Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5215/20.2T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: ILEGITIMIDADE
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
EFEITO ÚTIL DA ACÇÃO
USUCAPIÃO
Data do Acordão: 05/15/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 30.º; 33.º; 152.º; 154.º; 278.º, 1, D) E 3; 578.º; 607.º, 5; 608.º; 609.º, 1 E 615.º, 1, C), D) E E), DO CPC
ARTIGOS 390.º; 395.º, 1; 1261.º; 1262.º; 1287.º; 1305.º; 1316.º; 1543.º; 1544.º; 1548.º, 1 E 2; 1559.º; 1561.º E 1564.º, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário:

I - A (i)legitimidade é aferida em função do modo como o autor delineia a ação, rectius a causa de pedir e o pedido formulado – artº 30º do CPC.

II - O litisconsórcio necessário, cuja preterição acarreta a ilegitimidade, decorre da lei, do negócio jurídico, ou quando a ação não possa produzir o seu efeito útil normal, entendida esta exigência apenas no caso/situação em que não possa regular definitivamente a situação concreta das partes, atendendo ao teor do pedido formulado,  sem que no processo estejam presentes todos os sujeitos a que esse pedido pode interessar – artº 33º  do CPC.

III - Inexiste litisconsórcio necessário por impossibilidade de a ação produzir o seu efeito útil normal no caso em que a autora pede a  religação da água de uma nascente sita em prédio da ré para o seu prédio, por não estarem na causa os donos de prédios  sitos entre os prédios das partes, pelos quais passam os tubos de ligação.

IV – Inexiste nulidade por omissão de pronúncia se, numa postura exegética, sensata, razoável e de boa fé, e no contexto do alegado provado, se dever concluir que,  ao menos implicitamente, ela existiu.

V – Considerando a imediação e oralidade, que permitem uma apreciação ética dos depoimentos, a convicção probatória, máxime se  alicerçada  em prova pessoal, apenas pode ser censurada se patentemente desconforme a tal prova e à demais produzida.

VI – A usucapião prevalece sobre qualquer modo de aquisição de direitos, e molda-os e define-os nos exatos termos dos factos provados a ela atinentes.

VII – A repartição em custas pode, se os pedidos não forem quantificáveis, ser fixada  através do juízo équo.

Decisão Texto Integral:
Relator: Carlos Moreira
1.º Adjunto: Rui Moura
2ª Adjunto: Fonte Ramos

ACORDAM  OS JUIZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

AA, instaurou contra BB, ação declarativa, de condenação, com processo comum.

Pediu:

A condenação da ré a reconhecer:

i) que  é dona e possuidora dos prédios que identifica;

ii) que adquiriu o direito à água, por servidão lega de aqueduto, sem qualquer limitação,  decorrente da compra que fez em 1979,  comprovada por escritura pública, ou por usucapião, direito que onera o prédio da ré que identifica;

iii) a condenação da ré a desobstruir a boca da mina de água, e a efetuar os trabalhos necessários que  permitam a  sua reposição  e o  encaminhamento da água para o tanque  e a não praticar quaisquer atos que impeçam esse direito da autora à água que nasce no prédio da ré.

Alegou:

É dona  quer dos prédios em causa que identifica, seja por os ter adquirido e beneficiar do registo a seu favor, seja por os haver como tal há cinquenta anos, quer da água que nasce no prédio da ré e é conduzida, ora a céu aberto ora encanada, até chegar a um tanque construído para a armazenar no prédio da autora.

A ré, a 15 de Novembro de 2020, soterrou a mina e assim veio, propositadamente, a impedir que a autora recebesse a água dali proveniente, e conclui como já referido.

A ré contestou.

Disse que a mina foi soterrada há mais de vinte anos, tendo-se transformado num tanque subterrâneo, e desde então secou, não mais a autora tendo colhido a água em disputa, apenas beneficiando de água que provem de outro prédio que não é pertença da ré.

A autora realizou trabalhos para aceder à mina soterrada.

Pediu:

A improcedência da ação e, em reconvenção, que a autora seja condenada a deixar o prédio da ré no estado em que se encontrava.

Em réplica, a autora reafirma o alegado na petição, e contesta o invocado pela ré.

3.

Prosseguiu a ação os seus termos tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:

«Julgo a presente acção provada e procedente, pelo que

a) Declaro que a autora, AA, adquiriu, sem qualquer limitação temporal, o direito à água que abastece o seu prédio, direito esse que onera o prédio da ré, BB;

b) Declaro que a mesma autora adquiriu, por usucapião, servidão legal de aqueduto e de acompanhamento a pé, que oneram o mesmo prédio da ré, quanto ao rego encanado e subterrâneo que vai desde a mina, no prédio da ré, até ao tanque no prédio da autora;

c) Condeno a ré a executar os trabalhos necessários a repor a boca da mina no estado em que estava a 15 de Novembro de 2020, retirando tudo oque possa obstruir a passagem da água para o rego encanado e subterrâneo que liga a mina ao tanque;

d) Condeno a ré a executar os trabalhos necessários a assegurar o acesso seguro de pessoas à mina, como ocorria antes de Dezembro de 2020;

e) Condeno a ré a não perturbar o livre exercício dos referidos direitos, abstendo-se de praticar actos que privem a autora de utilizar a água.

Julgo a reconvenção não provada e improcedente, pelo que absolvo a mesma autora do pedido reconvencional.

Custas pela ré, sem prejuízo do benefício que, a esse respeito, lhe foi conferido por quem de direito.»

3.

Inconformada recorreu a ré.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

I - A recorrente considera incorretamente julgada toda a matéria de facto contida nos pontos 28º e 30º dos factos provados da douta sentença recorrida, com referencia à petição inicial.

II - A decisão destes concretos pontos da matéria de facto não assenta em qualquer meio de prova produzido, quer documental, quer testemunhal quer pericial.

III – Entende assim a recorrente que existe uma evidente desconformidade entre os elementos probatórios trazidos ao processo e a decisão do tribunal quanto à matéria de facto ora impugnada, o que constitui erro de julgamento por si só suficiente para que este tribunal ad quem possa alterar tal decisão.

