Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
158/19.5T8LRA-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: ARRESTO
COMPRA E VENDA
REGISTO DA AQUISIÇÃO
ACÇÃO DE DECLARAÇÃO DE NULIDADE OU ANULAÇÃO
REGISTO DA ACÇÃO
EFEITOS DA PROCEDÊNCIA DA ACÇÃO
EFEITOS DA IMPROCEDÊNCIA DA ACÇÃO
Data do Acordão: 11/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO COMÉRCIO DE ALCOBAÇA DO TRIBUNAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 342.º, 348.º E 391.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
ARTIGOS 289.º, 291.º, 408.º, 874.º, 1268.º DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGO 5.º DO CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL
Sumário: I) O arresto não pode recair sobre bens que não pertençam ao requerido do arresto, mas a um terceiro não demandado e que não seja responsável pelo crédito cuja garantia se pretende efectivar com o arresto.

II) Por isso, não deve ser arrestado o bem alienado pelo requerido no arresto a um terceiro, mesmo que esteja pendente uma acção de declaração de nulidade ou anulação do acto (escritura de justificação notarial) que possibilitou o negócio pelo qual o requerido no arresto procedeu a tal alienação e mesmo que essa acção tenha sido objecto de registo anterior ao referido acto.

III) Com efeito, o registo provisório por natureza das acções é essencialmente cautelar, no sentido de que constitui uma reserva de inscrição para o futuro, mais não sendo do que uma antecipação do registo da própria sentença transitada, embora com a condição de que esta acolha o pedido do autor e dentro dos limites em que a acolher.

IV) Assim, o registo prioritário da acção de nulidade ou anulação significará que, no caso de a acção de anulação vir a ser julgada procedente, a anulação da aquisição a favor do transmitente transformará a posterior transmissão numa aquisição a non domino.

V) Ao invés, se a acção for julgada improcedente, o posterior registo a favor do terceiro adquirente, efectuado provisoriamente por natureza, converter-se-á em definitivo.

VI) A constituição ou transferência da propriedade dá-se por mero efeito do contrato, o que significa que, em regra, nos direitos reais convencionalmente estabelecidos, para a produção do direito real é apenas necessário e suficiente um título, sendo desnecessário um acto para que se realize ou produza o efeito real.

VII) Enquanto a acção de declaração de nulidade ou anulação do acto que possibilitou a alienação não for julgada procedente, o bem alienado pertencerá ao terceiro adquirente e, por isso, não deve ser objecto do arresto promovido contra o alienante.

Decisão Texto Integral:                         




                                                                       

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

Decretado o arresto da embarcação “A...”, entretanto denominada “AA...”, no âmbito da providência cautelar instaurada por B..., Lda., contra C..., Lda.,

veio D...., Lda., deduzir embargos de terceiro contra estas,

alegando ter adquirido à requerida C... a identificada embarcação, por compra concretizada em 20.02.2019, data a partir da qual a embarcação se encontra na sua posse, tendo efetuado o registo de propriedade a seu favor.

Conclui, pedindo:

seja proferido despacho a determinar, nos termos do art.º 347.º do C.P.C, a suspensão da apreensão efetuada e restituição provisória da posse sobre a embarcação melhor identificada nos autos e no art.º 2.º do presente articulado, com entrega dos respetivos documentos, por forma a que a Embargante possa prosseguir a sua atividade comercial e formativa;

sejam os presentes embargos julgados procedentes, por provados, e, em consequência:

a) determinado o cancelamento do arresto e apreensão efetuada sobre a embarcação da embargante, denominada “ AA... ”, melhor identificada nos autos;

b) preferida decisão sobre a propriedade da referida embarcação, declarando-se, desde já, como sendo propriedade da Embargante, e, em consequência, ser ordenada a entrega da mesma e demais documentos apreendidos/arrestados à Embargante.

