Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3711/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALEXANDRINA FERREIRA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
SEGURO OBRIGATÓRIO
NULIDADE
Data do Acordão: 03/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ÍLHAVO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 428.º, N.º 1; 429.º DO CÓDIGO COMERCIAL; ARTIGO 1.º, N.º 1 E 8.º, N.º 1 DO DECRETO-LEI N.º 522/85, DE 31/12
Sumário: 1. O interesse do segurado quanto à viatura segura não coincide necessariamente com a propriedade. Assim, bem pode o veículo ter sido adquirido pelo pai para ser utilizado pelo filho, caso em que este mantém interesse no objecto seguro e não haverá nulidade do contrato prevista no artigo 428.º, n.º 1 do Código Comercial
2. Existindo contrato de seguro celebrado com quem não era proprietário, fica suprida a obrigação de segurar que, prima facie, impendia sobre o proprietário.

3. No âmbito do seguro obrigatório, a existência de declaração inexacta do tomador é inoponível ao lesado.

Decisão Texto Integral: Acordam no tribunal da Relação de Coimbra

A Companhia de Seguros A... veio interpor recurso da sentença proferida na acção que, contra si e, ainda, contra Fundo de Garantia Automóvel e B... foi movida por C....
No mesmo recurso, a apelante impugna o despacho proferido sobre as reclamações contra a selecção da matéria de facto, incluída na base instrutória e na considerada como assente.
Na p.i., o autor, ora recorrido pede a condenação da ré, ora recorrente e, subsidiariamente, a condenação dos réus Fundo de Garantia Automóvel e B..., a pagar-lhe a quantia de € 10.100,25, acrescida de juros de mora desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
Alega o autor que, no dia 2 de Janeiro de 2004, pelas 18h45, na rua Vasco da Gama, em Ílhavo, ocorreu um acidente de viação entre o veículo GX-22-74 conduzido por B... que, ao circular a uma velocidade superior a 50 km/h, perdeu o controlo da sua viatura e colidiu com a frente do seu veículo na traseira do 51-57-EZ conduzido por si, autor, que se encontrava parado no mesmo sentido de marcha, que por sua vez, foi embater no B-NL2462, conduzido por D... que se encontrava, igualmente, parado.
Em consequência do acidente, acrescenta o autor, para além de ter ficado privado do uso do seu veículo devido aos danos sofridos, a sua reparação importa em € 9.600,25.
O Fundo de Garantia Automóvel contestou, invocando a sua ilegitimidade por entender que a responsabilidade civil emergente de acidente de viação se encontrava transferida por seguro válido para a Companhia de Seguros A... e invocou desconhecer a generalidade dos factos alegados na p.i.
Também a Companhia de Seguros A... contestou, dizendo que o contrato de seguro que transfere para si a responsabilidade decorrente da circulação do GX-22-74, foi celebrado com E..., tendo esta declarado que era a proprietária e condutora habitual daquele veículo.
Com aquela declaração - continua a seguradora - a tomadora visava evitar o agravamento do prédio de seguro, dado que o seu verdadeiro proprietário, o co-réu B..., tinha carta há menos de 2 anos e idade inferior a 25 anos, circunstâncias que determinariam um agravamento do prémio em 40%. Por isso - diz - o contrato assim celebrado é nulo.
O autor respondeu, pugnando pela improcedência da excepção de ilegimidade como, efectivamente, assim veio a ser decidido na fase de saneamento do processo.
***
A seguradora reclamou do despacho que fixou os factos assentes e a base instrutória, reclamação que só parcialmente foi atendida.
***
A 1.ª instância julgou provados os seguintes factos:
1. Conforme consta da proposta de seguro titulada pela apólice n.º 603266284, E..., moradora na rua Argenat, n.º 44, 1.º Dt.º, na cidade da Maia, portadora da carta de condução n.º P-698514, de 3 de Outubro de 1988, transferiu o risco de circulação do veículo automóvel Honda Civic GX-22-74 para a Companhia de Seguros A... (al. A) dos factos assentes).
