Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
22/09.6ZRCBR-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE FRANÇA
Descritores: ARRESTO
CRIME PRATICADO DE FORMA ORGANIZADA
LENOCÍNIO
Data do Acordão: 10/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 1.º, N.ºS 1, AL. M), E 2, E 10.º, DA LEI 5/2002, DE 11-01, E ART. 169.º DO CP
Sumário: I – O arresto decretado ao abrigo do artigo 10.º da Lei n.º 5/2002, de 11-01, exige, tão só, a existência de fortes indícios da prática de um crime de catálogo, ou seja, a verificação de um dos ilícitos penais previstos no artigo 1.º daquele diploma; não, também, a ocorrência de uma probabilidade séria de preenchimento do direito (pois que este se presume), nem de um fundado receio de diminuição ou de descaminho das garantias patrimoniais (“periculum in mora”).

II – Segundo revelam os fortes indícios evidenciados no caso concreto, o crime de lenocínio foi perpetrado de forma organizada (cfr. artigo 1.º, n.ºs 1,al. m), e n.º 2, da Lei n.º 5/2002, na redacção da Lei n.º 60/2003, de 23-08), porquanto a prática dos seus actos típicos foi acompanhada de acréscimo de ilicitude, traduzido na circunstância de, no período de cinco anos, os co-autores terem repartido entre si tarefas de manutenção do espaço destinado à prostituição, criado turnos e distribuído mulheres pelos mesmos visando o referido fim, a isto acrescendo o exercício do controlo do desempenho e rendimento das vítimas.

Decisão Texto Integral:








ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

O Ministério Público, na Comarca de Viseu, deduziu despacho de acusação contra os arguidos A... e B... , imputando-lhes a prática em autoria material e sob a forma continuada, de um crime de lenocínio, p.p. pelo artigo 170º n.º1 do Código Penal e, após a entrada em vigor da Lei 589/2007 de 4/9, p.p. pelo artigo 169º n.º1 e artigo 30º n.º2 do Código Penal.

O arguido requereu a abertura de instrução, tendo sido proferido em 14-11-2014, pelo Mmª Juiz de Instrução despacho de pronúncia, imputando aos arguidos a prática um crime de lenocínio p.p. pelo artigo 170º n.º1 do Código Penal e, após a entrada em vigor da Lei 589/2007 de 04-09, p.p. pelo artigo 169º n.º1 do Código Penal.

Ao abrigo do disposto no artigo 7º n.º1 e 8º da Lei n.º 5/2002 de 11 de Janeiro, o Ministério Público aquando a dedução de acusação procedeu à liquidação do património do arguido A... de forma a apurar o montante de €223,200,00, requerendo que seja o mesmo declarado perdido a favor do Estado.

Por despacho proferido em 20/1/2015, a Mmª Juiza de Instrução determinou o arresto dos bens indicados pelo Ministério Publico, na sequência do montante liquidado, ao abrigo do disposto nos artigos 391º n.º2 e 393º n.º1 do Código de Processo Civil, artigo 228º do Código de Processo Penal e artigo 7º n.º1 da lei 5/2002 de 11/1.

  Inconformado, o referido arguido A... interpôs o presente recurso, que motivou, concluindo nos seguintes termos:

1.ª- Como é sabido, a Lei nº 5/2002 “estabelece um regime especial de perda de bens a favor do Estado”, que consiste na presunção iuris tantum da origem ilícita dos bens de pessoas condenadas pela prática de certos crimes (descritos no art. 1º), com vista a proporcionar o confisco das presumidas vantagens de suposta atividade criminosa anterior;

2.ª -Trata-se sem dúvida de uma verdadeira e própria presunção, pela qual certo facto, desconhecido e não comprovado (a ilicitude da origem de certo património), é inferido de outros factos, conhecidos e comprovados;

3.ª-Neste regime o que mais tem alarmado (com razão) a doutrina quando olha para este regime especial é a possível inconstitucionalidade das normas que “invertem o ónus da prova” (arts. 7 e 9 da Lei nº 5/2002), impondo ao arguido a prova da “congruência” do seu património (a prova da licitude dos seus bens e rendimentos que, o Ministério Público indicou na liquidação que tiver feito;

4.ª - O que sempre constitui um atentado ao basilar privilégio de que goza o arguido, em processo penal, de não ter de contribuir para a sua incriminação, para além de também ofender outros princípios básicos, como por exemplo o da presunção de inocência e o do in dubio pro reo;

5.ª- Por isso, sempre terá que ser assegurado um processo equitativo, no sentido de a dita “liquidação” feita pelo Ministério Público, permitir ao arguido exercer o seu direito de defesa e o contraditório (tanto mais que sobre ele recaí um ónus de prova, apesar da sua duvidosa constitucionalidade);

6.ª- Isto significa que, a liquidação do montante apurado como devendo ser arrestado e mais tarde perdido a favor do Estado (art. 8 nº 1 da Lei nº 5/2002) - tal como a posterior (se for o caso) condenação a declarar o valor que deve ser perdido (art. 12 nº 1 da mesma lei) - que assenta num “juízo de prognose para o passado terá de ser feita com recurso a factos concretos e objetivos, descrevendo o respetivo património global do arguido, bem como o valor da parte que é congruente com o seu rendimento lícito, de modo a perceber-se que é a diferença entre um e outro (a diferença entre o valor do património global e o valor do património lícito) que se presume constituir vantagem da atividade criminosa, ou seja, o tal património incongruente (art. 7 nº 1 da mesma lei).

