Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5888/17.3T8VIS-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
INCIDENTE DA QUALIFICAÇÃO
QUALIFICAÇÃO CULPOSA
PRESUNÇÕES
Data do Acordão: 12/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU, VISEU, JUÍZO DE COMÉRCIO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 3, 18, 186, 189 CIRE
Sumário: 1.- O art. 186.º do CIRE deve ser interpretado no sentido de que as alíneas do nº 2 consagram presunções (absolutas) de insolvência culposa e as alíneas do nº 3 presunções (relativas) de insolvência culposa (e não meras presunções relativas de culpa grave).

2.- O preenchimento das alíneas h) e i) do nº2 do art.186 CIRE, exige alguma densidade factual, nomeadamente quanto à previsão normativa de “em termos substanciais”, “com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor”, “de forma reiterada”

3.- O art.186 nº3 a) CIRE que determina a presunção de insolvência culposa quando o administrador, de direito ou de facto, tenha incumprido o dever de requerer a declaração de insolvência, postula a demonstração do início da situação de insolvência, tendo em conta a conjugação dos arts.18 nº1 e 3 nº1 CIRE.

Decisão Texto Integral:








            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

“J (…) – Sociedade Unipessoal, Lda., já identificada nos autos, foi declarada insolvente por decisão, datada de 13/03/2018, na sequência de PER, intentado em 25 de Abril de 2017, em que não apresentou qualquer plano de recuperação.

No seguimento da predita decisão, foi, para além do mais, declarado aberto o incidente de qualificação de insolvência com carácter pleno.

O presente incidente teve início mediante requerimento do credor A (…), já, também, identificado nos autos, a qual veio requerer fosse qualificada como culposa a insolvência da sociedade inicialmente referida e afectado pela requerida qualificação, o seu gerente, J (…), com a seguinte fundamentação:

O gerente da insolvente actuou de má-fé nas suas relações com os credores. Já no PER instaurado tentou furtar-se ao pagamento de dívidas que reconhecia. Ao mesmo tempo no âmbito desse processo nunca teve real intenção de negociar com os seus credores pois nem sequer apresentou plano de recuperação. Tratou-se de um expediente dilatório para evitar satisfazer os créditos. E tanto é assim que foi, nesse PER, condenado como litigante de má-fé.

A insolvente dispunha, à data da declaração de insolvência, de um veículo penhorado à ordem de um processo executivo que não veio a ser apreendido porque a insolvente o ocultou.

E outros bens existiriam atendendo aos negócios que mantinha com a sociedade de direito espanhol (..)S.L. para o qual foram canalizados os activos e o capital da insolvente.

O gerente da insolvente incumpriu, também, reiteradamente o seu dever de colaboração e de apresentação.

A isto acresce que, encontrando-se já numa situação de insolvência, e estando obrigada a apresentar-se à insolvência, a Insolvente contraiu dívidas e assumiu passivo em montante muito superior ao do seu capital social, com manifesto prejuízo para os seus credores.

Entende que a insolvência deverá ser qualificada como culposa nos termos do disposto no art. 186º, nº2, al. a) e i) e nº3, al. a) do CIRE, devendo afectar-se o gerente J (…)com as legais consequências.

Notificado para o efeito, foi junto Parecer do Sr. Administrador da insolvência, em que se refere o seguinte:

O gerente da insolvente encerrou subitamente as suas instalações.

Não apresenta e não deposita as contas anuais da sociedade desde 2016, inclusive.

Os créditos encontram-se vencidos há muito tempo, ascendendo ao montante de €600.000,00. Instaurou um PER e não apresentou plano de recuperação. A sociedade está insolvente desde 2015, pelo que o gerente deveria ter apresentado a sociedade à insolvência.

O administrador da insolvência não conseguiu falar com o gerente, apesar de se ter deslocado pessoalmente às instalações. Não houve qualquer tipo de colaboração da parte do gerente. Não foi possível ter acesso à contabilidade.

Entende que a insolvência deverá ser qualificada como culposa porquanto se verificam os factos presuntivos dessa situação, nos termos do disposto na al. a), b), g), h) e i) do nº2, e al. a) e b) do nº3 do art. 186º do CIRE.

Aberta vista ao MP, foi junto Parecer da Ex.ma Magistrada do Ministério Público, no qual se defende que:

Pelos factos já alegados pelo credor Requerente, e pelo Sr. Administrador da Insolvente, entende que a insolvência deverá ser qualificada como culposa nos termos do disposto no art. 186º, nº2, al. i) e nº3, al. a) do CIRE, afectando o gerente J (…)

De tudo notificado, o gerente J (…), veio apresentar oposição ao requerido, com os seguintes fundamentos:

O credor Requerente instaurou execuções contra a Insolvente, nas quais foram, em 28 de Março de 2017, penhorados e removidos das instalações desta praticamente todas as suas existências, sobretudo plantas envasadas. Desconhece-se a razão pela qual o produto da venda dessas plantas (promovida pelo próprio credor Requerente) não reverteu para a massa insolvente. Na mesma acção executiva foi penhorada a conta bancária da insolvente no valor de milhares de euros.

O plano de recuperação no âmbito do PER não foi apresentado na medida em que a sua aprovação estava dependente da posição favorável do credor agora Requerente do Incidente, o que era manifestamente improvável.

O credor Requerente havia recusado o pagamento de €6.035,00 para porem fim à penhora acima referida que dizia respeito a um crédito de €7.500,00, o que denota a má-fé com que o credor se relacionava com a insolvente.

O depósito das contas do exercício de 2016 era já da responsabilidade do Sr. Administrador da insolvência.

No âmbito do PER requereram conjuntamente a prorrogação do período de negociações, pelo que é falso que o Sr. Administrador da insolvência nunca tenha conseguido contactar o gerente da insolvente ou o seu mandatário.

O Sr. Administrador da insolvência não se deslocou propositadamente às instalações da insolvente.

Entende que a insolvência da J (…) – Sociedade Unipessoal, Lda. deverá ser qualificada como fortuita.

Respondendo, o credor Requerente, A (…), refere que:

Descreveu os actos praticados nas acções executivas instauradas com a Insolvente, as penhoras aí efectuadas e os pagamentos que tiveram lugar.

Reitera que o PER a que a Insolvente se apresentou consistiu apenas numa manobra que visou a dissipação do património.

Findos os articulados, foi dispensada a realização de audiência prévia e foi proferido despacho saneador tabelar. Fixou-se o objecto do litígio e foram enunciados os temas de prova.

Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, com observância das formalidades legais, com recurso à gravação dos depoimentos prestados, após o que foi proferida a sentença de fl.s 147 a 159, na qual se fixou a matéria de facto considerada como provada e não provada e respectiva fundamentação e a final, se decidiu o seguinte:

“Nesta conformidade, e pelo exposto, o tribunal decide:

a) Qualificar a insolvência da devedora J (…) – Sociedade Unipessoal, Lda. como fortuita.

b) Absolver J (…) do pedido de afectação pela qualificação da insolvência como culposa.

Custas pela massa insolvente (art. 304.º do C.I.R.E.).”.

Inconformado com a sentença proferida, dela interpôs recurso o credor A (…) recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos do apenso respectivo e com efeito meramente devolutivo – (cf. despacho de fl.s 177), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

(…)

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos legais, há que decidir.   

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, são as seguintes as questões a decidir:

A. Incorrecta análise e apreciação da prova, relativamente aos factos constantes dos itens 10.º e 21.º, dos factos provados, que devem passar a considerar-se como não provados e alíneas b), c), d) e h), dos não provados, cuja factualidade deve passar a ser considerada como provada;

B. Se a sentença recorrida padece da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC e;

C. Se em face da factualidade dada como provada, a insolvência em apreço deve ser qualificada como culposa, sob pena de violação do disposto no artigo 186.º, n.os 1 e 3, al. b), do CIRE.

É a seguinte a matéria de facto dada por provada na decisão recorrida:

1. A insolvente, J(…), Sociedade Unipessoal, Lda., com sede (…) em (...) , foi constituída e registada em 24/09/2002, com o capital social realizado de 5.000,00 €, e o seu objecto social consistia no comércio de flores, e plantas, fertilizantes, adubos e turfas. Viveiros.

