Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
273/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLIVEIRA MENDES
Descritores: ESCUTA TELEFÓNICA
REQUISITOS LEGAIS
Data do Acordão: 02/16/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 187º, N.º1, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: Ao juízo de prognose sobre a eficácia da escuta telefónica é essencial a certeza ou, pelo menos, a forte probabilidade de que o telefone a colocar sob escuta irá ser utilizado pelo suspeito do facto investigado e/ou através dele irão processar-se conversações ou comunicações atinentes ao facto em investigação, juízo que terá de ser suportado por fundamento sério e seguro.
Decisão Texto Integral: 7

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra.
No âmbito do processo de inquérito n.º 391/04, dos serviços do Ministério Público na comarca de Aveiro, foi requerida autorização judicial para a intercepção e gravação de comunicações telefónicas efectuadas e recebidas através de telefone móvel e do IMEI (posto) associado, bem como a respectiva localização celular, registo de trace-back (listagem de chamadas efectuadas e recebidas) e facturação detalhada, pretensão que foi indeferida com o fundamento de que não resultam do processo razões concretas e sindicáveis que façam crer que a intercepção e a gravação se mostrarão de grande interesse para a descoberta da verdade e recolha de prova relativamente à actividade criminosa em investigação, visto que se desconhecem os fundamentos da informação constante dos autos segundo a qual o telefone cuja escuta é requerida é utilizado pelo suspeito da prática do crime investigado ( - O crime objecto de investigação é o de tráfico de estupefacientes.).
Interpôs recurso da decisão a Digna Magistrada do Ministério Público, sendo do seguinte teor a parte conclusiva da respectiva motivação:
1. A intercepção e a gravação de comunicações telefónicas efectuadas e recebidas através do telemóvel do suspeito A... e a obtenção de informações relacionadas com a pretendida intercepção é necessária e de grande interesse para a descoberta da verdade e para a prova, havendo equilíbrio e proporcionalidade entre a necessidade deste meio e a sua danosidade social.
2. A circunstância de apenas ser conhecido o nome do suspeito e de não haver referência à fonte que prestou esta informação e indicou o número do seu telefone não devem obstar ao deferimento das diligências requeridas.
3. Pelo que é de considerar, in casu, prevalecente o interesse na realização da justiça sobre o direito à reserva da vida privada do suspeito.
4. A decisão recorrida, não autorizando a realização da intercepção e da gravação de comunicações telefónicas e a obtenção de informações relacionadas com a pretendida intercepção, mostra-se ferida de ilegalidade, pois viola por erro de interpretação o disposto nos artigos 187º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, e 6º, da Lei n.º 5/2002, de 11.01, em conjugação com as normas combinadas dos artigos 18º, n.º 2, 26º, n.º1, 32º, n.º 8 e 34º, todos da Constituição da República Portuguesa e 188º e 269º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal.
Com tais fundamentos, no provimento do recurso, pretende-se a revogação do despacho impugnado e sua substituição por outro que autorize a realização das diligências requeridas.
O recurso foi admitido.
Foi proferido despacho de sustentação.
O Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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Entendeu a Mm.ª Juíza a quo não autorizar a escuta telefónica e demais diligências requeridas pelo Ministério Público com aquela relacionadas, por se desconhecerem os fundamentos da informação da autoridade policial prestada nos autos, segundo a qual o telefone móvel cuja escuta e controlo foram requeridos é utilizado pelo suspeito da prática do crime investigado, circunstância que, a seu ver, põe em causa o interesse e a eficácia da escuta para a descoberta da verdade e a recolha da prova, requisito que a lei impõe se verifique ( - É evidente que a Mm.º Juíza ao fazer apelo ao desconhecimento dos fundamentos da informação segundo a qual o telefone cuja escuta é requerida é utilizado pelo suspeito da prática do crime investigado e ao concluir pela incerteza do (grande) interesse da escuta, está a pôr em causa a fidedignidade da fonte da informação, ou seja, está a salvaguardar a possibilidade de a informação não ser verdadeira e correcta, o que a verificar-se tornaria completamente inútil aquela diligência, inquinando-a de ilegalidade.).