2. No dia 2 de Janeiro de 2004, cerca das 18h 45m, na rua Vasco da Gama, em Ílhavo, ocorreu uma colisão entre as viaturas ligeiras de passageiros com as matrículas GX-22-74, 51-57-EZ e B-NL-2462.
3. Naquela altura a viatura GX era conduzida por B....
4. O veículo EZ era conduzido pelo seu proprietário C....
5. A viatura B-NL era conduzida por D..., propriedade da firma BSG-Sternebau, com sede em Berlim, na Alemanha.
6. No momento do acidente referido em 1. os condutores dos veículos EZ e B-NL, encontravam-se parados em face do semáforo de sinal vermelho, na fila de trânsito, na rua Vasco da Gama, no sentido Aveiro/Ílhavo.
7. No mesmo sentido de marcha circulava o condutor do veículo GX, a uma velocidade superior a 50km/h.
8. O condutor do veículo GX perdeu o controle da sua viatura indo colidir com a frente do seu veículo na traseira do veículo EZ.
9. E em consequência da colisão que havia sofrido, projectou com a sua frente na traseira do veículo B-NL que se encontrava parado à sua frente.
10. Em consequência do acidente, a reparação do veículo EZ ascende ao montante de € 9.600,25.
11. À data do acidente o valor comercial do veículo do autor era de € 10.000,00.
12. O autor viu-se privado de usufruir do seu veículo, passando a utilizar sistematicamente a viatura do seu pai, causando-lhe incómodos.
13. Em 11 de Dezembro de 2003, a E... havia comprado ou adquirido o veículo GX-22-74 para o seu filho B....
14. E a partir dessa data o B... passou a ser o condutor habitual do veículo GX-22-74.
15. A mãe do co-réu B... intitulou-se como proprietária e condutora habitual do veículo GX-22-74 por forma a evitar que a co-ré Companhia de Seguros A... pudesse cobrar o prémio legalmente devido.
16. Por concluir que a E... havia prestado falsas declarações à ré Companhia de Seguros enviou-lhe carta datada de 10.02.2004, anulando o contrato de seguro desde o seu início com base em falsas declarações, facto que também foi levado ao conhecimento do réu B....
***
A apelante apresentou as conclusões de recurso que constam de fls. 233 a 245.
Começando por apreciar a impugnação que a recorrente faz do despacho proferido sobre as reclamações que formulou contra a matéria de facto assente e a incluída no questionário:
Na fase de saneamento do processo, a 1.ª instância deixou assente a seguinte matéria de facto: «Conforme consta da proposta de seguro titulada pela apólice n.º 603266284, E..., moradora na rua Argenat, n.º 44, 1.º Dt.º, na cidade da Maia, portadora da carta de condução n.º P-698514, de 3 de Outubro de 1988, transferiu o risco de circulação do veículo automóvel Honda Civic GX-22-74 para a Companhia de Seguros A...» matéria que, mais tarde, foi transposta para a sentença.
A seguradora reclamou e mantém-se inconformada, sustentando que deveria ter sido acolhida a redacção do art.º 5.º da sua contestação que é do seguinte teor: «Em 11 de Dezembro de 2003, E..., moradora na rua Argenat, n.º 44, 1.º Dt.º, na cidade da Maia, empregada de balcão, nascida a 14 de Maio de 1956 e portadora da carta de condução n.º P-698514, de 3 de Outubro de 1988, subscreveu uma proposta de seguro do ramo automóvel, em seu nome, no mediador de seguros José António Gomes Soares de Azevedo, morador na rua do Viso, 30 – 1.º sala 3, na Maia, mediante a qual pretendia transferir para a contestante o risco de circulação do seu veículo automóvel Honda Civic GX-22-74, do qual era condutora habitual».
Como resulta à evidência das conclusões de recurso, a seguradora usa um discurso prolixo, deficientemente estruturado, dificultando a sua apreensão o que, certamente, também terá sido sentido na 1.ª instância.