2. J (…) era o único sócio com a quota de €5.000,00, e exercia as funções de gerente.

3. No ano de 2009, procurou o mercado espanhol e aí começou a construir e a implementar viveiros com o nome “J (…)”.

4. No ano de 2010 devido à crise financeira, e à crise no sector, o investimento da J (…) em Espanha acabaria por não ser vantajoso.

5. A insolvente regressou ao mercado Português, com um empréstimo para pagar no valor de €300.000,00 à C (…).

6. O credor A (…) instaurou acção executiva que tomou o nº6423/16.6T8VIS, e que correu os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu – Juízo de Execução de Viseu, tendo aí sido penhoradas, com remoção, em 28 de Março de 2017, plantas envasadas a que foi atribuído o valor de €2.835,50. O exequente foi constituído fiel depositário desses bens.

7. O credor A (…) instaurou acção executiva que tomou o nº220/17.9T8VIS, e que correu os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu – Juízo de Execução de Viseu, Juiz 1, tendo aí sido penhorado um veículo automóvel de matrícula (...) ER que, no dia 31 de janeiro de 2017 se encontrava inscrito a favor da Insolvente.

8. O credor A (…) instaurou acção executiva que tomou o nº317/17.5T8VIS, e que correu os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu – Juízo de Execução de Viseu.

9. No âmbito da execução referida em 6, no dia 17 de Fevereiro de 2017, foi efectuada diligência de penhora com vista a penhorar bens, o que não se logrou conseguir pelos motivos descritos no auto lavrado e que consta dos autos a fls. 53 verso.

10. No âmbito de diligência executiva no processo referido em 8, a Insolvente propôs-se pagar determinada quantia o que não veio a acontecer.

11. Em 25 de Abril de 2017, a J (…) Sociedade Unipessoal, Lda., veio requerer nos termos do disposto no art. 17.º-C do CIRE um processo de recuperação de empresas, ao qual foi atribuído o nº5888/17.3T8VIS-A e correu termos no Juízo do Comércio – Juiz 1.

12. Alegando nessa data que tinha dívidas com fornecedores no montante de €1.017.366,88, €2.471,28 em execução fiscal à A.T. e que se encontraria impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas perante credores, trabalhadores e Autoridade Tributária Aduaneira.

13. Na lista provisória de créditos apresentada pelo Sr. (…) no processo especial de revitalização foi reconhecido ao credor A (…) um crédito no valor de €101.645,85 referente a fornecimentos dos quais foram emitidas as facturas respectivas, o qual foi objecto de impugnação por parte da Devedora.

14. A impugnação da Devedora foi julgada improcedente, tendo esta sido condenada como litigante de má-fé por haver omitido a falta de pagamento de cheques e facturas.

15. A Devedora, no âmbito do PER, não apresentou qualquer plano de recuperação.

16. O Senhor (…) no PER em 03 de Dezembro de 2017, apresentou um requerimento onde referia que a aí requerente se encontrava numa situação de insolvência.

17. Em 13 de Março de 2018 foi declarada a insolvência da J (…) – Sociedade Unipessoal, Lda.

18. Na relação de créditos a que alude o art. 129º do CIRE foram reconhecidos créditos no montante global de €583.962,76, sendo reconhecido ao credor A (…) um crédito no montante de €108.375,04, o qual não foi objecto de impugnação.

19. No âmbito do processo de insolvência não se apurou a existência de quaisquer bens imóveis ou móveis sujeitos a registo, ou outros.

20. Não foram depositadas as contas relativas ao exercício do ano de 2016.

21. A impossibilidade de a Insolvente cumprir as suas obrigações vencidas resultou da diminuição do volume de negócios, da falta de financiamento, de créditos incobráveis e de excessivo endividamento

Factos não provados.

- Em 2015 a J (…) – Sociedade Unipessoal, Lda. já se encontrava numa situação de insolvência.

- Quando se apresentou ao PER já se encontrava numa situação de insolvência.

- A Insolvente nunca teve intenção de apresentar um plano de recuperação no PER identificado em 9 dos factos provados, ou sequer de negociar com os seus credores.

- A instauração do PER visou apenas deixar os credores numa posição desfavorável e desprovidos de qualquer satisfação dos créditos respectivos.

- A ora Insolvente dispunha de património capaz de solver parte das dívidas apresentadas.

- A insolvente dissipou o veículo referido em 7.

- A J (…), S.L. absorveu os ativos e o capital da Insolvente, deixando esta descapitalizada.

- O gerente da Insolvente bem sabia que jamais teria capacidade/dotação para liquidar as dívidas contraídas.

- Após a declaração de insolvência, o AI deslocou-se às instalações da Insolvente e constatou que os números de telefone fixo e móvel estavam fora de serviço/inactivos.

- Não houve da parte do gerente da Insolvente qualquer colaboração com o Administrador da Insolvência no sentido de facultar documentos ou elementos e não lhe foi facultada a contabilidade da sociedade.

- Não foi apresentado plano de recuperação no âmbito do PER porque o credor A (…)nunca viabilizaria a sua aprovação.

- A insolvente encerrou subitamente as suas instalações.

- Em 17 de Fevereiro de 2017 existia um camião carregado com plantas pronto a rumar à Espanha, o que aconteceu.

- O gerente da insolvente apropriou-se do dinheiro da sua venda.

A. Incorrecta análise e apreciação da prova, relativamente aos factos constantes dos itens 10.º e 21.º, dos factos provados, que devem passar a considerar-se como não provados e alíneas b), c), d) e h), dos não provados, cuja factualidade deve passar a ser considerada como provada.

Alega o credor A (…), ora recorrente, que o Tribunal incorreu em erro de julgamento ao dar como provados e não provados os factos ora referidos, devendo, na sua óptica, os mesmos serem dados como não provados e provados, em consonância com o que alega em recurso e acima reproduzido, estribando-se, para tal, nos depoimentos prestados pelas testemunhas (…)

Posto isto, e em tese geral, convém, desde já, deixar algumas notas acerca da produção da prova e definir os contornos em que a mesma deve ser apreciada em 2.ª instância.

Toda e qualquer decisão judicial em matéria de facto, como operação de reconstituição de factos ou acontecimento delituoso imputado a uma pessoa ou entidade, esta através dos seus representantes, dependente está da prova que, em audiência pública, sob os princípios da investigação oficiosa (nos limites e termos em que esta é permitida ao julgador) e da verdade material, se processa e produz, bem como do juízo apreciativo que sobre a mesma recai por parte do julgador, nos moldes definidos nos artigos 653, n.º 2 e 655, n.º 1, CPC – as já supra mencionadas regras da experiência e o princípio da livre convicção.

Submetidas ao crivo do contraditório, as provas são pois elemento determinante da decisão de facto.

Ora, o valor da prova, isto é, a sua relevância enquanto elemento reconstituinte dos factos em apreço, depende fundamentalmente da sua credibilidade, ou seja, da sua idoneidade e autenticidade.

Por outro lado, certo é que o juízo de credibilidade da prova por declarações, depende essencialmente do carácter e probidade moral de quem as presta, sendo que tais atributos e qualidades, como regra, não são apreensíveis mediante o exame e análise das peças ou textos processuais onde as mesmas se encontram documentadas, mas sim através do contacto directo com as pessoas, razão pela qual o tribunal de recurso, salvo casos de excepção, deve adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido.

Quanto à apreciação da prova, actividade que se processa segundo as regras da experiência comum e o princípio da livre convicção, certo é que em matéria de prova testemunhal (em sentido amplo) quer directa quer indirecta, tendo em vista a carga subjectiva inerente, a mesma não dispensa um tratamento a nível cognitivo por parte do julgador, mediante operações de cotejo com os restantes meios de prova, sendo que a mesma, tal como a prova indiciária de qualquer outra natureza, pode e deve ser objecto de formulação de deduções e induções, as quais partindo da inteligência, hão-de basear-se na correcção de raciocínio, mediante a utilização das regras de experiência e conhecimentos científicos, tudo se englobando na expressão legal “regras de experiência”.

Estando em discussão a matéria de facto nas duas instâncias, nada impede que o tribunal superior, fundado no mesmo princípio da livre apreciação da prova, conclua de forma diversa do tribunal recorrido, mas para o fazer terá de ter bases sólidas e objectivas.

