netos, referindo os filhos da recorrente.
22. O tratamento exigido mais não é que o reconhecimento por parte do pai da assunção da paternidade.
23. Como já se referiu, a Lei n.º 21/98, aditou a alínea e) ao artigo 1871º do CC, abrangendo as situações em que se prove que o pretenso pai teve relações com a mãe durante o período legal de concepção.
24. Dado tratar-se de um aditamento, deve ser concedido às pessoas que eventualmente possam ser abrangidas por essa alínea, o prazo de até dois anos após a entrada em vigor da Lei n.º 21/98 de 12/05, correspondente ao estipulado no n.º 1 do artigo 1817º CC, ou até um ano após o falecimento do progenitor, para que a alteração legislativa produza os efeitos desejados.
25. Nos dias de hoje, e nos tempos que correm, encontram-se muitos casos de maus-tratos a filhos, e de crianças e jovens em perigo, muitas vezes alicerçados em pensamentos e factores socio-culturais que se encontram ultrapassados, e nem por isso, esse “tratamento” pode ser considerado de paternal ou filial.
26. Todos têm o direito a ver estabelecida a sua filiação, independentemente de prazos, ou caso assim não entendam, desde que cientificamente seja atestada, como acontece no presente caso.
27. O reconhecimento da paternidade precludiu porque o tribunal a quo considerou que a autora não logrou provar o “tractus”, apesar de ser reconhecida como filha pelo pai, pela população, pelos réus e pela ciência.
28. O tratamento é um indício do reconhecimento, e, este constitui um acto de tratamento.
29. O acórdão ora recorrido, encerra uma contradição fáctica manifesta, violando as seguintes normas: C.R. Portuguesa: artigos 13º, 25º, 26º, n.os 1 e 3, 36º, n.º 4 e 67º n.os 1 e 2 al. d) in fine; C. Civil: 350º, n.º 2, 1817º, n.º 6, 1871º ,n.º 1 al. a), e), e 1873º.
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A apelante suscita, entre outras, a questão da caducidade, fazendo a sua abordagem em duas perspectivas: do direito probatório; do direito constitucional.
Vejamos então:
Julgando verificada a caducidade, a sentença recorrida deixa a apelante inconformada e, ao pugnar nesta instância pela tempestividade da proposição da acção, a recorrente coloca a caducidade no centro das questões a apreciar.
Vejamos o quadro legal que, no imediato, importa ter presente, e destaquemos alguns factos relevantes.
O direito:
Prescreve o art.º 1873º do CC que «É aplicável à acção de investigação de paternidade, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 1817º a 1819º e 1821º».
Porque esta é uma acção de reconhecimento de paternidade, e atendendo à remissão que é feita no referido art.º 1873º, há que saber o que dispõe o art.º 1817º.
Assim:
1. A acção de investigação de maternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à sua maioridade ou emancipação.
2. Se não for possível estabelecer a maternidade em consequência do disposto no artigo 1815º, a acção pode ser proposta no ano seguinte à rectificação, declaração de nulidade ou declaração do registo inibitório, contanto que a remoção do obstáculo tenha sido requerida até o termo do prazo estabelecido no número anterior, se para tal o investigante tiver legitimidade.
3. Se a acção se fundar em escrito no qual a pretensa mãe declare inequivocamente a maternidade, pode ser intentada nos seis meses posteriores à data em que o autor conheceu ou devia ter conhecido o conteúdo do escrito.
4. Se o investigante for tratado como filho pela pretensa mãe, sem que tenha cessado voluntariamente esse tratamento, a acção pode ser proposta até um ano posterior à data da morte daquela; tendo cessado voluntariamente o tratamento como filho, a acção pode ser proposta dentro do prazo de um ano a contar da data em que o tratamento tiver cessado.
5. Se o investigante, sem que tenha cessado voluntariamente o tratamento como filho, falecer antes da pretensa mãe, a acção pode ser proposta até um ano posterior à data da morte daquele; tendo cessado voluntariamente o tratamento como filho antes da morte deste, é aplicável o disposto na segunda parte do número anterior.
6. Nos casos a que se referem os n.ºs 4 e 5 incumbe ao réu a prova da cessação voluntária do tratamento no ano anterior à propositura da acção.
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Alguns factos relevantes:
A) Em 17.11.61 nasceu na freguesia de Oliveira do Mondego, concelho de Penacova, a autora A....
B) H... faleceu em 20/12/1999;
C) A acção foi proposta em 23.2.00;
D) O Instituto Nacional de Medicina Legal realizou perícia, cujo resultado foi expresso em relatório que consta de fls. 205 a 208 dos autos e que finda com as seguintes conclusões: «O estudo dos diversos marcadores genéticos de H... (material exumado) e de A... - 1º Não permite excluir Anastácio Branco, como pai de A...; 2º A análise efectuada tendo em conta a estrutura genotípica deste pretenso pai (valor X) e a distribuição dos diferentes marcadores analisados na população (valor Y), deu um índice de paternidade IP = 35568 e uma probabilidade de paternidade W = 99,997 % que corresponde a uma paternidade praticamente provada, segundo a escala de Hummel (...)».
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Procurando subsumir os destacados factos ao quadro normativo anteriormente transcrito, fica desde logo afastada a possibilidade de ser dada como verificada a previsão dos números 2. e 5. do art.º 1817º do CC.
No que diz respeito ao n.º 2, note-se que a paternidade não está mencionada no registo do nascimento da apelante; no que se refere ao n.º 5, ele aplica-se às situações em que o (a) investigante falece antes do pretenso pai (mãe). Restam os números 1., 3. e 4.
Se, para além de se saber, que a acção não se funda em escrito no qual Anastácio Simões tenha declarado inequivocamente a paternidade, se, por mera hipótese, se considerar face aos factos apurados, que está por demonstrar que a investigante fosse tratada como filha pelo Anastácio, parece que a conclusão a extrair será a de que o prazo para a proposição da acção não é o estabelecido no n.º 3, também não será o fixado no n.º 4, e se mostra excedido o prazo do n.º 1.
Poderá, porém, a redacção do art.º 1817º do CC ser considerada tão simples e linear, que dispense esforço «Há uma certa tendência para confundir interpretação e interpretação complexa e supor que se a fonte é clara não há motivo para falar de interpretação. Há mesmo um brocardo que traduz esta orientação: in claris non fit interpretatio. Perante um texto categórico da lei, por exemplo, o intérprete limitar-se-ia a tomar conhecimento. Mas esta posição é contraditória nos seus próprios termos. Até para concluir que a disposição legal é evidente foi necessário um trabalho de interpretação, embora quase instantâneo , e é com base nele que se afirma que o texto não suscita problemas particulares» em O Direito Introdução e Teoria Geral do Prof. Oliveira Ascenção. Daí a referência a «esforço» interpretativo. interpretativo ?
Afigura-se-nos que a resposta àquela interrogação terá de ser negativa. Com efeito, se o art.º 1817º se tivesse ficado pelo seu n.º 1, «A acção de investigação de paternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à sua maioridade ou emancipação».