É, assim, que, havendo algum fundamento na reclamação feita (proposta de seguro e apólice de seguro são realidades distintas) a redacção proposta pela seguradora terá que sofrer correcção e ser completada com outros factos relativamente aos quais as partes manifestam concordância nos seus articulados. Com efeito, a alteração que se vai introduzir na al. A) dos factos assentes, impõe a ampliação da matéria de facto.
Deste modo, altera-se a redacção dada à al. A) dos factos assentes que passará a ser do seguinte teor: A) «Em 11 de Dezembro de 2003, E..., moradora na rua Argenat, n.º 44, 1.º Dt.º, na cidade da Maia, empregada de balcão, portadora da carta de condução n.º P-698514, de 3 de Outubro de 1988, subscreveu a proposta de seguro do ramo automóvel, cuja cópia consta de fls. 59 e 60 dos autos, no mediador de seguros José António Gomes Soares de Azevedo, morador na rua do Viso, 30 – 1.º sala 3, na Maia, mediante a qual pretendia transferir para a contestante o risco de circulação do veículo automóvel Honda Civic GX-22-74 (documento de fls. 59 e 60).
Acrescentam-se as seguintes alíneas: B) Na proposta referida em A) consta que E... nasceu em 14.5.56 e no espaço reservado à identificação do condutor habitual consta apenas o número de carta de condução P-698514, de 3 de Outubro de 1988 e a ausência de restrições à carta de condução (documento de fls. 59 e 60); C) Na proposta referida em A), o espaço reservado à designação da qualidade do proponente do seguro (proprietário, usufrutuário, locatário, credor hipotecário, entidade patronal ou outra designação análoga) não foi preenchido (documento de fls. 59 e 60). D) A proposta referida em A) foi aceite pela seguradora que veio a emitir a apólice n.º 603266284 (artigos 5.º e 6.º da contestação da seguradora e documento de fls. 59 e 60).
A seguradora reclamou da base instrutória sustentando que nela deve ser integrada a matéria constante do art.º 11.º da p.i. que, expressamente, aceita no art.º 1.º da sua contestação.
A deferir-se aquela pretensão, ter-se-ia que aditar ao questionário a seguinte matéria: «à data do acidente, o GX era propriedade de B... ?»
A 1.ª instância entendeu que a questão assim colocada era de direito, objectando a seguradora que tal não impediu que se quesitasse a seguinte matéria «O veículo EZ era conduzido pelo seu proprietário C... ?». e, ainda «A viatura B-NL era conduzida por D..., propriedade da firma BSG-Sternebau, com sede em Berlim, na Alemanha ?».
Nenhuma discussão se centrava, nem agora se centra, em torno da propriedade dos veículos EZ e B-NL, daí que uma imperfeita redacção dada aos quesitos não interfirisse, nem agora interfira, com a apreciação do mérito da acção. O mesmo não se passa com a questão respeitante à propriedade do GX, matéria que tinha que ser sujeita a discussão porque foi impugnada pelo Fundo de Garantia Automóvel e que, segundo as várias soluções plausíveis de direito, a 1.ª instância tinha que tomar em consideração ao elaborar a base instrutória.
Ora, como se fez notar no despacho que desatendeu a reclamação da seguradora, a «propriedade» é um conceito normativo, daí que a matéria constante do art.º 11.º da p.i., da forma como foi articulada, não podia e não pode integrar a base instrutória.
Tendo a seguradora interesse em demonstrar que, quem subscreveu a proposta de seguro não era proprietária do veículo, porque seu proprietário era o B..., deveria ter articulado os factos que conduzissem a esta conclusão. De qualquer forma, o que, a porpósito desta matéria podia ser colhido dos articulados, veio a ser integrado no quesito 13.º.
A recorrente sustenta, ainda, que os factos por si alegados nos art.s 7.º a 32.º da contestação deveriam ter sido integrados na base instrutória, posição que também defendeu quando reclamou da sua elaboração.