7.ª - Assim, quer a liquidação, quer o pedido de arresto, quer a condenação, não podem ser feitas de forma arbitrária, sem factos concretos e objetivos, descrevendo o respetivo património global do arguido, bem como o valor da parte que é congruente com o seu rendimento lícito, sob pena de não se assegurar o direito a um processo justo e equitativo, nem as próprias garantias de defesa do arguido, incluindo o direito ao contraditório, o que sempre constituiria frontal violação do disposto nos arts. 20.º nº 4 e 32.º nº 1, 2 e 5 da CRP;

8.ª - E o que se diz para o Ministério Público na liquidação, diz-se para o Juiz que decide o arresto ou determina a perda de bens, sob pena sob pena de não se assegurar o direito a um processo justo e equitativo, nem as próprias garantias de defesa do arguido, incluindo o direito ao contraditório e também ofender outros princípios básicos, como por exemplo o da presunção de inocência e o do in dubio pro reo, assim violando o disposto nos arts. 20.º nº 4 e 32.º nº 1, 2 e 5 da CRP;

9.ª- No caso em apreço o Tribunal Recorrido limita-se a fazer uma análise acrítica da prova indiciária recolhida no inquérito;

  10.ª- Na liquidação efetuada pelo Ministério Público e recebida pela decisão recorrida, aquele arranca da alegação feita na acusação, e que serve de base de cálculo, que consiste na presença no apartamento do arguido de 6 mulheres por dia (todos os dias do ano, de dia e de noite, durante 7 anos, incluindo natais e fins de ano);

11.ª- Porém, nem Ministério Público nem a decisão recorrida concretizam quais as mulheres que ali estiveram durante todo esse período de tempo, por forma a ser possível perceber se efetivamente foram sempre – de dia e de noite – seis mulheres que ali permaneceram, e a permitir ao arguido contraditar essa acusação;

12.ª- Antes pelo contrário, limitam-se a descrever o nome de duas ou três das mulheres que ali foram identificadas, e remetem para expressões inconclusivas e não concretizadas, que não permitem ao arguido exercer o seu direito ao contraditório de defesa;

13.ª- De resto, é o próprio Ministério Público que admite que as mulheres que poderão ter passado pelo apartamento é “ em número desconhecido e cuja identidade não foi possível apurar, dado que de um modo geral, cada uma exercia ali a atividade por um curto período temporal” (cfr. ponto 22 da acusação para onde remete a liquidação);

14.ª- E por isso decisão recorrida, ao estribar-se numa acusação, numa pronuncia e numa liquidação feita pelo Ministério Público, omissa de factos essenciais e repleta de conclusões e conjeturas, não se assegura o direito a um processo justo e equitativo, nem as próprias garantias de defesa do arguido, incluindo o direito ao contraditório, e ofende princípios básicos, como por exemplo o da presunção de inocência e o do in dubio pro reo, assim violando o disposto nos arts. 20.º nº 4 e 32.º,  nºs 1, 2  e 5 da CRP, sendo por isso nula, ou devendo, por inconstitucional, ser revogada, e substituída por outra que indeferida o requerimento de arresto apresentado pelo Ministério Público;

15.ª- E isto porque, todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão mediante processo equitativo; em que lhe sejam asseguradas todas as garantias de defesa, incluindo o recurso; não se olvidando que o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação;

16.ª- Na ânsia de conseguir uma base de cálculo o mais alargada possível, numa logica de “quanto mais melhor” o Ministério público, quer na acusação, para onde remete no incidente de liquidação, quer no próprio incidente de liquidação, acaba por cair em incongruências e a alegação de factos falsos, que revela as fragilidades e inverosimilhança do cálculo efetuado, às quais a decisão recorrida ficou indiferente;

17.ª - Existem nos autos provas que demonstram que o regime de turno rotativo composto por 6 ou 7 mulheres que se prostituíam todos os dias, todas as semanas, todos os meses, todos os anos, desde 2006 a 2013, ou nunca existiu; ou se existiu, pode bem suceder que não tenha sido o arguido a instituí-lo; que as raparigas não usavam os quartos do apartamento do arguido só ou apenas para a prática da prostituição; e bem assim que essa regularidade – dois turnos, três mulheres por turno, todos os dias da semana, todos os meses do anos, e todos os anos, não corresponde à verdade do sucedido;

18.ª E todavia, o Ministério Público, e posteriormente a decisão recorrida, servem-se dessa presunção teoréticas e infundada como base de cálculo da sua liquidação, a qual acabou por ser assumida acriticamente pela decisão recorrida na remissão que faz para os termos daquela liquidação;

20.º- Em face das incongruências existentes no seio da prova recolhida no inquérito, designadamente da prova testemunhal, nos termos postos em evidencia nas alegações, o Tribunal recorrido nunca deveria ter dado como provados os facto vertidos nos pontos 2, 8, 9 a 12, 14, 16, 23 e  24 da pronuncia (cfr. fls. 7 a 12 da decisão recorrida) e nos pontos 1.º, 5.ºa 8.º da liquidação ( fls. 13  e 14 da decisão recorrida) na qual se estribou para decretar o arresto:

21.ª- Por inerência, deveria ter concluído pela inexistência de fortes indícios da prática de um dos crimes do catálogo consagrado no artigo 1° da Lei n° 5/2002, de 11 de Janeiro; e bem assim, de fortes indícios da desconformidade do património do arguido, ou seja, o património apurado tem de ser incongruente com o rendimento lícito.