dir-se-ia que o preceito se limitava, numa formulação de inequívoca leitura e claro pensamento legislativo, a estabelecer um prazo para a proposição da acção de investigação de paternidade.
Contudo, porque nos números 3., 4. e 5. estão consagrados diferentes prazos, importa fazer uma interpretação que integre e articule todos eles, incluindo o n.º 1. Sem descurar a interpretação em face da Constituição.
Referindo-se à interpretação conforme à Constituição, ensina o Professor Jorge Miranda em Manual de Direito Constitucional, Tomo II: «Trata-se, antes de mais, de conceder todo o relevo, dentro do elemento sistemático da interpretação, à referência à Constituição. Com efeito, cada disposição legal não tem somente de ser captada no conjunto das disposições da mesma lei e no conjunto da ordem legislativa; tem outrossim de se considerar no contexto da ordem constitucional; e isso tanto mais quanto mais se tem dilatado (...) a esfera de acção desta como centro de energias dinamizadoras das demais normas da ordem jurídica positiva (...).
A interpretação conforme à Constituição não consiste então tanto em escolher entre vários sentidos possíveis e normais de qualquer preceito o que seja mais conforme com a Constituição quanto em discernir no limite – na fronteira da inconstitucionalidade – um sentido que, embora não aparente ou não decorrente de outros elementos de interpretação, é o sentido necessário e o que se torna possível por virtude da força conformadora da Lei Fundamental. E são diversas as vias que, para tanto, se seguem e diversos os resultados a que se chega: desde a interpretação extensiva ou restritiva à redução (eliminando os elementos inconstitucionais do preceito ou do acto) e, porventura, à conversão (configurando o acto sob a veste de outro tipo constitucional (...).
A interpretação conforme à Constituição implica, uma posição activa e quase criadora do controle constitucional e de relativa autonomia das entidades que a promovem em face dos órgãos legislativos. Não pode, no entanto, deixar de estar sujeita a um requisito de razoabilidade: ela terá de se deter aí onde o preceito legal, interpretado conforme à Constituição, fique privado de função útil ou onde, segundo o entendimento comum, seja incontestável que o legislador ordinário acolheu critérios e soluções opostos aos critérios e soluções do legislador constituinte».
A possibilidade de, em sede interpretativa, se proceder a leituras restritivas, conduz-nos a uma outra matéria: a respeitante aos diversos tipos e juízos de inconstitucionalidade, interessando-nos agora focar a total e a parcial.
De acordo com as referidas lições do Professor Jorge Miranda «A inconstitucionalidade diz-se total ou parcial, consoante afecta todo um acto ou apenas uma sua parte, seja esta uma norma em face dum conjunto de normas e não toda a norma (quando possa proceder-se a tal decomposição e operar-se depois uma redução ou uma conversão). Manifesta-se aqui um princípio de conservação dos actos jurídicos, não fundamentalmente diverso do que preside à interpretação conforme à Constituição.
O preceito legal sujeito ao juízo de inconstitucionalidade pode ser dividido em tantos segmentos normativos ideais quantos aqueles que sejam relevantes de acordo com o ponto de vista adoptado pelo órgão de fiscalização.
Ao consagrar diferentes prazos, o art.º 1817º do CC torna manifesta a opção do legislador em tratar de forma diferente o que, por ele, terá sido visto como diferente. Ou, numa formulação mais correcta, o que, por ele, terá sido visto como desigual.
Numa obra de relevante síntese histórica e jurídica, Da Igualdade, o Professor Martim de Albuquerque chama a atenção para um legado deixado pelo Mundo Antigo à humanidade, «como parte nuclear do seu património moral e intelectual, em matéria de igualdade».
Daquele legado, destacamos as seguintes proposições: a igualdade é a essência da justiça; a igualdade pressupõe comparação e não tem sentido entre coisas não comparáveis; a igualdade obriga a tratar igualmente, o igual, desigualmente o desigual; a igualdade contém uma componente de adequação às situações e aos fins.
À luz destes conceitos, recebidos na ordem jurídica constitucional, apenas a desigualdade de situações, justificará a desigualdade de soluções adoptadas no art.º 1817º do CC.
Conforme ensina o Professor Jorge Miranda, ainda no âmbito da matéria respeitante aos diferentes tipos e juízos de inconstitucionalidade, importa insistir «na adstrição da lei ordinária aos fins, aos valores e aos critérios da Constituição. Nenhuma lei, seja qual for a matéria de que se ocupe, pode deixar de ser conforme com esses fins. Parafraseando um Autor, dir-se-á que a liberdade de conformação do legislador, a sua discricionariedade, começa onde acaba a interpretação que lhe cabe fazer das normas constitucionais.
Por sua banda, os órgãos de fiscalização da constitucionalidade devem raciocinar não tanto com base em juízos lógico-formais quanto em juízos valorativos Sublinhado nosso., procurando soluções constitucionais; e há-de ser através destes juízos, descendo ao fundo das coisas e não se contentando com quaisquer aparências Sublinhado nosso., que os órgãos de fiscalização devem apreciar a constitucionalidade das leis concretizadoras de normas constitucionais programáticas ou, por exemplo, das que contendam com os princípios da igualdade e da proporcionalidade e com os limites e restrições a direitos fundamentais» Sublinhado nosso..