Não se pode olvidar que existe uma incomensurável diferença entre a apreciação da prova em primeira instância e a efectuada em tribunal de recurso, ainda que com base nas transcrições dos depoimentos prestados, a qual, como é óbvio, decorre de que só quem o observa se pode aperceber da forma como o testemunho é produzido, cuja sensibilidade se fundamenta no conhecimento das reacções humanas e observação directa dos comportamentos objectivados no momento em que tal depoimento é prestado, o que tudo só se logra obter através do princípio da imediação considerado este como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes de modo a que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da decisão.

As consequências concretas da aceitação de tal princípio definem o núcleo essencial do acto de julgar em que emerge o senso; a maturidade e a própria cultura daquele sobre quem recai tal responsabilidade. Estamos em crer que quando a opção do julgador se centre em elementos directamente interligados com o princípio da imediação (v. g. quando o julgador refere não foram (ou foram) convincentes num determinado sentido) o tribunal de recurso não tem grandes possibilidades de sindicar a aplicação concreta de tal princípio.

Na verdade, o depoimento oral de uma testemunha é formado por um complexo de situações e factos em que sobressai o seu porte, reacções imediatas, o contexto em que é prestado o depoimento e o ambiente gerado em torno de quem o presta, não sendo, ainda, despiciendo, o próprio modo como é feito o interrogatório e surge a resposta, tudo isso contribuindo para a convicção do julgador.

A comunicação vai muito para além das palavras e mesmo estas devem ser valoradas no contexto da mensagem em que se inserem, pois como informa Lair Ribeiro, as pesquisas neurolinguísticas numa situação de comunicação apenas 7% da capacidade de influência é exercida através da palavra sendo que o tom de voz e a fisiologia, que é a postura corporal dos interlocutores, representam, respectivamente, 38% e 55% desse poder - “Comunicação Global, Lisboa, 1998, pág. 14.

Já Enriço Altavilla, in Psicologia Judiciaria, vol. II, Coimbra, 3.ª edição, pág. 12, refere que “o interrogatório como qualquer testemunho, está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá também aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras”.

Então, perguntar-se-á, qual o papel do tribunal de recurso no controle da prova testemunhal produzida em audiência de julgamento?

Este tribunal poderá sempre controlar a convicção do julgador na primeira instância quando se mostre ser contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos. Para além disso, admitido que é o duplo grau de jurisdição em termos de matéria de facto, o tribunal de recurso poderá sempre sindicar a formação da convicção do juiz ou seja o processo lógico. Porém, o tribunal de recurso encontra-se impedido de controlar tal processo lógico no segmento em que a prova produzida na primeira instância escapa ao seu controle porquanto foi relevante o funcionamento do princípio da imediação.

Tudo isto, sem prejuízo, como acima já referido, de o Tribunal de recurso, adquirir diferente (e própria) convicção (sendo este o papel do Tribunal da Relação, ao reapreciar a matéria de facto e não apenas o de um mero controle formal da motivação efectuada em 1.ª instância – cf. Acórdão do STJ, de 22 de Fevereiro de 2011, in CJ, STJ, ano XIX, tomo I/2011, a pág. 76 e seg.s e de 30/05/2013, Processo 253/05.7.TBBRG.G1.S1, in http://www.dgsi.pt/jstj.

Tendo por base tais asserções, dado que se procedeu à gravação da prova produzida, passemos, então, à reapreciação da matéria de facto em causa, a fim de averiguar se a mesma é de manter ou de alterar, em conformidade com o disposto no artigo 662.º, do CPC., pelo que, nos termos expostos, nos compete apurar da razoabilidade da convicção probatória do tribunal de 1.ª instância, face aos elementos de prova considerados (sem prejuízo, como acima referido de, com base neles, formarmos a nossa própria convicção).

Vejamos, então, a factualidade posta em causa pelos ora recorrentes, nas respectivas alegações de recurso.

A. Incorrecta análise e apreciação da prova, relativamente aos factos constantes dos itens 10.º e 21.º, dos factos provados, que devem passar a considerar-se como não provados e alíneas b), c), d) e h), dos não provados, cuja factualidade deve passar a ser considerada como provada.

Para melhor esclarecimento e facilitar a decisão desta questão, passa-se a transcrever o teor de tal factualidade:

“10. No âmbito de diligência executiva no processo referido em 8, a Insolvente propôs-se pagar determinada quantia o que não veio a acontecer.

21. A impossibilidade de a Insolvente cumprir as suas obrigações vencidas resultou da diminuição do volume de negócios, da falta de financiamento, de créditos incobráveis e de excessivo endividamento

Factos não provados.

- Quando se apresentou ao PER (a J (…)) já se encontrava numa situação de insolvência.

- A Insolvente nunca teve intenção de apresentar um plano de recuperação no PER identificado em 9 dos factos provados, ou sequer de negociar com os seus credores.

- A instauração do PER visou apenas deixar os credores numa posição desfavorável e desprovidos de qualquer satisfação dos créditos respectivos.

- O gerente da Insolvente bem sabia que jamais teria capacidade/dotação para liquidar as dívidas contraídas.”.

Como acima já referido e consta da sentença recorrida, a matéria de facto em causa foi considerada como provada e não provada, conforme ora se transcreveu.

É a seguinte a respectiva motivação (cf. fl.s 150 e 151):

“Os factos considerados provados resultaram da análise dos documentos juntos aos autos, designadamente, dos constantes do processo principal (parecer do Sr. Administrador Judicial provisório; sentença que declarou a insolvência; e relatório do Sr. Administrador da Insolvência), bem como do apenso de reclamação de créditos. Consideraram-se ainda os documentos constantes do PER apenso aos presentes autos.

Do presente apenso consideraram-se os seguintes documentos:

- Peças processuais da execução nº6423/16.6T8VIS em que foi exequente o credor Requerente e executada a ora insolvente e que correu termos no Juízo de Execução de Viseu, designadamente, a ordem de pagamento a favor do exequente emitida em 24 de Março de 2017 pelo montante de €4.993,81 (fls. 43), a citação da Segurança Social para reclamação de créditos (fls. 45 verso e 46), o auto de penhora de bens móveis –plantas, lavrado em 28 de Março de 2017 (fls. 47 a 50 verso), e o requerimento do exequente pedindo a venda antecipada dos bens penhorados e despacho que sobre tal requerimento incidiu (fls. 51 a 53);

- Peças processuais da execução nº220/17.9T8VIS em que foi exequente o credor Requerente e executada a ora insolvente e que correu termos no Juízo de Execução de Viseu, designadamente, os documentos relativos às frustradas tentativas de penhora de veículos em 31 de janeiro, 17 de Fevereiro e 08 de Março de 2017 (fls. 43 verso);

- O auto de diligência constante da execução nº317/17.5T8VIS em que foi exequente o credor Requerente e executada a ora insolvente e que correu termos no Juízo de Execução de Viseu, no qual a Sra. Agente de execução descreve as vicissitudes da diligência para penhora de bens que teve lugar em 17 de Fevereiro de 2017 (fls. 53 verso e 54);

- Certidão da matrícula da insolvente, da qual se constata, entre outros factos, quem é o sócio e gerente, em que data a sociedade foi constituída, em que data foi nomeado administrador judicial provisório no âmbito do PER, e data do último depósito das contas aprovadas (fls. 67 a 69 verso);

- A IES da sociedade insolvente relativa ao exercício de 2016 (fls. 70 a 99);

- Peças processuais da execução nº4815/16.0T8VIS em que foi exequente a C (…)CRL e executada a ora insolvente e outros que correu termos no Juízo de Execução de Viseu, designadamente, o documento relativo à penhora de veículos em 20 de Fevereiro de 2017 (fls. 99 verso e 100);

- O documento relativo ao requerimento da J (…) SL, datado de 19 de Dezembro de 2013, para cessação de actividade em Espanha, país em que esta sociedade se encontrava matriculada (fls. 103 verso e 104)

- Facturas de aquisições recíprocas entre o credor requerente do incidente e a insolvente (fls. 104 verso a 109);

- O relatório contabilístico da sociedade (fls. 109 verso a 112 verso);

- A carta enviada à C (…) em Março de 2016, dando conta das dificuldades de tesouraria pela utilização da conta de depósitos á ordem da insolvente (fls. 115)

- Os balanços, balancetes e demonstração de resultados relativos aos exercícios de 2016 e 2017 (fls. 116 a 134);

- A impugnação deduzida pela insolvente contra o reconhecimento do crédito do Requerente no âmbito do PER 1932/17.2T8VIS (fls. 140 a 142 verso); e

- A decisão proferida no PER 1932/17.2T8VIS pela qual se condenou a Devedora como litigante de má fé (fls. 143 e 144).

