Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
554/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARVALHO MARTINS
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
ARROMBAMENTO
Data do Acordão: 10/02/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MANGUALDE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Legislação Nacional: ARTIGOS 385.º, N.º 3; 400.º; 404.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1.Como decorrência do disposto no art. 385º, CPC, a audiência do requerido não deve ter lugar quando, com ela, haja o risco de se frustrar o efeito prático que concretamente se pretende atingir, isto é, quando o conhecimento da pretensão cautelar pelo requerido, ou a demora no deferimento da providência resultante da observância da contraditoriedade, aumente o perigo da lesão grave e de difícil reparação que a providência visa evitar.

2. O que o DL 329-A/95 trouxe de novo foi a exigência de que o perigo seja sério: o aumento do perigo de lesão deve ser objectivo (tal como o periculum in mora) e substancial. Além disso, configurando o preceito como norma geral, subsidiariamente aplicável aos procedimentos nominados dos arts. 393 e ss. (art. 392-1), deu-lhe um alcance que até então ele não tinha.

3.Há procedimentos cautelares nominados que, pela sua natureza, devem ser sempre decretados sem audiência do requerido: é o caso do arresto (art. 408-1) e da restituição provisória de posse (art. 394). Quanto aos restantes, entendia-se, na vigência da lei anterior, que alguns havia (os alimentos provisórios a suspensão de deliberação social) em que a lei impunha a audiência do requerido e outros em que ao juiz cabia, prudentemente, decidir se ele deveria ser ou não ouvido, entendendo-se, com base na redacção dos preceitos legais, que, no embargo de obra nova e no arrolamento, a lei atribuía ao juiz maior margem de arbítrio do que no procedimento de providência não especificada).

4. A lei actual fugiu a estabelecer outros parâmetros que não sejam os do n.° 1, do art. 385º, sob análise, sem prejuízo de a obrigatoriedade da audiência do requerido se poder retirar, desde que com segurança, das disposições específicas reguladoras de determinado procedimento nominado (ver arts. 400 e 404, CPC).

5. Na apreciação do risco da audiência do requerido, o juiz não está dependente da iniciativa do requerente da providência: mesmo que este o não tenha requerido, os factos por ele alegados e provados podem levar o juiz a dispensar oficiosamente a audiência imediata do requerido, se necessário após diligências complementares que lhe permitam uma decisão conscienciosa, desde que com elas não se ponha em causa a celeridade da providência e, portanto, a sua utilidade.

6. O critério legal (correcto) de conceder um amplo poder de apreciação ao juiz deve ser aplicado considerando as regras gerais da experiência e as particularidades do caso concreto, equacionando o equilíbrio a observar entre os valores da contraditoriedade e os da eficácia da Justiça e não esquecendo que, se o princípio do contraditório é a regra (art. 3-1), o domínio das providências cautelares é, já ele, de excepção (art. 3-2).
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência, na 2ª Secção Cível no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. A Causa:

A...., divorciado, residente em Mangualde, nos autos de acção de procedimento cautelar n°554/04.2 TBMGL-D que correm seus termos pelo 1° Juízo do tribunal Judicial da comarca de Mangualde, notificado do despacho de folhas 17, que ordenou que se procedesse à citação da requerida para, querendo e sob cominação legal, se opor à presente providencia, e com ele se não conformando, veio interpor o presente recurso de agravo, alegando e formulando as seguintes conclusões:

A) O presente recurso prende-se com o despacho de folhas 17 que ordenou que se procedesse à citação da requerida para, querendo e sob cominação legal, se opor à presente providencia;
B) Ora da forma como vem requerida a providência cautelar verifica-se que a citação da requerida põe em risco sério o fim ou a eficácia da mesma;
C) Pois que a requerida terá oportunidade de proceder ao levantamento e ou transferência de todas as quantias existentes nas instituições bancárias identificadas;
D)- Por sua vez e apensado a este processo estão arroladas quantias respeitantes a rendas de imóveis do extinto casal, não se encontram ainda arroladas as quantias identificadas no j1 5 do requerimento inicial.
E)-Toda a atitude da requerida visa ocultar dinheiros que fazem parte do acervo hereditário de ambos os ex-conjuges.
F)-Também não há audiência prévia da requerida na apreensão de veículos automóveis (art°16 do DL n° 54/7 5, DE 24/2, cuja vigência foi expressamente ressalvada pelo O 3 do C.R de bens móveis, aprovado pelo DL n°277/95 de 25/10
G) Termos em que o arrolamento deverá a presente providencia cautelar prosseguir sem audiência da parte contrária;


Não foram proferidas contra alegações.