Contrapõe o Ministério Público que o facto de inexistir referência à fonte que forneceu o número do telefone utilizado pelo suspeito do crime objecto de investigação não deve obstar ao deferimento da escuta e demais diligências requeridas, posto que o interesse na realização da justiça se mostra, in casu, superior ao direito do suspeito à reserva da sua vida privada.
Decidindo, dir-se-á.
A escuta telefónica é um meio de obtenção de prova cuja produção e utilização reveste significativo melindre, consabido que conflitua com direitos e valores fundamentais diversos, designadamente o direito à privacidade, o direito ao sigilo e inviolabilidade das telecomunicações ( - O sigilo e a inviolabilidade das telecomunicações envolve a proibição a terceiros da intromissão (v.g. por intersecção), da tomada de conhecimento (v.g. por escuta ou outro meio), do registo (v.g. por gravação ou outro meio), da utilização (pelo interceptor ou por transmissário deste) e da divulgação do conteúdo dessas comunicações. Está igualmente sujeito a sigilo o próprio destinatário das telecomunicações que revistam carácter confidencial – cf. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, 331 (nota 831).), o direito à palavra ( - O direito à palavra, atributo extrínseco da pessoa, que a identifica e a individualiza, é um elemento intrínseco da personalidade, uma qualidade físico-espiritual, dotada de criatividade e de originalidade, reconhecido como direito geral de personalidade – cf. Capelo de Sousa, ibidem, 247 nota (562).) e a confiança comunitária – artigos 26º, n.º1 e 34º, n.ºs 1 e 4, da Constituição da República ( - A tutela penal daqueles direitos encontra-se estabelecida nos artigos 194º, n.º 1 (crime de violação de telecomunicações) e 199º, n.º1 (crime de gravações ilícitas), do Código Penal) ( - Como refere Guedes Valente, Escutas Telefónicas – Da Excepcionalidade à Vulgaridade (2004), 48, a escuta telefónica é um meio de obtenção de prova que fere profundamente os direitos fundamentais.).
Por isso, a sua admissibilidade depende (da rigorosa verificação) de requisitos de natureza formal e substancial – artigo 187º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
A intercepção e a gravação de conversações telefónicas só são legalmente admissíveis quanto a crimes puníveis com pena de prisão superior a três anos, ou relativos ao tráfico de estupefacientes, de armas, engenhos, matérias explosivas e análogas, de contrabando, de injúria, de ameaça, de coacção, de devassa da vida privada e perturbação da paz e do sossego, os últimos cinco quando cometidos através de telefone.
Por outro lado, só podem ser ordenadas ou autorizadas por decisão do juiz, quando houver razões para crer que se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova ( - Conquanto a lei adjectiva penal não exija, de forma expressa, que a escuta seja essencial para a descoberta da verdade ou para a prova, isto é, que se mostre indispensável, a verdade é que, face ao conflito de valores e de interesses que aquele meio de obtenção de prova gera, entendemos que a intercepção e a gravação de conversações e de comunicações só pode ser ordenada ou autorizada em caso de (reconhecida) necessidade – neste sentido pronuncia-se Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal (1992), 290.
A não ser assim, estar-se-ão a afectar, injustificadamente, direitos e valores de matriz constitucional, o que é inadmissível.
Deste modo, havendo já prova nos autos do facto investigado e do seu autor ou autores, ou havendo outros meios de prova eficazes, o juiz não pode ordenar ou autorizar a utilização deste meio de prova.).
Interpretando o texto legal na parte em que impõe, ao juiz, a formulação de um juízo de prognose sobre a necessidade e a eficácia da escuta telefónica, ou seja, sobre a essencialidade deste meio de obtenção de prova e sobre os resultados que se espera dele advirão ( - Conforme defende Costa Andrade, ibidem, 287, a lei que estabelece os pressupostos de admissibilidade deste meio de obtenção de prova deve ser objecto de uma interpretação restritiva, tendo em vista que os atentados contra o sigilo das telecomunicações, o direito à palavra falada e mesmo a liberdade de expressão devem ater-se ao estritamente necessário e salvaguardar sempre a garantia do conteúdo essencial e do princípio de proporcionalidade.), diremos que àquele juízo é desde logo essencial a certeza ou, pelo menos, a forte probabilidade de que o telefone a colocar sob escuta irá ser utilizado pelo suspeito do facto investigado e/ou através dele irão processar-se conversações ou comunicações atinentes ao facto em investigação, juízo que, evidentemente, terá de ser suportado por fundamento sério e seguro ( - Costa Andrade, ibidem, 290, entende que é de exigir, ainda, uma forma relativamente qualificada da suspeita da prática do crime, suspeita que assente em factos determinados.).