A generalidade do alegado nos art.s 7.º a 32.º não satifaz o que está prescrito nos artigos 487.º, n.º 2 e 488.º do CPC, o que terá dificultado a selecção da matéria de facto. É que, toda a narrativa em torno da investigação e das diligências levadas a cabo pela seguradora constitui matéria dispensável à boa decisão da causa. Cabia à seguradora aguardar pela fase de produção de prova pois é, efectivamente, nesta fase, que cumpre averiguar da razão de ciência das testemunhas e das circunstâncias que possam justificar o conhecimento dos factos, tal qual prescreve o art.º 638.º do CPC e é, naturalmente, o momento próprio, para a referência às tais diligências e averiguações e ao que disse e não disse a proponente do seguro.
Da extensa e repetitiva narração levada a cabo entre os artigos 7.º a 32.º, só havia que retirar os factos que evidenciassem a alegada desconformidade entre os dados inscritos na proposta de seguro e a realidade e, também, os que identificassem o objectivo prosseguido com essa desconformidade.
Quanto à propriedade do GX, a 1.ª instância encontrou, face a deficiente alegação da seguradora, a redacção possível que subordinou ao quesito 13.º, como já se referiu.
Quanto ao objectivo tido em vista pela proponente do seguro, ele mostra-se quesitado sob o n.º 15.º
Se era intenção da seguradora provar a idade do condutor do GX, deveria ter juntado documento de prova bastante, o que não fez.
E, no que diz respeito ao documento de fls.132, o que dele se retira é que a propriedade do GX está inscrita na Conservatória do Registo de Automóveis em nome de B... o que pode, efectivamente, ser aditado aos factos assentes e não conflitua com a resposta dada ao quesito 13.º
Reordenando os factos, julga-se provado:
1. Em 11 de Dezembro de 2003, E..., moradora na rua Argenat, n.º 44, 1.º Dt.º, na cidade da Maia, empregada de balcão, portadora da carta de condução n.º P-698514, de 3 de Outubro de 1988, subscreveu a proposta de seguro do ramo automóvel, cuja cópia consta de fls. 59 e 60 dos autos, no mediador de seguros José António Gomes Soares de Azevedo, morador na rua do Viso, 30 – 1.º sala 3, na Maia, mediante a qual pretendia transferir para a contestante o risco de circulação do veículo automóvel Honda Civic GX-22-74 (documento de fls. 59 e 60).
2. Na proposta referida em 1. consta que E... nasceu em 14.5.56 e, no espaço reservado à identificação do condutor habitual, consta apenas o número de carta de condução P-698514 de 3 de Outubro de 1988 e a ausência de restrições à carta de condução (documento de fls. 59 e 60).
3. Na proposta referida em 1., o espaço reservado à designação da qualidade do proponente do seguro (proprietário, usufrutuário, locatário, credor hipotecário, entidade patronal ou outra designação análoga) não foi preenchido (documento de fls. 59 e 60).
4. A proposta referida em 1. foi aceite pela seguradora que veio a emitir a apólice n.º 603266284 (artigos 5.º e 6.º da contestação da seguradora e documento de fls. 59 e 60).
5. No dia 2 de Janeiro de 2004, cerca das 18h 45m, na rua Vasco da Gama, em Ílhavo, ocorreu uma colisão entre as viaturas ligeiras de passageiros com as matrículas GX-22-74, 51-57-EZ e B-NL-2462.
6. Naquela altura a viatura GX era conduzida por B....
7. O veículo EZ era conduzido pelo seu proprietário C....
8. A viatura B-NL era conduzida por D..., propriedade da firma BSG-Sternebau, com sede em Berlim, na Alemanha.
9. No momento do acidente referido em 5. os condutores dos veículos EZ e B-NL, encontravam-se parados em face do semáforo de sinal vermelho, na fila de trânsito, na rua Vasco da Gama, no sentido Aveiro/Ílhavo.
10. No mesmo sentido de marcha circulava o condutor do veículo GX, a uma velocidade superior a 50km/h.
11. O condutor do veículo GX perdeu o controle da sua viatura indo colidir com a frente do seu veículo na traseira do veículo EZ.
