Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1784/05.5TBGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERREIRA DE BARROS
Descritores: DECLARAÇÃO NEGOCIAL
INTEGRAÇÃO DO NEGÓCIO
Data do Acordão: 04/29/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 236.º; 237.º; 238.º; 239.º ; 393.º DO CÓDIGO CIVIL E 664.º O CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1. A integração da declaração negocial ocorre quando existe uma lacuna, um caso omisso ou um minus cogitatum nas estipulações negociais, não tendo as partes incluído no negócio jurídico, podendo fazê-lo, a regulamentação de certas questões que se relacionam com a composição de interesses nele consubstanciada.
2. A integração da declaração negocial como operação intelectual destinada a suprir lacunas da declaração negocial surge depois da interpretação, lidando esta figura com o quid dictum, ou seja, a determinação do sentido do negócio ou da vontade das partes.
3. A integração da declaração negocial faz-se de acordo com os parâmetros definidos no art. 239º do Código Civil, mas sem nunca substituir ou alargar o objecto material do negócio.
4. O Tribunal é livre na qualificação jurídica dos factos, sendo a este lícito concluir que a definição do direito passa pela interpretação e não pela integração da declaração negocial, como é defendido pela parte.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:


I)- RELATÓRIO


A.....instaurou, no Tribunal Judicial da Guarda, acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra B....., pedindo a condenação da Ré a reconhecer que a garagem independente localizada na 3.ª cave junto à parede do lado norte do prédio urbano que identifica e desenhada na planta datada de Novembro de 1998 no canto inferior esquerdo, pertence ao andar do Autor (1.º andar esquerdo, fracção G).
Para tanto, o Autor alegou, em síntese, o seguinte:
- Celebrou com a Ré um contrato-promessa de compra e venda, no mês de Março de 2000, comprometendo-se a comprar um apartamento T2 localizado no 1º piso de um prédio que estava a ser construído pela Ré, incluindo uma garagem localizada na 3ª cave.
-Antes da celebração desse contrato escrito, ficou acordado verbalmente com a Ré que a garagem estava situada junto à parede norte do prédio, desenhada numa planta, exibida ao Autor, no canto inferior esquerdo.
-A escritura definitiva veio a ser celebrada em 31.10.2002, tendo sido entregue pela Ré o apartamento e a garagem correspondente conforme acordado.
-Passadas algumas semanas, a Ré informou o Autor que a garagem vendida não era aquela, mas uma outra.
-Em 20.11.2004 foi citado em acção proposta por condómina da fracção K, reivindicando como sua a garagem que fora vendida ao Autor.
-Nem as escrituras de compra e venda das fracções G e K, nem a escritura de constituição da propriedade horizontal, identificam de forma exacta e precisa a localização das garagens, e designadamente que à fracção K deva corresponder a garagem encostada à parede do lado norte do prédio e que vendida ao Autor.

Regularmente citada, contestou a Ré, invocando a sua ilegitimidade, defendendo a intervenção processual, entre outros, da Câmara Municipal e todos condóminos do prédio. Nega alguma vez ter acordado com o Autor a promessa de venda e venda da garagem reclamada, sempre referindo que a garagem vendida ao Autor está localizada na 3ª cave do prédio e corresponde à segunda garagem a contar da parede do lado Norte, ou seja, a garagem a seguir à garagem atribuída à fracção K, esta sim localizada junto à parede lado Norte do prédio em regime de propriedade horizontal. A atribuição dessas garagens às fracções autónomas consta das plantas anexas à escritura de constituição de propriedade horizontal.
Concluiu pela absolvição da instância por ilegitimidade ou absolvição do pedido.

O Autor apresentou réplica, concluindo pela improcedência da excepção dilatória de ilegitimidade passiva.

No despacho saneador foi julgada improcedente a dita excepção e elaborados a matéria de facto assente e a base instrutória.

A Ré agravou daquela decisão, insistindo na ilegitimidade passiva, estando as alegações juntas a fls. 174 a 181.
Prosseguindo os autos a sua normal tramitação, foi, por fim, proferida sentença a julgar a acção improcedente e não provada, sendo a Ré absolvida do pedido.