IV – Por desnecessidade de reprodução e como jurisprudencialmente se tem vindo pacificamente a entender, a ré e ora recorrente deixa aqui por integramente reproduzido tudo quanto foi alegado no corpo das presentes alegações de recurso em matéria de impugnação da decisão sobre a matéria de facto. E assim, atento todo o aí expendido, entende a recorrente que a decisão que deve ser proferida sobre a matéria de facto impugnada deve ser a seguinte: Quanto ao ponto 28º da matéria de facto dada como provada - Não provado; Quanto ao ponto 30º da mesma matéria de facto: Não provado.

V – O facto jurídico invocado como causa de pedir na presente ação e que foi dado como provado sem que tenha sido expressamente impugnado é o de, aquando da aquisição do seu identificado prédio por parte da autora este ser já então abastecido com a água da poça situada no pinhal pertencente a CC e que hoje pertence à ré, dois dias por semana, tudo de acordo com o facto constante do ponto 26º da matéria de facto provada.

VI – Ora, não tendo, entretanto, havido qualquer apossamento por parte da ré, quanto às águas da referida poça relativamente aos demais dias da semana, facto aliás não alegado, é evidente que o direito a tal água era então e agora, limitado a dois dias por semana.

VII – Assim, em face desta limitação ao ter o tribunal a quo decidido que a autora adquiriu o direito à água sem qualquer limite temporal, tendo como pressuposto um facto jurídico diverso do alegado pela autora como fundamento da ação, padece tal decisão de vício ultra petita, o que, constituindo nulidade nos termos do artigo 615º nº 1, alinea e) do CPC, o que ora expressamente se invoca, determinará a anulação da decisão ora impugnada com todas as consequências daí advientes.

VIII – De acordo com a matéria de facto dada como provada o tribunal a quo, sem que expressamente tenha configurado o direito à água na parte dispositiva da sentença, aquando da interpretação que fez das respetivas normas jurídicas veio a considerar tal direito como se de um direito de propriedade plena se tratasse.

IX – Ora, não se pode concordar minimamente com tal interpretação acerca da qualificação deste mesmo direito.

X – De acordo com o titulo aquisitivo do identificado prédio da autora e atenta a demais factualidade dada como provada apenas resulta que tal prédio é abastecido com a referenciada água, dois dias por semana. Temos assim que, em dois dias por semana esta água está adstrita à satisfação das necessidades do prédio da autora, facto que não impede a ré de poder utilizar tal água em igualdade de circunstâncias desde que não prive a autora do seu respetivo caudal.

XI – Por outro lado e ao contrário do que parece resultar da conclusão interpretativa do tribunal a quo, a autora não adquiriu esta referenciada água por qualquer título, sendo certo que do título aquisitivo do direito real de propriedade do identificado prédio da autora apenas resulta ser este abastecido com a água aí identificada como sendo um direito real menor a ela inerente, constituindo assim uma servidão de águas como resulta de toda a factualidade provada.

XII – Mal andou assim, no modesto entendimento da ora recorrente, o tribunal a quo ao qualificar o direito sobre as águas que possam nascer na sua identificada mina como se de um direito real de propriedade se tratasse, com as inerentes consequências, nomeadamente da possibilidade da autora poder vir aí a explorar todas as suas águas subterrâneas e cedê-las a terceiros, assim privando a ré do uso e proveito que delas também tem.

XIII – Sem prescindir importa igualmente concluir que, como resulta da matéria de facto provada nos pontos 34º a 37º a água é conduzida até ao prédio da autora – ora recorrida – através de rego a céu aberto e de canos subterrâneos e respetivas caixas que atravessam vários prédios.

XIV – Assim, por falta de intervenção dos respetivos proprietários também alegadamente onerados com tal encargo, não poderia o tribunal a quo ter declarado o correspondente direito de servidão e com tal extensão, por falta de legitimidade para o efeito por parte da ré, ilegitimidade esta que é do conhecimento oficioso e que assim, poderá ser apreciada por este tribunal ad quem.

XV – No despacho saneador proferido a 29 de setembro de 2021 foi julgado improcedente o pedido de fixação de uma sanção pecuniária compulsória, tendo ainda no que concerne às custas devidas a respetiva decisão sido relegada para final.

XVI – Porém, na sentença ora sob recurso o tribunal a quo, sem que tivesse indicado a proporção da respetiva responsabilidade quanto a custas, nos termos do artigo 607º nº 6, ex vi artigo 527º nº 2, ambos do CPC, condenou a ré no pagamento da totalidade das custas processuais, decisão esta que nunca a ora recorrente poderia aceitar, por injusta e ilegal.

XVII – O tribunal a quo não se pronunciou sobre os pedidos formulados nas alíneas a), c) e d) do petitório da autora o que, no entendimento da ré, configura nulidade nos termos do artigo 615º nº 1, alinea d) do CPC.

XVIII – Com a decisão proferida foram violadas, entre outras, as normas dos artigos 5º, nº 5, 37º nº 1, 607º nº 3 e 6, ex vi artigo 527º nº 2, e 615º nº 1 alíneas c), d) e e), todos do CPC.

Contra alegou a autora pugnando pela manutenção do decidido com os seguintes argumentos finais:

1.ª A Apelante nestas conclusões, não deu cumprimento ao nº1 alíneas b), nº2 a), do artigo 640º do CPC, que era e é, obrigada a dar, sob pena de rejeição do recurso.

2.ª A consequência para a inobservância deste normativo, deve ser a rejeição do recurso na parte relativa à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o que se requer, para e com todas as legais consequências.

3.ª Não indica um concreto meio probatório constante do processo, ou de registo ou gravação que impusesse decisão sobre esses factos da matéria impugnada, diversa da recorrida, alínea b) do nº1 do artigo 640º do CPC;

4.ª e, também não indica qualquer passagem da gravação que fundamente o seu recurso que impusesse alteração da matéria de facto impugnada, alínea a) do nº 2 do artigo 640º do CPC;

5.ª Não indica pois, em sede de recurso os meios probatórios, quer documental, quer testemunhal, quer pericial que fundamentassem decisão da matéria de facto que pretende ver alterada.