12. E em consequência da colisão que havia sofrido, projectou com a sua frente na traseira do veículo B-NL que se encontrava parado à sua frente.
13. Em consequência do acidente, a reparação do veículo EZ ascende ao montante de € 9.600,25.
14. À data do acidente o valor comercial do veículo do autor era de € 10.000,00.
15. O autor viu-se privado de usufruir do seu veículo, passando a utilizar sistematicamente a viatura do seu pai, causando-lhe incómodos.
16. Em 11 de Dezembro de 2003, a E... havia comprado ou adquirido o veículo GX-22-74 para o seu filho B....
17. E a partir dessa data o B... passou a ser o condutor habitual do veículo GX-22-74.
18. A mãe do co-réu B... intitulou-se como proprietária e condutora habitual do veículo GX-22-74 por forma a evitar que a co-ré Companhia de Seguros A.... pudesse cobrar o prémio legalmente devido.
19. Por concluir que a E... havia prestado falsas declarações à ré Companhia de Seguros enviou-lhe carta datada de 10.02.2004, anulando o contrato de seguro desde o seu início com base em falsas declarações, facto que também foi levado ao conhecimento do réu B....
20. A propriedade do GX está inscrita na Conservatória do Registo de Automóveis em nome de B....
***
São duas as questões suscitadas pela apelante: uma diz respeito a uma alegada omissão da sentença recorrida; a outra refere-se às consequências jurídicas que advêm de estar provado que «Em 11 de Dezembro de 2003, a E... havia comprado ou adquirido o veículo GX-22-74 para o seu filho B...; e a partir dessa data o B... passou a ser o condutor habitual do veículo GX-22-74; a mãe do co-réu B... intitulou-se como proprietária e condutora habitual do veículo GX-22-74 por forma a evitar que a co-ré Companhia de Seguros A... pudesse cobrar o prémio legalmente devido».
No mais, ao longo das vastas e repetitivas conclusões, a apelante limita-se a apontar vícios à sentença recorrida que, no essencial, mais não é do que a manifestação de discordância relativamente ao decidido.
Vejamos, então, qual a omissão que a recorernte diz ter sido praticada.
Segundo a 11.ª conclusão, a apelante terá alegado na sua contestação «duas nulidades do contrato de seguro, ou, pelo menos, uma nulidade e uma anulabilidade» mas a sentença recorrida só terá conhecido de uma.
A nulidade que segundo apelante não terá sido conhecida é a resultante de uma alegada falta de interesse da E... quanto ao objecto seguro o que, a demonstrar-se, cairia na previsão do art.º 428.º, 1.º do Código Comercial.( Art.º 428.º, 1.º «Se aquele por quem ou em nome de quem seguro é feito não tem interesse na cousa segurada, o seguro é nulo».)
O que importa dizer sobre a aludida nulidade é que, invocada pela seguradora a falta de interesse da E... quanto ao objecto seguro, cumpria-lhe fazer a prova dessa falta de interesse.
Tudo indica que a seguradora parte da seguinte ideia: sendo o B... o proprietário do GX, só ele tem interesse no veículo. A ser assim, significa que a apelante identifica interesse com propriedade.
Ora, o caso dos autos é paradigmático do que acontece todos os dias. Cada vez mais a carta de condução é obtida mais cedo, aprontando-se os pais a adquirir um veículo para os seus filhos. Por várias razões, algumas das quais até nem se prendem com desejo de ostentação. Basta que nos lembremos da insegurança junto das escolas, nos meios de transporte, em alguns bairros...
É àquela luz que os factos têm que ser analisados. À luz da normalidade social. À luz da experiência comum.