Irresignado com tal decisão, apelou o Autor em defesa do total êxito da lide, tendo extraído da sua minuta de recurso as seguintes conclusões:
1ª-A presente acção tinha como pedido a integração do contrato-promessa e da escritura de compra e venda relativa à fracção do A., no que respeita à localização exacta da garagem que deve corresponder a essa fracção, nos termos do disposto no art. 239º do CC;
2ª-Salvo melhor opinião, o Tribunal a quo desviou-se do pedido e da causa de pedir, deixando assim de se pronunciar sobre o essencial, o que leva à nulidade da sentença nos termos do disposto no art. 668º, n.º1. alínea d) do CPC;
3ª-Para além dos factos que o Tribunal julgou provados, resulta do contrato-promessa, da escritura de propriedade horizontal, das plantas de Nov./98 e de Fev./02 e do doc. de fls. 280, respectivamente, que a garagem da fracção do A. deve ser a que se situa na 3ª cave do lado Norte, que essa garagem é independente (por contraposição com a garagem do 3º andar esquerdo que não refere se é ou não independente), o contrato-promessa ocorreu no dia 10 de Março de 2000 (e não em 10 de Set./00) data em que o A. pagou à Ré 2.000.000$00) a título de sinal e princípio de pagamento, a planta de Nov./98 não tem qualquer letra identificativa nas garagens e das 5 garagens na planta de Fev./02 só duas delas estão assinaladas com letras, tendo sido o representante da Ré, C....., quem desenhou ambas as plantas e colocou a letra K e G na planta de Fev./02 podendo fazer o inverso, factos estes que, por resultarem directamente dos citados documentos, salvo melhor opinião, deve o Tribunal da Relação dar estes factos como provados, ao abrigo do disposto no art. 712º, n.º1, alínea a) do CPC;
4ª-Em face dos factos dados como provados na 1ª instância, e dos factos a ser dados como provados pelo Tribunal da Relação, deve procede-se à integração do contrato promessa e da escritura de compra e venda relativa ao andar do A., por forma a neles se incluir a garagem independente localizada na 3ª cave junto à parede Norte desenhada nas plantas como sendo a do canto inferior esquerdo, sendo essa interpretação que melhor se coaduna com a vontade hipotética que o A. teria se tivesse previsto aquela omissão e também por ser esta interpretação que melhor conduz à boa fé do A. e com o teor dos citados documentos, critérios para que aponta o disposto no art. 239º do CC;
5ª-Decidindo como decidiu, a sentença recorrida fez uma errada interpretação dos factos e violou as disposições legais acima citadas.

Não foi apresentada contra-alegação.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II)- OS FACTOS