Sabendo-se que o art.º 13º da Constituição da República Portuguesa prescreve: 1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. 2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.
Sabendo-se que a igualdade é a essência da justiça; a igualdade pressupõe comparação e não tem sentido entre coisas não comparáveis; a igualdade obriga a tratar igualmente, o igual, desigualmente o desigual; a igualdade contém uma componente de adequação às situações e aos fins.
Sabendo-se ainda que a interpretação conforme à Constituição consiste em discernir no limite – na fronteira da inconstitucionalidade – um sentido que, embora não aparente ou não decorrente de outros elementos de interpretação, é o sentido necessário e o que se torna possível por virtude da força conformadora da Lei Fundamental.
Sabendo-se também que a liberdade de conformação do legislador, a sua discricionariedade, começa onde acaba a interpretação que lhe cabe fazer das normas constitucionais.
Sabendo-se, finalmente, que os órgãos de fiscalização da constitucionalidade devem apreciar a constitucionalidade das leis que contendam com os princípios da igualdade e da proporcionalidade, raciocinando não tanto com base em juízos lógico-formais quanto em juízos valorativos, descendo ao fundo das coisas e não se contentando com quaisquer aparências – importa perguntar, em sintonia com o Professor J.J. Gomes Canotilho: «Qual o critério de valoração para a relação de igualdade?».
Em Direito Constitucional e Teoria da Constituição responde o Professor Gomes Canotilho àquela questão: «Uma possível resposta, sufragada em algumas sentenças do Tribunal Constitucional, reconduz-se à proibição geral de arbítrio: existe observância da igualdade quando indivíduos ou situações iguais não são arbitrariamente tratados como desiguais. Por outras palavras: o princípio da igualdade é violado quando a desigualdade de tratamento surge como arbitrária. O arbítrio da desigualdade seria condição necessária e suficiente da violação do princípio da igualdade. Embora ainda hoje seja corrente a associação do princípio da igualdade com o princípio da proibição do arbítrio, este princípio como simples princípio de limite, será também insuficiente se não transportar já, no seu enunciado normativo-material, critérios possibilitadores da valoração das relações de igualdade ou desigualdade. Esta a justificação de o princípio da proibição do arbítrio andar sempre ligado a um fundamento material ou critério material objectivo. Ele costuma ser sintetizado da forma seguinte: existe uma violação arbitrária da igualdade jurídica quando a disciplina jurídica não se basear: num fundamento sério; não tiver um sentido legítimo; estabelecer diferenciação jurídica sem um fundamento razoável. Todavia, a proibição do arbítrio intrinsecamente determinada pela exigência de um fundamento razoável implica, de novo, o problema da qualificação desse fundamento, isto é, a qualificação de um fundamento como razoável aponta para um problema de valoração.
A necessidade de valoração ou de critérios de qualificação bem como a necessidade de encontrar elementos de comparação subjacentes ao carácter relacional do princípio da igualdade implicam: (1) a insuficiência do arbítrio como fundamento adequado de valoração e de comparação; (2) a imprescindibilidade da análise da natureza, do peso, dos fundamentos ou motivos justificadores de soluções diferenciadas; (3) insuficiência da consideração do princípio da igualdade como um direito apenas defensiva ou negativa (...).
Sabe-se, agora, que a questão da igualdade justa se reconduz à proibição geral do arbítrio.
Sabe-se, agora, que o arbítrio da disciplina jurídica se manifesta: pela ausência de um fundamento sério; falta de um sentido legítimo; estabelecimento de diferenciação sem um fundamento razoável.
Na posse dos conceitos enunciados, retomemos a questão da interpretação do art.º 1817º do CC.
Como já se adiantou, da consagração de diferentes prazos, retira-se que o legislador propôs-se tratar de forma desigual o que, por ele, terá sido visto como desigual.
É, à procura da desigualdade de situações justificativa de desigualdade de soluções, que se irá proceder a uma análise dos números 1, 3, 4 e 5 do preceito em questão.
Assim:
Há um elemento nos números 4. e 5. que se destaca: a morte. Do pretenso pai, na previsão do n.º 4; do investigante, na previsão do n.º 5.
Terá sido a morte, e só ela, enquanto factor de irremediável separação ou marco a requerer solução definitiva de questões pendentes em benefício da estabilidade e da segurança duma multiplicidade de relações, o elemento decisivo a motivar o legislador a consagrar prazos que se diferenciam do enunciado no n.º 1 ? Afigura-se-nos que não.
Com efeito, a morte não tem qualquer relevância para o n.º 1 do, recorrentemente, citado art.º 1817º.
Configure-se a seguinte hipótese: o investigante A, nasceu a 1.2.82; o pretenso pai faleceu a 1.2.83.