22.ª- Falhando o cálculo do valor do património do arguido, na aceção do artigo 7.º, n.º 2 da Lei n.º 5/2002, de 11.01; não poderia a Sr.ª Juíza de Instrução ter confiado naquela liquidação e decretado o arresto que lhe era requerido, e antes deveria tê-lo indeferido;

23.ª- Ao não ter procedido dessa forma a decisão recorrida violou o disposto no artigo 7.º, ex vi artigo 10.º, n.ºs 1, 2 e 3, ambos da Lei n.º 5/2002, de 11.01;

 24.ª- A Lei nº 5/2002 “estabelece um regime especial de recolha de prova, quebra do segredo profissional e perda de bens a favor do Estado” (o que decorre desde logo do nº 1 do seu art.1), relativamente a um “catálogo de crimes” que indica, sendo um deles (alínea m) do nº 1 do mesmo artigo 1) o de lenocínio, mas neste caso (tal como os restantes indicados nas alíneas j) a m) do referido art. 1), se o crime for praticado “de forma organizada”.

25.ª- Ou seja: não basta a simples prática do crime de lenocínio para se aplicar o referido regime especial, sendo antes necessário que se prove que o mesmo foi praticado de forma organizada, não se podendo confundir essa exigência legal – a da prática do crime de forma organizada - com a “atuação profissional”, que é elemento típico do crime de lenocínio.

26.ª- No caso em apreço, basta ler os termos em que está feita a acusação, para onde remete a pronuncia, e a subsequente liquidação, ambas vistas à luz das incongruências referidas, para se concluir que, a ter sido cometido algum crime de lenocínio pelos arguidos - o que não se concede - essa prática não teve o tipo de organização e sofisticação pressuposta pelo legislador quando criou o regime especial da Lei n.º 5/2002, de 11.de Janeiro.

27.ª - E como tal, na falta deste pressuposto legal – o da prática organizada do crime imputado aos arguidos – que não se confunde nem com profissionalismo, nem com reiteração, não deveria o Ministério Público ter feito uso deste especial regime previsto na Lei n.º 5/2002, de 11.01, promovendo a liquidação e o arresto que lhe serve de garantia, nem a Sr.ª Juíza de Instrução deveria ter deferido o arresto que lhe foi requerido com base no aludido regime.

28.º Ao faze-lo, a decisão impugnada é ilegal, por violadora do disposto no n.º1 do artigo 1.º da Lei n.º5/2002, de 11.01, e como tal deve ser revogada e substituída por outra que julgue improcedente o requerimento do Ministério Público.

Assim, tudo visto e ponderado, de facto e de direito, deve ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que, ou julgue:

a) Não provados os factos vertidos nos pontos 2, 8, 9 a 12, 14, 16, 23 e  24 da pronuncia (cfr. fls. 7 a 12 da decisão recorrida) e nos pontos 1.º, 5.ºa 8.º da liquidação ( fls. 13  e 14 da decisão recorrida);

b)  E por inerência, legalmente inadmissível a aplicação ao caso do regime excecional previsto nos artigos 7.º e ss. da Lei n.º 5/2002, de 11.01, por falta dos pressupostos ali previstos para o efeito;

c) Ou então, que julgue improcedente o requerimento de arresto do Ministério Público apresentado á Sr.ª Juíza de Instrução;

 com o  se fará justiça!

  O que se requer.

  Respondeu o MP em primeira instância, retirando dessa sua peça as seguintes conclusões:

Os indícios enumerados na decisão recorrida são sustentados no despacho da acusação proferido, confirmados pelo despacho de pronúncia, também, já proferido, pelo que se entende que o despacho da Mmª que decreta o arresto dos bens identificados no auto de arresto constante dos autos não merece qualquer censura, pois que o requerimento formulado pelo MP, de decretamento de arresto preventivo, contem devidamente fundamentada, a liquidação do valor correspondente à vantagem patrimonial ilícita- produto da atividade criminosa levada a cabo pelo arguido recorrente.

Inexiste qualquer violação dos princípios constitucionais invocados pelo arguido.

O recurso interposto pelo arguido/recorrente não merece provimento, devendo ser confirmado o despacho judicial, proferido pela Mmª Juiz de Instrução que decretou o arresto preventivo, nos termos do artigo 10º da Lei 5/2002 de 11.01, por ausência de aplicação de qualquer norma inconstitucional ou qualquer violação de normas legais.

   Vossas Excelências, contudo, decidindo farão como sempre,

    JUSTIÇA.

  Nesta Relação, o Ex.mo PGA emitiu douto parecer no sentido do não provimento do recurso.

  Ainda respondeu o recorrente, concluindo como anteriormente.

  Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

DECIDINDO:

Analisadas as conclusões que o recorrente retira da motivação do seu recurso, logo se constata que são as seguintes as questões que, através delas, coloca à nossa apreciação censória:

- em primeiro lugar, pretende inexistirem fortes indícios da prática de um crime do catálogo constante do artº 1º da Lei 5/2002, de 11/1;

- depois, afirma que também inexistem fortes indícios de que o património apurado seja incongruente com o seu rendimento lícito;

- finalmente, defende que não estão reunidos os pressupostos de que depende a aplicação do regime em causa, pois que o crime em causa não terá sido praticado de forma organizada.