O acto de julgar não se esgota no apurameto dos factos, no seu alinhamento e ordenação, antes envolve a sua compreensão. E compreender é, também, transpor para a realidade social. Deste modo, importa distinguir entre valor e utilidade subjectiva. Se para a E... e seu filho o veículo tem valor que, naturalmente, não é apenas económico, para o B... tem também utilidade. Nesta perspectiva, para ambos o seguro tem interesse, não se mostrando, por isso, verificada a previsão do art.º 428.º, 1.º do Código Comercial.
A outra questão colocada pela apelante tem a ver com uma por si invocada nulidade do contrato de seguro que, sendo a cominação prevista no art.º 429.º do Código Comercial, no seu entender é a aplicável face aos factos apurados.
Entendeu a 1.ª instância: «Imperativas razões de ordem social impõem que a reparação das vítimas seja rápida e segura, isto é, que não haja dúvidas quanto à pessoa do responsável, que o processo a seguir seja célere e que a efectiva indemnização não seja posta em causa pela insolvabilidade do causador do acidente.
Estas exigências impõem um seguro obrigatório em que a responsabilidade é garantida pela seguradora, salvo nos casos excepcionais em que a garantia é assumida pelo Fundo de Garantia Automóvel.
Daí que nos regimes de seguros obrigatórios se encontre amplamente consagrado o princípio da inoponibilidade das excepções contratuais. Estamos “em face de um contrato por conta ou a favor de terceiro e não de um seguro por conta própria”.
Assim, o lesado, desde que exista seguro, tem o direito de peticionar directamente contra a seguradora a indemnização que, prima facie, lhe deveria ser paga pelo lesante - o segurado.
Estabelece, com efeito, o art.º 1.º, n.º 1, do D.L. n.º 522/85, de que “…toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação dos danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de lesões corporais ou materiais causadas a terceiros por um veículo terrestre a motor, seus reboques ou semi-reboques, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se, nos termos deste diploma, coberta por um seguro que garanta essa responsabilidade”.
Acrescenta o art.º 2.º do citado diploma legal que “a obrigação de segurar impende sobre o proprietário do veículo, exceptuando-se os casos de usufruto, venda com reserva de propriedade e regime de locação financeira, em que a respectiva obrigação recai, respectivamente, sobre o usufrutuário, adquirente ou locatário”. Porém, “se qualquer outra pessoa celebrar, relativamente ao veículo, contrato de seguro que satisfaça o disposto no presente diploma, fica suprida, enquanto o contrato produzir efeitos, a obrigação das pessoas referidas no n.º anterior”.
Assim, existindo contrato de seguro celebrado com quem não era proprietário, fica suprida a obrigação de segurar que, prima facie, impendia sobre o proprietário, conf. art.º 8 n.º 1 do mesmo diploma legal».
E, mais adiante, ponderando a circunstância de a E... ter prestado à seguradora falsas informações, entendeu-se na sentença apelada que «para sancionar este tipo de comportamentos do tomador do seguro - declaração inexacta ou a reticência de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro, e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato - de harmonia com o disposto no art.º 429.º do Código Comercial, tornam o seguro nulo.
Não se exige que o declarante tenha agido com dolo, sendo suficiente que a omissão ou declaração inexacta se devam à sua culpa. É o que resulta do citado art.º 429.º, ou seja, que o segurado ou o tomador tenha conhecimento dos factos ou circunstâncias inexactas ou omitidas e que tendo em vista a protecção do segurador de modo que se ele soubesse dessas circunstâncias “não teria concluído o contrato (erro essencial) ou exigiria outras condições mais onerosas para o segurado (erro incidental).
Cumpre-nos, agora, apurar se na realidade as inexactidões ou reticências das declarações tal como refere o citado art.º 429.º geram a nulidade do contrato ou a simples anulabilidade.
Tudo está em saber se a “nulidade” aí prevista, resultante de falsas declarações sobre o risco, deverá ser considerada “nulidade” para efeitos do disposto naquele diploma.
Desde já referimos que, não obstante a terminologia legal - nulo - defendemos, tal como a doutrina e a jurisprudência vêm assinalando, que aquele citado artigo comina a inexactidão ou reticência das declarações com a simples anulabilidade do negócio celebrado.