Apenas a B... , Lda., requerente da providência, apresenta contestação, alegando, em síntese, que, enquanto estavam a decorrer as negociações relativas à compra da embarcação, a embargante foi informada da existência de uma ação judicial onde a propriedade da embarcação “ AA... ” estava a ser reivindicada e de que a sua compra podia vir a ser anulada, ação esta levada ao registo por apresentação de 7.02.2019, razão pela qual a propriedade a favor da embargante foi registada provisoriamente por natureza; como tal, o direito da embargante não prevalece sobre o direito da embargada, pois o registo da ação é anterior à aquisição da embargante; a requerida C... apenas alienou a embarcação AA... com o intuito de frustrar a eficácia do pedido de anulação da venda da embarcação arrestada.

Conclui pela improcedência do arresto, pedindo ainda a condenação da embargante como litigante de má-fé no pagamento de indemnização à embargada nunca inferior a 2.500 € e multa, nos termos dos arts. 542º e 543º do CPC.

Realizada audiência final, foi proferida Sentença que culminou com a seguinte decisão, de que agora se recorre:

Pelos fundamentos de facto e de Direito acima expostos, julgo integralmente procedentes os presentes embargos de terceiro, porque provados, deduzidos pela D... , Lda. contra as sociedades B... , Lda. e C... , Lda.

Em consequência e sempre de acordo com a factualidade e o Direito acima apurados:

1. Declaro, com e para todos os efeitos, a sociedade D... , Lda. legítima e única proprietária da embarcação “ AA... ”, registada no Porto de ..., detentora do actual conjunto de identificação ...-AL; número de série 3000Z- ...; com 8,55 metros de cumprimento e 3,830 de arqueação.

2. Em consequência do acima declarado em 1., determino o cancelamento do arresto concretizado no dia 07 de Janeiro de 2021, o qual teve como objeto a acima identificada embarcação, o qual é, por sua vez, decorrente da Decisão cautelar proferida a 13-11-2020 no âmbito do apenso B – Arresto.