O arresto ora em causa foi decretado ao abrigo da Lei nº 5/2002 cujo artº 1º “estabelece um regime especial de recolha de prova, quebra do segredo profissional e perda de bens a favor do Estado” relativamente aos crimes que cataloga nas suas diversas alíneas.

Muito embora a previsão legal se baste com a condenação pela prática de um daqueles crimes de catálogo nos próprios autos onde essa perda ampliada é declarada, o certo é que, mesmo assim, a aquisição dos bens em causa deve ser contextualizada com as circunstâncias em que se provou a ocorrência do crime. Com efeito, resulta do nº 1 do citado artº 7º que, analisada a questão criminal, e se for caso de condenação por um daqueles crimes, funciona a presunção que estabelece. Não exige a norma que essa condenação esteja já transitada em julgado, sendo, no entanto, óbvio, que a declaração de perda só se torna eficaz e exequível após trânsito em julgado da sentença, coisa diversa.

A operação de determinação dos bens cuja perda deve ser decretada há-de ter por base as seguintes premissas:

- por um lado, o valor do património global do arguido; e

- por outro, aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito.

Só aqueles bens que não encontrem tal tipo de justificação, constituindo assim a diferença entre uma e outra premissa, devem ser decretados perdidos a favor do Estado, por serem presumidos vantagem da actividade criminosa.

Dada a natureza da presunção legal estabelecida, o arguido pode usar da prerrogativa que lhe é concedida pelo artº 9º, 1, do mesmo regime legal, demonstrando a origem lícita dos bens arrolados ou, então, ilidir a presunção referida, nos termos do respectivo nº 3.

Face à presunção legal, está o MP dispensado de provar que os bens em questão foram adquiridos graças ao cometimento dos crimes em causa; como se disse, esta aquisição presume-se.

  A presunção em causa pode ser ilidida mediante a prova de que os bens (artº 9º, 3):

a) Resultam de rendimentos de actividade lícita;

b) Estavam na titularidade do arguido há pelo menos cinco anos no momento da constituição como arguido;

c) Foram adquiridos pelo arguido com rendimentos obtidos no período referido na alínea anterior.

Conforme Jorge A. Godinho, citado pelo recorrente, (in “Brandos Costumes? O confisco penal com base na inversão do ónus da prova (Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro, artigos 1º e 7º a 12º), in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, p. 1318), “no essencial, o regime consiste na presunção iuris tantum da origem ilícita dos bens de pessoas condenadas pela prática de certos crimes (descritos no art. 1º), com vista a proporcionar o confisco das presumidas vantagens de suposta atividade criminosa anterior. Trata-se sem dúvida de uma verdadeira e própria presunção, pela qual certo facto, desconhecido e não comprovado (a ilicitude da origem de certo património), é inferido de outros factos, conhecidos e comprovados. A presunção dispensa a probatio diabólica da origem ilícita, que normalmente caberia à acusação, distribuindo ao arguido o ónus de provar o contrário.”

Até aqui temos falado da decisão de perdimento seguida à condenação criminal; no entanto, no nosso caso, porque o processo ainda não atingiu tal fase processual, apenas estará em causa a apreensão dos bens para o processo, de forma a garantir o pagamento do valor determinado nos termos do n.º 1 do artigo 7.º.

Estando em causa um procedimento cautelar, não se pode exigir, nesta fase, o estabelecimento de um grau de certeza, relativamente aos factos integradores do ilícito criminal, ao nível do exigível a final, para efeitos de condenação; aqui, os factos a partir dos quais funcionará a referida presunção legal, deverão provar-se para além de qualquer dúvida razoável.

Para o decretamento do arresto a que se refere o artº 10º da Lei 5/2002 não será de exigir concretamente a ocorrência de uma probabilidade séria da existência do direito (pois que esta se presume), nem de um fundado receio de diminuição ou de descaminho das garantias patrimoniais (‘periculum in mora’), pois que a norma do seu nº 3 o dispensa. Apenas exige a lei que existam fortes indícios da prática de crime previsto no catálogo.

Vimos já que o recorrente se mostra acusado e pronunciado pela prática de prática, em autoria material, de um crime de lenocínio, p.p. pelo artigo 170º n.º1 do Código Penal e, após a entrada em vigor da Lei 589/2007 de 4/9, p.p. pelo artigo 169º n.º1 do Código Penal.

Que o crime de lenocínio cabe no catálogo legal não merece dúvidas (consta da al. m) do nº 1, do artº 1º). No entanto, o nº 2 da mesma norma introduz uma especialidade que determina que nem todos os crimes de lenocínio estejam abrangidos pelo catálogo; exige que o crime seja «praticado de forma organizada».

No que se refere à existência de fortes indícios da prática de um crime de lenocínio, não podemos deixar de afirmar que os autos demonstram à saciedade que – em termos indiciários - o arguido praticou actos típicos dele integrantes, tal qual resulta da acusação pública e do despacho de pronúncia. Com efeito, quer para efeitos de perda dos bens na sequência da condenação penal, quer para efeitos do procedimento cautelar ora em causa, o tribunal considerará, nos termos gerais, toda a prova produzida no processo, sem prejuízo da possibilidade de o arguido demonstrar a origem lícita dos mesmos (artº 9º, 1).