6.ª Aceitar o recurso nestes termos, seria no mínimo insólito e, fácil de recorrer.

7.ª É por demais evidente que o Recurso a que se responde nesta parte, tem que ser rejeitado, com as legais consequências.

8.ª Quanto à conclusão V, a Apelante alega incorretamente, talvez por lapso de escrita,- ou não-, o ponto”26” da matéria de facto dada provada mas, talvez pretendesse referir- se ao ponto”16” da matéria de facto provada.

9.ª É evidente que o douto Tribunal Recorrido não condenou em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido,

10.ª Não enfermando a douta sentença recorrida do vício que lhe é assacado pela Apelante.

11.ª Pois que a Apelada, em a) a e) do petitório, peticiona que seja a Ré, ora Recorrente condenada a reconhecer o seu direito à água sem qualquer limitação.

12.ª Sendo que, mais peticiona que adquiriu o direito á água por usucapião, sem qualquer limitação, em d) do pedido.

13.ª E dos factos dados como provados, resulta no ponto 6 que a Autora adquiriu a água por compra de 1979, ainda solteira o prédio rústico, abastecido da água da poça situada no pinhal de CC, dois dias por semana, e ainda com água que aquele prédio pertence dois dias por semana do poço Grande, de acordo com usos e costumes e,

14.ª No ponto 27, resulta provado que: há mais de 40 anos que a Autora e seus antecessores, exploram a água que brota da mina localizada no prédio referido da ré.

15.ª No ponto 59 resulta provado que : 59. A Autora e ante possuidores, há mais de 40 anos, à vista de toda a gente, quando necessário, acompanhou a água e verificou as caixas de vistoria e derivação, limpando-as, sobre os prédios por onde passava, incluindo o da Ré, sem contestação de quem quer que fosse

16.ª Dúvidas não subsistem que, ficou provado a aquisição da propriedade da água pela autora, sem qualquer limitação e, por usucapião que foi peticionada em sede de pedido.

17.ª A douta Sentença recorrida, deu como provado “Reconhecer que a Autora é dona e legitima possuidora dos prédios urbanos e rústicos melhor identificados na p.i., situados em Quinta ..., ..., ..., atual artigo matricial ...67, que teve origem no artigo urbano ...36, e no artigo matricial rústico ...27, descrito na Conservatória ... sob a descrição ...37 e desanexado do rústico descrição ...39, composto atualmente de, casa de habitação, com releixo, logradouro com terreno agrícola com área de 1.200m2, com oliveiras, videiras, fruteiras, pastagem e mato, a confrontar de norte com DD, Sul com estrada, Nascente com EE, Poente; e que este prédio urbano, composto de casa de habitação e terreno agrícola, resulta da anexação de dois artigos, um urbano e rústico artigo matricial ...36 e ...27, o primeiro com área coberta de 94 m2 e o segundo com área descoberta 1.200m2, total de área de 1.294 m2, dando origem às descrições, respectivamente de, descrição ...37,e à descrição ...39, conforme aí resulta mencionado,”

18.ª Por um lado, conforme matéria dada como provada em 1 e 2 dos pontos dados como provados.

19.ª Por outro lado, a Autora, não pedia a condenação da Ré Apelante numa condenação à prática de ato mas, a um reconhecimento do seu direito de propriedade sobre os referidos prédios[rústico e urbano] , o que decorre da fundamentação de facto e de direito e, como tal, conhece a douta sentença da questão que devia conhecer e,

20.ª Até porque não tem relevância jurídica para a solução da causa,

21.ª Sob pena de levar a cabo uma atividade processual, que se sabe, de antemão ser inconsequente.

22.ª Bem assim, o dispositivo da douta sentença de a) a e) .

23.ª Sendo que, ainda que fosse verdade, que não é, não seria um vicio que fosse desfavorável à Apelante,

24.ª Pelo que nunca poderia a mesma recorrer.

25.ª Do dispositivo da condenação de a) a e) da douta sentença recorrida, o Tribunal a quo, toma posição, pronunciando-se sobre todas as questões, que devia tomar conhecimento,

26.ª Pelo que, não é assacado qualquer dos vícios que a Apelante assaca à douta sentença recorrida.

27.ª Devendo também improceder, nesta parte o recurso a que se responde.

28.ª Deve pois improceder totalmente, devendo ser negado provimento, o recurso a que se responde, com as legais consequências.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs  635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas  são, lógica e metodologicamente, as seguintes:

1ª – Ilegitimidade da autora.

2ª – Nulidade da sentença por omissão de pronúncia e por condenação além do pedido.

3ª - Alteração da decisão  sobre a matéria de facto.

4ª – Servidão de águas que não direito pleno de propriedade da água.

5ª – Alteração da condenação em custas.

5.

Apreciando.

5.1.

Clama a recorrente que  a autora é parte ilegítima pois que não estão nos autos outras pessoas, quais sejam, os donos dos prédios pelos quais passam o rego a céu aberto e os canos subterrâneos e respetivas caixas.

 Assim, por falta de intervenção de tais pessoas, também alegadamente oneradas com tal encargo, não poderia o tribunal a quo ter declarado o correspondente direito de servidão e com tal extensão.

Não lhe assiste razão, quer por razões formais, quer por motivos substantivos.

Naquela vertente urge atentar que apesar da exceção constituir matéria de conhecimento oficioso – artºs  577º/e), 578º CPC, 278º/1 d)/3 CPC -  o tribunal de recurso continua vinculado aos factos que as partes apresentaram nos autos.

A tal obrigam os princípios da substanciação, do dispositivo e da auto responsabilidade das partes.

Ora vista a contestação nela a ré não invoca factos dos quais se possa concluir por tal exceção.

Ademais,  e decisivamente, foi realizada audiência prévia na qual se decidiu tabelarmente  pela legitimidade das partes.