3. Absolvo a embargante D... , Lda. do pedido de condenação como litigante de má-fé.


*

Inconformada com tal decisão a embargada dela interpôs recurso de Apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem por súmula[1]:
(…)
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Impugnação do ponto 26 da matéria de facto dada como provada e do e da al. d) dos factos dados como não provados.
2. Se o registo da ação principal, acarretando a provisoriedade por dúvidas, do registo de propriedade a favor da embargante, implicava decisão diversa.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
A. Matéria de facto
Na sentença recorrida foram dados como Provados os seguintes factos, na parte com relevo para a decisão em apreço:
1. A D... , Lda. é uma sociedade comercial que se dedica, com escopo lucrativo, a actividades marítimo turísticas e de aluguer de embarcação para formação no âmbito de formação profissional, designadamente no âmbito do programa “For-Mare”.
2. Para a prossecução da sua actividade, a D... , Lda. adquiriu à C... , Lda. a embarcação semi-rígida designada por AA... – ...SB4, com motor de 300 CV.
3. A referida aquisição foi concretizada a 20-02-2019.
4. Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor da factura n.º FA19SES/8 (documento n.º 1 junto pela embargante), da qual se extraem os seguintes excertos:
“(…) C... , Lda.
(…) Descrição: Embarcação Semirigida AA... ...SB4 / motor Suzuki 300 CV – 3000Z- ....
(…) Pr. Unitário: 10.000,00
Iva: 23,00
(…) Total (Eur) 12.300,00.
(…)”.
5. O valor mencionado no ponto anterior foi pago, através de transferências bancárias concretizadas no dia 01-3-2019 (€ 5.000,00), a 27-3-2019 (€ 2.300,00) e no dia 25-9-2019 (€ 5.000,00), tudo conforme resulta dos respetivos comprovativos de transferência juntos como documentos n.ºs 2, 3 e 4 pela embargante.
6. Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor do “Certificado de Lotação de Segurança para Embarcações de Recreio em Atividade Marítimo-Turística”, emitido a 25-6-2019 (documento n.º 5 junto pela embargante).
7. Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor do “Autorização para Navegar Sem Papéis a Bordo”, emitido a 26-9-2019 (documento n.º 6 junto pela embargante).
8. Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor do “Livrete n.º ...SB4” (documento n.º 7 junto pela embargante).
9. Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor do “Título de Propriedade – Nome da Embarcação AA... ” (documento n.º 8 junto pela embargante), do qual se destacam os seguintes excertos:
“(…) aos 25 dias do mês de Junho do ano de 2019 foi efectuada nesta (2) Delegação Marítima (3) Reforma de registo de propriedade da embarcação abaixo indicada por meio de auto de registo de propriedade n.º L 1 – F 101 da mesma data (…)
Mais certifica que do referido auto de registo de propriedade constam os seguintes elementos relativos à embarcação:
Nome da embarcação (5) AA...
(…) Número de registo / Conjunto de Identificação (6) PT- ...-AL
Classificação da embarcação (7) Auxiliares-Local.
Nome do proprietário ou proprietários D... Lda.
(…) ..., 25 de Junho de 2019
[no verso do documento consta ainda o seguinte:] Averbamentos:”
9. Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor da documentação junto como documento n.º 1 pela embargada, da qual se destacam os seguintes excertos:
“(…) Capitania do Porto de Setúbal
Nº 843/2020 Processo 070.40.01
Assunto: Comunicação no âmbito do Processo n.º 158/19.5T8LRA-B. Arresto de Embarcação.
(…) importa levar ao conhecimento de V. Exa. informação referente à actual situação jurídica e registal da embarcação objecto do decretamento da providência de arresto determinada, a qual se descreve em súmula nos seguintes termos:
a) No seguimento da apresentação de dia 9 de novembro de 2016, o direito de propriedade da embarcação denominada “ A... ” com o conjunto de identificação ...SB4, foi inscrito a favor de C... , Lda.;
b) Por apresentação de 1 de Junho de 2018, foi averbada alteração às descrições ao registo da embarcação em causa por alteração da motorização e da sua denominação, passando a deter o nome “ AA... ”;
c) Em sequência da apresentação de 7 de fevereiro de 2019, por requerimento de representante legal de B... , Lda., foi averbado ao registo da referida embarcação a interposição de acção declarativa intentada por aquela requerente em que é peticionada a anulação da alienação e registo a favor da C... , Lda.;
d) Por apresentação de 20 de fevereiro 2019, foi averbado ao registo a inscrição do direito de propriedade da embarcação a favor de D... , Lda., por aquisição através da compra à anterior detentora do direito de propriedade.