Estes documentos foram analisados nas suas ligações recíprocas, e também no confronto com os depoimentos prestados em audiência de discussão e julgamento, designadamente:

Declarações do Sr. Administrador da Insolvência .

Relatou a sua actividade no âmbito do PER, designadamente os contactos efectuados com o legal representante da Insolvente, o qual lhe relatou as diligências executivas de que foi alvo e que determinaram a sua apresentação a PER.

Após a declaração da insolvência não conseguiu contactar o gerente da insolvente, tendo tentado através do telefone e por intermédio dos seus colaboradores que lhe prestaram essa informação. Não teve a iniciativa de enviar ao gerente qualquer comunicação escrita.

Referiu-se às diligências para apreensão de bens, designadamente, móveis e imóveis sujeitos a registo. Especificamente reportou-se à eventual apreensão de um tractor de matrícula (...) ER, segundo informação de um dos credores. Todavia, esse veículo não se encontrava registado a favor da insolvente à data da declaração de insolvência. Reportou-se ainda à insusceptibilidade de apreensão de bens penhorados no âmbito de execuções movidas contra a insolvente.

Referiu-se à situação de insolvência que, a seu ver, resultou da diminuição do volume de negócios e do excessivo endividamento.

Pronunciou-se sobre a viabilidade da aprovação de um plano de recuperação que não chegou a ser apresentado.

Testemunhas

A (…), agente de execução em três execuções instauradas pelo credor Requerente com a insolvente. Referiu-se aos títulos executivos (cheques) e aos bens penhorados nessas execuções. Referiu-se às vicissitudes da penhora com remoção a ter lugar no âmbito das execuções em que era agente de execução, e apontou a falta de colaboração do gerente da insolvente. Deslocou-se 3 vezes às instalações da insolvente, uma em Fevereiro de 2017, e duas em Março desse ano.

A (…), genro do credor Requerente e por isso conhece os factos. Descreveu a boa relação comercial existente até certa altura entre o Requerente e a Insolvente. Em 2011/2012 começaram a ocorrer atrasos nos pagamentos, sendo que só depois de colocaram os produtos no mercado é que pagavam ao fornecedor. Em 2015 o sogro apurou que a Insolvente já lhe devia quarenta e tal mil euros e começou a exigir o pagamento. A testemunha acompanhou as diligências de penhora e remoção de bens e viu quais os bens (tractor e outras viaturas) existentes nas instalações da Insolvente.

L (…), viveirista, o qual fornecia plantas à Insolvente. Tinha relações comerciais com esta desde 2006. A certa altura começaram a verificar-se atrasos nos pagamentos, sendo que em 2015/2016 deixou de fornecer. Nessa altura tinha um crédito de 90 e tal mil euros. Descreveu os bens utilizados pela insolvente na sua actividade.

J (…), o qual conhece o gerente da insolvente há muito tempo, também por este ser frequentador do seu restaurante. Trata-se do credor que subscreveu a declaração que deu início ao PER. Referiu-se ao facto de comprar plantas à Insolvente. O gerente da Insolvente referiu-se aos problemas financeiros da empresa e a testemunha ajudou-o emprestando-lhe dinheiro e permitindo que este tomasse algumas refeições no seu restaurante a crédito. Há cerca de 3, 4 anos, e por conta dessa dívida e para acerto de contas, acordaram que a testemunha adquiria umas alfaias e um tractor, o qual tinha pouco valor. Aproveitou o tractor para peças e restou mandou para a sucata. Referiu-se aos equipamentos que conheceu nas instalações da Insolvente.

M (…), contabilista certificado da Insolvente até 2017. Já em 2018 renunciou às suas funções. Disse que a Insolvente sempre manteve uma contabilidade organizada. Nunca foi contactado pelo AI. Foi ele que tomou a iniciativa de o contactar para lhe fornecer informação sobre a actividade da empresa. Referiu que as contas relativas ao exercício de 2016 foram elaboradas, sendo que os documentos de suporte se encontram no seu gabinete. Referiu-se ao património da sociedade, designadamente, ao registo contabilístico do tractor, o qual existia em 2016, mas que já não figura registado em 2017. Falou do diminuto valor desse património. Referiu-se à sociedade de direito espanhol J (…), S.L. e às vendas efectuadas para a Alemanha, e mencionou o encerramento dessa actividade. Referiu-se ainda à data a partir da qual pensa que as instalações encerraram. Referiu-se, também, às negociações com a Caixa Agrícola e ao seu malogro, e à consequente asfixia financeira, bem como os créditos que a Insolvente não conseguia cobrar de clientes alemães. Por fim falou das relações de deve e haver entre o credor Requerente e a Insolvente.”.

Vejamos, então, se dos depoimentos invocados pelo recorrente, e sem olvidar as considerações prévias, quanto a tal, já acima explanadas, existem motivos para que as supras mencionadas respostas sejam modificadas ou alteradas.

Ora, ouvido, na íntegra, o depoimento prestado pelo Administrador da Insolvência, J (…), o mesmo referiu que, já desempenhou as funções de administrador no PER, que resultou em insolvência, por não ter sido apresentado qualquer plano.

Referiu, ainda, que já na fase do PER “havia muito poucos bens, para serem apreendidos a favor da massa”. Tinha havido uma execução “em que se apreendeu o grosso dos bens que lá havia, que na sua maioria eram plantas que tinham que ser rentabilizadas rapidamente”. “Com a execução, a empresa ficou praticamente limpa”.

“Configurava-se uma situação de insolvência, face aos créditos reclamados e falta de bens”.

Relativamente ao veículo de matrícula (...) ER, referiu que quando iniciou funções “não havia nenhum veículo, com esta matrícula, registado a favor da insolvente”.

Inquirido pelo M.mo Juiz a quo, acerca das causas da insolvência, referiu que em face das informações que havia e atento o valor dos créditos, designadamente da C (…) “resultava que havia um deficit de vendas, ou seja, a possibilidade do mercado rentabilizar as vendas da insolvente não tinha um significado, não tinha um valor, comparável ou que tivesse algum equilíbrio com os créditos que tinha contraído”.

Foi informado pelo gerente da insolvente a possibilidade de fornecimento para a cadeia “Continente”, com produto próprio e relançar a empresa em França, mas “objectivamente resultava que estava numa situação de incapacidade para superar o passivo”. Até porque os viveiros já estavam desactivados.

Acrescentou que como causas da insolvência, estará “alguma retracção comercial do mercado, algum endividamento e perda de clientes, vender menos. Foi uma destas possibilidades”. “Vendia menos do que num passado recente”.

Inquirido acerca da questão de saber se a situação de insolvência já se verificava à data da propositura do PER, respondeu “Não posso precisar, já havia indícios. Sem uma retaguarda de algum activo e com aquele passivo, não era já de todo uma situação de insolvência, mas já havia indícios que a insolvência pudesse fazer a sua aparição”.

Referiu, ainda, que não foram apreendidos bens, porque as instalações não eram da insolvente.

Precisou que a C(…)detinha mais de 50% dos créditos reclamados. E que o plano não chegou a ser apresentado no PER.

Instado para precisar o momento temporal em “que ocorreu a queda da insolvente”, referiu “em momentos temporais não consigo precisar”.

A testemunha A (…), referiu que exerceu as funções de agente de execução, em três execuções que foram movidas contra a insolvente, a 1.ª em finais de 2016 e as demais, no início de 2017.

Relatou as diligências que efectuou, tendo logrado, na 1.ª penhorar um saldo bancário e noutra um veículo “não localizado” e na 3.ª, várias plantas, numa fase em que já existia o PER.

Tentou averiguar do destino do referido veículo “mas não consegui, não se encontrava nas instalações”.

Uma das vezes que foi às instalações da insolvente, referiu que viu lá plantas que estavam para ir para a Alemanha e quando lá voltou, já lá estavam “muito menos plantas”.