Na sentença impugnada foi dado por assente o seguinte quadro factual:
1-A Ré, no exercício da sua actividade de construção civil, no decorrer dos anos de 1999 a 2002, procedeu à construção de um edifício composto por 3 caves, rés-do-chão e 4 andares, sito na Av. Rainha D. Amélia, freguesia da Sé, na Guarda;
2-Em Março de 2000, quanto o referido edifício ainda se encontrava em tosco, o Autor esteve na obra com o propósito de ali adquirir um andar, tendo então falado com o sócio da Ré C.....;
3-Entre a sociedade B….., representada por C.....e D....., no dia 10 de Setembro de 2000, na Guarda, foi celebrado, por escrito particular, um contrato, denominado contrato promessa de compra e venda, nos termos do qual aquela sociedade prometeu vender a este, que prometeu comprar àquela, pelo preço de Esc. 19 500 000$, livre de quaisquer ónus ou encargos, o apartamento T2, localizado no 1º piso, e a respectiva garagem, localizada na 3ª cave, do edifício sito na Av. Rainha D. Amélia (junto ao edifício Vila Aradas, lado norte) – cf.. doc. de fls. 25;
4-Consignou-se, ainda, que naquela data a referida sociedade, como sinal e princípio de pagamento, recebeu do segundo outorgante a quantia de Esc. 2 000 000$,00, devendo a restante ser paga no acto da escritura – cf.. doc. de fls. 25;
5-Tal documento mostra-se assinado pelos dois outorgantes, embora sem reconhecimento notarial – cf. doc. de fls. 25;
6-Por escritura pública outorgada no dia 31/10/2002, na agência da Guarda do Crédito Predial Português, denominada de compra e venda, a sociedade B….., representada por C…., declarou que vendia a D....., que declarou comprar, pelo preço de € 69 831,71, a fracção autónoma designada pela letra “G”, correspondente ao 1º andar esquerdo, para habitação, com garagem “G” independente, na 3ª cave, do prédio urbano, constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida Rainha D. Amélia, na Guarda, omisso na matriz, descrito na Conservatória do Registo Predial da Guarda sob o n.º 2681 – cf. doc. de fls. 26 e 27;
7-Por escritura pública outorgada no Cartório Notarial da Guarda, no dia 30/9/2002, denominada de compra e venda, a sociedade B……, representada por C….., declarou que vendia a E..... que declarou comprar, pelo preço de € 74 819,68, a fracção autónoma designada pela letra “K”, correspondente ao 3º andar esquerdo, para habitação, com garagem “K” na 3ª cave, do prédio urbano, constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida Rainha D. Amélia, na Guarda, omisso na matriz, descrito na Conservatória do Registo Predial da Guarda sob o n.º 2681 – cf.. doc. de fls. 47 e 48;
8-Por escritura pública de constituição de propriedade horizontal, outorgada no 1º Cartório de Competência Especializada da Guarda, no dia 13/9/2002, a sociedade B....., representada por F....., declarou que é dona de um prédio urbano com a superfície coberta de 375 m2 e descoberta de 25 m2, sito na Avenida Rainha D. Amélia, freguesia da Sé, concelho da Guarda, composto de 3ª, 2ª e 1ª caves, rés-do-chão, 1º, 2º, 3º e 4º andares, omisso na matriz, descrito na Conservatória do Registo Predial da Guarda sob o n.º 2681, o qual se compões de 11 fracções independentes, isoladas e distintas entre si, com saída própria para uma parte comum ou para a via pública – cf.. doc. de fls. 49 a 54;
9-A sociedade B....., declarou em tal escritura que submetia o referido prédio ao regime de propriedade horizontal, com as seguintes fracções (cf. doc. de fls. 49 a 54):
- “A” – 2ª cave direita: para habitação, com lugar de estacionamento situado na 3ª cave ...;
- “B” – 1ª cave direita: para habitação, com garagem independente na 3ª cave, terraço, que é de cobertura ...;
- “C” – 1ª cave esquerda: para comércio – espaço amplo, tendo um acesso desde a escadaria do lado sul, com terraço, que é de cobertura ...;
- “D” – rés-do-chão direito: para habitação, com garagem independente na parte esquerda da 2ª cave ...;
- “E” – rés-do-chão esquerdo: para comércio – espaço amplo, com acesso directo da Av. Rainha D. Amélia, com garagem independente na parte esquerda da 2ª cave ...;
- “F” – 1º andar direito: para habitação, com garagem independente na 3ª cave ...;
- “G” – 1º andar esquerdo: para habitação, com garagem independente na 3ª cave, a que atribuiu o valor de € 20.652,50, correspondente a 75,1 por mil do valor total do prédio;
- “H” – 2º andar direito: para habitação, com garagem independente na parte esquerda da 2ª cave e dependência para arrumos na parte esquerda da 2ª cave ...;
- “I” – 2º andar esquerdo: para habitação, com lugar de estacionamento na 3ª cave ...;
- “J” – 3º e 4º andares direito-duplex: para habitação, com escada interior de ligação, terraço que serve de cobertura, garagem independente na parte esquerda da 2ª cave ...;