Este registo, tendo em consideração ao averbamento respeitante à apresentação 7 de fevereiro de 2019, foi realizado como provisório por natureza, provisoriedade essa que se mantém à presente data uma vez não ter sido apresentado qualquer pedido quanto à sua conversão como definitivo ou tendo em vista o seu cancelamento;
e) (…) a embarcação em questão passa a ser detentora do conjunto de identificação ...-4PT, procedendo-se à necessária alteração à descrição da embarcação;
f) No seguimento do pedido apresentado pela atual proprietária inscrita, D... , Lda., e após obtenção da necessária autorização emitida pela DGRM, o registo da embarcação em causa é alterado por mudança de classificação em função da atividade, sendo cancelado o registo de recreio passando a estar classificada como embarcação de comércio em Auxiliar Local, passando nesta medida a possuir o conjunto de identificação AA... - ...-AL, com efeitos a 20 de janeiro de 2020.
(…)
Para melhor elucidar o Douto Tribunal quanto à informação ora prestada, mais se junta em anexo cópia de teor dos averbamentos ao registo que incidiram sobre a embarcação em questão (…)”.
11. (…)
(…)
19. A embargante efetuou reparações e alterações na embarcação “ AA... ”, com vista a adequá-la à prossecução da sua atividade. Tais reparações e alterações constam identificadas nos documentos acima citados no ponto 11.º.
20. A B... Lda. foi informada pela Delegação da Capitania do Porto de que a D... Lda. negociava a aquisição da embarcação “ AA... PT- ...-AL”.
21. Perante tal informação, E... – sócio gerente da B... Lda. – contactou de imediato F... – sócio gerente da D... Lda. -, tendo-lhe perguntado como o mesmo tinha sido capaz de fazer tal negócio face à relação de amizade que entre ambos existia.
22. O sócio gerente da embargante F... conhecia em traços gerais as relações comerciais e jurídicas estabelecidas entre a B... , Lda. e a C... Lda.
23. O sócio gerente da embargante F... sabia em traços gerais da existência dos autos principais, ou seja, da ação judicial instaurada pela B... , Lda. contra a C... Lda. e contra Pedro Oliveira.
24. Na decorrência da conversa acima referida em 21., E... referiu a F... que a “ AA... PT- ...-AL” era objeto da referida ação judicial, pelo que tal alienação poderia ser anulada.
25. O acima expresso nos pontos 23.º e 24.º chegou ao conhecimento de F... por força de conversas que E... estabeleceu com o mesmo.
26. A embargante e o seu sócio gerente F... desconheciam que a acima aludida ação judicial consubstanciasse averbamento perante a autoridade competente e responsável pelo registo público da embarcação “ AA... PT- ...-AL”.
27. Desde o dia 20-02-2019 que a embargante dispõe na íntegra e em exclusivo da embarcação “ AA... PT- ...-AL”, utilizando-a na sua atividade.
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O Tribunal deu como Não Provados, os seguintes factos:
a) Que F... conhecesse os termos da ação judicial que configura os autos principais ao presente apenso.
b) Que, na decorrência da conversa acima referida nos pontos 21. e 24. dos factos provados, F... tivesse dito a E... que a “ AA... PT- ...-AL” se encontrava a ser vendida por um preço tão baixo que valia a pena correr o risco de anulação do negócio.
c) Que a embarcação “ AA... ” tenha sido vendido por um valor muito inferior ao seu valor de mercado.
d) Que a embargante D... , Lda. tivesse sido expressamente informada e advertida de que o respetivo registo de aquisição da embarcação “ AA... ” tivesse sido lavrado como provisório por natureza e que tivesse sido expressamente informada e advertida quanto às correspondentes consequências de tal provisoriedade.
e) Que a embargante D... , Lda. tivesse também a intenção de “apagar” o passado da embarcação “ AA... ”.
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Atenderemos, ainda, aos seguintes factos, resultantes da consulta dos autos de arresto e da ação declarativa de que é dependente, e que assim se aditam:
28. Por apresentação do dia 10 de fevereiro de 2012, foi registado o direito de propriedade da embarcação denominada “ A... ” a favor da B... , Lda.;
29. Na ação declarativa principal, proposta por B... , Lda. contra a C... Lda. e contra Pedro Oliveira, a autora formula, entre outros o seguinte pedido: Ser declarada nula e de nenhum efeito a alienação pela B... das embarcações “ A... ”, “INOVAÇÁO” e “FOUR CHILDREN” à C... , e em consequência serem as referidas embarcações devolvidas à autora B... ;
28. Por apenso a tal ação, foi instaurada a providência cautelar (Apenso B), pela qual a autora pede que seja decretado o arresto, entre outros, da embarcação em causa, ou, caso o tribunal entenda que o arresto não é a providência cautelar mais adequada, face às especificidades dos bens em causa, que se decrete outra providência nominada ou inominada que se entenda prosseguir o fim almejado no presente requerimento, ou seja, a efetividade da futura sentença e a garantia do efeito útil do processo principal quanto ao pedido de declaração de nulidade das vendas das mencionadas embarcações, nos termos do artigo 376º n.º 3 do Código de Processo Civil.