Ora ainda que tal decisão não faça caso julgado sobre a questão, certo é que a ré a aceitou.

Por conseguinte, a presente pretensão da ré recorrente alcança-se como inadmissível,  porque não invocada e, principalmente, por extemporânea e serôdia,  e até em quasi abuso de direito,  porque em venire contra factum proprium – neste sentido cfr. Ac. da RP  de 18.09.2017, p. 5968/16.2T8VNG.P1 in dgasi.pt.

Nesta ótica substantiva há que atentar no estatuído  nos termos artºs 30º e 33º do CPC.

Artº 30º.

«Conceito de legitimidade

1 - O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.

2 - O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.

3 - Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor

Artº 33º.

«Litisconsórcio necessário

1 - Se, porém, a lei ou o negócio exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade.

2 - É igualmente necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal.

3 - A decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado.»

Vemos assim que a intervenção dos proprietários pelos quais passam os tubos, e cuja falta acarretaria a ilegitimidade da autora, apenas seria obrigatória se estivéssemos perante um caso de litisconsórcio necessário.

Ora no caso vertente, a decisão, tal como é configurada pela autora,  que é o que interessa -  cfr. artº 30º nº 3 do CPC - pode produzir o seu efeito útil normal sem a intervenção dos aludidos outros proprietários.

Na verdade, a autora pede contra a ré o restabelecimento da ligação da água da nascente do prédio desta para o seu prédio.

Se este seu pedido proceder, como procedeu, o interesse da demandante pretendido  satisfazer com a demanda fica satisfeito,  mesmo que os restantes proprietários dos terrenos de entremeio não estejam presentes na ação.

 Por conseguinte, a sua não presença não acarreta quaisquer problemas de legitimidade, podendo eles, se os seus direitos forem afetados, intervirem voluntáriamente nos autos, nos termos incidentais permitidos, ou interpor ações autónomas, naturalmente com pedidos específicos.

5.2.

Segunda questão.

5.2.1.

Diz a recorrente que a sentença é nula porque não se pronunciou quanto aos pedidos da autora formulados nas alíneas a), c) e d) e porque condenou para além do pedido.

Prescreve o nº1 al. d) do artº 615º do CPC que a sentença é nula quando:

 «O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento».

Este segmento normativo conexiona-se com o estatuído nos arts. 154º e 608º do mesmo diploma, ou seja, com o dever do juiz administrar a justiça proferindo despachos ou sentenças sobre as matérias pendentes – artº 152º - e com a necessidade de o juiz dever conhecer das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica.

E, bem assim,  de resolver todas as questõese apenas estas questões, que não outras, salvo se de conhecimento oficioso - que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras –artº608º.

Porém, como é consabido e constituem doutrina e jurisprudência pacíficas, não se devem confundir «questões» a decidir, com considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes.

A estes não tem o tribunal que dar resposta especificada ou individualizada, mas apenas às pretensões formuladas e aos elementos inerentes ao pedido e à causa de pedir –cfr. Rodrigues Bastos, in Notas ao CPC, 2005, p.228; Antunes Varela in RLJ, 122º,112 e, entre outros, Acs. do STJ de 24.02.99, BMJ, 484º,371 e de 19.02.04, dgsi.pt.

Já a proibição de  condenação em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido, prevista na al. e) do artº 615º,  é o corolário e está em relação direta com o preceituado no artº 609º nº1 do CPC, o qual estatui que a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir.

Estas normas  têm a sua génese nos princípios da substanciação, do dispositivo e da autorresponsabilidade das partes, especialmente relevantes em processos do presente jaez em que se discutem e dilucidam interesses de cariz, ou eminentemente de cariz, material.

Assim, condenando em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido o juiz excede o limite imposto por lei ao seu poder de condenar, com infração do principio do dispositivo que assegura às partes circunscrever o thema decidendum.

5.2.2.

No caso vertente.

5.2.2.1.

Quanto à primeira vertente a pretensão da ré não tem razão de ser.

Os pedido da  alínea a) do petitório reporta-se à declaração de propriedade da autora relativamente ao(s) prédio(s) que beneficia(m) do uso da água por ela peticionado.

Ela identificou tal(is) prédio(s) cabalmente estando ele(s) referenciado(s) nos pontos 1 a 10 dos factos provados.

Na contestação a própria ré insurge-se contra a formulação de tal pedido, pois que, por entender que o direito de propriedade do prédio não foi afetado, defendeu que a autora não tem interesse em agir quanto a tal pretensão.

Ademais, o Sr. Juiz pronunciou-se, na al. a) da decisão, por referência aos prédios das partes cabalmente identificados nos autos.

Certo é que melhor seria que o julgador atendesse a tal pedido, declarasse a propriedade e identificasse o(s) prédio(s), das partes beneficiados e onerados  quanto à água.

Mas, atento o modo como a  causa está delineada e a própria postura confessória da ré relativamente ao pedido da al. a) da autora, tem de entender-se que a decisão da al. a) da sentença se reporta, ao menos implicitamente, aos aludidos prédios das partes identificados,  tendo como pressuposto que eles lhes pertencem.

 O que é, numa postura exegética, sensata, razoável e de boa fé,  o qb, para se concluir inexistir omissão de pronúncia neste particular.

Aliás, mais uma vez, a ré é incongruente, pois que, como se viu,  no processo, defendeu a desnecessidade de formulação de tal pedido e, a agora, arguiu a nulidade por não pronúncia quanto a ele.

Já no tangente aos pedidos c) e d) reportam-se ao modo de aquisição do direito à água – aquisição derivada por força da presunção do registo: al. c);  e, subsidiariamente,  aquisição originária, via usucapião: al. d).

Ora vista a fundamentação jurídica da sentença conclui-se que o direito à água, lato sensu, que envolve o conspeto decisório das alíneas b) e c), foi concedido tal direito através desta última via: usucapião.

Não se enxerga, pois, onde está a omissão de pronúncia neste particular.