E, seguindo de perto esses ensinamentos, diremos que a nulidade tem um regime mais severo porque se trata de motivos de interesse público que se destina a salvaguardar, enquanto as anulabilidades se fundam na infracção de requisitos dirigidos à tutela de interesses particulares bem como a inexistência de violação de qualquer norma imperativa.
É, na verdade, a anulabilidade que está geralmente associada à tutela dos interesses particulares de uma das partes do contrato, enquanto a nulidade é, em regra, estabelecida para os casos em que o reconhecimento do negócio contrairia exigências de carácter geral ou o interesse público. Ora, os interesses em jogo na previsão do art.º 429.º do C. Comercial não justificam sanção tão grave como a da nulidade e o uso desta expressão pode ser atribuído a simples lapso ou imperfeição terminológica, aliás frequente.
Ademais a interpretação referida é a que se mostra mais consentânea com a unidade do nosso sistema jurídico que qualifica, por norma, de anulabilidade a invalidade dos negócios por vício na formação da vontade (art.º 247.º, 251.º, 252.º, 254.º, 256.º e 257.º do Código Civil).
Na verdade o art.º 429.º constitui um afloramento do erro vício da vontade: erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se refira à pessoa do declaratário ou ao objecto do negócio, torna este anulável (..) desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro (art.º 251.º e 247.º do Código Civil). Trata-se, assim, de situação em que a seguradora se decide a prosseguir a função económico-social do negócio partindo de um conhecimento erróneo ou de uma previsão enganosa.
Aqui chegados temos a acrescentar que a anulabilidade “só existe desde que as declarações inexactas ou omitidas possam ter influência na opinião do risco, ou seja, quaisquer circunstâncias que, por qualquer forma, sejam susceptíveis de tornar o sinistro mais provável ou mais amplas as suas consequências. A seguradora pode obter, nesses casos, a redução do contrato”( Moitinho de Almeida, in “ O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado”, pág. 78.).
Na verdade, resulta claro do citado art.º 429.º que não são todas as declarações inexactas ou reticentes que permitem a anulação do contrato de seguro, mas tão só aquelas que influíram na existência e nas condições do contrato, de forma que se o segurador as conhecesse como tais, isto é, se conhecesse factos ou circunstâncias não declaradas, ou não contrataria, ou teria contratado em diversas condições se as conhecesse.
Porém, a desoneração da seguradora, no que tange ao seguro obrigatório, para com o terceiro lesado (caso em que lhe é permitido opor-lhe excepções legais ou contratuais) só pode acontecer nas situações especificamente prevenidas no art.º 14.º do DL n.º 522/85, de 31/12, que dispõe que “para além das nulidades e anulabilidades que sejam estabelecidas no presente diploma, a seguradora apenas pode opor aos lesados a cessação do contrato nos termos do artigo anterior, ou a sua resolução ou nulidade, nos termos legais e regulamentares, desde que anteriores à data do sinistro”.
Tal como se referiu supra, a lei do seguro visa sobretudo a defesa e protecção directa das vítimas do acidente, tendo como objectivo principal assegurar essa mesma protecção, não podendo, por isso, a seguradora desonerar-se para com o terceiro lesado invocando uma mera anulabilidade que não esteja directamente prevista no citado DL, designadamente, não lhe podendo opor qualquer anulabilidade estabelecida em outra lei quer seja ela geral ou especial: um regime que fizesse depender a determinação do responsável de eventual nulidade resultante de falsas declarações sobre o risco seria fonte de incertezas para os lesados quanto à forma de exercerem judicialmente os seus direitos.
Assim, tendo nós concluído que o art.º 429.º estabelece para as declarações inexactas uma mera anulabilidade, não pode a co-réu opor a correspondente excepção ao autor lesado, porquanto, tal oponibilidade se não justifica em face ao citado art.º 14.º do citado diploma legal.
Concluímos, assim, que a existência de declaração inexacta é inoponivel ao lesado - autor na presente acção».