Resultando do n.º 1, que a acção de investigação de paternidade pode ser proposta até 1.2.2002, altura em que se concluem os dois anos posteriores à maioridade do investigante A, importa retirar que, não obstante a morte do pretenso pai tenha ocorrido há 19 anos, nem a morte, nem o tão longo tempo decorrido, desviaram o legislador de fazer prevalecer o direito do investigante A, a ver reconhecida a paternidade. Porque já pode, por si, fazer valer esse direito, é certo. Mas, eventualmente, com reflexos Optou-se deliberadamente pela palavra «reflexos» e não «custos», por se entender que os verdadeiros e reais custos recaem, recorrentemente, sobre o investigante. A História do Direito, confirmá-lo-á, certamente. E não é necessário ir muito longe. Uma leitura do designado Código Civil de Seabra será elucidativa. na estabilidade e segurança de uma multiplicidade de relações.
E se a morte, ou melhor dizendo, a vida, teve relevância no denominado Código de Seabra que, ao tratar da investigação da paternidade ilegítima, prescrevia no art.º 133º que «As acções de investigação de paternidade ou de maternidade só podem ser intentadas em vida dos pretensos pais Sublinhado nossso, salvo as seguintes excepções: 1.º Se os pais falecerem durante a menoridade dos filhos; porque, nesse caso, têm estes o direito de intentar a acção, ainda depois da morte dos pais, contanto que o façam antes que expirem os primeiros quatro anos da sua emancipação ou maioridade; 2.º Se o filho obtiver, de novo, documento escrito e assinado pelos pais, em que estes revelem a sua paternidade; porque nesse caso pode propor a acção a todo o tempo em que haja alcançado o sobredito documento; isto sem prejuízo das regras gerais acerca da prescrição dos bens», é porque, à época, a perícia médico-legal ainda não tinha conhecido o avanço científico que, já em 1991, motivaria o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 26.6.91 BMJ: 408, 586, a considerar que os exames científicos «tendem à prova directa» da paternidade.
Mas se a morte nos números 4. e 5., não constituiu razão decisiva para o estabelecimento de prazos diferenciados, (caso contrário ela também tinha sido considerada no n.º 1), o que terá, então, determinado o legislador a optar pela diferenciação? Conterão, os números 4. e 5., quaisquer outros elementos, que tornem justificável o que, à partida, parece injustificável ?
Relembre-se o que dispõe o n.º 4: «Se o investigante for tratado como filho pela pretensa mãe, sem que tenha cessado voluntariamente esse tratamento, a acção pode ser proposta até um ano posterior à data da morte daquela; tendo cessado voluntariamente o tratamento como filho, a acção pode ser proposta dentro do prazo de um ano a contar da data em que o tratamento tiver cessado.
Na previsão da 1.ª parte do n.º 4, o investigante que já tenha atingido a maioridade há mais de dois anos, só pode propor a acção de investigação no ano que se segue ao falecimento do pretenso pai, se por este tiver sido tratado como filho. Com as devidas adaptações, as mesmas considerações podem ser tecidas em torno do n.º 5.
O tratamento como filho pelo pretenso pai, terá sido eleito, segundo parece resultar dos números 4. e 5., elemento decisivo de diferenciação. Isto é, o legislador conferiu determinante relevância à postura do pretenso pai.
Que opção terá sido, então, aquela que, em termos matemáticos, corresponde a ½ de presunção de paternidade e na relação filho/pai ou, como provavelmente diria o legislador, na relação pai/filho, só pondera a postura do pai ?
Não tendo havido, qualquer preocupação de salvaguardar a possibilidade de tratamento como pai pelo investigante, afigura-se-nos que, nesta matéria, as alterações operadas em 1966, e até posteriores, não se protegeram de algumas influências antigas, menos ajustadas. Veja-se, a propósito, o art.º 130º do Código Civil de 1867 que dispunha assim: «É proibida Sublinhado nosso. a acção de investigação de paternidade ilegítima, excepto nos seguintes casos: 1º Existindo escrito do pai, em que expressamente declare a sua paternidade; 2º Achando-se o filho em posse de estado, nos termos do art.º 115º» ...
Parece evidente que a influência do referido art.º 130º chegou aos nossos dias. É que se, anteriormente, o levantamento da proibição da acção de investigação de paternidade, estava dependente da postura do pretenso pai, hoje são os prazos de proposição da acção que dele dependem – números 4. e 5. do vastamente citado art.º 1817º. E, também, o n.º 3., que prescreve «Se a acção se fundar em escrito no qual a pretensa mãe Leia-se «pai» declare inequivocamente a maternidade Leia-se «paternidade», pode ser intentada nos seis meses posteriores à data em que o autor conheceu ou devia ter conhecido o conteúdo do escrito».
Se nos concentrarmos no n.º 3, verificamos que, estando na posse do que pode ser considerado um princípio de prova – o tal escrito – o legislador permite que o investigante proponha a acção de investigação em vida do pretenso pai, após o falecimento do pretenso pai, após a emancipação do próprio investigante, após a maioridade do próprio investigante, mesmo após o decurso de dois anos após a emancipação ou a maioridade. Desde que intente a acção nos seis meses posteriores à data em que conheceu ou devia ter conhecido o conteúdo do escrito.
Um documento particular, que pode ser impugnado ou arguido de falso, é sacralizado como princípio de prova, ao ponto de ser razão de existência de um prazo específico, sem que outros meios de prova mereçam idêntico tratamento.
Atente-se na hipótese anteriormente configurada:
Para ver reconhecido o seu direito, o investigante A, pode socorrer-se de variado tipo de provas: documental, testemunhal. E pode beneficiar de presunções judiciais. Até pode acontecer, como se verificou com a autora, que o exame pericial conclua por um índice de paternidade IP = 35568 e uma probabilidade de paternidade W = 99,997 % segundo a escala de Hummel (...). Não dispondo, porém, do «tal escrito», o investigante A não se vê contemplado na previsão do n.º 3 do art.º 1817º.
Importa, no entanto, admitir como possível, que não tenham sido razões de direito probatório a orientar a opção legislativa.
Admita-se, pois, que tenham sido razões de natureza sensível. Admita-se que o legislador tenha olhado o tal escrito, e tenha visto no tratamento como filho pelo pretenso pai, formas de exteriorização de afectos. Admita-se, também que, por isso mesmo, tenha consagrado a possibilidade de a acção ser proposta depois da morte do pretenso pai, de molde a preservar o que terá entendido ser de preservar: laços, relações, equilibrios.
Se assim tiver sido, há uma motivação para que as acções possam ser propostas após a morte do pretenso pai, mas não há uma justificação para a diferenciação dos prazos estabelecidos, designadamente, nos números 1., 3. e 5. do art.º 1817º do CC. É que, a necessidade de proteger laços, relações e equilibrios, ainda que precários, é razão forte e suficiente para que o (a) filho (a) não proponha acção contra seu pai em vida deste.
Vejamos se há justificação para que esta e outras acções iguais a esta, se vejam afastadas da solução prevista no n.º 4: proposição da acção após o falecimento do pretenso pai.
Isto é, analisemos se, ao limitar a aplicação do n.º 4, aos investigantes tratados como filhos pelo pretenso pai, o legislador não dispõe de um fundamento sério e de um sentido legítimo e estabelece diferenciação jurídica sem um fundamento razoável.
O caso da autora:
Em 22.12.43 nasceu na freguesia de Oliveira do Mondego, concelho de Penacova, Piedade Conceição Martins, filha de Leonilda dos Santos e como tal foi registado o seu nascimento, não tendo sido feita menção à respectiva paternidade.
Em 28.5.46 nasceu na freguesia de Oliveira da Mondego, concelho de Penacova, Nelson Santos, filho de Leonilda dos Santos e como tal foi registado o seu nascimento não tendo sido feita menção à respectiva paternidade.
Em 30.5.54 nasceu na freguesia de Oliveira do Mondego, concelho de Penacova, Amândio dos Santos, filho de Leonilda dos Santos e como tal foi registado o seu nascimento não tendo sido feita menção à respectiva paternidade.
Em 17.11.61 nasceu a autora A... na freguesia de Oliveira do Mondego, concelho de Penacova, a autora A....
O nascimento foi registado em 18.12.61, na Conservatória do Registo Civil de Penacova apenas como filha de Leonilda dos Santos, solteira, não tendo sido feita menção à respectiva paternidade.
Aquando da concepção e nascimento da autora, a sua mãe trabalhava em casa de Cecília Simões, mãe de H..., servindo como criada e trabalhadora rural.
A sua mãe era uma pessoa simples, pobre e séria, que nunca frequentou a escola.
No inverno de 1960/1961, o H... regressou a Cunhedo tendo mantido, por diversas vezes, relações sexuais com Leonilda dos Santos durante a sua permanência em Portugal.
Desse relacionamento nasceu a ora autora.
***
Do ponto de vista sociológico, os descritos factos são o retrato duma época e o retrato do desamparo. Desamparo afectivo, emocional, social e económico. O desamparo de Leonilda dos Santos. Simples, pobre, séria, que nunca frequentou a escola.
Do ponto de vista do direito, servindo como criada e trabalhadora rural em casa da mãe de H..., Leonilda dos Santos estava jurídica e economicamente subordinada. E a muito mais sujeita, na época.
A vulnerabilidade marca o nascimento a autora. E é essa mesma vulnerabilidade que desaconselha o reconhecimento da paternidade pela via judicial.
É através do processo judicial que o tribunal é chamado a resolver o conflito de interesses, conforme resulta do art.º 3º do CPC. Mas resolver conflito de interesses é diferente de resolver conflitos emocionais, afectivos.
Numa área tão sensível como a que é abrangida pelo direito da família, a intervenção do tribunal pode resolver o conflito de interesses, mas agudizar todo um outro tipo de conflitos.
Apesar de tão pouco ter recebido de seu pai, a autora tinha muito a proteger pois, de algum modo, estava socialmente integrada e publicamente reconhecida:
Era e é do conhecimento geral da população de Cunhedo, que a autora é filha de H....
A autora sempre foi e ainda é hoje reputada como filha de H..., por toda a população de Cunhedo.
O Anastácio Branco nunca o negou.
Em conversas com pessoas mais chegadas, Anastácio Branco reconhecia que era pai da autora.
O H... reconheceu e assumiu perante o seu irmão Joaquim a paternidade da autora.
Dir-se-á mais: era reconhecida pela própria família do pai.
Com efeito, também a família do pai integrava a população de Cunhedo, e era e é do conhecimento geral da população de Cunhedo, que a autora é filha de H....
Dir-se-á mais: reconhecida pela família do pai e vista por alguns dos seus elementos como perturbadora de interesses. Efectivamente, está provado que «no início do mês de Dezembro de 1999, o H... ficou acamado. A autora tentou visitar o referido H..., enquanto ele esteve acamado, o que não conseguiu por ter sido impedida pela ré Dulcelina, que sempre se opôs».
Está, ainda, documentalmente provado, por certidão de fls. 37 e 38, junta com a contestação, que: H... fez testamento público, outorgado no dia 15.12.99, tendo instituído herdeiro de todo o seu património, Alberto Fidalgo Duarte casado com Dulcelina Aurora Oliveira.