Aliás, bem vistas as coisas, aqui é que existe  falta de interesse em agir ou ilegitimidade da recorrente para invocar estas nulidades, pois que assumiu a aludida postura confessória e, ademais, tais putativas nulidades, se existissem, não afetariam a sua posição processual e os seus interesses, mas apenas os da autora.

5.2.2.2.

Quanto à nulidade por condenação extra vel ultra petitum.

 Também aqui não assiste razão à recorrente, ainda que a questão tenha de ser devidamente esclarecida.

Vista a pi, verifica-se que a autora aduz como causa petendi do direito à água dois fundamentos, a saber: i) a aquisição derivada decorrente do contrato de compra e venda; ii) a aquisição originária decorrente da usucapião.

Naquela vertente, certo é que invoca que na escritura respetiva se faz alusão à utilização da água dois dias por semana.

Porém, ela própria alega que, apesar de na escritura constar tal asserção, «a venda e compra do direito à água é feita sem qualquer limitação» - artº 77º da pi.

Ademais, no âmbito da invocação da usucapião, alega que ao longo de 40 ou 60 anos, tanto os seus antecessores como ela própria, usaram a água, «diariamente» - cfr. artºs 48º a 50º.

Finalmente, em sede de pedido, a demandante impetrou a  atribuição do direito à água «sem qualquer limitação» - al. b).

Nesta conformidade,  a sentença, na parte em que  declarou que a autora, adquiriu, sem qualquer limitação temporal, o direito à água, não condena para além do pedido, antes se contendo, qualitativa e quantitativamente, dentro do mesmo.

5.3.

Terceira questão.

5.3.1.

No nosso ordenamento vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido -artº607 nº5  do CPC.

Perante o estatuído neste artigo, exige-se ao juiz que julgue conforme a convicção que a prova determinou e cujo carácter racional se deve exprimir na correspondente motivação cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3º, 3ªed. 2001, p.175.

O princípio da prova livre significa a prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente;  mas apreciada em conformidade racional com tal prova e com as regras da lógica e as máximas da experiência – cfr. Alberto dos Reis, Anotado, 3ª ed.  III, p.245.

Acresce que há que ter em conta que as decisões judiciais não pretendem constituir verdades ou certezas absolutas.

Pois que às mesmas não subjazem dogmas e, por via de regra, provas de todo irrefutáveis, não se regendo a produção e análise da prova por critérios e meras operações lógico-matemáticas.

Assim: «a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em prova, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico» - Cfr. Ac. do STJ de 11.12.2003, p.03B3893 dgsi.pt.

Acresce que a convicção do juiz é uma convicção pessoal, sendo construída, dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, nela desempenhando uma função de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais – AC. do STJ de 20.09.2004 dgsi.pt.

Nesta conformidade - e como em qualquer atividade humana - existirá sempre na atuação jurisdicional uma margem de incerteza, aleatoriedade e erro.

Mas tal é inelutável. O que importa é que se minimize o mais possível tal margem de erro.

O que passa, como se viu, pela integração da decisão de facto dentro de parâmetros admissíveis em face da prova produzida, objetiva e sindicável, e pela interpretação e apreciação desta prova de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.

E tendo-se presente que a imediação e a oralidade dão um crédito de fiabilidade acrescido, já que por virtude delas entram, na formação da convicção do julgador, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova, e fatores que não são racionalmente demonstráveis.

Sendo que estes princípios permitem ainda uma apreciação ética dos depoimentos - saber se quem depõe tem a consciência de que está a dizer a verdade– a qual não está ao alcance do tribunal ad quem - Acs. do STJ de 19.05.2005  e de 23-04-2009  dgsi.pt., p.09P0114.

Assim sendo, constitui jurisprudência sedimentada, que:

«Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas, a respectiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e só deve o tribunal de 2.ª instância alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando efectivamente se convença, com base em elementos lógicos ou objectivos e com uma margem de segurança muito elevada, que houve errada decisão na 1.ª instância, por ser ilógica a resposta dada em face dos depoimentos prestados ou por ser formal ou materialmente impossível, por não ter qualquer suporte para ela. – Ac. do STJ de.20.05.2010, dgsi.pt p. 73/2002.S1.

5.3.2.

O caso  su judice.

A ré pretende a não prova dos factos provados dos pontos 28 e 30 cujo teor é atinente às medidas  da mina e do tanque.

Diz, para tanto, que não foi produzida prova quanto a tais factos.

O julgador fundamentou a decisão factual no conjunto da prova produzida.

Certo é que a fundamentação da decisão de facto não é um modelo a seguir, pois que não reporta, concreta e especificadamente,  como é exigível, ou no mínimo recomendável, o(s) meio(s) probatório(s) produzido(s)  a cada facto provado ou, ao menos, a cada núcleo factual  substantivamente homogéneo.

Porém, tal não constitui motivo para anulação da decisão neste particular, atenta a simplicidade do caso,

Aliás, liminarmente há que dizer, versus o alegado pela ré, que estes factos são quase inócuos  para o desfecho da ação, ou, concedendo, apresentam uma  relevância diminuta.

Efetivamente, o que essencialmente releva é se à autora assiste, ou não assiste, jus à água.

Se assim for, como se entendeu na sentença, tal direito não é afetada pela prova ou não prova das dimensões da mina ou do tanque, as quais apenas  poderão relevar na prática, em termos, vg., da maior ou menor possibilidade de armazenamento do líquido.

Depois, no que tange à prova, não é como diz a ré.

Desde logo e como dimana da fundamentação, e, mais uma vez, ao contrário do expendido pela recorrente, existiram testemunhas que se pronunciaram sobre a dimensão do tanque.

 Na verdade,  e como se plasma na fundamentação da decisão de facto, a testemunha FF:

«Reconheceu os documentos juntos com a petição, documentando o curso de água, com caixas de visita e de derivação, a obstrução perpetrada pela ré, o tanque, que foi subido e que, agora, “deve ter sensivelmente um metro, talvez um bocadinho mais”»

Depois e determinantemente, as fotografias juntas aos autos, rectius a fls 62, 80 e 89, dão-nos uma ideia aproximada, das dimensões da mina e do tanque, as quais não se afastam, relevantemente, das mencionadas nos aludidos ponto de facto.