Aquando da realização da penhora, retratada no auto aqui junto a fl.s 53 v.º, referiu, “nunca vi nenhuma quantia em dinheiro. Houve conversas entre os advogados, mas nunca vi a quantia. Estive lá até às 21 horas à espera do advogado do insolvente, mas nunca apareceu”.

Relevantes, ainda, os documentos referidos em sede de fundamentação de facto na sentença recorrida, acima transcritos, na medida dos factos que a cada um deles respeitam.

Analisados estes depoimentos e demais referidos elementos probatórios, designadamente, os documentais acima referidos, pensamos ser de sufragar, no essencial, a conclusão a que se chegou na sentença recorrida.

A matéria de facto colocada em crise no presente recurso, a questão que, nesta sede, verdadeiramente, importa decidir, é a de saber qual a causa provável do estado de insolvência em que caiu a ora recorrida, bem como em que momento temporal se verificou/consumou o estado de insolvência; designadamente se o mesmo já existia à data em que foi instaurado o PER e se este foi intentado de forma séria ou apenas com o objectivo de prejudicar os credores, “escondendo” a real situação – de insolvência – em que a requerente do PER já se encontrava.

Para além disto, a questão lateral, referida no item 10.º dos factos provados; isto é, se no âmbito da penhora aí relatada, foi apresentada o pagamento de determinada quantia monetária, o que não veio a concretizar-se.

Desde já adiantando a solução, repete-se, não vemos razões para discordar, no que se refere ao essencial – causas da insolvência e se a mesma já se verificava aquando da propositura do PER – da conclusão a que se chegou na sentença em análise.

Efectivamente, no que se refere aos factos descritos no item 21.º dos factos provados (sendo que, quanto a tal, dado que o recorrente alega não se tratar de verdadeiros factos, cumpre referir que se trata de uma conclusão de facto, portanto, ainda, a nível da fixação da matéria de facto atinente e, por isso, passível de ser tida em conta), não vemos razões para alterar a respectiva redacção.

Concomitantemente, valem as considerações que passamos a expor, igualmente, para manter como não provada a factualidade descrita nas respectivas alíneas B), C), D) e H).

Quanto a tal, para além dos referidos elementos documentais, só temos o depoimento prestado pelo A.I., (…)

Ora, o mesmo referiu que o PER não teve êxito porque não foi apresentado qualquer plano, o qual, sempre, dependia do acordo da C(…) – dada a posição maioritária desta no conjunto dos créditos reclamados – para ser aprovado.

Como acima se referiu, directamente questionado acerca de se saber se a insolvência já se verificava quando foi instaurado o PER, disse que “não era já de todo uma situação de insolvência, mas já havia indícios que a insolvência pudesse fazer a sua aparição”.

Assim sendo, não se pode dizer que já assim sucedia, não obstante a situação da empresa não fosse boa. Mas, se assim fosse, também não era necessário o recurso ao PER, o qual, igualmente, pressupõe uma “situação económica difícil ou situação de insolvência meramente iminente” – cf. artigo 17.º-A, do CIRE, que se traduz em dificuldades em cumprir as suas obrigações, por falta de liquidez ou não conseguir crédito, cf. seu artigo 17.º-B.

Especificando, até, que não conseguia precisar o momento temporal em que se verificou a “queda da insolvente”, como acima já referido. Adiantando que, na sequência da penhora efectuada numa das execuções – o que aconteceu em 28 de Março de 2017, cf. item 7.º dos factos provados – “a empresa ficou praticamente limpa”.

No que se refere às causas da insolvência, como acima, igualmente, se mencionou, apontou a diminuição das vendas, que impossibilitaram a possibilidade da sua rentabilização, por comparação com o passivo da empresa, o que designou por “retracção comercial do mercado”, “perda de clientes”, por comparação ao seu endividamento.

Acrescentou que “foi uma destas possibilidades” que causou a insolvência. A empresa passou a “vender menos do que num passado recente”.

A tudo isto, há que somar a “aventura comercial” em Espanha, que correu mal, como se infere do que consta dos itens 3.º a 5.º, dos factos provados.

De tudo o que disse testemunha ora em referência, também não pode resultar provada a factualidade descrita nas referidas alíneas dos factos tido como não provados.

Efectivamente, não está demonstrado que quando foi instaurado o PER, já se verificava a insolvência, nem que este teve em vista os objectivos ali referidos. É certo que não foi apresentado qualquer plano, mas nada permite concluir que isso obedeceu a uma estratégia delineada logo de início por parte da requerente do PER.

A não apresentação do plano pode ter sido motivada por variadas razões, mas nada, de concreto, apontou para que essa fosse uma intenção, desde início, assumida pela requerente.

Assim e em conclusão, no que se refere aos factos descritos no item 21.º dos factos provados e alíneas B), C), D) e H), dos factos não provados, mantém-se a respectiva redacção.

Já no que concerne à factualidade descrita no item 10.º, dos factos provados, reconhecemos razão ao recorrente,

Efectivamente, a única testemunha que se referiu a tal factualidade, foi a agente de execução, A (…), que relatou a forma como decorreu a tentativa de penhora, com remoção de bens, de forma coincidente com o relatado no respectivo auto, aqui junto a fl.s 53 v.º.

Ora, lendo este auto, no mesmo nada se refere relativamente à proposta de entrega de uma determinada quantia pecuniária, apenas nele se referindo a existência de conversações entre as partes “durante algumas horas” e que “cerca das 18h e 30 m”, o “Dr. (…)comunica a todos os presentes que vai buscar a totalidade da quantia exequenda e demais despesas, em dinheiro, para entregar à signatária de forma a por cobro à penhora, devendo todos os presentes aguardar”.

Mais ali se refere que estiveram à espera até às 21 horas, mas “O dito Dr. (…) até àquela hora, nunca regressou ao local, ou sequer telefonou a dizer que não vinha, ou que não tinha conseguido obter o dinheiro”.

Inquirida, directamente, na audiência de julgamento, acerca de tal proposta de pagamento, confirmou “a existência de conversas entre os advogados, mas nunca vi a quantia”.

Pelo que, não se pode dar como provada a existência de tal proposta de pagamento, “em determinada quantia”, para além das referidas conversações, o que acarreta que se elimine do elenco dos factos provados, a factualidade que consta do item 10.º dos factos provados.

Consequentemente, nesta parte, procede, parcialmente esta questão do recurso em apreço, eliminando-se do elenco dos factos provados, a factualidade que consta do respectivo item 10.º, mantendo-se inalterada toda a demais matéria de facto dada como provada e não provada na sentença recorrida.

B. Se a sentença recorrida padece da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC.

No que a esta questão respeita, alega o recorrente que a sentença padece da ora referida nulidade, com o fundamento em que, segundo o depoimento da agente de execução, em 17 de Fevereiro de 2017, havia muitas plantas nas instalações da insolvente, que foram transferidas de tais instalações, bem como o veículo (...) ER, pelo que o M.mo Juiz a quo devia enquadrar tal conduta na previsão do artigo 186.º, n.º 1, al. d), do CIRE.

O artigo 615, n.º 1, al. d), sanciona com a nulidade a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

Ou seja, a nulidade em causa, radica na omissão de pronúncia (não aprecia questões de que devia conhecer – 1.ª parte) ou no seu inverso, isto é, do conhecimento de questões de que não podia tomar conhecimento, por não terem sido postas em causa (2.ª parte).

Como decorre da análise da sentença recorrida, esta debruçou-se sobre todas as questões que lhe impunha conhecer e só destas, nos assinalados termos.

A questão de fundo que importa conhecer é a da qualificação da insolvência, o que se fez, mas em termos de que o recorrente discorda, o que não configura a aludida nulidade.

Ou seja, conheceu a sentença recorrida de todas as questões que havia que conhecer, no âmbito das respectivas alegações das partes processuais, sem que se tenha ultrapassado tal condicionalismo. Estamos no domínio da amplitude/abrangência da fundamentação (jurídica) da sentença, mas em que não se deixou de se conhecer o pedido formulado – qualificação da insolvência.