O Anastácio faleceu em 20.12.99, cinco dias após o testamento.
Como se reflectiu no Acórdão do TRG de 28.1.04: Col. Jur. Ano XXIX, Tomo 1/2004, pág. 281 «um filho alcançado fora do casamento costuma ser uma vicissitude repudiada pelas pessoas mais íntimas e próximas do progenitor e, constatada esta contrariedade familiar e social, são postos em execução todos os meios ao seu alcance para esconder este estorvo à sã convivência do lar». E como se vê.
Regressando à questão dos prazos, afigura-se-nos que o legislador tratou como diferente o que não tinha de ser tratado como diferente.
Como já anteriormente se referiu, e se crê ter demonstrado, não foi a morte que determinou o legislador a criar prazos diferenciados.
Se foram razões de direito probatório, nada justifica que a autora se veja afastada da aplicação do n.º 4 do sempre referido art.º 1817º do CC. Com efeito, o exame pericial realizado, concluiu por um índice de paternidade IP = 35568 e uma probabilidade de paternidade W = 99,997 %
Se foram razões de estabilidade e segurança das relações ou considerações de natureza sensível, também aos investigantes que não foram tratados como filhos pelos pretensos pais há que garantir estabilidade e segurança.
Se bem que datada no tempo, numa obra de imprescindível leitura, Sociologia da Família, Chiara Saraceno diz, a propósito da Constituição Italiana, que ela: “define em dois artigos repletos de implicações mesmo contraditórias, o quadro de referência normativa em que deveria inspirar-se a legislação relativa à família. No art.º 29º diz-se que «A república reconhece os direitos da família natural baseada no casamento. O casamento é ordenado na igualdade moral e jurídica dos cônjuges, com os limites estabelecidos pela lei e garantia da unidade familiar». O art.º 30 diz: «É dever dos pais manterem, instruírem e educarem os filhos, ainda que nascidos fora do casamento... A lei assegura aos filhos nascidos fora do casamento toda a tutela jurídica e social compatível com os direitos da família legítima. A lei dita as normas e os limites para a procura da paternidade».
A família surge assim simultaneamente como uma sociedade natural e uma sociedade institucional regulada, tanto pelo que diz respeito à legitimidade, como pelo que concerne às relações entre os cônjuges e às relações de geração. É uma sociedade de iguais, mas em que a igualdade pode ser reduzida a favor da unidade...”.
A dado passo, Chiara faz a seguinte constatação: «Vivem hoje em Itália muitas pessoas e grupos de casais que viram a sua vicissitude conjugal e familiar regulamentada segundo diferentes normas no decurso da sua vida...».
Que a família é uma sociedade institucional regulada, ninguém ignora. Mas, o que é por demais evidente, deve ser destacado para não passar desapercebido.
Que a família é (deve ser) uma sociedade de iguais, ninguém ignora. Mas que o legislador possa preterir a igualdade em favor da unidade ou de qualquer outro valor que considere superior é que tem de ser justificado.
Com efeito, a igualdade perante a lei garante a igualdade jurídica, quer numa perspectiva de igualdade jurídico-formal, quer no sentido de uma igualdade jurídico-material. O princípio da igualdade vincula, assim, em duas vertentes: obriga o legislador a regular de forma igual o que é essencialmente igual; obriga aqueles que aplicam a lei a proceder da mesma forma.
O princípio da igualdade contém uma directiva dirigida ao legislador: tratar por igual o que é essencialmente igual e desigualmente aquilo que é essencialmente desigual. Deste modo se proíbe o arbítrio legislativo.
Não encontrámos na diferenciação de prazos efectuada pelo legislador apoio material –constitucional para a diferenciação. Mas encontrámos fundamentos para que o investigante possa propor a acção de investigação de paternidade após o falecimento do pretenso pai.
Desta forma decide-se declarar inconstitucional o n.º 4 do art.º 1817º do CC, por violação do princípio da igualdade, e na medida em que restringe a sua aplicação às situações em que o investigante é tratado como filho pelo pretenso pai.
***
Não obstante, sempre se dirá, que os factos evidenciam que Anastácio Branco estava convicto de que a autora era sua filha. E reputava-a como tal, junto dos mais próximos. E tratava-a como tal.
No já referido Acórdão do TRG é citada a seguinte passagem do Ac. do STJ de 6.5.97, BMJ: 467º, pág. 588: «o tratamento do filho havido fora do casamento revela-se, em regra, por actos menos ostensivos ou transparentes e de carácter menos continuado do que os demonstrativos do tratamento como filho nascido dentro do casamento».
Perfilha-se inteiramente o entendimento expresso no citado Acórdão do STJ.
Não existindo dúvidas de que Anastácio Branco reputava a autora de sua filha, afigura-se-nos também que, de forma subtil, a tratava como tal.
Conforme se pondera no referido Acórdão da Relação de Guimarães «a reputação está presa por um sinal de cariz interno, a que está ligada uma certa intimidade e...este dado psíquico, sendo suficientemente forte, provoca o tratamento assim concebido».
***
Dúvidas não havendo que a autora é filha de H... e afastada a caducidade, acordam os juizes da secção cível em revogar a decisão recorrida, julgando agora procedente o pedido formulado pela autora.
Custas a cargo dos réus/contestantes e ora apelados.