- “K” – 3º andar esquerdo: para habitação, com garagem na 3ª cave, a que atribuiu o valor de € 21 067,75, correspondente a 76,61 por mil do valor total do prédio;
10-Consignou-se, ainda, que as garagens na 3ª cave e na parte esquerda da 2ª cave e os lugares de estacionamento na 3ª cave, bem como os arrumos na parte esquerda da 2ª cave, são designados pelas letras das fracções autónomas a que pertencem e que constituem partes comuns às fracções os acessos interiores e exteriores às garagens dispostos na 3ª e 2ª caves – cf.. doc. de fls. 49 a 54;
11-A Câmara Municipal da Guarda, no entanto, no início de Setembro de 2002, havia já autorizado, a instituição do referido prédio em regime de propriedade horizontal, composto por 11 fracções autónomas, designadas pelas letras “A” a “K”, isoladas e independentes entre si, satisfazendo os requisitos exigidos para a instituição do regime de propriedade horizontal, sendo a descrição e valores da permilagem da responsabilidade da requerente (sociedade B.....), concretamente, a fracção “G”, constituída por uma habitação, localizada no 1º andar esquerdo, com garagem na 3ª cave (com a área de 29,82 m2), e a fracção “K”, constituída por uma habitação, localizada no 3º andar esquerdo, com garagem na 3ª cave (com a área de 32,32 m2), com a localização constante da planta anexa, onde se visualiza que a garagem referente à fracção “K” se situa no canto inferior esquerdo da 3ª cave e que a garagem referente à fracção “G” delimita esta pelo seu lado direito – cf.. doc. de fls. 78 a 84;
12-O que aconteceu após requerimento da Ré, nos termos que constam a fls. 73 e 74 (onde se refere que a fracção “G” é constituída por uma habitação no 1º andar esquerdo e uma garagem situada na 3ª cave, tudo isto identificado com a letra correspondente; e que a fracção “K” é constituída por uma habitação no 3º andar esquerdo e uma garagem situada na 3ª cave, tudo isto identificado com a letra correspondente) e instruído, além de outras, com as plantas cujas cópias constam a fls. 75 e 76 (onde se refere que a garagem referente à fracção “K” se situa no canto inferior esquerdo dessa planta e que a garagem referente à fracção “G” delimita esta pelo seu lado direito);
13-No entanto, numa planta anteriormente apresentada na Câmara Municipal da Guarda, datada de Novembro de 1998, visualiza-se na 3ª cave do prédio, no seu canto inferior esquerdo, uma garagem, com a área de 32,32 m2, sem qualquer letra identificativa, a que se segue, pelo seu lado direito, uma outra garagem, também sem letra identificativa, com a área de 31,14 m2 – cf.. doc. de fls. 58;
14-A Ré encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial da Guarda sob o n.º 1123/950419 e, desde a data da sua constituição, tem como sócios F....., C.....e G....., sendo gerida por todos os sócios e obrigada com a intervenção do gerente F..... ou com a intervenção conjunta dos restantes gerentes – cf.. doc. de fls. 23 e 23A;
15-O Autor exerce a profissão de enfermeiro, da qual faz modo de vida – cf.. doc. de fls. 24;
16-H.....instaurou neste tribunal uma acção contra o aqui Autor, que foi distribuída, com o n.º 1660/04.9TBGRD, ao 3º Juízo, na qual pede, além do mais, a condenação do Réu a reconhecer que a Autora é dona e legítima proprietária da fracção autónoma designada pela letra “K”, correspondente a uma habitação no 3º andar esquerdo, com uma garagem “K” na 3ª cave, localizada junto à parede do lado norte, conforme sinalização constante das plantas que fazem parte do requerimento de constituição de propriedade horizontal existentes na Câmara Municipal da Guarda, pedindo, ainda, a condenação do aqui autor a deixar imediatamente devoluta de pessoas e bens tal garagem, devolvendo a chave à autora – cf.. doc. de fls. 39 a 41.
Da base instrutória:
17-O Autor, aquando do facto referido em 2, dos andares disponíveis e depois de lhe ter sido mostrado o prédio em construção, interessou-se pelo apartamento localizado no 1º andar, lado esquerdo.
18-O Autor fez a mudança para o apartamento comprado onde entrou com as chaves que lhe foram entregues pela Ré.
19-O Autor ocupou a garagem em discussão nos presentes autos.
20-Foi colocada na porta da garagem referida a inscrição 3. Esq.
21-A instalação eléctrica de cada garagem estava ligada à fracção respectiva.
22-Antes da outorga da escritura pública, o Autor ocupava a fracção G).
23-O Autor ocupou a garagem identificada com 3. Esq.
24-O Autor obteve a chave da garagem referida em 23.
25-Foi o próprio C....., arquitecto de profissão, quem desenhou ambas as plantas.
26-Foi o próprio C..... que colocou a letra “K” na garagem situada no canto inferior esquerdo na planta de Fev./2002 e a letra “G” na garagem que lhe fica contígua.