A decisão instrutória, ao confirmar a verificação dos indícios probatórios que fundamentaram a acusação pública, reafirmou a ocorrência dos fortes indícios da prática do crime; tal dispensa-nos, agora, de voltar a apreciar tal questão que, sendo de fundo, deverá ser novamente apreciada em sede de julgamento, num regime de oralidade e de imediação probatória e com efectivo exercício do contraditório.

Não pode o arguido, tendo visto naufragar a sua pretensão de não pronúncia, vir agora, e novamente, questionar autonomamente toda a factualidade indiciária que determinou a sua sujeição a julgamento (a qual é comum ao incidente agora em causa). Na instrução beneficiou ele de todas as garantias de defesa, designadamente sendo-lhe assegurado um efectivo exercício do contraditório.

Não se pode afirmar, como o faz o recorrente que haja sido violada a garantia constitucional a um julgamento equitativo (artº 20º, 4, CRP), pois que na devida altura lhe será assegurado esse direito; do mesmo modo lhe deverão ser asseguradas nessa ocasião (como aliás o têm vindo a ser até agora) todas as garantias de defesa, designadamente a de presunção de inocência e do contraditório – artº 32º, 1, 2 e 5 da CRP).

Ao assegurar essas garantias supra legais na fase do julgamento, relativamente aos factos integrantes da imputação criminal, reflexamente serão as mesmas extensivas ao incidente ora em causa pois que, no essencial, os seus pressupostos são decalcados sobre os da própria incriminação, pois que o seu provimento pressupõe, além do mais, uma condenação penal (artº 7º, 1).

Assim sendo, temos de considerar que, em termos indiciários, se mostra estabelecida a seguinte factualidade:

1. Desde data não concretamente apurada, mas que se situará, pelo menos, desde Julho de 2006 (conforme relato de E... ), o arguido A... começou a rentabilizar um apartamento sito na (...) , em Viseu (que estava na sua disponibilidade não se sabe a que título), angariando mulheres em diversas casas de alterne e noutros locais, para aí irem praticar a prostituição, a troco do pagamento de uma quantia diária, com a qual tem, desde essa data, obtido lucros.

2. No referido apartamento, constituído por 4 (quatro) quartos e uma cozinha, o arguido tem mantido desde essa data cerca de seis a sete mulheres, para que, em dois turnos diários distintos, entre as 9h e as 18h e entre as 18h e as 2h da manhã, prestem serviços sexuais a homens a título remunerado, visando o arguido obter lucros, da seguinte forma:

-As prostitutas ficam com o dinheiro que recebem dos clientes após a prática dos actos sexuais, porém, têm de pagar ao arguido, por usarem o seu apartamento para tal fim, uma quantia diária fixa, que durante o ano de 2006 e 2007 foi de 20,00€.

3. Neste ano, depois de ser convidada pelo arguido a exercer a prostituição num dos quartos do seu apartamento, E... , prostituiu-se no mencionado apartamento da (...) , no turno da noite, desde Junho de 2006 a Junho de 2008, juntamente com as cidadãs Brasileiras F... e a arguida B... , sendo as mulheres que aí se prostituíam quem atraia os clientes, através das janelas e indo mesmo para a rua, apelando aos indivíduos para entrarem.

4. Durante este período, como o arguido se ausentava para o estrangeiro em virtude da sua profissão de motorista, eram as mulheres que aí se prostituíam quem tomava conta do apartamento, prestando-lhe contas no seu regresso.

5. Em 19 de Novembro de 2007, o arguido A... comprou o referido apartamento, tornando-se seu proprietário.

6. Nos finais do ano de 2007 ou inicio de 2008, em data não concretamente apurada, o arguido A... encetou uma relação amorosa com a arguida B... , começando esta, com o avanço do relacionamento amoroso, a tomar conta do apartamento, na ausência do arguido A... .

7. Assim, começou a receber as diárias das outras prostitutas que utilizavam o apartamento, a controlar as entradas de clientes, a verificar o cumprimento dos turnos por estas e a orientar a limpeza da casa, continuando, a própria, também aí a prostituir-se.

8. Em finais de 2007 ou em início do ano de 2008, em data não concretamente apurada, os dois arguidos A... e B... , concertaram vontades e objectivos, que se tornaram comuns e, em comunhão de esforços e meios, com vista a obterem lucros económicos maiores, organizaram-se, passando a agir em conjunto, auxiliando-se mutuamente no controle da actividade para desse modo obterem um maior lucro.

9. Desse modo, decidiram em convergência de vontades, aumentar o valor de algumas diárias das prostitutas que mais clientes faziam, de 20,00€ para 25,00€, continuando a permitir que viessem ao apartamento diariamente, entre seis a sete prostitutas, para aí manterem a prática de actos sexuais com indivíduos, a troco de dinheiro.

10. Nessa altura L... prostituiu-se no referido apartamento, até Junho de 2008.

11. Durante o ano de 2008, 2009, 2010, 2011, 2012 e início de 2013, em conjugação de esforços, os arguidos A... e B... continuaram a rentabilizar juntos a exploração do citado apartamento, propriedade do primeiro arguido, sito na (...) , em Viseu, com vista a aí continuarem a receber mulheres que se dedicassem à prestação de serviços sexuais a troco de pagamento, passando também, a B... a recrutar mulheres, suas conhecidas, para aí se prostituírem.