De resto, embora a questão do “desaparecimento” das plantas e do veículo já não se situe no plano formal da decisão, a mesma é, expressamente, referida na sentença recorrida – cf. último parágrafo de fl.s 154 e 1.º de fl.s 154 v.º – como não consubstanciando, como não integrando, pelas razões ali apontadas, a alínea a) do n.º 1, do artigo 186.º, do CIRE, pelo que, nem neste âmbito se pode falar em omissão da argumentação, quanto mais do conhecimento do pedido, que é a única questão que, para estes efeitos, releva.

Por outro lado, mais se reforça esta conclusão, porquanto compulsando a matéria provada, nada consta que possa corporizar, em termos de facto, a previsão da referida alínea d), o que, desde logo, afasta a sua previsão.

Sem esquecer que, como resulta do item 19.º, dos factos provados, não se apurou a existência de bens e a existência do aludido camião carregado com plantas, foi dada como não provada, contra o que o recorrente não reagiu, em sede de recurso da matéria de facto.

Relevante não é o que uma testemunha disse ou não disse, mas sim, a demonstração de um determinado facto relacionado com tal depoimento, que só mediante a impugnação de tal matéria em sede de recurso de facto, pode ser atacado, o que, reitera-se, não sucedeu, no que a tal factualidade concerne.

Consequentemente, não padece a sentença recorrida da apontada nulidade.

Pelo que, nesta parte, o presente recurso tem de improceder.

C. Se em face da factualidade dada como provada, a insolvência em apreço deve ser qualificada como culposa, sob pena de violação do disposto no artigo 186.º, n.os 1 e 3, al. b), do CIRE.

Relativamente à qualificação da insolvência, como fortuita ou culposa, que constitui a questão central do recurso, defende o recorrente que a mesma se tem de qualificar como culposa, porque o gerente da insolvente incumpriu o dever de se apresentar à insolvência, estado em que a sociedade já se encontrava quando foi instaurado o PER, o que era do seu conhecimento, servindo o PER apenas para ocultar tal estado e prejudicar os credores; bem como porque não depositou as contas do exercício relativas ao ano de 2016.

Ao invés, na sentença recorrida, qualificou-se como fortuita a insolvência em causa, por se considerar não estarem verificados os fundamentos previstos no artigo 186.º, n.º 2, al.s a), b), g), h) e j) e n.º 3, al.s a) e b), do CIRE.

Como resulta das conclusões da alegação do recorrente, este considera que se verificam os requisitos previstos nas alíneas a) e b), do n.º 3, do citado artigo 186.º.

Vejamos, então, como deve qualificar-se, no que a esta perspectiva se refere, a insolvência em apreço.

Notando-se, desde logo, que o objecto do recurso não sejam exactamente as alíneas referidas, quer em sede de alegação de recurso, quer na sentença, mas sim a qualificação da insolvência como culposa e a consequente afectação (nos termos do art. 189.º do CIRE) do gerente da insolvente; ou seja, para confirmar ou revogar tal qualificação culposa, podemos/devemos, em termos de direito, ir buscar regras diferentes das invocadas, atribuir às regras invocadas sentido diferente do que lhes foi dado ou fazer derivar das regras efeitos e consequências diversas das que foram tiradas (é o que resulta e está implícito no art. 5.º/3 do CPC).

Segundo o art. 186.º/1 do CIRE – “A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores[1], de direito ou de facto, nos 3 anos anteriores ao início do processo de insolvência”.

“Definição” esta que é complementada, nos n.º 2 e 3 do art. 186.º, por um conjunto de presunções (inilidíveis e ilidíveis) que facilitam a qualificação como culposa da insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular[2] sempre que os seus administradores, de direito ou de facto, tenham adoptado um dos comportamentos aí descritos.

Interpretando tal art. 186.º do CIRE, a jurisprudência vem entendendo[3] que as alíneas do n.º 2 correspondem a presunções (absolutas) de insolvência culposa; e começou por entender que as alíneas do n.º 3 apenas consagram presunções relativas de culpa qualificada (nos comportamento omissivos aí referidos), ou seja, para a insolvência ser dada como culposa com base no art. 186.º/3, seria necessário que a presunção de culpa qualificada não fosse ilidida e, ainda, que fosse feita a prova do requisito adicionalmente exigido pelo art. 186.º/1 do CIRE – o nexo de causalidade entre o facto omitido e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.

Posição, esta sobre o art. 186.º/3 do CIRE – que a jurisprudência maioritariamente começou por adoptar – de que nos afastamos, por tal preceito, assim interpretado, ser vazio de sentido útil[4]; razão porque – procurando encontrar o seu sentido útil e interpretando-o em conjunto e em harmonia com todo o art. 186.º do CIRE – entendemos que as presunções do art. 186.º/3 não podem ser consideradas simples presunções de culpa qualificada no facto praticado/omitido, tendo antes que ser vistas como presunções relativas (ilidíveis) de culpa qualificada na insolvência (o mesmo é dizer, presunções relativas de insolvência culposa)[5].

“Conjunto de presunções” que pela não homogeneidade dos comportamentos aí descritos (nos n.º 2 e 3 do art. 186.º do CIRE) nos deve fazer reflectir e concluir que não estão sempre em causa e enunciados em todas as alíneas do n.º 2 e 3 do art. 186.º comportamentos, directa e imediatamente ligados à criação ou agravamento da situação de insolvência.

Analisando as alíneas a) a g) do n.º 2 do art. 186.º vemos que estão em causa factos/actos[6] em que há um denominador comum de delapidação do património do devedor, em que existe (em abstracto) um nexo lógico entre os respectivos factos/actos e a criação ou o agravamento da situação de insolvência[7], em que, sendo assim, pode dizer-se que o legislador mais não fez do que mandar presumir a causalidade (que era latente) entre eles e a insolvência;

Ao invés, nas alíneas h) e i) do n.º 2 e nas duas alíneas do n.º 3 já não se consegue ver onde é que possa estar o nexo lógico, a conexão substancial entre o facto/acto que dá origem à presunção e a criação ou o agravamento da situação de insolvência; do que se trata, em tais alíneas h) e i) do n.º 2 e a) e b) do n.º 3, é de enunciar factos que fazem suspeitar a existência de outros factos relevantes para a situação de insolvência, ou seja, por outras palavras, os factos enunciados – a não organização ou desorganização da contabilidade, a falsificação dos respectivos documentos, a falta sistemática de comparência e de apresentação, aos órgãos processuais, dos elementos exigidos, o incumprimento do dever de apresentação à insolvência e a não elaboração e depósito das contas – fazem supor que, se assim se procedeu, é porque pode haver alguma coisa a esconder, é porque podem ter sido praticados actos que contribuíram para a insolvência e se quis/quer ocultá-los, sendo estes os factos (que se quis/quer ocultar e porventura causais da criação ou agravamento da situação de insolvência[8]) que estão implicitamente presumidos (ou, se preferirmos, ficcionados) nos factos enunciados em tais alíneas h) e i) do n.º 2 e a) e b) do n.º 3 e cuja verificação desencadeia a insolvência culposa.

Em síntese, os actos/factos constantes das alíneas h) e i) do n.º 2 e das alíneas a) e b) do n.º 3 são “estranhos” à ideia de nexo lógico, de conexão substancial, de relação causal entre eles e a criação ou o agravamento da situação de insolvência[9]; estando em causa, nas alíneas h) e i) do n.º 2 e nas alíneas a) e b) do n.º 3, o incumprimento/violação dos deveres específicos dos comerciantes (v. g. art. 18.º do C. Comercial) e dos deveres gerais dos insolventes (cfr. art. 83.º do CIRE), sendo em função da violação de tais deveres legais que a lei a supõe que foram praticados actos que contribuíram para a insolvência e se quis/quer ocultá-los, o que determina a aplicação do regime da insolvência culposa a estas situações.

