Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3693/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERREIRA DE BARROS
Descritores: SEGURANÇA SOCIAL
SUB-ROGAÇÃO
SUBSÍDIO POR MORTE
INDEMNIZAÇÃO
JUROS DE MORA
Data do Acordão: 01/10/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 66º DA LEI N.º 17/2000, DE 08.08; ART. 71º DA LEI N.º 32/2002, DE 20.12 E 26º DA LEI N.º 28/84, DE 14.08; ARTIGOS 566º, N.º2 E N.º3 DO ART. 805º, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. No caso de concorrência, pelo mesmo facto, de direito a prestações pecuniárias dos regimes de segurança social com o de indemnização a suportar por terceiros, a sub-rogação da Segurança Social nos direitos dos lesados exige a responsabilidade dos terceiros por indemnização que abranja aquelas prestações pecuniárias.
2. Se o terceiro for absolvido, por sentença transitada, do pagamento ao lesado das despesas de funeral, não assiste à Segurança Social o direito de sub-rogação.

3. Relativamente ao subsídio por morte, a Segurança Social fica sub-rogada no direito do lesado face a terceiro responsável pelo facto que causou a morte.

4. A actualização da indemnização ao abrigo do n.º2 do art. 566º do CC deve resultar claramente do texto da sentença. Nada constando, e decidindo-se que os juros de mora são devidos desde a data da citação, é respeitada a doutrina do Acórdão Uniformizador n.º 4/2002, de 09.05.2002.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I)- RELATÓRIO

A... intentou, no Tribunal de Viseu, acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra o FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL (doravante FGA), visando a efectivação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação e pedindo a condenação do Réu ao pagamento de uma indemnização no montante global de € 59.544,50, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento.
O INSTITUTO DE SOLIDARIEDADE E SEGURANÇA SOCIAL-CENTRO NACIONAL DE PENSÕES (doravante ISSS-CNP) interveio na demanda a pedir a condenação do Réu ao reembolso das despesas de funeral, no montante de € 1.182,00, que pagou por morte da pessoa vítima do acidente de viação, acrescida aquela quantia de juros de mora legais, a contar desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Prosseguindo os autos os seus regulares termos foi, por fim, proferida sentença a condenar o Réu a pagar ao ISSS a quantia pedida, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento. Mais foi o Réu condenado a pagar ao Autor, filho da infeliz vítima, diversas quantias a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, todas acrescidas de juros de mora, à taxa legal, a contar desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Irresignado com tal veredicto, apelou o FGA, pugnando pela sua revogação parcial, e rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:
1ª-Como refere o acórdão de uniformização de jurisprudência do STJ AUJ n.º 4/02, publicado no DR n.º 146, 1ª Série-A, quando a decisão é actualizadora, é a partir da data da prolação desta que são contados os juros de mora e não a contar da data da citação;
2ª-No caso concreto, a presente sentença nada refere quanto ao facto de ser ou não actualizadora;
3ª-Tal entendimento provêm do facto de o julgador estar sujeito ao disposto no art. 566º, n.º2 do CC que o obriga a, utilizando a teoria da diferença, procurar a data mais aproximada do dia em que profere a sentença para efectuar o cálculo da indemnização;
4ª-Assim, e por princípio, a indemnização proferida é actualizada, mesmo que nada diga o julgador quanto a tal, pelo que, por aplicação do acórdão de fixação de jurisprudência a uma sentença actualizada, deverá contar-se o termo inicial da contagem dos juros da data da prolação da sentença e não da citação, o que se requer no presente caso;
5ª-A prestação por morte representa um valor que seria sempre pago pela Segurança Social, em qualquer circunstância, uma vez que a morte é certa ao ser humano;
6ª-O reembolso da prestação paga por morte à Segurança Social provoca uma situação de enriquecimento desta, substancialmente ilegítimo, pelo que não deverá ser concedido;
7ª-Po outro lado, o art. 71º da Lei n.º 32/2002, de 20/12, ou mesmo o art. 66º da Lei n.º 17/2000, de 08.08 (aplicável ao caso) restringe o direito de sub-rogação da Segurança Social às situações em que pelo mesmo facto, concorrem prestações desta com as indemnizações a pagar pelo responsáveis pelo dano;
8ª-Ora a prestação por morte paga pela Segurança Social, de acordo com o art. 47º da última lei citada, tem como objectivo evitar a perda ou redução de rendimentos, enquanto que a indemnização a pagar pelo lesado tem também uma função punitiva;
9ª-Pelo que não se poderá dizer que concorrem para o ressarcimento do mesmo dano, uma vez que têm objectivos e fórmulas de cálculo diversos;
10ª-Ora, não se verificando uma situação de concorrência, não ocorre o preenchimento da previsão legal do art. 66º da Lei de Bases citada, pelo que não se verifica a situação de sub-rogação invocada pela Segurança Social, não tendo assim esta direito ao reembolso das prestações pagas;
11ª-Por fim, caso mesmo assim se entenda que ambas as indemnizações concorrerem para o ressarcimento do mesmo dano, deverá ser descontada na indemnização paga pelo FGA ao lesado, o montante que este já recebeu da Segurança Social a título de prestação por morte, sendo que só o montante que este já recebeu da Segurança Social a título de prestação por morte, sendo que só após esta situação se poderia a Segurança Social subrogar junto do lesante (ou de quem o substitui) e evitar desta forem o enriquecimento do lesado pelo duplo ressarcimento do mesmo prejuízo;
12ª- A sentença em causa violou, entre outros, o disposto no n.º2 do art. 566º do CC, bem como os arts. 66º e 47º e segs. da Lei n.º 17/2000, de 08.08.