Pouco há a acrescentar ao decidido na 1.ª instância, bastando sublinhar o que já foi dito acerca da forma como a jurisprudência e doutrina têm interpretado o art.º 429.º do Código Comercial.
Algumas notas, porém.
A proposta de seguro foi subscrita em 11.12.03; o sinistro ocorreu em 02.01.04.
Não obstante ter aceite a proposta, à data do acidente o condutor do GX ainda só era portador do certificado provisório 5123585, conforme se extrai do documento de fls. 21.
É, assim, a proposta de seguro documento fundamental para a decisão do mérito da causa. Ora, da sua análise retira-se que a apelante foi lesta em aceitar uma proposta de seguro, consubstanciada por um seu formulário que, óbviamente foi entregue à proponente, sem se assegurar que dados essenciais lhe fossem fornecidos. Com efeito, ficou por preencher o espaço reservado à qualidade de quem propõe o seguro, e o referente à identidade do condutor habitual.
Mas, foi igualmente lesta a invocar aquelas omissões, quando lhe foi exigido que respondesse pelos danos decorrentes do sinistro. O princípio da boa fé é recíproco. E sobre as seguradoras recia um especial dever de informação. Certamente que, se a proponente tivesse sido alertada para a falta de preenchimento de espaços essenciais do formulário, teria dado a devida relevância aos dados omitidos.
A ser verdade que, como é narrado na contestação, que E... informou «o perito averiguador que tinha subscrito a proposta de seguro e celebrado o contrato de seguro em seu nome, para o mesmo ficar mais barato, evitando os legais agravamentos que o mesmo sofreria caso fosse efectuado por e em nome do seu filho B... por este ter menos de 25 anos de idade e carta de condução há menos de dois» temos de nos questionar sobre a antijuridicidade das tais falsas declarações, porque constitui um desafio a toda a lógica do comportamento humano que alguém que preste falsas declarações a uma seguradora lhe venha a contar tim-tim por tim tim, o que fez e porque o fez.
Como, em nota de pé de página, regista José Vasques na sua obra Contrato de Seguro, citando um trecho de Luiz da Cunha Gonçalves «Há uma grande e radical diferença entre a fria letra da lei e a prática da vida. A lei supõe que o segurador e o segurado se reunem, abancam a uma mesa, discutem as cláusulas do contrato e firmam o escrito. Na prática, porém, bem raras vezes o segurado tem relações directas com o segurador; e ainda mais dificilmente, para não dizer nunca, tem a liberdade de discutir as condições contratuais»
Parafraseando, dir-se-á que há uma grande e radical diferença entre a fria letra dos formulários e a prática das seguradoras. A seguradora quer fazer crer que, no momento em que foi preenchido o formulário, a própria e o proponente se reuniram, abancaram a uma mesa, discutiram as cláusulas do contrato e firmaram o escrito. Na prática, porém, bem raras vezes o segurado tem relações directas com o segurador; e ainda mais dificilmente, para não dizer nunca, tem a liberdade de discutir as condições contratuais.
Acrescentamos: raramente o segurado recebe a informação necessária.
É, assim, oportuno, citar o Acórdão do STJ de 19.10.93, C.J. 1993, tomo III, pág. 72, referenciado na obra de José Vasques, onde se entendeu que «A seguradora, perante dúvidas quanto às declarações iniciais do segurado no momento da celebração do contrato, deve esclarecê-las e não impugnar tais declarações apenas no momento em que lhe é solicitado o pagamento, depois do sinistro (...)».
Afigura-se-nos que a forma como foi preenchido o formulário, deveria ter suscitado dúvidas na apelante. É a atitude esperada pois, como diz François Ewald em Foucault A Norma e o Direito «o risco do segurador (princípio da objectividade, de cálculo, de repartição) corresponde muito exactamente a esse homem médio que produzia a física social de Quetelet».
Face ao exposto, acordam os juizes da secção cível em negar provimento ao agravo e apelação e, consequentemente, em confirmar as decisões recorridas.
Custas pela apelante.