III)- MÉRITO DO RECURSO
O objecto do recurso é delimitado, em princípio, pelas conclusões da alegação (arts. 690º, n.º1 e 684º, n.º3, ambos do CPC).
Também, nos termos do art. 710º, n.º1 do mesmo diploma, os agravos que sobem com a apelação são julgados pela ordem da sua interposição; mas os agravos interpostos pelo apelado que interessem à decisão da causa só são apreciados se a sentença for confirmada.
Acima foi relatado que a ora Apelada/Ré agravou do despacho saneador que julgou improcedente a excepção dilatória de ilegitimidade passiva, continuando a argumentar, no recurso, que outros devem intervir em litisconsórcio necessário.
Mas, como seguidamente se explanará, a sentença vai ser confirmada, e, como corolário, ficará prejudicado o conhecimento do recurso de agravo.

Atentando, então, nas conclusões do recurso de Apelação, submete o Autor a julgamento deste Tribunal as seguintes questões:
1ª-Reexame da decisão sobre a matéria de facto.
2ª-Integração da declaração negocial.
3ª-Nulidade da sentença.

III-1)-Vejamos a 1ª questão.
Alega o Autor que devem ser considerados provados certos factos com base em documentos juntos aos autos, concretamente, o seguinte:
- a garagem da fracção do Autor fica situada na 3ª cave no lado Norte e é independente;
-o contrato-promessa ocorreu no dia 10 de Março de 2000, data em que o Autor pagou à Ré 2.000.000$00 a título de sinal e princípio de pagamento, e não em 10 de Setembro de 2000;
-a planta de Nov./98 não tem qualquer placa identificativa nas garagens e das 5 garagens na planta de Fev./02 só 2 delas estão assinaladas com letras;
-foi o representante da Ré, C....., quem desenhou ambas as plantas e colocou a letra K e G na planta de Fev./02, podendo fazer o inverso.

Em abono da pretendida alteração da matéria de facto, o Autor cita o contrato-promessa, a escritura de constituição de propriedade horizontal, as plantas de Nov./98 e de Fev./02, documentos juntos, respectivamente, a fls. 25, 49 a 54, 58, 55 a 56 e 280.
Sobre esta temática cumpre salientar que a decisão de facto reproduz o teor do contrato-promessa, bem como o teor da escritura de constituição da propriedade horizontal, como resulta dos n.ºs 3, 4, 5, 8,9, e alude às plantas de Nov./98 e Fev./02, nos n.ºs 55, 56 e 58. Está, assim, provado que a garagem do Autor é independente e localizada na 3ª cave do edifício sito na Av. Rainha D. Amélia, junto ao edifício Vila Aradas, lado norte. Também da escritura de compra e venda (n.º 6) consta que a dita garagem é independente e localizada na 3ª cave.

Alega ainda o Autor que o contrato-promessa foi celebrado no dia 10.03.2000 e não 10.09.2000, constando do n.º 3 da factualidade apurada que tal contrato ocorreu no dia 10.09.2000. A data em causa foi considerada assente conforme alegação do Autor na petição (art. 17º) e não impugnada pela Ré, e decorre do teor do doc. junto a fls. 25. Não obstante ter o Autor alegado, mas sem que lograsse provar, que anteriormente, no mês de Março de 2000, celebrou com a Ré, um contrato-promessa, de igual teor, que foi substituído ou revogado pelo contrato com a data de 10.09.2000. Daí que não se compreenda vir agora o Autor defender uma outra data para a celebração do contrato-promessa relativamente ao qual pede a integração da declaração e coincidente com a data de outro que diz substituído e sem eficácia. Tão-pouco o documento de fls. 280, em que se estriba, consistindo em fotocópia de um cheque, com a data de 10.03.2000, no montante de 2.000.000$00, tem a virtualidade probatória de impor decisão diversa para a data do contrato-promessa. Como já se salientou, essa data (10.09.2000) foi aceite pelas partes e está provada pelo documento particular de fls. 25, consignando-se no n.º 4 que a Ré, naquela data, recebeu a quantia de 2.000.000$00, como sinal e princípio de pagamento.