Apenas contra-alegou o ISSS-CNP, batendo-se pela manutenção do julgado.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II)- OS FACTOS E O DIREITO APLICÁVEL

A factualidade com interesse ao julgamento do recurso decorre dos autos e já foi acima relatada. Ponderando o teor das conclusões da alegação a delimitar, em princípio, o objecto do recurso (arts. 690º, n.º1 e 684º, n.º3, ambos do CPC), importa dilucidar as seguintes questões:
1ª- Saber a partir de que momento devem ser contados os juros de mora;
2ª- Definir se o ISSS tem direito ao reembolso das despesas de funeral que pagou por morte de uma sua beneficiária.

II-)- Vejamos a 1ª questão
Na tese do Apelante FGA, os juros de mora deveriam ser contados a partir da prolação da sentença e não a partir da data da citação, como foi decidido.
No acórdão para Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2002, de 09.05.2002, publicado no DR n.º 146, I-A, de 26.02.2002, decidiu-se que “sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º2 do art. 566º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos arts. 805º, n.º3 (interpretado restritivamente), e 806º, n.º1, também do Código Civil, a partir da sentença em primeira instância, e não a partir da citação”.
Percorrendo a sentença impugnada, vê-se que a Ex.ma Juiz, logo após, na fundamentação, fixar as quantias indemnizatórias devidas ao Autor, teve a preocupação de assinalar que a tais montantes acrescem juros desde a citação, voltando a repetir na parte decisória que os juros moratórios eram contados desde a data da citação.
Ora, o Autor pediu a condenação do FGA ao pagamento da quantia de € 5.000 como indemnização pelos sofrimentos da vítima nos momentos que antecederam a morte, a quantia de € 40.000 para ressarcir o dano morte ou a perda do direito à vida, e para compensar os danos próprios pelo falecimento da sua mãe, pediu a quantia de € 12.500. Na sentença foram arbitradas as quantias de € 5.000 a título de indemnização pelas dores sofridas pela vítima ante a iminência da morte, a quantia de € 8.000 como ressarcimento da sofrimento do Autor pela morte da sua mãe, e a quantia de € 30.000 pelo dano morte. Ou seja, não foi arbitrada indemnização em montantes superiores aos peticionados, e só num desses itens (€ 5.000) foi concedida no montante pedido, sendo esse um indício de não se ter procedido a qualquer actualização nos termos do n.º 2 do art. 566º do Código Civil, designadamente tendo em conta a inflação. Veja-se que o ISSS-CNP pediu o reembolso da quantia de € 1.182,00, a título de despesas de funeral, e tal quantia foi o FGA condenado a pagar sem qualquer actualização.
Mas, apesar dessa norma, pode muito bem acontecer que o Julgador na sentença se abstenha de actualizar os montantes pedidos, e determine a contagem dos juros moratórios desde a data da citação. Aliás, tendo presente a jurisprudência uniformizadora citada, não se devendo cumular a actualização prevista no n.º 2 do art. 566º do CC com os juros moratórios a contar da citação, o facto de se salientar, na fundamentação, que os juros são contados desde a data da citação, só pode querer significar que a 1ª instância não procedeu a qualquer actualização das quantias pedidas. De qualquer modo, entendemos que a actualização à luz do n.º 2 do art. 566º do CC terá de resultar expressa ou explicitamente da sentença, e tal não acontece no caso ajuizado, bem pelo contrário. Como flui do mencionado Acórdão Uniformizador, é mister que “a indemnização pecuniária… tenha sido objecto de cálculo actualizado”.
Em suma, a actualização ex vi do n.º2 do art. 566º do CC terá que resultar claramente do texto da sentença, e no silêncio ou se tal não acontecer, os juros de mora deverão contados desde a data da citação (Cfr., neste sentido, entre outros, os acórdãos do STJ publicados na CJ 2003, 2º, p. 43; na CJ 2003, 3º, p. 153, e Revista n.º 1040/04- 2ª Secção, in www.stj.pt.jur. ).
Por conseguinte, e salvo o devido respeito, não merece a acolhimento a tese do Apelante FGA vertida nas conclusões 1ª a 4ª, sendo os juros moratórios devidos desde a data da citação, como se decidiu, e não a contar da data da sentença da 1ª instância.