II. Os Fundamentos:

Colhidos os Vistos legais, cumpre decidir:

São ocorrências materiais, com interesse para a decisão da causa que:

O presente recurso prende-se com o despacho de folhas 17 que ordenou que se procedesse à citação da requerida para, querendo e sob cominação legal, se opor à presente providencia;
Invocando como elemento sustentador desse dictum a disposição contida no art. 385º, CPC, na interpretação que lhe atribui, com o elemento narrativo que aí expressa;


A fls. 7 dos Autos, o Senhor Juiz manteve a decisão recorrida;


Nos termos do art. 684°, n°3 e 690º, n°1, do CPC, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas alegações do recorrente, sem prejuízo do disposto na última parte do n°2 do art. 669°, do mesmo Código.


As questões suscitadas consistem em apreciar se:

1. Da forma como vem requerida a providência cautelar, verifica-se que a citação da requerida põe em risco sério o fim ou a eficácia da mesma, pois que a requerida terá oportunidade de proceder ao levantamento e/ou transferência de todas as quantias existentes nas instituições bancárias identificadas?

2. Por sua vez e por apenso a este processo estão arroladas quantias respeitantes a rendas de imóveis do extinto casal, não se encontrando, ainda, arroladas as quantias identificadas no art.15º do requerimento inicial?

3. A atitude da requerida permite ocultar dinheiros que fazem parte do acervo hereditário de ambos os ex-cônjuges?

4. Também não há audiência prévia da requerida na apreensão de veículos automóveis (art°16 do DL n° 54/7 5, DE 24/2, cuja vigência foi expressamente ressalvada pelo art. 3º do C.R de bens móveis, aprovado pelo DL n°277/95 de 25/10?

Apreciando, dir-se-á, também, pressuponentemente, que o preceito do n.° 1, do art. 385º, CPC (audiência do requerido, como regra; sua dispensa, como excepção) manteve, desde o CPC de 1939 até ao DL 329-A/95, um sentido equivalente, embora tenha sofrido algumas alterações de redacção: na primeira parte do art. 406 do CPC de 1939, bastava que a audiência do requerido pudesse pôr em risco a utilidade da providência para que o juiz a devesse dispensar; na primeira parte do art. 392-2 da versão originária do Código, tal como na 1.a parte do art. 400-2 oriundo da revisão de 1967, a dispensa da audiência do requerido tinha lugar quando pusesse em risco o fim da providência. O art. 321 do Projecto da comissão Varela propunha, antes, a expressão eficácia da providência e a exigência dum risco sério de a com prometer. O DL 329-A195 decidiu-se pelo fim ou eficácia e passou a exigir que o risco de os comprometer seja sério. Seguiu-se, com o DL 180/96, um aperfeiçoamento meramente formal, visando melhor acentuar a regra e a excepção (José Lebre de Freitas, CPC, Anotado, Vol. 2º,pp. 24).