Temos pois que a lei (art. 186.º do CIRE), além da cláusula geral contida no n.º 1 (em que define a insolvência culposa), enumerou, nos seus n.º 2 e 3, um conjunto de factos que desencadeiam como consequência a qualificação da insolvência como culposa; factos enumerados em que, “em vez de se limitar a desenvolver, casuisticamente, o enunciado geral [contido no n.º 1], acrescenta alguns casos de insolvência (…) que não se subordinam aos requisitos da noção geral de insolvência culposa – a sua submissão ao mesmo regime resulta de um juízo diferente ou de uma distinta valoração. Em síntese, as alíneas a) e g) são factos/actos que se reconduzem ainda à cláusula geral; havendo nos factos/actos apurados indícios sérios de que a insolvência se deve a tais actos/factos, não surpreendendo ou repugnando que consubstanciem presunções. Mas, nas alíneas h) e i) o caso é diverso. Só muito remotamente algum dos factos/actos pode ser considerado causa de insolvência ou mesmo do seu agravamento. Constituindo, por um lado, a violação de um dever específico do comerciante e, por outro lado, a violação de um dever elementar de todo o insolvente, é legítimo supor que houve culpa qualificada do sujeito – mas culpa qualificada no acto praticado ou omitido e não na insolvência, como é exigido pela norma geral do n.º 1. E, no entanto, desencadeiam os mesmos efeitos da insolvência culposa.

O legislador terá entendido submetê-los também ao regime da insolvência culposa não porque eles pudessem ser a causa (real ou presumível) da insolvência, mas porque a probabilidade de o sujeito ter praticado um acto ilícito gravemente censurável justificava submetê-los também. Na base desta opção legal está, portanto, como se disse, uma valoração diferente daquela que terá estado na origem da disciplina. Deve, por isso, considerar-se que a lei estabeleceu, nestes dois pontos, não presunções, mas – passe o paradoxo – verdadeiras ficções.[10]

Evidentemente, não o podemos ignorar, assim vistas as coisas, serão muitos os casos em que a insolvência será declarada culposa; uma vez que o insolvente tem que combater a presunção legal de insolvência culposa do n.º 3 ou, pior ainda, que se conformar com as consequências da insolvência culposa caso se verifique algum dos factos do n.º 2, em que a presunção é iuris et de iure.

Porém, a nosso ver, é mesmo este o sentido da lei.

Abarca os casos em que se verifica a culpa qualificada e o nexo de causalidade integrantes da noção de insolvência culposa, nos termos do art. 186.º/1; ou seja, os casos em que tenha havido uma conduta do devedor, ou dos seus administradores, de facto e de direito, que (a) tenha criado ou agravado a situação de insolvência, que (b) se trate de actuação dolosa ou com culpa grave, e que (c) tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo.

Além e fora disso, sujeita aos efeitos da insolvência culposa os casos em que se verifique alguma das situações/presunções constantes do n.º 2 e 3 do art 186.º do CIRE; presunções que também foram estabelecidas, para impedir que, devido à dificuldade de provar o nexo de causalidade, fiquem, na prática, impunes os devedores que violaram obrigações legais.

Solução, esta, porventura excessiva, especialmente quanto às alíneas h) e i) do n.º 2, em que não é detectável uma diferença sensível em relação às alíneas a) e b) do n.º 3 do art. 186.º (em que a presunção pode ser ilidida)[11]; razão pela qual – tendo isto presente, procurando aproximar as alíneas h) e i) do art. 186.º do tratamento das alíneas do n.º 3.º – entendemos que pode/deve ser colocada alguma exigência na preenchimento de tais alíneas h) e i), entendemos que pode/deve ser exigida alguma “densidade” factual para poder dar como satisfeitas/provadas as expressões “em termos substanciais”, “com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor” e “de forma reiterada”, constantes das alíneas h) e i) do n.º 2 do art. 186.º.

Aqui chegados, do que acaba de ser dito sobre o modo como interpretamos todo o art. 186.º do CIRE – consagrando as alíneas do n.º 2 presunções (absolutas) de insolvência culposa e as alíneas do n.º 3 presunções (relativas) de insolvência culposa[12] (e não meras presunções relativas de culpa grave, o que, como se referiu, esvaziaria a utilidade destas presunções) – irradia para o caso dos autos e do recurso o seguinte:

Relativamente ao n.º 3, alínea a) do artigo 186.º do CIRE, como acima já aflorado:

“Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular, tenham incumprido:

a) O dever de requerer a declaração de insolvência;”.

Na sentença recorrida, afastou-se a previsão de tal norma, nos seguintes termos:

“Há que analisar se o gerente incumpriu o seu dever de requerer a insolvência a sociedade.

Para isso, e perante os factos provados, temos que concluir em primeiro lugar em que momento a sociedade estava numa situação em que não conseguia cumprir as suas obrigações vencidas. De todos os factos provados surge com maior relevância o facto de existirem acções executivas onde, apesar (aí sim) da falta de colaboração do gerente da executada, se haverem penhorados bens. Nessa altura a empresa encontrava-se em laboração. Com segurança não se pode dizer que a J (…), Lda. se encontrava insolvente, nem em 2015, nem à data da apresentação a PER em Abril de 2017.

Assim, surge com alguma normalidade a apresentação a PER. Com efeito, o gerente constatando a situação económica difícil em que a sociedade se encontrava procura estabelecer negociações com os credores visando a aprovação de um plano de recuperação. Estranha-se a não apresentação de um plano de recuperação que pudesse ser aceite pela maioria de créditos necessários. Todavia, daqui não se segue necessariamente que o gerente da insolvente não tivesse ab initio vontade de revitalizar a sociedade.

A nosso ver, a paralisação da actividade da sociedade (eventualmente antes da apresentação a PER) e frustração das negociações e da aprovação do plano são a causa próxima da situação de insolvência. Assim, o gerente da insolvente tinha a obrigação de apresentar a sociedade à insolvência no momento em que constatou que as negociações não haviam produzido o resultado querido: aprovação de plano de recuperação. Contudo, o desfecho do PER nas circunstâncias descritas levaria necessariamente á declaração de insolvência. Compreende-se, por isso, que o gerente nada tenha feito posteriormente à não apresentação do plano de recuperação.

Concluímos, portanto, que o gerente da insolvente não incumpriu o dever de requerer a insolvência da J (…)s – Sociedade Unipessoal, Lda.

Concordamos com tal conclusão, atento a que nos termos da interpretação supra efectuada deste preceito (186.º/3 a) do CIRE), presume-se a insolvência culposa quando o administrador, de direito ou de facto, tenha incumprido o dever de requerer a declaração de insolvência.

De acordo com o art. 18º/1 do CIRE, em conjugação com o art. 3º/1 do mesmo diploma, o devedor/comerciante deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, ou à data em que devesse conhecê-la.

Exige pois a aplicação deste normativo legal a demonstração do início da situação de insolvência; só com a determinação deste facto é que se poderá delimitar o prazo de que o devedor dispunha para cumprir o dever referido.

Como já referido aquando da análise do presente recurso, em sede de matéria de facto, não logrou apurar-se em que momento é que verifica a situação de insolvência da requerente do PER.

Ora, cf. item 16.º, só em 03 de Dezembro de 2017 é que o A.I. apresentou um requerimento em que se referia o estado de insolvência da requerente, que veio a ser declarada em 31 de Março de 2018 (cf. item 17.º) e o PER havia sido requerido em 25 de Abril de 2017 (cf. item 11.º).

Sendo que não resultou provado que quando da propositura do PER já existia tal situação de insolvência.

As razões pelas quais não foi apresentado qualquer plano no PER, não resultam apuradas.

O certo é que logo após ter sido anunciada a situação de insolvência, o PER transformou-se, nos termos legais, em processo de insolvência, tendo esta sido declarada na data acima já referida.

Em conclusão e em síntese, não resulta dos factos provados da sentença que, quando foi requerida a insolvência (ou o PER), exercendo o recorrido as suas funções de gerente da insolvente já esta, há mais de 30 dias, se encontrava em situação de insolvência, pelo que, nos termos do art. 186.º/3 a) do CIRE, não se lhe pode assacar o incumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência, que, esse, sim, faz presumir a insolvência culposa; por outro lado, onerando tal presunção (ilidível) o recorrido – que se podia “livrar” da qualificação da insolvência como culposa com a prova de que não foi a sua conduta ilícita e culposa que deu causa à insolvência, mas sim uma outra razão, externa ou independente da sua vontade, logrou fazê-lo, uma vez que cf. itens 3.º a 5.º e 21.º, dos factos provados, resulta demonstrado que a impossibilidade de o insolvente cumprir as suas obrigações vencidas, resultou da diminuição do volume de negócios, da falta de financiamento, de créditos incobráveis e de excessivo endividamento.