Com efeito, só perante a certeza ou a forte probabilidade de que através do telefone a colocar sob escuta irão processar-se conversações ou comunicações atinentes ao facto em investigação (suposta a verificação dos demais pressupostos legais) é admissível a determinação ou a autorização da intercepção e da gravação das conversações ou comunicações, posto que estas, como já se consignou, conflituam com direitos e valores fundamentais, cuja violação não é sustentável sem a ocorrência, pelo menos, de forte probabilidade de que da escuta advirão resultados de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova ( - Como impressivamente refere Costa Andrade, ibidem, 291, o recurso a este meio de obtenção de prova há-de justificar-se na base de pontos concretos de apoio que convençam que a escuta a empreender se adivinha fecunda e promissora de resultado, isto é, que a escuta se mostra idónea a descobrir os factos.).
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No caso vertente o único elemento existente nos autos sobre a idoneidade e a eficácia da escuta telefónica requerida circunscreve-se a uma “informação” prestada pelo inspector encarregado da investigação do seguinte teor:
«Cumpre-me informar V. Ex.ª que na sequência da IS a fls.2 ( - Nesta informação de fls.2 dos autos dá-se conta da suspeita de que um indivíduo de nome Pedro terá sido abordado por outro conhecido por “Toninho”, com antecedentes criminais na área do tráfico de estupefacientes, para a transacção de ecstasy – cerca de 50.000 comprimidos – o qual utiliza nos seus contactos telefónicos os cartões 919125395 e 917232383.
Mais se dá conta de que ao ser efectuada ligação para o 917232383 detectou-se a existência de gravação de voz masculina que se identificou como sendo o “Toninho”.), a qual dava conta de negociações entre o “Toninho” e o Pedro, relacionadas com o negócio de uma avultada quantidade de ecstasy, se apurou recentemente o novo contacto telefónico utilizado pelo primeiro suspeito, a saber o 912866881.

Face ao exposto e salvo melhor opinião, a intercepção do 912866881 e IMEI associado, utilizados pelo suspeito “Toninho”, (com observância das formalidades: - trace back, facturação detalhada e localização celular) bem como a recolha de imagens revestem-se de primordial importância para a investigação, assim, para que V. Ex.ª se digne determinar pelo que tiver por conveniente…».
Como atrás se assinalou, só perante a certeza ou a forte probabilidade de que através do telefone a colocar sob escuta irão processar-se conversações ou comunicações atinentes ao facto em investigação (suposta a essencialidade da escuta, isto é, a sua indispensabilidade), é legalmente admissível a determinação ou a autorização da respectiva escuta.
Ora, como bem refere a Mm.ª Juíza a quo, desconhecendo-se em que concretos elementos se fundamenta a informação segundo a qual é utilizado pelo suspeito o número de telefone cuja intercepção é requerida, o que não permite sindicar a validade do modo de obtenção de tal informação ou a consistência da mesma, não é possível dizer-se que há razões para crer que a escuta requerida se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.
Com efeito, não se indicando na informação em apreço a fonte da mesma e o seu modo de obtenção, está o julgador impedido de aferir da legalidade e validade da informação, bem como da sua idoneidade e solidez, o que equivale por dizer que não pode autorizar a escuta telefónica requerida ( - Repete-se, o juízo de prognose sobre a necessidade e a eficácia da escuta terá de ser suportado por fundamento sério e seguro.
), autorização que, em caso algum, pode fundamentar-se na mera confiança do solicitante ( - Neste preciso sentido, Guedes Valente, ibidem, 52, o qual refere que o despacho do juiz, que autoriza ou ordena a escuta, deverá ser, por um lado, um exame crítico às razões apontadas pelo Ministério Público e Órgão de Polícia Criminal e, por outro, deve ser fundamentado de facto e de direito de forma a que os direitos e liberdades dos cidadãos, que tanto suor custou aos nossos antepassados, não esteja, à mercê de um deferimento baseado na confiança no solicitante.).
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Termos em que se acorda negar provimento ao recurso.
Sem tributação.
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