Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2581/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. EMÍDIO RODRIGUES
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL DOS TRIBUNAIS PORTUGUESES
Data do Acordão: 11/11/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Legislação Nacional: ART.º 65.º DO C. P. C.
Sumário:
I - Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para conhecer e decidir de um acidente de viação ocorrido em França entre dois condutores de nacionalidade portuguesa.
II - O reboque da viatura para Portugal, onde a mesma foi reparada, e a ocorrência de outras despesas neste País decorrentes do mesmo acidente, constituem suficiente conexão entre o litígio a dirimir e a jurisdição portuguesa, de modo a preencher o pressuposto estabelecido na alínea c) do art.º 65° CPC;
III - Este preceito, com a redacção que lhe foi dada pela Reforma/95, traduz o princípio da causalidade e, alargando a competência internacional dos tribunais portugueses, harmoniza-se com a Convenção de Bruxelas.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

João Carlos R..., propôs no tribunal judicial de Trancoso acção emergente de acidente de viação, contra Wi... – Companhia de Seguros S..., com sede em Wi..., alegando, em síntese, para o caso que aqui interessa: no dia 6.3.99, ocorreu um acidente de viação no localidade francesa de Bayonne, no qual foram intervenientes o veículo ligeiro 17-45-EP, pertencente ao A e o veículo de matrícula suiça 2H 166915, conduzido pelo seu dono António de Al... e segurado na ré; do evento resultaram danos em ambas as viaturas, mormente na do A, que foi transportada de reboque de Bayonne para Portugal, onde foi reparada e pago o custo dessa reparação; o A esteve privado, em Portugal, da utilização do veículo durante 9 meses, vendo-se obrigado, durante este período, a recorrer a táxis e transportes colectivos, desde a aldeia em que reside até ao centro urbano mais próximo, no que despendeu dinheiro; conclui, pedindo, seja a ré condenada no montante indemnizatório que indica;
- na contestação apresentada a ré arguiu a incompetência absoluta do tribunal português;
- houve resposta onde se defendeu a competência internacional do tribunal português;
- proferiu-se despacho onde se considerou que a acção deveria ser intentada em França, onde ocorreu o acidente ou, então, na Suiça, por ser aí o domicílio da ré, pelo se julgou procedente a aludida excepção declarando-se o tribunal português absolutamente incompetente;
- inconformado recorreu o A que, em suma, formula as seguintes conclusões:
1 – nos termos do artº 45º 3 do C Civil deve ser aplicada ao caso concreto a lei portuguesa;
2 – a competência internacional dos tribunais portugueses depende, nos termos do artº 65º CPC, da verificação de alguma das circunstâncias descriminadas nas alíneas do nº1;
3 – entende o recorrente estarem verificadas as circunstâncias previstas nas als. a) e d);
4 – a ré foi citada em Portugal, recebeu a petição e contestou a acção, pelo que nos termos do artº 7º 1 e 2, CPC, as sucursais, agências, filiais, delegações ou representações podem demandar e ser demandadas;
5 – o direito do A pode tornar-se efectivo se aplicada a lei portuguesa;
6 – ambos os condutores são de nacionalidade portuguesa, pelo que o tribunal português é o competente;
- não foram apresentadas contra-alegações;
- correram os vistos legais;

Como resulta claramente dos autos, trata-se de uma acção atinente com um acidente de viação, ocorrido em França entre dois veículos, um de matrícula portuguesa e outro de matrícula suiça, encontrando-se a responsabilidade civil decorrente da circulação deste último, transferida para a aqui ré seguradora. Desse acidente resultaram danos para ambos os veículos, designadamente no do A, que assim se viu obrigado a proceder ao reboque do mesmo para Portugal onde foi reparado e pago o custo de tal reparação e em cujo país realizou ainda aquele certas despesas decorrentes da privação desse veículo.

Mediante esta resenha factual desenhada pelo A, cumpre apurar se cabe ou não aos tribunais portugueses conhecer e decidir do pleito, atento o que tal respeito dispõe o artº 65º do CPC. Com efeito, a competência internacional representa a jurisdição dos tribunais portugueses quando confrontada com a dos tribunais estrangeiros e há-de ser aferida com o que tal respeito dispõe o citado preceito legal.
Estabelece o mesmo que a competência internacional dos tribunais portugueses depende da verificação de alguma das circunstâncias previstas nas suas diversas alíneas, cabendo para o caso que aqui interessa solucionar recordar que na alínea a), se prevê: “ ter o réu ou algum dos réus domicílio em território português...”, salvo tratando-se de acções relativos a direito de imóveis situados no estrangeiro; por sua vez, a alínea c), prevê “ ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção ou algum dos factos que a integram “.
É ainda de ter em conta que o nº 2 do referida norma, nos diz que para efeitos da alínea a), “ considera-se domiciliado em Portugal a pessoa colectiva cuja sede estatutária ou efectiva se localize em território português, ou que aqui tenha sucursal, agência, filial ou delegação “.
No caso, o tribunal recorrido obteve a informação junto do Instituto de Seguros de Portugal (ofício de fls. 62), no sentido de que a ré “ nos nossos registos não consta que tenha a sede, filial ou delegação em território português”, pelo que no despacho sob recurso se considerou que a acção deveria ser proposta nos tribunais suiços (ou, em alternativa, nos tribunais franceses), em cujo país se localiza a sua sede, de acordo com a indicação fornecida pela mesma na sua contestação.
No mesmo despacho, entendeu-se também que a acção poderia ser proposta junto dos tribunais franceses, por aí ter ocorrido o evento, dando-se assim razão à tese sustentada pela ré assente na Convenção de Lugano.
Verifica-se, com efeito que a dita Convenção de 16.9.88, foi ratificada pela Suiça em 1.1.92 e por Portugal em 1 Julho desse mesmo ano. Preceitua o seu artº 5º que o requerido com domicílio no território de um estado contratante pode ser demandado num outro Estado contratante, enquanto o seu artº 3º prescreve que, relativamente a Portugal, e contra tal regra, não pode ser invocado, entre outras disposições, o preceituado pela alínea c), do artº 65º do CPC. Esta alínea dispunha: “ser réu um estrangeiro e autor um português, desde que, em situação inversa, o português pudesse ser demandado perante os tribunais do Estado a que pertencer o réu “. Consagrava-se, aqui, e então, o princípio da reciprocidade eliminado que foi através da reforma processual de 1995, a qual, embora mantendo tal alínea deu-lhe, contudo, outra redacção, mais precisamente aquela que já acima deixamos assinalada.