Ainda, e firmando-se no teor de duas plantas juntas aos autos, pretende o Autor que se dê como provado o que acima já se assinalou. Ora, a este respeito, consta já do n.º 13 da factualidade assente, que na planta de Nov./98, visualiza-se na 3ª cave do prédio, no seu canto inferior esquerdo, uma garagem, com a área de 32,32 m2, sem qualquer letra identificativa, a que se segue, pelo seu lado direito, uma outra garagem, também sem letra identificativa, com a área de 31, 42 m2.
Todavia, o Autor alegou, no art. 37º da petição, que nessa planta, as garagens não têm qualquer identificação, constando, na verdade desse documento, junto a fls. 58, que todas as garagens localizadas na 3ª cave não têm placas identificativas, e não apenas as duas que constam do n.º13. Não tendo sido impugnado tal documento, considera-se ainda provado, por aditamento ao n.º13, o seguinte:
Igualmente as demais garagens aí localizadas não têm placas identificativas”.

Já no tocante à matéria de facto que o Apelante deseja ver provada a partir da planta de Fev./02, junta a fls. 55 e 56, não foi alegado por qualquer das partes estar apenas assinaladas com letras (K e G) duas das 5 garagens, nem há interesse em relevar tal matéria. A garagem assinalada com a letra K é justamente a garagem que o Autor alega ter adquirido ou estar atribuída à sua fracção, localizada aquela na 3ª cave junto à parede do lado norte do prédio.

Por fim, ao pretender que se dê como provado ter sido C....., a desenhar ambas as plantas e colocado as letras K e G na planta de Fev./02, já tal matéria foi considerada assente sob os n.ºs 25 e 26, constando ser aquele representante legal da Ré ( n.º 3). Já sobre o facto de o C..... poder fazer o inverso, ou seja, trocar as letras, colocando a letra G na garagem que o Autor alega pertencer à sua fracção e a letra K na garagem contígua, embora tal matéria tenha sido alegada no art. 45º da petição, não se vê qual o seu interesse à decisão da causa, revestindo até carácter conclusivo e, por isso, nem sequer foi levada à base instrutória. De qualquer modo, mesmo que assim não se entenda, também nenhuma prova documental, e só esta foi invocada pelo Apelante, permite dar como assente essa matéria.

III-2)- Analisemos, agora, a 2ª questão.
Tal como foi formulado o pedido, o Autor, por via da integração do contrato-promessa e contrato de compra e venda, visou a condenação da Ré a reconhecer que a garagem que identifica, desenhada na planta datada de Nov./98 no canto inferior esquerdo, é justamente a garagem que prometeu comprar e depois comprou à Ré.
Mas, afinal, a causa de pedir conjugada com o pedido, remete para a integração da declaração negocial?
A esta figura jurídica alude o art. 239º do CC, prescrevendo que “na falta de disposição especial, a declaração negocial deve ser integrada de harmonia com a vontade que as partes teriam tido se houvessem previsto o ponto omisso, ou de acordo com os ditames da boa fé, quando outra seja a solução por eles imposta”.
Com parece lógico, a integração da declaração negocial ocorre quando existe uma lacuna, um caso omisso ou um minus cogitatum nas estipulações negociais. As partes não incluíram no negócio jurídico, podendo fazê-lo, a regulamentação de certas questões que se relacionam com a composição de interesses nele consubstanciada. Não prevêem as partes todos os aspectos dos negócios que celebram. Como escreve Manuel de Andrade, in “Teoria Geral da Relação Jurídica”, vol. II, p. 321, “as partes costumam pensar sobretudo em termos económicos ou mais genericamente em termos práticos (…) Muitas vezes - se não até como regra geral - descuram totalmente a estruturação da correlativa disciplina jurídica. Não pensam nisso. Pretendem que os seus objectivos práticos sejam juridicamente tutelados, mas não cuidam de fixar a regulamentação apropriada. (…)Nas declarações negociais, como na lei, pode portanto haver lacunas”. A lacuna da declaração negocial pressupõe, assim e necessariamente, que as partes não esgotaram o seu poder de auto-regulamentação, não estipulando no negócio jurídico o mais completo regime jurídico permitido por lei e que se mostre adequado à ordenação dos interesses a que se refere o negócio. A figura da integração a que se refere aquela norma é, pois, uma operação intelectual destinada a suprir as lacunas do contrato, isto é, a falta de regulamentação, neste, do modo de resolver alguns problemas que se apresentam durante a sua execução e que as partes não previram, não tendo, portanto, convencionado soluções a dar-lhes.
A necessidade de integração da declaração negocial surge ou só se coloca depois da interpretação, lidando esta figura com efectivas e reais declarações de vontade, com a determinação do sentido ou conteúdo do negócio, visando perscrutar os termos em que as partes quiseram ou declararam querer o negócio, ou seja, o quid dictum. Só após a interpretação da declaração negocial, a realizar nos termos dos arts. 236º, 237º e 238º do CC, é que o intérprete pode concluir pela necessidade de integração.

