Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3276/20.3T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: LOCAÇÃO FINANCEIRA
RESOLUÇÃO
INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 07/12/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE COIMBRA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGO 17.º DO DECRETO-LEI N.º 149/95, DE 24 DE JUNHO E ARTIGO 808.º, N.º 1, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário:
I - Constando da cláusula de um contrato de locação que, no caso de o locatário incorrer no incumprimento, temporário ou definitivo, de qualquer obrigação emergente da relação contratual, fica acordado expressamente que esse incumprimento constituirá causa objectiva de perda de interesse contratual na manutenção do contrato, e decorrendo da matéria de facto que a locatária deixou de proceder ao pagamento de rendas, tem de se  concluir, à luz do artigo 808.º/1 CC e perante o art.º 17.º do DL 149/95 de 24/7, não ser necessária  a fixação pelo credor ao devedor de um prazo suplementar razoável para se poder concluir não cumprida a obrigação.

II – A circunstância de, aquando da ordenada entrega do locado à requerente, se ter verificado que o prédio se encontrava devoluto e de os requeridos terem sido notificados editalmente e interposto o presente recurso mais de um ano depois da entrega do imóvel, fazia com que fosse abusiva a invocação da resolução ilícita do contrato, na medida em que o exercício danoso desse direito se revelaria inútil ou injustificado.

III - Mesmo que se concluísse pela indevida utilização pela locadora da providência cautelar que aqui está em causa por não ter sido lícita a resolução a que procedeu do mesmo, nem por isso seria possível reverter a operada entrega dos imóveis locados, visto que a ilicitude da resolução não a priva, em princípio, da sua eficácia típica de destruir retroactivamente a relação contratual, antes constitui um caso de incumprimento definitivo do contrato, com as respectivas consequências.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra


            I - Banco 1..., S.A., intentou contra AA e BB, a presente providência cautelar, sem audiência prévia dos Requeridos e com pedido de antecipação do juízo sobre a causa principal.

Pede que seja ordenada a entrega judicial a seu favor de dois imóveis locados, ao abrigo do art  21º do Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de Junho, com as alterações introduzidas pelos Decreto-Lei nº 265/97, de 2 de Outubro, Decreto-Lei nº 285/2001, de 3 de Novembro e Decreto-Lei nº 30/2008, de 25 de Fevereiro, que aprovou o Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira, alegando que os Requeridos  deixaram de pagar rendas vencidas, e que, em consequência desse incumprimento, procedeu à resolução do contrato mediante carta registada com aviso de recepção, ao abrigo da clausula 14ª, tendo-os interpelado a procederem à restituição imediata dos imóveis em causa, o que não veio a suceder.

Inquirida a testemunha arrolada pela Requerente foi proferida decisão, na qual foi julgado procedente o procedimento cautelar e se decretou a providência requerida, ordenando-se, em consequência, a imediata entrega dos imóveis identificados à Requerente, livres e devolutos de pessoas e bens.

II – Inconformados, apelaram os Requeridos, tendo concluído as respectivas alegações, nos seguintes termos:  

1 – A Requerente intentou o procedimento cautelar de entrega judicial está previsto no art° 21° do Decreto-Lei n.° 149/95, de 24/06, cujo n.º 1, prescreve: “Se, findo o contrato por resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de compra, o locatário não proceder à restituição do bem ao locador, pode este, após o pedido de cancelamento do registo da locação financeira, a efectuar por via electrónica sempre que as condições técnicas o permitam, requerer ao tribunal providência cautelar consistente na sua entrega imediata ao requerente”.

 2 – O n.º 4 do preceito, prescreve, que “o Tribunal ordenará a providência requerida se a prova produzida revelar probabilidade séria da verificação dos requisitos referidos no nº 1, podendo, no entanto, exigir que o locador preste caução adequada”.

3 – São seus elementos constituintes: a) a cedência temporária de um bem adquirido ou construído por indicação do locatário; b) a opção de compra, findo o período do contrato, mediante o pagamento de um valor previamente definido ou, ao menos, determinável de acordo com critérios pré-fixados (Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, IV Vol., pág. 302).

 4 - Operada validamente a resolução, produzem-se os seus efeitos, o contrato tem-se por resolvido por incumprimento das obrigações assumidas pelo locatário e se este não restituir o bem, reunidos estão os pressupostos legais estabelecidos na lei para o decretamento da providência cautelar, nos termos do art. 21°, n.º 1, do D.L. n.º 149/95, de 24/06.

 5 - A partir do momento em que seja ordenada e executada a providência, o bem passa para a esfera de actuação prático-jurídica do locador, o qual pode dispor dele livremente.

6 - Temos que são então, requisitos deste procedimento cautelar: a) que o contrato de locação financeira se tenha extinguido por resolução ou decurso do prazo (caducidade) sem que tenha sido exercido pelo locatário o direito de compra; b) que o locatário não tenha procedido à restituição do bem ao locador (Vide, entre outros, Ac. S.T.J. de 01/07/1999, in www.dgsi.pt).