29. Em tal apenso, foi, por decisão de 13 de novembro de 20020, decretado arresto da embarcação em causa.
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1. Impugnação da matéria de facto
(…)
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2. Se o registo da ação principal, acarretando a provisoriedade por dúvidas do registo de propriedade a favor da embargante, implicava decisão diversa
A sentença recorrida, considerando que a embarcação “ AA... PT-1’3083-AL” foi vendida à D... , aqui embargante, por contrato válido e suscetível de transmitir a propriedade da coisa ou a titularidade do direito, concluiu que:
- “a embarcação “ AA... PT-1’3083-AL é propriedade da D... ., Lda.,” aqui embargante;
- “o arresto concretizado no dia 07-01-2021, por força de decisão cautelar proferida a 13.11.2021 no âmbito do apenso B, ofende o direito de propriedade da D... , Lda.”,
pelo que, julgando procedentes os embargos, declara a embargante a única proprietária da embarcação arrestada, determinando o cancelamento do Arresto.
A Apelante inicia a sua motivação de recurso, quanto à matéria de direito, alegando que “Não se discute nos presentes embargos a titularidade do Direito de propriedade sobre a embarcação AA... ”, mas, sim, “se esse direito está dependente do desfecho da ação principal nos presentes autos, ou seja, se o mesmo é efetivamente provisório por natureza face ao registo provisório da ação que constitui os autos principais.”
Sustenta a Apelante, em primeiro lugar, que a sentença, ao não se pronunciar sobre essa provisoriedade da propriedade da embarcação AA... , incorre em vício de omissão de pronúncia, encontrando-se ferida de nulidade.
E, nesta parte, é de dar razão à Apelante: a existência do registo da ação de anulação, na sequência do qual a propriedade a favor da embargante foi registada provisoriamente por natureza, constituiu um dos fundamentos de oposição aos embargos, do qual a embargada/requerida retira que o direito da embargante não prevaleceria sobre o direito da embargada, pois o registo da ação, efetuado a 07.02.2019 é anterior, tando à aquisição da embargante, como à data da alegada transferência da posse (20.02.2019).
Ora, a sentença recorrida é completamente omissa quanto aos eventuais efeitos no reconhecimento do direito de propriedade da embargante, decorrentes do facto de o mesmo se encontrar registado provisoriamente a favor desta, na sequência do anterior registo da ação de anulação da alienação efetuada ao transmitente inscrito.
A sentença enferma, assim, do vício de nulidade por omissão de pronúncia nos termos do artigo 615º, nº1, al. d) – “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”.
Dispondo os autos dos elementos necessários ao conhecimento de tal fundamento, pela regra da substituição do tribunal recorrido, caberá a este tribunal conhecer de tal questão, ao abrigo do disposto no artigo 665º, nº1 do CPC, sobre a qual as partes tiveram já oportunidade de se pronunciar, quer nos articulados, quer nas alegações e contra-alegações de recurso.
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Segundo a Apelante, embora tenha ficado provada a aquisição e transmissão da posse da embarcação AA... , da Ré para a aqui embargante, em 20.02.2019, tendo o registo de tal aquisição sido lavrado como provisório por natureza, face ao prévio registo da ação de anulação da alienação e registo a favor da C... – o registo da ação que constituiu os autos principais, foi efetuado a 07.02.2019, em data anterior ao registo de aquisição da embargante, bem como ao da data de transferência da posse, ocorridos a 20.02.2019 – o direito da embargante não prevaleceria sobre o direito da embargada.
Haverá, assim, que apreciar a questão levantada pela Apelante/embargada, sobre se o facto de o registo da ação principal, na qual é peticionada a “anulação da alienação e registo a favor da C... , Lda.”, ser anterior ao registo de aquisição da embargante, e o facto de na, sequência de tal registo, o registo de propriedade a favor da aqui embargante ter sido efetuado provisório por natureza, implicaria decisão diversa da decorrida e a improcedência dos embargos de terceiro.
Antes de mais, cumpre salientar encontrarmo-nos perante a dedução de embargos de terceiro movidos contra a apreensão de um bem, decretada no âmbito de uma providência cautelar de arresto.
Quanto aos “fundamentos” do arresto, dispõe a tal respeito o artigo 391º do CPC:
“1. O credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor.
2. O arresto consiste numa apreensão judicial de bens, à qual são aplicáveis as disposições relativas à penhora, em tudo o que não contrariar o preceituado nesta secção.”
Constituindo o arresto um meio de tutela de direitos de crédito, a conservação da garantia patrimonial do credor é assegurada através da apreensão oportuna de bens do devedor ou de outros bens suscetíveis de responder pelas suas dívidas.
O arresto não pode, assim, recair sobre bens que não pertençam ao requerido do arresto, mas a um terceiro não demandado e que não seja responsável pelo crédito cuja garantia se pretende efetivar com o arresto.
No caso de o arresto recair sobre bens da titularidade de titularidade de terceiro, poderá este defender-se perante tal ato de apreensão mediante a dedução de embargos de terceiro.
Segundo o disposto no artigo 342º do Código de Processo Civil, “Se qualquer acto, judicialmente ordenado, de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro”.
Encontrando-se o arresto (ato preparatório da penhora) entre um dos atos de apreensão ou entrega de bens a que se refere o artigo 342º, é incompatível com o mesmo a posse ou o direito de propriedade de um terceiro.
O terceiro proprietário poderá, nos embargos, alegar factos demonstrativos da sua posse, gozando, nos termos do artigo 1268º, nº1 do CC, da “presunção da titularidade do direito”, ou, ainda, alegar e provar o seu direito de propriedade[2].
Por sua vez, fundados os embargos na posse, esta pode ser ilidida, proporcionando o nº2 do artigo 348º do CPC, às partes primitivas (neste caso, ao requerente ou ao requerido do arresto) a alegação e prova de que o direito de fundo, neste caso, o direito propriedade pertence à pessoa contra quem a diligencia foi promovida[3].
No caso em apreço, a embargante demonstrou ter comprado a embarcação arrestada ao seu anterior proprietário registado, C... , através de compra – negócio adequado à transmissão da propriedade –, formalizada a 20 de fevereiro de 2019, data a partir da qual a autora “dispõe na íntegra e em exclusivo da embarcação AA... PT- ...-AL, utilizando-a na sua atividade” (ponto 27 da matéria de facto).
Não só, a embargante goza da presunção da titularidade do direito de propriedade resultante da posse, nos termos do artigo 1268º CC, como logrou demonstrar ter adquirido do anterior proprietário registado, sendo que, quer essa posse, quer a aquisição da propriedade ocorreram em 20.02.219, ou seja, em data anterior ao arresto que veio a ser decretado a 13 de novembro de 2020.
E, como é salientado pela Apelante nas suas alegações de recurso, a apelante não contesta que a embargante tenha demonstrado ter adquirido a propriedade e a posse da embarcação arrestada, sustentando, tão só, que o direito da embargante não pode prevalecer pelo facto de, à data de tal aquisição, se encontrar registada a ação de anulação da alienação e registo efetuados a favor da transmitente C... .
E, aqui, não podemos dar razão à Apelante.
Para lá da regra inserta no nº1 do artigo 5º do Cod. Reg. Predial, nos termos do qual, o registo prioritário de uma ação garante que a futura sentença, depois de registada, produzirá os seus efeitos substantivos diretamente contra os subadquirentes do réu, Mónica Jardim sustenta que o efeito do registo de uma ação ou a função desempenhada não é uniforme, variando consoante a ação em causa[4].
Quando em causa esteja uma sentença de declaração de nulidade ou anulação de um negócio jurídico que tenha por objeto um imóvel ou móvel sujeito a registo, sempre que o registo da ação seja obtido dentro do prazo previsto na lei substantiva (artigo 291º do CC), para além daquele efeito geral, consolida os efeitos substanciais da sentença perante tais subadquirentes do réu, garantindo também eficácia direta da sentença contra eles, bem como a sua exequibilidade, quando condenatória[5].
Tendo o subadquirente do réu obtido o registo do facto aquisitivo após o registo de tal ação, tal registo, desprovido de prioridade, não o pode proteger perante o princípio nemo plus iuris.
A declaração de nulidade ou de anulação de um negócio sujeito a registo só não prejudica os direitos adquiridos por terceiros de boa-fé, a título oneroso, se o registo de aquisição for anterior ao registo de ação de nulidade ou anulação (nº1 do artigo 291º do CC), pelo que, a questão que a Apelante aqui queria discutir em sede de impugnação da decisão sobre a matéria de facto – sobre a alegada boa-fé da adquirente – sempre seria irrelevante. Sendo o registo de aquisição a favor da embargante posterior ao registo da ação de anulação da alienação e registo a favor da transmitente, sempre tal ação será oponível à embargante, ainda que se encontre de boa-fé[6].