Voto de vencido do sr. Desembargador Dr. Alexandre Reis

Não obteve vencimento o entendimento que defendi enquanto primitivo relator e que, no seu essencial, passo a expor, manifestando a maior estima pela sensibilidade pessoal ostentada pela opinião maioritária, ainda que, segundo penso, não consagrada no nosso ordenamento jurídico.

A apelante suscitava a questão da não extinção do direito de investigação, sustentada nas seguintes ordens de razões:

1ª - A limitação no tempo da investigação da paternidade, por esta respeitar a interesses inalienáveis do cidadão incorporados no seu estado pessoal, constitui violação aos direitos (entre outros) à identidade pessoal, à identidade genética do ser humano, à igualdade (uma vez que não sejam atendidas e regularizadas as situações anteriormente verificadas) e à não discriminação dos filhos nascidos fora do casamento (artºs 25º, 26º, 13º e 36º da CRP).

2ª - Encontrando-se assente a paternidade biológica de Anastácio Branco em relação à A, o tratamento desta por aquele como filha resulta do factos provados porque para tal apenas é exigido o reconhecimento por parte do pai da paternidade.

3ª - Para que o aditamento da alínea e) feito pela Lei 21/98 de 12/5 ao artº 1871º do CC produza os efeitos desejados deve ser concedido às pessoas que eventualmente possam ser abrangidas por essa alínea, o prazo de até dois anos após a entrada em vigor da Lei, correspondente ao estipulado no nº 1 do artigo 1817º CC.

1. (In)constitucionalidade das normas que estabelecem prazos de caducidade do direito de investigação da paternidade.

Os nossos tribunais, incluindo o Constitucional, têm entendido, sem qualquer divergência (segundo penso), que a fixação pela lei de prazos de caducidade do direito de acção de investigação da paternidade é constitucionalmente legítima, não violando os princípios invocados pela apelante, essencialmente, porque esses prazos “não constituem restrições, mas meros condicionamentos ao exercício daquele direito fundamental, e, atenta a pluralidade dos direitos ou interesses coenvolvidos na matéria, revestem-se de carácter não desadequado e desproporcionado” (Ac. do TC de 25-9-1991 BMJ 409º-314). Essa “regulamentação – para além de não representar um sacrifício excessivo desse direito – é inteiramente necessária para a consecução do equilíbrio entre ele e outros direitos ou interesses, também eles merecedores de tutela jurídica e com ressonância constitucional, como seja desde logo, o próprio interesse do progenitor em não ver protelar-se, excessiva ou indefinidamente, uma situação de incerteza quanto à paternidade” (Ac. de 28-4-1988 CJ 2º/1988-39)

Embora a paternidade seja um elemento da identidade pessoal, trata-se apenas de regulamentar o exercício do direito do filho ao reconhecimento da paternidade, em função de outros interesses que no caso também concorrem, como o da certeza e segurança jurídica, estabelecendo «um termo breve por razões de segurança» (Guilherme de Oliveira, Estabelecimento da Filiação-41 e Critério Jurídico da Paternidade- 465).

Se bem apreendo as doutas alegações de recurso, a apelante defende que a Lei 21/98, “tentando «regularizar» situações de injustiça e desigualdades que foram criadas”, mantendo os mesmos prazos de caducidade, violaria “o princípio da igualdade, na medida em que não foram atendidas e regularizadas as situações que se verificaram anteriormente”.

Porém, a disposição introduzida pela Lei 29/98 tem apenas o alcance de facilitar a prova do facto constitutivo do direito, invertendo o ónus da prova, uma vez provado o relacionamento sexual entre o pretenso pai e a mãe do investigante durante o período legal de concepção.

De todo o modo, como é sabido, a lei só dispõe para o futuro e ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular (artº 12º do CC).

Quanto a este ponto, tal como disse o STJ no seu Ac. de 20/6/02 (relatado pelo Cons. Moitinho de Almeida, http://www.dgsi.pt) “basta observar que a diferença de tratamento invocada pela Recorrente assenta na aplicação de regimes legais diferentes, em consequência de uma mudança legislativa e das regras sobre a aplicação das leis no tempo. Tal diferença encontra-se, pois, justificada”.

O artº 1817º do CC também não viola o princípio da não discriminação entre os filhos, independentemente de os pais serem casados ou não entre si (artº 36º da CRP), norma que nada tem a ver com a investigação da paternidade, nem com as condições que a lei ordinária impõe para o exercício de tal direito. A referida norma constitucional pressupõe que a paternidade já se encontre estabelecida, o que, neste caso, não sucede.

Em particular quanto ao nº 4 da dita norma, afigura-se-me amplamente justificada a opção do legislador em alargar o prazo imposto pelo nº 1 precedente, nos casos em que se demonstre ter sido o investigante tratado como filho pelo pretenso pai (ou mãe). Havendo esse tratamento, justifica-se que se não coloquem em possível risco, com a proposição da acção, os laços dele advindos, ainda que não muito ostensivos, designadamente para poder preservar a manutenção de actos de protecção material e/ou afectiva.

Não pode, pois, dizer-se que o legislador, ao estabelecer a diferenciação, não dispôs de um sentido legítimo ou fundamento sério.

2. O pretendido tratamento da A como filha por H....

Salvo o devido respeito, tratar alguém como filho, não é apenas reconhecê-lo (reputá-lo) como tal perante terceiros, é, sim, adoptar atitudes que caracterizam as relações entre pais e filhos, como a assistência afectiva ou moral, atitudes de interesse ou de protecção ou, pelo menos, de mera assistência económica ou material.