Ou seja, a demonstração de tal factualidade, ilide tal presunção, que assim não subsiste e não funciona, o mesmo é dizer, que impõe que, também por referência ao artigo 186.º, n.º 3, al. a), do CIRE, se mantenha a qualificação da insolvência como fortuita, por força da natureza/interpretação acima feita acerca das várias situações previstas no artigo 186.º do CIRE.

Neste sentido, veja-se o Acórdão do STJ, de 23 de Outubro de 2018, Processo n.º 8074/16.6T8CBR-D.C1.S2, disponível no respectivo sítio do itij, onde se refere que o n.º 3 do artigo 186.º do CIRE, deverá ser interpretado do seguinte modo:

“em qualquer das suas alíneas deve entender-se que, sob pena de perder grande parte da sua utilidade, ele consagra não (…) meras presunções (relativas) de culpa grave na prática do facto em que assenta a presunção, mas autênticas presunções (sempre relativas) de culpa grave na criação ou no agravamento da insolvência (ou presunções de insolvência culposa)

(…)

Existem todas para impedir que, devido à dificuldade de prova do nexo de causalidade, fiquem, na prática, impunes os sujeitos que violem certo tipo de deveres.”.

Acrescentando que:

“caberá aos interessados no afastamento da insolvência como culposa (…) provar a ausência dos requisitos da insolvência culposa exigidos pela norma do artigo 186.º, n.º 1 do CIRE, sendo suficiente a prova da ausência de qualquer deles (por exemplo, a culpa grave, para que a insolvência tenha de ser qualificada como fortuita.”.

Relativamente à alínea b), do n.º 3, do artigo 186.º do CIRE, consta da sentença recorrida o seguinte:

“Todavia, tem-se vindo a afirmar uma tendência3 que considera que as duas alíneas do nº3 do art. 186º consagram também uma presunção de insolvência culposa (abrangendo não só a culpa, mas também a agravação e a criação da situação de insolvência e o respectivo nexo causal). A diferença é a de que aqui se trata de uma presunção relativa, que admite prova em contrário, ao contrário do que sucede com as alíneas do nº2.

Ora, no caso em apreço, já se constatou que o gerente não cumpriu o dever de depositar as contas anuais do exercício de 2016. Este facto é, nesta perspectiva que tendemos a aceitar como mais adequada à coerência sistemática do instituto e mais potenciadora da sua eficácia, uma presunção iurus tantum de insolvência culposa.

Competiria, assim, ao Requerido, gerente da insolvente, alegar factos que demonstrassem que, não obstante o facto presuntivo, a situação de insolvência ocorreu por causas relativas à própria actividade comercial e industrial da sociedade (concorrência, flutuações do mercado, dificuldades logísticas inesperadas, decisões estratégicas que se vieram a revelar erradas, e outras).

Ora, a prova que foi feita (e a que temos de atender considerando o princípio de aquisição processual consagrado no art. 413º do C.P.C.), remete-nos para a conclusão que a insolvência ocorre por diminuição do volume de negócios, falta de financiamento, créditos incobráveis e excessivo endividamento. Todas estas são circunstâncias “normais” da vida comercial que sendo eventualmente imputáveis à incompetência e negligência do gerente, não permitem concluir que o gerente criou ou agravou a situação de insolvência pela sua actuação dolosa ou gravemente negligente.

Assim, concluímos que a insolvência deverá ser qualificada como fortuita.”.

Valem aqui mutatis mutandis as considerações expostas aquando da análise da previsão da alínea a), do n.º 3, do artigo 186.º do CIRE.

É certo que não se procedeu ao depósito das contas relativas ao exercício relativo ao ano de 2016, em desconformidade com o disposto nos artigos 70.º do CSC e 53.º-A, n.º 5, al. a), 3.º, n.º 1, al. n) e 15.º, n.º 1, do Código de Registo Comercial.

No entanto, como acima já referido, as causas da insolvência da sociedade que era gerida pelo recorrido, são as referidas no item 21.º dos factos provados, em face do que, pelas razões já acima apontadas, foi afastada a presunção derivada do preceito em apreço, pelo que, nos termos expostos, a insolvência em análise, tenha de ser qualificada, como o foi, como fortuita.

Afastada a presunção (relativa) de culpa grave na prática do facto em que assenta a presunção e provados os factos, diferentes, que motivam a situação de insolvência, afastada fica, igualmente, a demonstração dos respectivos requisitos da insolvência culposa.

Assim e concluindo, também, quanto a esta questão, improcede o recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas pelo apelante.

Coimbra, 10 de Dezembro de 2019.

Arlindo Oliveira ( Relator )

Emídio Santos

Catarina Gonçalves


[1] Cfr. art. 6.º do CIRE.
[2] Sem prejuízo do 186.º/4 mandar aplicar, “com as necessárias adaptações”, os n.º 2 e 3 à actuação da pessoa singular.
[3] Cfr., v. g., Ac. Rel. de Guimarães de 12/03/2009, in CJ online, ref. 5220/2009; e Ac. Rel. de Coimbra de 20/04/2010, in CJ online, ref. 3246/2010, e de 08/02/2011, in CJ online, ref. 741/2011.

[4] Desde logo por entre os factos omitidos referidos nas alíneas a) e b) do art. 186.º/3 do CIRE (incumprimento do dever de apresentação à insolvência e incumprimento do dever de elaboração e depósito das contas) e a criação ou o agravamento da situação de insolvência não ser vislumbrável, em abstracto, a possibilidade de vir a existir um nexo lógico ou uma qualquer conexão, o que, evidentemente, tornaria inatingível a prova, em concreto, do nexo de causalidade exigido e redundaria – exigindo-se a prova de tal nexo causal – na inutilidade e no esvaziamento do art. 186.º/3 do CIRE (enquanto enumeração de actos/factos susceptíveis de desencadear como consequência a qualificação da insolvência como culposa).
[5]Existem para impedir que, devido à dificuldade de provar o nexo de causalidade, fiquem, na prática, impunes os sujeitos que violaram obrigações legais. Oneram-se, assim, estes sujeitos com a prova de que não foi a sua conduta ilícita (e presumivelmente culposa) que deu causa à insolvência ou ao respectivo agravamento, mas sim uma outra razão, externa ou independente da sua vontade – por exemplo a conjuntura económica ou as condições de mercado” - Cfr. Catarina Serra, in Cadernos de Direito Privado, n.º 21, Janeiro/Março de 2008, pág. 69
[6] Que, no contexto da insolvência de um devedor que não seja pessoa singular, se configuram como infracções ao dever geral de fidelidade consagrado no art. 64.º/1/b) do CSC.
[7] Como é evidente, a delapidação de património causa ou pode causar, pela diminuição de recursos que gera, impossibilidades de cumprimento e/ou activos manifestamente inferiores ao passivo (cfr. art. 3.º/1 e 2 do CIRE).
[8] Como refere Catarina Serra, local citado, pág. 65, “entre o facto conhecido – não organização ou desorganização da contabilidade e a falsificação dos respectivos documentos, a falta sistemática de comparência e de apresentação, aos órgãos processuais, dos elementos exigidos – e o facto desconhecido ou presumido – insolvência culposa – interpõe-se um outro que não chega a ser conhecido”.

[9] É também e justamente por isto que dissemos que a exigência da prova do nexo causal entre os factos do n.º 3 e a criação ou agravamento da situação de insolvência redundaria na inutilidade e no esvaziamento do art. 186.º/3 do CIRE.
[10] Catarina Serra, local citado, pág. 68/69.
[11] Efectivamente, não existindo nas alíneas h) e i) do art. 168.º/2 do CIRE um nexo lógico ou uma conexão substancial entre o acto/facto aí referido e o facto presumido (insolvência culposa), parece que, também aqui, devia ser concedida a possibilidade do devedor se defender mostrando que a sua conduta, apesar de ilícita e culposa não causou a insolvência.
[12] Neste sentido, Ac. Rel. do Porto de 05/02/2009, in CJ online, ref. 2737/2009, e Ac. Rel. de Coimbra de 26/01/2010; e, na doutrina, além de Catarina Serra, locais citados, Cassiano Santos, Direito Comercial, Vol. I, pág. 214/5, e Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, pág. 34.