 E assim se concluindo que a argumentação da ré não é a bastante para, perante o que supra se expendeu em tese, e como manda a lei – artº 640º nº1 al. b) do CPC –, impor a censura da convicção do julgador.

5.3.3.

Decorrentemente, e no indeferimento da presente pretensão, os factos a considerar são os apurados na 1ª instância, a saber:

1

A Autora é dona dos prédios urbanos e rústicos situados em Quinta ..., ..., ..., atual artigo matricial ...67, que teve origem no artigo urbano ...36, e no artigo matricial rústico ...27, descrito na Conservatória ... sob a descrição ...37 e desanexado do rústico descrição ...39, composto atualmente de, casa de habitação, com releixo, logradouro com terreno agrícola com área de 1.200m2, com oliveiras, videiras, fruteiras, pastagem e mato, a confrontar de norte com DD, Sul com estrada, Nascente com EE, Poente.

2

Este prédio urbano, composto de casa de habitação e terreno agrícola, resulta da anexação de dois artigos, um urbano e rústico artigo matricial ...36 e ...27, o primeiro com área coberta de 94 m2 e o segundo com área descoberta 1.200m2, total de área de 1.294 m2, dando origem às descrições, respectivamente de, descrição ...37,e à descrição ...39.

3

A Autora, a 21 de Dezembro de 1979, por escritura pública lavrada no extinto ... Cartório Notarial ..., adquiriu a raiz ou nua propriedade do prédio urbano, à data com a matriz, artigo matricial ...36, a GG, com o seu irmão HH, em comum e partes iguais para ambos, por escritura por compra, outorgada no dia 21 de Dezembro de 1979, exarada a Folhas 72 verso do livro de notas “B” 652, do extinto ... Cartório Notarial ...;

4

Vendendo aquele à mãe da Autora, II, o usufruto, daquele prédio, artigo matricial ...36, composto da dita casa de habitação, com releixo e com uma faixa de terreno, com área de 1.200m2, destinada a ser anexada à habitação, para seu releixo e logradouro, a confrontar de norte com a estrada, nascente com o vendedor GG, e do poente com herdeiros de JJ, desanexando-se assim do prédio rústico inscrito no artigo ...27, da extinta freguesia ... e é parte integrante na mesma Conservatória sob o número 89702.

5

Pela mesma escritura foi objeto de compra e venda, a faixa de terreno que serve de servidão de acesso a ambos os prédios, e entre eles se situa;

6

Pela escritura de compra de 1979, a Autora, adquiriu, à data, ainda solteira, com HH, também solteiro, o dito prédio rústico, composto de terra de regadio, como oliveiras, videiras, fruteiras, pastagem e mato, (artigo matricial ...27), atualmente descrito com a descrição ...39, e, que ficou abastecido com água da poça situada no pinhal pertencente a CC, dois dias por semana, e ainda com água que àquele prédio pertence dois dias por semana do “Poço Grande”, de acordo com os usos e costumes.

8

A 08 de agosto de 1996, HH, por escritura pública outorgada no extinto ... Cartório Notarial ..., livro ...7 “I” fls 6, verso a 8, doa à Autora, a metade indivisa da raiz ou nua propriedade que detinha no referido artigo urbano ...36.

9

A 02 de Agosto de 2013, no Cartório Notarial ..., II, renunciou gratuitamente ao usufruto, sobre o prédio urbano inscrito sito na Quinta ..., freguesia ..., ..., artigo matricial urbano ...67.

10

Os referidos prédios, urbano e rústico, que atualmente se trata de um só, mas urbano e rústico, composto de casa de habitação com releixo e terreno agrícola, estão na posse da Autora, e seus ante possuidores, há mais de 30 anos, pernoitando no urbano que destinou à sua habitação, e a parte agrícola, cultivando e colhendo os frutos do respectivo rústico, à vista de todos, de forma pública, pacífica, contínua, sem oposição de ninguém, assim atuando, como sua dona e de não lesar direitos de outrem.

11

À vista de toda a gente, com o conhecimento geral, sem contestação de ninguém, como dona exclusiva, com essa convicção e, assim actuando, com a convicção de não prejudicar ninguém.

16

Trata-se da água da “poça situada no pinhal pertencente a CC e ainda á água que aquele prédio pertente dois dias por semana do poço Grande de acordo com os usos e costumes “ .

18

A referida poça, trata-se na realidade duma mina sita naquele pinhal;

20

Pinhal que encontra-se inscrito a favor da Ré BB, como o prédio rústico composto de mato, inscrito atualmente na matriz com o artigo ...09, anteriormente, inscrito com o artigo 1426, e que era composto e na realidade é composto de pinhal e mato e, com a área de 7.315m2.

21

Que veio à posse da Ré por doação de KK e LL.

22

E que, outrora foi pertença de CC.

23

Por escritura de 23 de Março de 2010, livro ...21, fls 118, do Cartório Notarial ....

25

No pinhal outrora pertencente a CC e, que depois pertenceu a KK casada com LL, e que foi adquirido pela Ré, sempre existiu a mina da qual brotava a água;

27

Há mais de 40 anos que a Autora e seus antecessores, exploram a água que brota da mina localizada no prédio

referido propriedade da Ré.

28

Esta mina tem cerca de 25mt de comprimento, com 1,60 mt altura por 1,10mt de largura até à sua boca.

29

Desenvolvendo-se no subsolo do prédio da Ré até atingir a boca da referida mina, de onde segue, por rego, outrora a céu aberto, e hoje por cano subterrâneo, corre a água livremente até à caixa / tanque repesa de águas captadas da mina, numa extensão de, cerca de 20 metros.