Vincadas estas sumárias considerações sobre a integração da declaração negocial, fácil é inferir que o Autor, apesar do nomen, não coloca, em bom rigor, qualquer problema de integração, não apela a qualquer lacuna, a qualquer falha de regulamentação de certas questões que deviam ser disciplinadas no negócio, de acordo com o princípio autonomia da vontade previsto no art. 405º do CC. Não pretende, na essência, a integração de lacuna negocial segundo os parâmetros definidos no art. 239º do CC, mormente com a vontade conjectural ou hipotética das partes, ou seja, aquela vontade que elas teriam presumivelmente se tivessem previsto o ponto não regulado, mas sem nunca substituir ou alargar o objecto material do negócio, isto é, mantendo-se a integração dentro do domínio negocial traçado pelas partes. Manifestamente, o Autor coloca um problema de interpretação da declaração negocial, almeja a determinação do conteúdo ou a vontade real das partes, quando alega ter acordado com a Ré a promessa de compra e depois a compra de um apartamento e de uma garagem independente localizada na 3ª cave, junto à parede do lado norte do prédio, e que se encontra desenhada na planta de Nov./98 no canto inferior esquerdo. Importa, pois, apenas determinar a intenção, o sentido ou a vontade real do Autor e Ré sobre a localização da garagem. O Autor defende aquela localização, enquanto a Ré entende que a garagem do Autor é a contígua e que surge identificada na planta de Fev./02 com a letra G. Nenhuma lacuna negocial, como é evidente, nenhuma omissão da declaração negocial a integrar, quando as partes efectivamente acordaram sobre a localização da garagem, sobre o quid ou o objecto mediato da relação jurídica. Se as partes previram e regularam a localização da garagem, se foi manifestada uma vontade real e efectiva sobre esse ponto, seria completamente absurdo e ilegal ir em demanda de uma vontade hipotética, conjectural ou não efectiva.
Irrelevante assim que o Autor, face à causa de pedir, que é apenas integrada por factos concretos (n.º 4 do art. 498º do CPC), designadamente os contratos celebrados com a Ré, entenda que a questão, concretamente a determinação da vontade das partes, deva ser resolvida à luz da integração do negócio, cabendo ao Tribunal indagar, interpretar e aplicar as regras de direito (art. 664º do CPC), bem podendo o Julgador concluir que a definição do direito do Autor radica antes na interpretação negocial ou na indagação da vontade efectiva das partes.
Tratando-se, pois, de um problema de interpretação do negócio, a factualidade apurada, mormente a constante do teor dos documentos mencionados nos n.sº 3 (contrato-promessa) e 6 (contrato de compra e venda), de forma alguma permite concluir que a garagem, a que aludem aqueles contratos, embora localizada na 3ª cave do prédio em propriedade horizontal, corresponda à desenhada na planta datada de Nov./98, como o Autor almeja. O contrato-promessa menciona uma “garagem localizada na 3ª cave, do edifício sito na Av. D. Amélia (junto ao edifício Vila Aradas –lado norte)”, enquanto o contrato de compra e venda cita uma “garagem “G” independente na 3ª cave, do prédio urbano, constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida D. Amélia…” Ora, a garagem “G”, como se vê da planta que instruiu a escritura de constituição de propriedade horizontal, a planta de Fev./02, e em parte junta a fls. 55 e 56, não corresponde à garagem que o Autor alega ter adquirido à Ré. A tese do Autor sobre a localização da garagem -(“junto à parede do lado norte do prédio, desenhada na planta datada de Nov./98 no canto inferiro esquerdo”)-, tratando-se no caso de negócios formais, não tem um mínimo de correspondência nos ditos contratos e tão-pouco o Autor, como lhe competia (art. 342º, n.º1 do CC), logrou provar o seu direito consubstanciado na vontade real dos declarantes com o sentido ou conteúdo que defende (art. 238º do CC). Nada obsta, porém, como decorre do n.º3 do art. 393º do CC, o recurso a elementos extrínsecos, maxime prova testemunhal, sobre a interpretação da vontade real das partes exarada nesses contratos formais, desde que as razões determinantes da forma do negócio não se opunham a essa validade, ou seja, não se tratando de formalidade ad substantiam. A versão sustentada pelo Autor, e que foi vertida na base instrutória, com particular com relevo nos nº.s 2, 3, 4, não resultou apurada, como se vê de fls. 323, tendo sido produzida, a esse respeito, prova testemunhal.