Serve este bosquejo retrospectivo do alcance dos incisos legais atinentes para referir que utilidade, fim ou eficácia apontam no mesmo sentido: a audiência do requerido não deve ter lugar quando, com ela, haja o risco de se frustrar o efeito prático que concretamente se pretende atingir, isto é, quando o conhecimento da pretensão cautelar pelo requerido ou a demora no deferimento da providência resultante da observância da contraditoriedade aumente o perigo da lesão grave e de difícil reparação que a providência visa evitar (duma situação do segundo tipo encontra-se exemplo no ac. do STJ de 22.11.63, BMJ, 131, p. 328).
O que o DL 329-A/95 trouxe de novo foi a exigência de que o perigo seja sério: o aumento do perigo de lesão deve ser objectivo (tal como o periculum in mora) e substancial.
Além disso, configurando o preceito como norma geral, subsidiariamente aplicável aos procedimentos nominados dos arts. 393 e ss. (art. 392-1), deu-lhe um alcance que até então ele não tinha.
Há procedimentos cautelares nominados que, pela sua natureza, devem ser sempre decretados sem audiência do requerido: é o caso do arresto (art. 408-1) e da restituição provisória de posse (art. 394). Quanto aos restantes, entendia-se, na vigência da lei anterior, que alguns havia (os alimentos provisórios a suspensão de deliberação social) em que a lei impunha a audiência do requerido e outros em que ao juiz cabia, prudentemente, decidir se ele deveria ser ou não ouvido (ALBERTO DOS REIS, CPC anotado cit., 1, ps. 688-690, e ANSELMO DE CASTRO, DPC Declaratório cit., 1, ps. 140-142, ambos entendendo, com base na redacção dos preceitos legais, que, no embargo de obra nova e no arrolamento, a lei atribuía ao juiz maior margem de arbítrio do que no procedimento de providência não especificada). A lei actual fugiu a estabelecer outros parâmetros que não sejam os do n.° 1, do art. 385º, sob análise, sem prejuízo de a obrigatoriedade da audiência do requerido se poder retirar, desde que com segurança, das disposições específicas reguladoras de determinado procedimento nominado (ver arts. 400 e 404, CPC).

Na apreciação do risco da audiência do requerido, o juiz não está dependente da iniciativa do requerente da providência: mesmo que este o não tenha requerido, os factos por ele alegados e provados podem levar o juiz a dispensar oficiosamente a audiência imediata do requerido, se necessário após diligências complementares que lhe permitam uma decisão conscienciosa, desde que com elas não se ponha em causa a celeridade da providência e, portanto, a sua utilidade (ABRANTES GERALDES, Temas cit., III, p. 164).

O que, quando muito, poderia legitimar apreciação (na circunstância igualmente não tomada) de que «no processo das providências cautelares não especificadas, o tribunal decide se deve ouvir ou não o requerido, ponderando se tal audiência pode ou não frustrar o fim da providência em face do que o requerente alegou no requerimento inicial. Diferente é o que se passa no procedimento do arrolamento, no qual cabe, em primeiro lugar, a produção das provas julgadas necessárias, e só depois é que o tribunal deve ajuizar, em face do resultado dessas provas, se a audiência do possuidor ou detentor dos bens compromete ou não a finalidade do arrolamento, determinando tal audiência na segunda hipótese» (Ac. STJ, de 15.5.1997: BMJ, 467.°-523).

Não obstante, e, em todo o caso, continua a sustentar-se que o critério legal (correcto) de conceder um amplo poder de apreciação ao juiz deve ser aplicado considerando as regras gerais da experiência e as particularidades do caso concreto, equacionando o equilíbrio a observar entre os valores da contraditoriedade e os da eficácia da Justiça e não esquecendo que, se o princípio do contraditório é a regra (art. 3-1), o domínio das providências cautelares é, já ele, de excepção (art. 3-2).

A decisão do juiz de ouvir ou não o requerido não é proferida no uso dum poder discricionário. Os conceitos indeterminados “risco sério” e “fim ou eficácia da providência” hão-de ser por ele preenchidos segundo critérios de razoabilidade e a decisão que proferir, fundamentada, nos termos gerais do art. 158, é passível de recurso nos termos gerais. Veja-se, sobre estes pon tos, a jurisprudência citada por ABRANTES GERALDES, Temas cit., III, notas da p. 385. Sendo que não constitui obstáculo ao recurso, quando o juiz indefira o requerimento de não audição do requerido, o disposto no art. 234-5 (inadmissibilidade de recurso do despacho de citação). O que está vedado discutir em recurso é se o juiz devia, em lugar de mandar citar, indeferir ou convidar ao aperfeiçoamento, mas não se o juiz devia, num procedimento cautelar, omitir a citação do requerido (José Lebre de Freitas, CPC, Anotado, Vol. 2º,pp. 24-26).

Quanto aos procedimentos cautelares nominados predispostos em diplomas avulsos, não se lhes aplicando directamente o art. 392-1 (vide art. 392), há que ver se o regime para eles estabelecido e o tipo de perigo que visam evitar não acarretará a não audiência do requerido ou, pelo menos, a inversão da regra do preceito geral anotado. Razão porque também, não acompanhamos, assim, inteiramente, ABRANTES GERALDES, Temas cit., III, ps. 161-162 (178), quanto à aplicação do preceito geral sob apreciação ao procedimento cautelar de apreensão de veículo automóvel.