12. Durante esse período temporal, sempre em concerto com o arguido A... , passou a controlar o seu desempenho e rendimento, orientando e distribuindo as prostitutas pelos dois turnos, passando a receber o pagamento diário de 20,00€ ou mais euros, visando ambos os arguidos, desta forma, em comunhão de esforços, obter maiores lucros económicos.

13. Assim, a arguida B... passou a pagar as contas do arguido A... , designadamente dos serviços de electricidade, água e televisão por cabo, passando a conservar as mobílias do apartamento e a substitui-las, bem como, a diligenciar no sentido de contactar mulheres que se dedicavam à supra-referida actividade de prostituição, para ali a exercerem, expondo as condições disponíveis e as contrapartidas exigidas.

14. No ano de 2009, concretamente no mês de Junho do ano de 2009, moraram no apartamento, a cidadã Brasileira C... e a também cidadã Brasileira, D... , que arrendaram cada uma, um quarto pela quantia mensal de 140,00€, pagando para além do arrendamento, a diária de 20,00€ para aí se prostituírem.

15. Nesse ano, a arguida B... , também aí se prostituía juntamente com a C... e a D... e outras mulheres não residentes que apenas compareciam no horário dos turnos diários, cuja identidade não foi possível apurar.

16. Nesse período, as quantias que cada prostituta cobrava aos clientes continuavam a ser para a própria prostituta, que pagava aos arguidos uma quantia diária de 20,00€ mínimo, por ali se prostituir.

17. Os clientes continuavam a ser angariados pelas próprias prostitutas a partir das janelas do apartamento ou na rua, ou então, por contacto telefónico fornecido a clientes já conhecidos.

18. Os produtos usados nas práticas sexuais levadas a cabo, tais como preservativos, toalhetes de papel e outros, era suportado pelas próprias mulheres que ali prestavam serviços, sendo certo que, no referido apartamento os próprios arguidos aí tinham guardado material dessa natureza, que disponibilizavam às prostitutas, nas faltas.

19. No âmbito do que acima se descreveu, durante os anos de 2007 a 2008, 2009 e 2010, as testemunhas C... , D... , G... , H... , I... , J... , L... , M... , N... e O... , foram mulheres que se dedicaram à prostituição, praticando actos sexuais a troco de dinheiro, no apartamento do arguido, entregando-lhe, primeiro a ele, depois à arguida B... , a quantia diária fixada.

20. As práticas de prostituição atrás descritas, continuaram a manter-se até ao ano de 2013, nos moldes supra relatados.

21. Desde 2009 até 2013, várias mulheres que ali se prostituíram, cujo número não se mostrou possível apurar em concreto mas pelo menos em número de seis, efectuaram o pagamento da diária de 20,00€ aos arguidos B... e A... .

22. Para além das testemunhas acima referidas, muitas outras mulheres prestaram serviços sexuais nos mesmos moldes naquele apartamento, em número desconhecido e cuja identidade não foi possível apurar, dado que, de um modo geral, cada uma exercia ali a actividade por um curto período temporal e usando nomes fictícios para efeitos profissionais.

23. O arguido auferiu assim, desde Novembro de 2007 até inícios de 2008, quantias que se contabilizam numa média mensal de 3.600,00€ (3 mulheres por turno, dá uma média de 6 mulheres por dia = 6 X 20,00€ = 120,00€, por dia; x 30 dias = 3.600,00€ por mês), a que corresponde uma média de 43.200,00€ por ano.

24. Por sua vez os dois arguidos auferiram, desde o ano de 2008 até pelo menos a meados de 2013, quantias que se contabilizam mensalmente numa média de (3 mulheres por turno, dá uma média de 6 mulheres por dia = 6 X 20,00€ = 120,00€ por dia x 30 dias = 3.600,00€, a que corresponde uma média de 43.200,00€ anuais, a multiplicar por cinco anos, dá a quantia de 216.000,00€, que dividida por dois, atribui a cada um dos arguido a quantia de 108.000,00€, a que tem de se somar a quantia do ano de 2007, pertencente só ao arguido A... , que perfaz 151.200,00€.

25. Ao levar a cabo a conduta que acima se descreveu, relativa à exploração da actividade levada a cabo por todas aquelas mulheres, primeiro sozinho, agiu o arguido A... com o propósito alcançado de obter ganhos, bem sabendo que, dessa forma, iria fomentar a prática da prostituição a que as mesmas se propunham, não ignorando que, assim, atentava contra os sentimentos de pudor e contra a moralidade da generalidade das pessoas, bem como contra a dignidade humana de todas aquelas mulheres.

26. Ao levarem a cabo a conduta que acima se descreveu, relativa à exploração da actividade levada a cabo por todas aquelas mulheres, agiram os arguidos A... e B... , depois de se terem juntado, com o propósito alcançado de obter ganhos, bem sabendo que, dessa forma, iriam fomentar a prática da prostituição a que as mesmas se propunham, não ignorando que, assim, atentavam contra os sentimentos de pudor e contra a moralidade da generalidade das pessoas, bem como contra a dignidade humana de todas aquelas mulheres.

27. Agiu o arguido A... de modo livre, deliberado e consciente bem sabendo que a sua conduta era proibida e proibida pela lei penal.

28. Mais tarde, após o conluio entre ambos, agiram os arguidos A... e B... sempre de modo livre, deliberado e consciente, em comunhão de esforços e na execução do entre ambos acordado, bem sabendo que a sua conduta era proibida e proibida pela lei penal.

  Tais são os factos indiciariamente assentes.