Tendo a declaração de nulidade ou de anulação efeitos retroativos, tudo se passa como se o negócio não tivesse sido realizado (artigo 289º, nº1, CC), tendo a anulação do ato inicial por consequência a destruição retroativa do ato subsequente.
Tal registo prioritário significará, assim, que, no caso de a ação de anulação vir a ser julgada procedente, a anulação da alienação a favor da transmitente, Halotis, transformará a posterior transmissão da embarcação à aqui embargante numa aquisição a non domino, com a consequente nulidade dos registos efetuados a favor da transmitente e da embargante.
Já no caso de tal ação vir a ser julgada improcedente, o direito de propriedade da embargante sobre tal bem permanecerá intocado e o registo de aquisição a seu favor, efetuado provisoriamente por natureza[7], converter-se-á em definitivo.
Dito por outras palavras, o registo de tal ação tem unicamente por efeito ou por consequência que, a ser julgada procedente e decretada a anulação da alienação à transmitente, esta declaração de anulação seja oponível à subadquirente, aqui embargante.
O direito que lhe é conferido pelo registo prioritário da ação de anulação é, tão só, o direito a, caso a venha ser julgada procedente, opor tal anulação ao subadquirente, que terá de abrir mão do bem a favor do beneficiário do registo da ação prioritário.
Isto se e quando, tal ação vier a ser julgada procedente.
Os efeitos do registo da ação encontram-se, assim, condicionados à procedência da ação, sendo que, até lá, o negócio de compra e venda celebrado entre a embargante e a C... produzirá os seus efeitos normais.
Ou seja o direito do autor que com o registo daquela ação se pretendeu obter, prevalecerá sobre o da aqui embargante (ou sobre qualquer posterior subadquirente), se e quando a ação vier a ser julgada procedente.
Até lá, encontramo-nos perante uma venda perfeitamente válida e que produz os efeitos que lhe são inerentes, como é o caso da transferência da propriedade para a adquirente/ embargante.
O artigo 408º do Código Civil consagra o princípio da consensualidade: a constituição ou transferência de direitos reais dá-se por mero efeito do contrato[8].
Nas palavras de Mónica Jardim[9], este princípio significa que, nos direitos reais convencionalmente estabelecidos, para a produção do direito real, basta, ou é condição suficiente, um título – o qual, por força do princípio da causalidade, há de existir, ser válido e procedente – sendo desnecessário um modo[10].
Em consonância com tal princípio e a revelar a desnecessidade do tal modus operandi, se encontram ainda o artigo 874º do CC, que define a compra e venda como “o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa ou direito mediante um preço”, e o artigo 879º CC, ao incluir entre os efeitos essenciais da compra e venda a “a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito”.
Por outro lado, atentar-se-á em que, ainda que a ação principal venha a ser julgada procedente, nunca o bem retornaria à propriedade da requerida contra a qual foi movido o arresto, mas sim, à propriedade da própria requerente do arresto, não respondendo, nunca, pelas dívidas da requerida/devedora.
O arresto da embarcação vendida pela Requerida do arresto à aqui embargante encontra-se, assim, destituído de qualquer sentido, sendo que, quanto ao efeito útil da ação de anulação, ele mostra-se acautelado com o respetivo registo.
É verdade ser comum a afirmação de que o caracter cautelar do registo da ação implica que, a partir do momento desse registo nenhum interessado possa prevalecer-se, contra o mesmo autor, dos direitos que sobre o prédio venha depois a adquirir do réu ou a registar se já adquiridos entretanto[11].
Contudo, tal não significa a produção de quaisquer efeitos imediatos na ordem jurídica, sendo a data do registo unicamente determinante para aferir da oponibilidade da sentença que venha a julgar a ação procedente (se e quando) a posteriores subadquirentes do réu.
“O registo provisório por natureza das ações corresponde a um registo essencialmente cautelar, constituindo uma “reserva de inscrição para o futuro” (…) O registo da ação mais não é do que a antecipação do registo da própria sentença transitada – com a condição, claro, de que esta acolha o pedido do autor e dentro dos limites em que a acolher[12].
 Demonstrada a posse e a propriedade da embargante, desde data anterior ao decretado arresto, tal importará a procedência dos presentes embargos de terceiro, independentemente de, no futuro e em caso de procedência da ação principal, o embargante se encontrar sujeito a ver o negócio em que interveio a ser declarado nulo por se traduzir numa compra a non domino.