Mantém-se, contudo, e como é evidente o nº 3 do artº 5 dessa Convenção, estabelecendo que, em matéria extracontratual, o requerido com domicílio no território de um Estado contratante, pode ser demandado perante o tribunal do lugar onde ocorreu o facto danoso, “ou poderá ocorrer “ tal facto, na redacção dada pelo artº 5º 3, do Regulamento (CE) nº 44/2001, de 27.12.00, e daí que se anuísse também à competência internacional dos tribunais franceses, uma vez que a colisão entre os veículos teve lugar em território francês.

Acontece, porém, que grande parte das vezes o facto donde emerge a pretenção deduzida em juízo, assenta num facto complexo. Lê-se a tal respeito, em Manual... (Antunes Varela... 2ª ed.. pág. 202): “Quando, como as das mais vezes ocorre, a causa de pedir é complexa, envolvendo mais de um facto, bastará em regra a circunstância de um deles ter ocorrido em Portugal para legitimar a competência dos tribunais portugueses, atenta a forte conexão que desse modo logo se estabelece entre a relação processual e a justiça portuguesa “.
Por outro lado, e referindo-se ao princípio da causalidade que emana da alínea c), nº1 do já citado artº 65º, na sua redacção actual, escreve Moura Ramos (A Reforma do Direito Processual Civil Internacional, pág. 20): “Esta precisão limita-se a tornar claro algo o que já era indiscutido para a doutrina dominante entre nós, isto é, que nas hipóteses em que a causa de pedir se reveste de uma natureza complexa, é suficiente que um dos factos que a integram tenha ocorrido em Portugal para que os tribunais portugueses sejam internacionalmente competentes “, que acrescenta a pág. 51: “ No domínio da competência internacional... a preocupação essencial foi a de harmonizar as soluções de direito comum com as de Convenção de Bruxelas “.

Ora, por um lado, sabe-se que a causa de pedir consiste no facto jurídico concreto do qual procede o pedido formulado pelo A e, por outro, é aceite por todos que essa causa de pedir no que respeita às acções tendentes a obter o ressarcimento dos danos determinados por acidentes de viação, reveste natureza complexa, dado que envolve não só os elementos ou factores que contribuíram para a eclosão em si, como também os prejuízos daí resultantes, nexo de causalidade, culpa ou risco, e demais factos jurídicos donde promana o dever de indemnizar. Neste contexto, é entendimento, cremos que pacífico, de que basta que um desses elementos que integram a causa petendi tenha ocorrido em Portugal, para se verificar a competência internacional dos tribunais portugueses. É neste sentido que tem de se interpretar o disposto no nº 3 do artº 5º da Convenção de Lugano, como se sublinhou no acórdão do STJ de 23.9.97, Colª Jurª 1997, tomo 3, pág.28-do Supremo. Esta orientação radica na finalidade da lei de, tal como se acentuou no acórdão desta Relação de 20.4.93 (Colª Jurª 1993, 2, pág.48), “alargar na medida do possível o âmbito da competência internacional dos tribunais portugueses, facilitando aos interessados a tutela jurisdicional dos seus direitos “.

No caso a que se reportam estes autos e como factos integradores da causa de pedir, mormente no que concerne aos danos sofridos, inclui-se, como é evidente, não só o reboque da viatura para Portugal, como a sua reparação neste País e, ainda, os demais danos derivados da sua privação ao longo de nove meses, parte dos quais ocorridos também em Portugal. Esta factualidade demonstra suficiente conexão entre o litígio e a jurisdição portuguesa para preencher o pressuposto estabelecido na alínea c), do já indicado artº 65º, ou seja, terem sido praticados em território português alguns dos factos que servem de causa de pedir, e assim se poder concluir pela competência internacional dos tribunais portugueses. Tal interpretação harmoniza-se com o estabelecido na Convenção de Lugano e com o já indicado Regulamento (CE).

Termos em que se acorda em conceder provimento ao agravo, pelo que o despacho recorrido deverá ser substituído por outro em que se reconheça a aludida competência aos tribunais portugueses, devendo os autos prosseguir para que se apreciem os demais pressupostos processuais incluindo a que se relaciona com a competência em razão do território.


Custa pela agravada,