30

Esta caixa/ tanque em alvenaria tem 5,3mt por 1,7mt de largura por 1,1mt de altura, foi construída junto ao terreno da Ré, há mais de 60 anos por antecessores da Autora;

31

Tendo sido melhorada a mando da Autora, ao longo dos anos, sendo que as últimas obras feitas no tanque, foram levadas a cabo em Fevereiro de 2018, a mando e a expensas da Autora.

34

Nesta caixa/ tanque é represada a água e, conduzida pelo tubo mandado fazer por Antecessores da Autora, há mais de 60 anos, que conduz a água por baixo da estrada que liga ... a ....

35

Depois, é conduzida por um rego a céu aberto mandado fazer por antecessores da Autora , há mais de 60 anos e, melhorado, a mando e a expensas da Autora, numa extensão de 45 metros, junto à berma da estrada, na Rua ....

36

Continuando, a água, vai sendo conduzida, no solo, por tubos, derivando em caixas de derivação e vistorias,  atravessando vários prédios, que dão assim passagem,

37

Numa extensão de 400 metros, até chegar aos prédios da Autora.

40

A água chega ao prédio da autora através dum tubo de plástico, num tanque, em de cimento e pedra de 4 metros por 4 metros de largura, por 80 centímetros de altura.

41

A partir deste tanque, a Autora, abastece de água, quer a sua casa de habitação quer, para o terreno agrícola, sua propriedade.

42

Desde o prédio da Ré, passando pelos prédios em que a água atravessa por tubo e, até aos prédios da Autora, existe sempre um caminho de pé para acompanhamento da água e verificação das caixas de derivação e vistoria.

59

A Autora e ante possuidores, há mais de 40 anos, à vista de toda a gente, quando necessário, acompanhou a água e verificou as caixas de vistoria e derivação, limpando-as, sobre os prédios por onde passava, incluindo o da Ré, sem contestação de quem quer que fosse.

111

No dia 15 de Novembro de 2020, sábado de manhã, a ré tapou a mina com terra.

112

Impedindo assim a Autora de aceder à mesma.

114

Impossibilitando a condução da água até aos prédios da Autora.

133

No dia 19 de Dezembro de 2020, a Ré executou trabalhos.

134

Retirou terra de cima da mina.

135

Abriu a boca da mina.»

5.4.

Quarta questão.

O julgador decidiu, de jure, invocando seguinte, sinótico e essencial, discurso argumentativo:

«…(nos termos do disposto no)  artº 1395.º do Código Civil, considera-se título justo de aquisição das águas subterrâneas qualquer meio legítimo de adquirir a propriedade de coisas imóveis ou de constituir servidões, sendo certo que a aquisição por usucapião apenas será atendida quando forem acompanhadas de construção de obras, visíveis e permanentes, no prédio onde exista a água, que revelem a sua captação e posse nesse mesmo prédio. Estes meios legítimos de aquisição são os previstos no artigo 1316.º do mesmo diploma, isto é, por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei.

Decorre com fluência dos factos provados que na escritura pública de compra e venda pela qual a autora (os seus antecessores) adquiriu o seu imóvel, que este beneficia da água aqui em disputa. Direito que a adquirente fez registar. Além disso, mais se apurou que os ante possuidores da autora já haviam efectuado trabalhos para exploração de veios subterrâneos de água que nasce nos prédios de terceiros seus vizinhos, incluindo boca da mina, porta, represa e demais canalização que conduz aquela água, ademais, ao prédio que é hoje pertença da autora. E isto há bem mais de 20 anos, aí beneficiando de um depósito, que alguns chamam poça…e que as mesmas se revelam de modo ostensivo e são perceptíveis e estáveis…Flui, assim, com suficiente clareza da retratada factualidade que os antecessores da autora adquiriram, por justo título, o direito de propriedade das águas subterrâneas que, em mina, brotam no prédio da ré.

…a servidão predial é, nos termos do art.º 1543º do Código Civil, o encargo que recai sobre um prédio e que aproveita exclusivamente a outro prédio, pertencente a dono diferente. Nesta medida, a servidão implica uma relação de dependência entre dois prédios: de um lado o dominante, em cujo proveito ela se estabelece; do outro o serviente, onerado com o encargo em que ela se traduz. O direito de servidão há-de ter, assim, uma relação económica com o prédio dominante, pois a servidão só será predial quando o prédio seja instrumento necessário para o exercício da servidão

. A servidão constitui um direito real de gozo sobre coisa alheia conferindo ao seu titular poderes para fruir e utilizar a coisa, extraindo dela benefícios e limitando, em consequência, o gozo do proprietário da coisa na medida em que inibe este titular de praticar actos que possam prejudicar o exercício daquele direito, em benefício do titular do direito de servidão6

Quanto ao seu conteúdo, expressa o art.º 1544.º do mesmo diploma legal que podem ser objecto da servidão quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, susceptíveis de serem gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo que não aumentem o seu valor…

No âmbito das servidões legais de presa/armazenamento, o art.º 1559º do Código Civil estabelece que “os proprietários e os donos de estabelecimentos industriais, que tenham adquirido o direito ao uso de águas particulares existentes em prédio alheio, podem fazer neste prédio as obras necessárias ao represamento e derivação da respectiva água, mediante o pagamento de uma indemnização correspondente ao prejuízo que causarem”. Relativamente à servidão de aqueduto, estipula o artigo 1561.º do mesmo diploma legal que “em proveito da agricultura ou da indústria, ou para gastos domésticos, a todos é permitido encanar, subterraneamente ou a descoberto, as águas particulares a que tenham direito, através de prédios rústicos alheios, não sendo quintais, jardins ou terreiros contíguos a casas de habitação, mediante indemnização do prejuízo que da obra resulte para os ditos prédios”, acrescentando o n.º3 que “a natureza, direcção e forma do aqueduto serão os mais convenientes para o prédio dominante e as menos onerosas para o prédio serviente”. A aquisição de um direito de servidão por via do instituto da usucapião, dá-se nos termos do artigo 1287.º do Código Civil, onde se estatui que “a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo o disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação”.