  Face a eles e ao requerimento de liquidação operado no próprio documento da acusação, o despacho recorrido entendeu que:

Indicia-se nos autos que, nos anos de 2006 e até Nov de 2007, A... , actuando sozinho e por si, auferiu benefícios monetários da prática de um crime de lenocínio continuado, no montante apurado de 21.600,00€ - quantia referente a Junho de 2006 - e a quantia de 43.200,00€, referente ao ano de 2007, o que totaliza, nos anos supra referidos, a quantia de € 64.800,00 (sessenta e quatro mil e oitocentos euros),

Tais montantes com que ficou eram provenientes das “diárias” de 20,00€, pagas por prostitutas que diariamente utilizavam o seu apartamento para se prostituírem.

De acordo com o que resulta da acusação, prostituíam-se nesse apartamento uma média de 6 mulheres por dia, divididas por dois turnos, pagando cada uma cerca de 20,00€.

A partir de Dezembro de 2007, o crime em causa passou a ser praticado de forma organizada, já que o arguido se concertou com B... e ambos em co-autoria praticaram no modo continuado o crime de lenocínio.

Assim, e quanto à Liquidação, para efeitos do disposto nos artigos 7º, 8º nº 1, artº 10º, nº1, nº2, nº3 e nº4 e artº 1º, nº1, i), da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro, resulta que:

1º Em Dezembro de 2007, A... concertou a prática da actividade que vinha exercendo, descrita na acusação atrás deduzida, com a arguida B... , passando ambos, em comunhão de esforços e intentos, a partir de dia não determinado do aludido mês de Dezembro de 2007, a coordenar e orientar a entrada e saída das prostitutas no apartamento, a gerir os turnos destas e a receber as “diárias” de cada uma,

2º ou seja, pelo facto de se prostituírem no apartamento que é do arguido, situado na (...) , em Viseu, as prostitutas que aí se deslocavam para exercer essa actividade, pagavam, por dia, aos arguidos, a quantia de 20,00€.

3º Tal quantia era devida sempre, mesmo que estas não comparecessem, isto a partir do momento que acertavam com os arguidos a forma de se prostituírem naquele local.

4º Esse pagamento era cobrado e controlado pelos dois arguidos, sendo que B... , pelo facto dela própria, por vezes, continuar aí a prostituir-se, e lidar directamente com as prostitutas que pagavam as diárias, anotando num caderno ou numa agenda, ou numa simples folha, as quantias devidas por cada uma a título de diária não paga, fazia a cobrança semanal.

5º Como se disse e como resulta do texto da acusação, os arguidos, desde Dezembro de 2007, até meados de 2013, constituíram-se co-autores materiais de um crime de lenocínio, praticado no modo continuado, auferindo lucros diários de pelo menos 120,00€, já que no apartamento havia dois turnos diários de prostitutas, trabalhando pelo menos em cada turno três mulheres, o que equivale a uma cobrança de 6 diárias de 20,00€, o que perfaz 120,00€.

6º Considerando que essa cobrança foi feita pelos arguidos desde Dezembro de 2007, até pelo menos meados de 2013, estes, auferiram desde essa data, a quantia de 120,00€ diários, e a quantia de 3.600,00€ mensais (120,00€ x 30=3.600,00€), o que lhes dava um rendimento anual de 43.200,00€.

7º Efectuando as contas necessárias, temos que:

Em Dez 2007, os arguidos auferiram 3.600,00€;

No ano de 2008, 43.200,00€;

No ano de 2009, 43.200,00€;

No ano de 2010, 43.200,00€;

No ano de 2011, 43.200,00€;

No ano de 2012, 43.200,00€ e

No mês de Janeiro de 2013, auferiram 3.600,00€, o que perfaz o total de 223.200,00€ (Duzentos e vinte e três mil e duzentos euros)

8º Calcula-se assim, como montante a ser declarado perdido a favor do Estado, o montante de 223.200,00€ (Duzentos e vinte e três mil e duzentos euros), por ser o valor que se mostrou possível apurar relativamente às quantias monetárias que tais arguidos, em conjunto de esforços intentos e práticas, obtiveram como benefício e lucro da descrita actividade de lenocínio que levaram a cabo no período assinalado.

9º A liquidação efetuada, resulta da prática dos factos imputados aos arguidos na acusação atrás deduzida, que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais, a partir do momento em que actuaram de forma organizada como co-autores de um crime de lenocínio continuado.

10º Desde a data em que começou a actuar comparticipadamente com o arguido A... , a arguida B... , não exerceu qualquer actividade da qual lhe adviesse rendimento líquido,

11º Não tendo apresentado qualquer declaração de rendimentos,

12º nem efectuado descontos para a Segurança Social, nunca tendo sido vista a exercer qualquer actividade, nomeadamente como vendedora de artesanato.

13º Por sua vez, o arguido declarou os rendimentos que obteve com o desempenho da sua profissão de motorista na K..., dos quais, deduzidos os encargos, restam as quantias anuais do quadro de fls. 785 dos autos principais, para o qual se remete e se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.