Para asseverar a reputação pelo investigado do investigante como filho, bastam actos reveladores da exteriorização por aquele do convencimento íntimo da sua paternidade em relação a este, da sua “confissão”. Todavia, para afirmar o tratamento, nos moldes exigidos pelo nº 4 do artº 1817º do CC, é necessário que se demonstrem actos de protecção e auxílio que um pai costuma fazer por um filho (acolhimento, agasalho, alimentação, afecto, assistência moral) e que neles não aflore uma motivação que não seja a de o investigado querer tratar do investigante como filho.

Esse relacionamento não pode ser visto “em termos abstractos, de acordo com padrões de normalidade ou de frequência, dado que a complexidade das relações sociais e, ainda mais, das relações familiares, implica uma diversidade de comportamentos, que só em cada caso, atentas as circunstâncias concretas, poderão ser apreciados, no sentido de se poder dizer que estamos ou não perante atitudes próprias da paternidade” (Ac. Do STJ de 18/12/03, relatado pelo Cons. Bettencourt Faria, http://www.dgsi.pt)
Por outro lado, não deve confundir-se tratamento como filho com a admissão do filho no círculo familiar ou social do pai ou o estabelecimento duma relação intensa e estável.

Porém, se basta poder encontrar um interesse paternal em comportamentos exteriorizados do investigado em relação ao investigante, o tratamento, enquanto assunção da paternidade nos termos exigidos pelo nº 4 do artº 1817º do CC, nada tem a ver com o reconhecimento por aquele da paternidade perante um irmão e em conversas com pessoas mais chegadas ou com o facto de o mesmo nunca o ter negado perante a população (de Cunhedo, neste caso).

Ora, não só não se apurou que o falecido, em momento algum, tenha tido tais comportamentos para com a A, como esta própria reconheceu nas suas doutas alegações de recurso que aquele evitava falar com ela em público, sempre que se encontravam.

Assim, não demonstrado esse tratamento, não pode a A beneficiar do prazo especial previsto pela citada norma. Apesar de assente a paternidade biológica, como a A tinha 38 anos de idade na data em que propôs a acção, encontra-se extinto o direito ao reconhecimento que nessa paternidade se fundaria.

3. O aditamento da alínea e) feito pela Lei 21/98 de 12/5 ao artº 1871º do CC.

Após o DL 496/77 de 25/11, que abandonou os pressupostos ou condições de admissibilidade das acções de investigação de paternidade consagrados na redacção original do artº 1860º CC, substituindo-os por presunções, o único facto constitutivo do direito exercido passou a ser a procriação do investigante, que apenas tem que provar a paternidade biológica (directamente, pela perícia laboratorial ou por meio de presunções).

Por força da alteração imposta pela referida Lei 21/98, passou a paternidade a presumir-se, também, quando se prove que o pretenso pai teve relações sexuais com a mãe do investigante durante o período legal de concepção.

Através das presunções legais, a lei inverte o ónus da prova (Vaz Serra in BMJ 110º-153).

E o STJ nos seus Ac.s de 11/3/99 (BMJ 485º-418) e de 28/5/02 (CJSTJ, 2º/2002-92), pronunciando-se sobre a aplicabilidade no tempo da nova norma introduzida pela Lei 21/98, considerou que é de aplicação imediata tanto a nascimentos ocorridos antes como depois da sua publicação (art. 12º-2 ª parte CC).

Reiterando esse entendimento, o Ac. de 18/2/03 do nosso mais alto Tribunal (relatado pelo Cons. Lopes Pinto, http://www.dgsi.pt/jstj), acabou por concluir que, fundando-se uma acção “presuntiva de investigação” em situação preexistente a que só a LN conferiu relevância jurídica, desde que instaurada dentro dos dois anos após a sua entrada em vigor (CC- 297°-1, 1817°-1 e 1871º-1 e)), não haveria caducidade do direito.

Ressalvado todo o respeito devido, como não poderia deixar de ser, a tão sólida como autorizada argumentação, parece-me, muito modesta e mais simplesmente, que a Lei de 1998 não veio estabelecer uma nova faculdade ou um novo direito anteriormente recusados ao investigante.

O direito em questão continua a ser o do reconhecimento judicial da paternidade e não deixou de ser a procriação do investigante o seu único facto constitutivo. O que a dita alínea e) positivou foi, tão-só, uma nova presunção legal, facilitando ao investigante a prova desse facto constitutivo, na medida em que, uma vez provadas as relações sexuais do pretenso pai com a mãe durante o período legal da concepção, passa a ser cometido ao réu o ónus de criar sérias dúvidas sobre a paternidade do investigado (nº 2 do referido artº 1871º).

Apenas porque passou a estar mais facilitada a prova do facto constitutivo do direito não pode concluir-se que esse direito não existia anteriormente à vigência da LN e que só com esta o mesmo passou a poder ser legalmente exercido, pelo que o prazo se contaria desde a sua entrada em vigor.

E, por maioria de razão, sendo aquele o âmbito da Lei 21/98 e tendo a mesma deixado intocados o nºs 1 e 4 (este quanto ao que aqui releva) do artº 1817º, não vejo como possa entender-se que tenha estado na mens legislatoris ou que tenha a mens legis o alcance de fixar um novo, especialíssimo e necessariamente transitório prazo de caducidade para as acções propostas com base naquela presunção da alínea e) do art. 1871º.

Por todo o exposto, confirmaria a douta sentença recorrida.

(Alexandre Reis)