 7 - O contrato de locação financeira, pode ser resolvido de acordo com o regime geral, com exclusão das normas especiais relativas ao contrato de locação, cfr. artº 17º do D.L. n.º 149/95, revogados que foi o regime especial pelo D.L, n.º 285/2001 de 13 /11.

 8 - E no regime geral das obrigações, fora dos casos acima referidos, a mora só se converte em incumprimento, quando ocorre perda do interesse do credor na prestação, ou não realização da prestação dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor ao devedor através da interpelação admonitória, conforme resulta do art. 808º do Código Civil.

9 - Verificado o incumprimento definitivo, se a obrigação tiver por fonte um contrato bilateral, o credor, independentemente do direito à indemnização, pode resolver o contrato e, se já tiver realizado a sua prestação, exigir a restituição por inteiro, conforme resulta do artº 801º, n.º 2 do Código Civil.

10 - Mas a Requerente, apenas alega genericamente, sem, portanto, concretizar os seus termos “(...) e não obstante as interpelações realizadas, pela requerente, os requeridos deixaram de proceder ao pagamento (...)”

11 - Tal como ensina João Baptista Machado In “Obra Dispersa”, Vol. I, Scientia Iuridica, Braga, 1991, pág. 164. “A interpelação admonitória com fixação de prazo peremptório para o cumprimento a que se refere a segunda parte do n.º 1 do art.º 808º é, pois, uma intimação formal dirigida ao devedor moroso para que cumpra a sua obrigação dentro de certo prazo determinado, sob pena de se considerar o seu não cumprimento como definitivo”.

12 - Pelo que na expressão de Antunes Varela, In R.L.J, 128º, 138, constiuti “uma ponte obrigatória de passagem para o não cumprimento (definitivo) da obrigação.

13 - E “deve conter três elementos: a) a intimação para o cumprimento; b) a fixação de um termo peremptório para o cumprimento, c) admonição ou a cominação (declaração admonitória) de que a obrigação se terá por definitivamente não cumprida se não se verificar o cumprimento dentro daquele prazo.

14 - Também o Ac. do STJ de 13-12-2007, decidiu: “a declaração da ré constante da interpelação admonitória escrita enviada ao autor no sentido de que se este não cumprisse o contrato (promessa) se consideraria este definitivamente incumprido com as legais consequências, designadamente, de a ré fazer sua a quantia entregue, não pode, sem mais, ser considerada como manifestação de vontade de resolver o contrato em causa.”.

15 - Por outro lado, a interpelação admonitória como declaração receptícia que é torna-se eficaz – e, portanto, definitiva e irrevogável – a partir do momento em que chega ao poder do devedor ou é dele conhecida, nos termos do art.º 224º, do Código Civil.

16 - Como resulta dos Autos, não resulta, (passa-se a redundância), provado ou mesmo alegado concretamente a realização da interpelação admonitória – apenas aa declaração de resolução.

17 - Pelo que falece o fundamento normativo à emitida declaração resolutiva, que aquando da sua emissão, resulta ilícita.

18 - E, consequentemente, não operou a extinção da relação contratual, nessa invocada via de resolução, porque inexistiu peremptória e efectiva declaração de resolução.

19 - Perante os factos dados como provados na Douta Sentença verificamos que não estão reunidos os pressupostos para o decretamento da providência requerida pois não se prova a operância da resolução.

20 - A Douta Sentença, padece até de falta de fundamentação quer do ponto de vista formal, quer substancial.

21 - Por um lado, omite completamente a provas ou não prova de tal requisito, na enunciação dos factos provados e não provados,

22 - pelo que devia ter sido dado como não provado a interpelação admonitória,

23 - por outro lado, não assaca quaisquer consequências negativas para a Requerente, de tal omissão,

 24 - verificando-se que não especifica os supra-citados factos e fundamentos,

25 – ou, mesmo, que os que existem estão em contradição com o sentido da decisão,

26 - como é o caso de considerar, genericamente, porque também o é a alegação da Requerente, provado, que houve interpelação, sem cuidar de saber quais os seus termos.

27 - Donde resulta uma nulidade da sentença, que se alega para os devidos efeitos, nos termos das als. a) e b) do n.º 1 do art. 615º do Código de Processo Civil,

 28 – e resultam violados os arts. 801, n.º 1 e 808º, n.º 1 ambos do Código Civil e art. 21°, n.º 1, do D.L. n.º 149/95, de 24/06.

29 - Devia a Mma Juiz ter indeferido o decretamento da providência.

30 – Assim, caso não se considere a nula a sentença nos termos alegados,

31 – deverá ser anulada ou revogada por outra que considere improcedente a providência cautelar.