14º Apesar do arguido apresentar rendimentos lícitos e os mesmos poderem ser compatíveis com a aquisição de dois urbanos, nos últimos cinco anos, designadamente o apartamento na (...) , em Viseu e uma vivenda na localidade de (...) , conclui-se indiciariamente que:

- O apartamento propriedade do arguido, id a fls. 725 e 726 e fls. 736 e 737, adquirido em 19 de Novembro de 2007 e o automóvel onde se desloca B... , de matrícula (...) G, de marca Fiat, que está em nome do arguido, bem como, os bens comuns de ambos os arguidos adquiridos após o casamento destes que ocorreu sem convenção antenupcial, em 10 de Julho de 2009, que foram usados para a prática do crime ou sejam seu produto, uma vez que o património do arguido A... foi angariado, não só com o seu rendimento lícito, mas também com os lucros provenientes dos pagamentos das diárias, por parte das prostitutas, pelo que se presume constituir vantagem de actividade criminosa, nos termos do artº 7º, nº1 da Lei 5/2002.

Não é este ainda o momento de afirmação da eventual incongruência entre o património do arguido e o seu rendimento lícito apurado; apenas está em causa, em termos preventivos, a análise da bondade do despacho que decretou o arresto dos bens relativamente aos quais o MP afirma essa incongruência.

Face à extensão dos factos apurados pode concluir-se que existem fortes indícios da prática do crime pelo arguido, razão pela qual, e sem necessidade de mais larga fundamentação, nesta fase, era de decretar o arresto dos bens nos termos promovidos pelo MP. Desse simples facto deduz a própria lei, nesta fase incidental, que ocorre a aparência do direito invocado pelo MP (fumus bonus juris).

Só na fase de julgamento se irá apurar da efectiva verificação de incongruência determinante do accionamento do mecanismo legal da perda dos bens (nesta fase indiciária basta-se a lei com a presunção de que essa incongruência se verifica).

Por isso deve considerar-se que quer a liquidação quer o pedido de arresto não sofrem de deficiências que determinem a sua liminar rejeição.

Neste momento são extemporâneas todas as alegações relativas ao modo como se deve proceder à liquidação do património do arguido, de forma a determinar se ocorre a incongruência que é pressuposto da perda dos bens; estando nós numa fase cautelar, a apreciação baseia-se apenas nos indícios recolhidos, os quais qualificamos já de fortes. Toda a argumentação tecida pelo recorrente a tal propósito constitui mera antecipação da defesa que poderá usar face à decisão que, eventualmente, decrete a perda dos bens com base na afirmação daquela incongruência.

Como dissemos já, nesta fase processual está em causa a apreciação indiciária da prova, sendo perfeitamente descabida a pretensão do recorrente de ver considerados como não provados os factos constantes da decisão instrutória (2, 8 a 12, 14, 16, 23 e 24) e bem assim do articulado da liquidação (1 e 5 a 8) – v. a conclusão 20ª formulada.

Prossegue o recorrente afirmando que não basta a simples prática do crime de lenocínio para se aplicar o referido regime especial, sendo antes necessário que se prove que o mesmo foi praticado de forma organizada, não se podendo confundir essa exigência legal – a da prática do crime de forma organizada.

É certo o que afirma.

Na sua resposta, o MP defendeu que «situações como as descritas nestes autos, são também enquadráveis no âmbito da referida lei, pois que conforme se referiu supra – a atividade desenvolvida pelos arguidos foi praticada ao longo dos vários anos descritos de forma organizada, utilizando para o efeito o referido apartamento, com sistemas rotativos de turnos e providenciando pelos serviços de limpeza, manutenção de mobiliário do referido espaço, bem como o fornecimento de eletricidade e televisão, como se de um “estabelecimento comercial de prestação serviços de cariz sexual” se tratasse».

Ou seja, não estamos apenas perante a prática de meros actos profissionais ou movidos pela intenção lucrativa, os quais são exigíveis à integração típica do crime de lenocínio, p.p. pelo artº 169º, 1, do CP; antes essa prática é circunstanciada por outros que vão para além dessa profissionalidade ou intenção, v.g. os descritos em 11 a 13 no despacho recorrido. Esse ‘plus’ integra, na nossa perspectiva, a ‘organização’ a que se refere o nº 2 daquele artº 1º da Lei 5/2002.

A prática dos actos típicos do lenocínio (de fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição) foi acompanhada de acréscimo de ilicitude, traduzido na circunstância, de entre 2008 e 2013, os co-autores terem repartido entre si tarefas de manutenção do espaço, criação de turnos e distribuição das mulheres pelos mesmos, a tudo acrescendo o exercício do controle do respectivo desempenho e rendimento.

Como refere Cláudia Maria Cruz Santos (O Crime de Colarinho Branco, Coimbra Editora, 2001, pag. 281), a organização baseia-se «na ideia de que apesar de em última instância os actores do comportamento criminoso continuarem a ser os agentes individuais, as organizações têm uma vida própria e a sua estrutura e funcionamento ultrapassa os interesses de cada sujeito. Há, pois, uma institucionalização de padrões de conduta que passam a ser cindíveis da vontade individual».

No nosso caso, sempre em termos indiciários, pois que estamos numa fase cautelar, essa institucionalização ocorreu com a organização dos agentes mediante a repartição e especialização de tarefas. E tais circunstâncias estão para além das exigíveis à integração de uma prática meramente profissional.

Tal conclusão não prejudica (nem dispensa) a análise que, a esse propósito, deve ser efectuada na decisão final que vier a ser proferida.

Termos em que se acorda nesta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando na íntegra a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, com taxa de justiça fixada em 4 UC’s.

Coimbra, 11 de Outubro de 2017

(Jorge França – relator)

(Elisa Sales – adjunta)