…Face aos factos provados, importa concluir que a autora, por si e seus antecessores, vem exercendo os referidos actos como titular dos direitos de servidão de presa e de aqueduto, resultando ainda da matéria de facto provada que a sua posse é pública e pacífica (cfr. art.ºs 1261.º e 1262° do Código Civil).

Estando preenchidos os dois requisitos da posse que permitem a aquisição de um direito real por usucapião, cumpre verificar… decorreu o prazo necessário à aquisição dos direitos de servidão em causa,

É certo que, atento o disposto no art.º 1548º nºs 1 e 2 do Código Civil, …conclui-se existirem sinais visíveis e permanentes reveladores das servidões em causa, ou seja, as referidas obras sujeitas a expurgação e limpeza ao longo do ano e todas elas dando evidência de captação, derivação, condução e armazenamento da água.

Já no que concerne à extensão e ao exercício das servidões, dispõe o art.º 1564º do Código Civil que deve observar-se o que consta do título da sua constituição, tanto para o dono do prédio dominante como para o do serviente. Na insuficiência do título, o art.º 1565º do mesmo diploma legal estabelece que o direito de servidão compreende tudo o que é necessário para o seu uso e conservação, por forma a satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante, se bem que com o menor prejuízo para o prédio serviente.

Assim, “por um lado, como primacial objectivo, manda-se atender às necessidades normais e previsíveis do prédio dominante; por outro lado, entre as várias formas que possivelmente satisfaçam esse desiderato, escolher-se-á a que menos onerosa se torne para o prédio serviente”

Constituída uma servidão por força da usucapião, o seu conteúdo ou extensão e o seu exercício determinar-se-ão pela posse do respectivo titular, em obediência à máxima milenas segundo a qual tantum prescriptum quantum possessum. De forma que, atentos os factos dados como provados, verifica-se que as servidões em causa apresentam o conteúdo definido pelos actos possessórios exercidos pela autora e seus antecessores nos termos já atrás expostos, compreendendo ainda tudo quanto se mostrar necessário ao seu uso e conservação, designadamente o direito de acompanhar o trajecto das águas, para efeitos de reparações e limpeza.»

Esta subsunção e argumentação apresentam-se, desde logo em tese, curiais; e, para o caso concreto e atentos os seus elementos fáctico circunstanciais apurados, alcançam-se adequadas.

Pelo que urge corroborá-las e chancelá-las.

Os óbices levantados pela recorrente não colhem.

Versus o entendido por esta, na sentença não foi concedido à autora um direito de propriedade plena sobre a água, de tal sorte que ela dele pode dispor livremente, nos termos por lei permitidos quanto a tal direito – artº 1305º do CC.

Nem o podia ter sido, pois que a nascente da água e a mina não existem em prédio seu, mas em prédio de terceiro: da ré.

Assim, e como ressuma da sentença, nesta apenas lhe foi concedido um direito de servidão de água e aqueduto, a exercer, formal, substancial e temporalmente, nos termos e com as condicionantes inerentes ao exercício do direito limitado de servidão.

Esta servidão foi  constituída não pela aquisição derivada da compra e venda, e, neste âmbito, com a possível interpretação de que apenas abrangia dois dias por semana.

  Mas antes foi concedida por via do instituto da usucapião, como permitido pelos citados artigos 395º nº1 e 390º do CC.

Esta via aquisitiva assume o jaez de originária, e,  sobreleva sobre todos os outros modos de aquisição, derivados ou originários.

Assim sendo, verifica-se que dos factos provados que a sustentam  - vg. os dos pontos 27 e 59 -  não emerge qualquer limitação temporal quanto ao uso da água.

Destarte, mesmo que restrição houvesse, de pretérito, como parece decorrer da compra e venda, ela foi posteriormente eliminada/ultrapassada pela aquisição via usucapião, pois que dos factos provados a ela atinentes, não consta.

5.4.

Quarta questão.

Aqui assiste razão à recorrente.

A autora formulou diversos pedidos, de entre os quais a condenação da ré no pagamento da sanção pecuniária compulsória de 200 euros por cada dia de incumprimento da presente ação,  (melhor teria dito:  por cada dia de incumprimento da sentença que decretasse o direito  à água e o dever da ré de efetuar as diligências necessárias à efetivação do mesmo).

No despacho saneador tal pedido foi julgado improcedente por se entender que estamos perante prestações fungíveis que não cabem na previsão do artº 829º-A do CC.

E em tal despacho se tendo relegado para final a fixação das custas «em função do conjunto do mérito da causa».

Ora na sentença final não se cumpriu tal decisão, pois que se condenou a ré na totalidade das custas.

Verifica-se assim que  existiu omissão  de pronúncia neste particular, e que esta pronuncia se impõe.

Pois que, na economia do pretendido pela autora na ação, ela não conseguiu procedência completa, já que ficou vencida quanto aquele pedido de fixação da sanção compulsória.

Urge, pois, em substituição do tribunal recorrido, emitir pronúncia – artº 665º do CPC.

As custas são fixadas em função da sucumbência.

Se esta é líquida e quantitativamente definida, a fixação obedece a critérios meramente matemáticos.

Se o não é, as custas podem ser fixadas, por aproximação, equitativamente.

No caso vertente assim é.

A autora formula vários pedidos, alguns dos quais não são quantitativamente quantificados nem quantificáveis.

Urge, pois, decidir com base no aludido juízo équo.

Tudo visto e ponderado e porque, vg,. nem sequer se sabe se a ré deixaria de cumprir o ordenado e, assim, sendo necessário recorrer à aplicação efetiva de tal sanção e atento o  valor  da mesma, bem como o valor do processo,  julga-se adequado  fixar a responsabilidade da autora por custas em 5%, fixando-se assim a da ré em 95%.

Procede, em parte, mas apenas no particular conspeto da responsabilidade em custas, o recurso.

 

(…)

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda julgar o recurso parcialmente procedente e, agora, condenam-se ambas as partes nas custas do processo, na proporção de 95% para a ré e 5% para a autora.

No mais se mantendo a sentença.

Coimbra, 2023.05.16.