A apelação será, assim, de improceder.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordando os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a suportar pela Apelante.                   

                                                                            Coimbra, 09 de novembro de 2021


[1] Face ao incumprimento da obrigação de nelas sintetizar os fundamentos do recurso, em violação do disposto no artigo 639º, nº1, CPC.
[2]
[3] Cfr., José Lebre de Freitas, embora a respeito dos embargos de terceiro deduzidos à penhora, “A Ação Executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013”, Coimbra Editora, 6ª ed., p. 334.
[4] “O Efeito do Registo das Ações e Respetivas Sentenças que as Julguem Procedentes”, in “Escritos de Direito Notarial e Registral, Almedina, p. 483, e “Efeitos Substantivos do Registo Predial – Terceiros para Efeitos de Registo”, Coleção Teses, p. 685.
[5] Mónica Jardim, artigo e obra citados, p.499.
[6] Sustenta Mónica Jardim que, embora o conhecimento do registo da ação não seja sinónimo de má-fé em sentido ético, porquanto apenas gera cognoscibilidade do facto registado, ou seja, do pedido, perante o registo da ação, a lei prescinde da má fé do terceiro – “Efeitos Substantivos do Registo Predial (…)”, p. 716.
[7] Cfr., ponto 9 da matéria de facto dada como “provada”.
[8] Segundo Carlos Ferreira de Almeida, a lei portuguesa destaca o modelo da consensualidade pura, em que o contrato, para além de ter como causa final a transmissão de direitos, é ele próprio a causa única da atribuição do direito patrimonial, não sendo a entrega e o registo requisitos geralmente necessários para a transmissão negocial da propriedade – “Transmissão Contratual da Propriedade – Entre o mito da consensualidade e a realidade dos múltiplos regimes”, in THEMIS, Ano VI – Nº11 – 2005, pp.11 a 14.
[9]“Efeitos Substantivos do Registo Predial – Terceiros para efeitos de Registo”, Colecção Teses, p.412-414-
[10]Dispensando-se o preenchimento de qualquer outra exigência não reconduzível ao contrato, em suma, a uma mera documentação ou autenticação do consenso entre as partes – Orlando de Carvalho, Direito das Coisas, nº10 da adenda policopiada, Cap.2, p. 5.
[11] Cfr., entre outros, Jorge de Seabra Magalhães, “Estudos de Registo Predial: - O Registo das Acções; - A Identidade Registral do Prédio”, Almedina, Coimbra – 1986, p.24.
[12] Jorge de Seabra Magalhães, “Estudos de Registo Predial: - O Registo das Acções; - A Identidade Registral do Prédio”, pp.24 e 25.