II)- Atentemos, agora, na 2ª questão.
Entende o Apelante FGA que não deve pagar ao ISSS-CNP as despesas de funeral que este abonou ao Autor por morte da sua mãe, vítima de acidente de viação, apesar de ser o FGA civilmente responsável pelos danos resultantes do acidente nos termos do art. 21º do Dec. Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro. Alega que não se encontram preenchidos os requisitos para a sub-rogação legal por parte da Segurança Social.
Vejamos.
Prescreve o artigo 66º da Lei n.º 17/2000, de 08.08, vigente ao tempo do acidente, que “no caso de concorrência, pelo mesmo facto de direito a prestações pecuniárias dos regimes de segurança social com o de indemnização a suportar por terceiros, as instituições de segurança social ficam sub-rogadas nos direitos do lesado até ao limite do valor das prestações que lhes cabe conceder”. No mesmo sentido era prescrito no art. 26º da Lei n.º 28/84, de 14.08, revogada pela Lei n.º 17/2000, regime mantido no art. 71º da Lei n.º 32/2002, de 20.12 que revogou a lei n.º 17/2000. Todos esses diplomas aprovam as bases gerais da segurança social, postulando claramente a citada norma relativa à sub-rogação a responsabilidade civil ou a obrigação de indemnizar por parte de terceiro.
Sendo assim, configurando a figura jurídica da sub-rogação a transmissão de um direito de crédito existente (art. 592º do CC), exige-se, no caso presente, que o lesado, isto é o Autor, seja titular de um direito de indemnização relativamente ao FGA em concurso com prestações da segurança social. Ora, o Autor logrou obter condenação do FGA a pagar indemnização pelos sofrimentos da infeliz vítima, sua mãe, bem como indemnização pelo dano morte e indemnização por danos não patrimoniais próprios. Contudo, foi arredado o pedido de condenação pelos danos patrimoniais por ser desconhecido o responsável e interveniente no acidente, invocando-se, a este respeito, o estatuído na alínea b) do n.º2 do art. 21º do Dec. Lei n.º 522/85, de 31.12, nos termos do qual o “Fundo de Garantia Automóvel garante….. a satisfação das indemnizações por lesões materiais, quando o responsável, sendo conhecido, não beneficie de seguro válido ou eficaz”. A peticionada indemnização por despesas de funeral, no montante de € 1.182 foram, na sentença impugnada, enquadradas nas lesões materiais, sendo, em consequência, o FGA absolvido nesse âmbito e já que o responsável pelo acidente era desconhecido. Com efeito, nos termos da alínea a) do citado art. 21º, “o Fundo de Garantia Automóvel garante…. a satisfação das indemnizações por morte ou lesões corporais quando o responsável seja desconhecido ou não beneficie de seguro válido ou eficaz, ou for declarada a falência da seguradora”. Embora as reclamadas despesas de funeral devam ser reputadas como despesas originadas pela morte, e não uma lesão material para efeitos da alínea b) do n.º1 2 do art. 21º, a verdade é que a sentença não foi impugnada nesse pormenor, tendo transitado em julgado. Não foi o FGA condenado a garantir a satisfação de tal indemnização, e, consequentemente, não sendo o Autor titular do direito a indemnização por despesas de funeral não pode operar a sub-rogação por parte do ISSS-CNP. Tal figura jurídica postularia necessariamente a responsabilidade de um terceiro pelo pagamento das despesas do funeral e, então sim, a Segurança Social ficaria sub-rogada nos direito do lesado ou no direito sub-rogado, tendo já pago ao lesado aquelas despesas.
Apenas por esta razão, e não pelos fundamentos invocados pelo Apelante, que o recurso merece proceder. No caso presente, nem sequer está em causa o reembolso do subsídio por morte, que não se confunde com as despesas de funeral, estando a jurisprudência dividida sobre o direito da Segurança Social ao reembolso do subsídio por morte. No tocante a tal subsídio, a jurisprudência maioritária considera, todavia, a Segurança Social sub-rogada no direito do lesado face a terceiro responsável pelo facto que causou a morte (Cfr., entre outros, e neste sentido, acórdãos do STJ publicados na CJ 2002, 2º, p. 237, na CJ 1995, 1º, p. 163;, na CJ 1995, 2º, p. 223; acórdão de 03.03.05, Proc. n.º 05A19, in www.dgsi.pt; acórdãos desta Relação na CJ 1995, 4º, p. 53 e na CJ 2005, 1º,p.59 e acórdão da Relação do Porto, sumariado no BMJ 475º, p. 768. ), mas existindo já consenso no que concerne às demais prestações pecuniárias, aí incluídas as pensões de sobrevivência.
Em suma, embora não merecendo acolhimento a argumentação vertida pelo Apelante FGA nas conclusões 5ª a 11ª, é de concluir que o ISSS-CNP não goza de sub-rogação quanto às despesas de funeral que pagou ao Autor por morte da sua mãe, em virtude de o FGA não ter sido condenado a pagar ao Autor as peticionadas despesas de funeral, inexistindo, assim o direito sub-rogado ou a concorrência a que alude o art. 66º da Lei 17/2000, de 08.08.

III)- DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em:
1-Conceder parcial provimento ao recurso, revogando a sentença na parte em que condenou o Réu a pagar ao ISSS-CNP a quantia de € 1.182, acrescida de juros de mora, mantendo-se quanto ao mais.
2-Sem custas, dada a isenção do FGA e ISSS-CNP
COIMBRA, 10/01/2006

(Relator- Ferreira de Barros) (1º Adj.- Des. Helder Roque) (2º Adj.- Des. Távora Vítor)