III-3)- Vejamos, por fim, a 3ª questão.
A sentença impugnada é nula, porque a 1ª instância omitiu pronúncia sobre questão ou questões que devesse apreciar?
Como é sabido, e resulta do n.º1 do art. 342º do CC, “àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”. Nesta conformidade, cabia ao Autor provar ter adquirido à Ré a dita “garagem independente localizada na 3ª cave junto à parede do lado norte do prédio, desenhada na planta datada de Nov./98 no canto inferior esquerdo”. Ou que a garagem adquirida, o objecto mediato do contrato, tinha essa exacta localização, como estipulara com a Ré. Como vimos, a Ré defende que a garagem vendida ao Autor não é aquela, mas uma outra que lhe fica contígua, assinalada pela letra “G” na planta que instruiu a escritura de constituição de propriedade horizontal.
Ora, na sentença sob exame explicitou-se não ter o Autor cumprido o ónus probatório que sobre si impendia, atinente à exacta e precisa localização da garagem que alegara. Como corolário, foi a Ré absolvida do pedido visando a condenação da Ré a reconhecer que foi essa a garagem aludida no contrato-promessa e no posterior contrato de compra e venda celebrados entre as partes.
Como já se sublinhou, a definição do direito do Autor, no que concerne à localização dessa garagem, não se impunha por pretensa integração da declaração negocial. A necessidade da integração era uma operação intelectual subsequente à interpretação, e interpretados os contratos estava arredada a integração porque não se vislumbra lacuna negocial sobre a localização da garagem. Apesar de o Autor erroneamente apelar, na petição inicial, para a integração da declaração negocial, essa não era uma questão sobre a qual a 1ª instância devesse emitir pronúncia, atenta a factualidade assente e sua qualificação jurídica. As questões a resolver pelo tribunal, nos termos do n.º2 do art. 660º, n.º2 do CPC, são apenas as respeitantes ao pedido e causa de pedir, correspondendo aquele ao efeito jurídico pretendido e esta constituída pelos factos concretos, materiais que servem de sustentáculo àquele. As questões decidendas não se confundem com argumentos ou razões jurídicas alinhadas pelas partes em abono do seu ponto de vista, como será argumentar com a necessidade de integração da declaração negocial ao abrigo do art. 239º do CC. A integração negocial não configura efeito jurídico, mas antes é uma via para suprir lacunas ou omissões sobre aspectos dos negócios que as partes não previram e, por isso, carecidos de regulamentação necessária para a cabal execução do negócio. Inexiste, pois, qualquer nulidade da sentença por omissão de pronúncia, não se justificando o seu suprimento por este Tribunal (n.º1 do art. 715º do CPC).

Em suma, as conclusões apenas procedem relativamente a um específico ponto da matéria de facto, analisado na 1ª questão. Aditamento esse, porém, sem qualquer influência no mérito da causa.

IV)- DECISÃO
Nos termos e pelos motivos expostos, ressalvada a dita alteração da decisão de facto, acorda-se em julgar prejudicado o conhecimento do recurso de agravo e negar provimento ao recurso de apelação, confirmando-se, em consequência, a sentença impugnada.
As custas, em ambas as instâncias, ficam a cargo do Autor.