Da situação sub judice, ressuma, inequivocamente, que:

da forma como vem requerida a providência cautelar, verifica-se que a citação da requerida põe em risco sério o fim ou a eficácia da mesma;
pois que a requerida terá oportunidade de proceder ao levantamento e ou transferência de todas as quantias existentes nas instituições bancárias identificadas;
por sua vez, e por apenso a este processo, estão arroladas quantias respeitantes a rendas de imóveis do extinto casal, não se encontrando, ainda, arroladas as quantias identificadas no art.15º do requerimento inicial.
a atitude da requerida permite ocultar dinheiros que fazem parte do acervo hereditário de ambos os ex-cônjuges.

O que impõe atribuir resposta afirmativa às questões configuradas sob os nºs 1, 2 e 3.

Configurando-se como factor sistemático, de todo irrelevante - ao de lá do que se considerou -, a circunstância - invocada - de “não haver audiência prévia da requerida na apreensão de veículos automóveis (art°16 do DL n° 54/7 5, DE 24/2, cuja vigência foi expressamente ressalvada pelo art. 3º do C.R de bens móveis, aprovado pelo DL n°277/95 de 25/10”.

Pode, assim, concluir-se que:

1.Como decorrência do disposto no art. 385º, CPC, a audiência do requerido não deve ter lugar quando, com ela, haja o risco de se frustrar o efeito prático que concretamente se pretende atingir, isto é, quando o conhecimento da pretensão cautelar pelo requerido, ou a demora no deferimento da providência resultante da observância da contraditoriedade, aumente o perigo da lesão grave e de difícil reparação que a providência visa evitar.

2. O que o DL 329-A/95 trouxe de novo foi a exigência de que o perigo seja sério: o aumento do perigo de lesão deve ser objectivo (tal como o periculum in mora) e substancial. Além disso, configurando o preceito como norma geral, subsidiariamente aplicável aos procedimentos nominados dos arts. 393 e ss. (art. 392-1), deu-lhe um alcance que até então ele não tinha.

3.Há procedimentos cautelares nominados que, pela sua natureza, devem ser sempre decretados sem audiência do requerido: é o caso do arresto (art. 408-1) e da restituição provisória de posse (art. 394). Quanto aos restantes, entendia-se, na vigência da lei anterior, que alguns havia (os alimentos provisórios a suspensão de deliberação social) em que a lei impunha a audiência do requerido e outros em que ao juiz cabia, prudentemente, decidir se ele deveria ser ou não ouvido, entendendo-se, com base na redacção dos preceitos legais, que, no embargo de obra nova e no arrolamento, a lei atribuía ao juiz maior margem de arbítrio do que no procedimento de providência não especificada).

4. A lei actual fugiu a estabelecer outros parâmetros que não sejam os do n.° 1, do art. 385º, sob análise, sem prejuízo de a obrigatoriedade da audiência do requerido se poder retirar, desde que com segurança, das disposições específicas reguladoras de determinado procedimento nominado (ver arts. 400 e 404, CPC).

5. Na apreciação do risco da audiência do requerido, o juiz não está dependente da iniciativa do requerente da providência: mesmo que este o não tenha requerido, os factos por ele alegados e provados podem levar o juiz a dispensar oficiosamente a audiência imediata do requerido, se necessário após diligências complementares que lhe permitam uma decisão conscienciosa, desde que com elas não se ponha em causa a celeridade da providência e, portanto, a sua utilidade.

6. O critério legal (correcto) de conceder um amplo poder de apreciação ao juiz deve ser aplicado considerando as regras gerais da experiência e as particularidades do caso concreto, equacionando o equilíbrio a observar entre os valores da contraditoriedade e os da eficácia da Justiça e não esquecendo que, se o princípio do contraditório é a regra (art. 3-1), o domínio das providências cautelares é, já ele, de excepção (art. 3-2).



III. A Decisão:


Nestes termos, concede-se provimento ao agravo, devendo a presente providência cautelar - arrolamento - prosseguir sem audiência da parte contrária.


Sem custas.