A Requerente ofereceu contra-alegações que concluiu nos seguintes termos:         

I – O Recorrente pretende a revogação da decisão de decretamento da providência cautelar, fundada em resolução de contrato de locação financeira, por alegada inexistência de interpelação admonitória, tendente à demonstração da perda de interesse do Credor.

 II – Os factos de que depende a procedência da providência cautelar decretada constam enunciados na decisão judicial recorrida, de onde se destaca a existência de: (1) incumprimento contratual imputável aos Requeridos, (2) interpelação dos mesmo, (3) resolução contratual por situação reiterada de incumprimento, (4) com solicitação de entrega voluntária dos bens locados, (5) cancelamento dos registos das locações em causa e (6) não cumprimento da obrigação de entrega voluntária a que estavam adstritos os Requeridos.

 III – O Tribunal a quo cuidou por enunciar que a sua convicção formou-se com base na análise crítica da prova documental e testemunhal produzida.

IV – O Recorrente não impugnou a decisão sobre a matéria de facto, nem os documentos juntos ao requerimento inicial ou o depoimento testemunhal produzido nos autos, inobservando o ónus de alegação que sobre si recai por força do disposto no Art. 640.º do Código de Processo Civil.

V – Pelo que, não podem ser alterados os factos dados como provados, especificamente, a existência de interpelações e de uma situação de incumprimento reiterado, que contextualizado pelos demais factos carreados para os autos, impõe a decisão que veio a ser proferida nos mesmos.

 VI – Não obstante, importa referir que a perda do interesse do credor é aqui corporizada nas interpelações invocadas e, por fim, na carta de resolução, cujo envio e recebimento pelo Recorrente constam provados nos autos e são por este admitidos.

VII – Essa carta refere, expressamente, que a resolução se funda no facto do incumprimento permanecer por regularizar e, consequentemente, é aí comunicada a perda do interesse da Recorrida na manutenção desse contrato, com a consequente necessidade de entrega dos bens locados.

VIII – Ademais os bens locados são imóveis, que se encontravam na posse dos Requeridos, sem que daí existisse a contrapartida remuneratória contratualizada para a Recorrida, com evidentes e sérios prejuízos para esta, que, por si só, demonstram a sua perda de interesse na manutenção do contrato, que se corporizou nas referidas cartas resolutivas, a que se seguiu a promoção do cancelamento dos respetivos registos.

IX – É, portanto, inequívoca a demonstração objetiva da perda de interesse do credor, comunicada e conhecida pelos Requeridos, a valorar nos termos e para os efeitos dos Arts. 801.º e 808.º do Código Civil, aplicáveis por força do Art. 17.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de junho.

X – A necessidade de tutela da posição da Recorrida – Requerente, enquanto locadora – contrapõe-se à postura omissiva dos Requeridos, que denota a má-fé e o abuso de direito associado ao recurso que o Recorrente veio a intentar.

XI – Como acima se referiu, os Requeridos foram interpelados para o incumprimento contratual e, devidamente, informados da resolução contratual e da necessidade de entrega dos bens locados.

 XII – Na sequência desta comunicação, os Requeridos não deram cumprimento à sua obrigação de entrega, mas também não se insurgiram.

 XIII – Nestes autos, concretizou-se a entrega judicial dos bens locados, em outubro de 2020.

XIV – Os Requeridos não se encontravam no local e não reagiram a essa diligência judicial.

XV – Apesar de ter sido confirmado, pelos ofícios realizados pela Secretaria Judicial, que o endereço associado aos Requeridos, correspondente ao domicílio convencionado, era a residência dos mesmos, estes furtaram-se a todas as tentativas de citação e só vieram a ser citados editalmente.

XVI – Veja-se que o Recorrente, podendo reagir ao decretamento da providência cautelar por via de recurso ou de oposição (Art. 372.º do Código de Processo Civil), optou apenas pela primeira possibilidade, aí reconhecendo o incumprimento e a resolução contratual, assim como, admitindo a não entrega dos bens, ou seja, os requisitos de que depende a procedência da providência intentada.

XVII – Por outro lado, não se deixa de considerar como curioso que, quem não receba comunicações judiciais, funde a sua defesa numa alegada omissão de comunicação por parte do Credor, quando se foi ao longo de dois anos confrontado com a corporização dos intentos deste e a isso não se reagiu.

XVIII – É, assim, abusivo vir, nesta sede, invocar o que o Recorrente sabe ser totalmente infundado, sendo, inclusivamente, contraproducente, para todos os intervenientes (inclusive os Requeridos), reverter uma decisão judicial, que foi devidamente fundamentadamente e atempadamente cumprida.

XIX – Face ao exposto, a sentença recorrida não está ferida de qualquer nulidade, nomeadamente, as que decorrem do disposto no Art. 615.º, n.º 1, alíneas b) e c) do Código de Processo Civil, assim como faz uma justa e adequada aplicação do Direito aos factos alegados e carreados para os autos.

 XX – Como tal, o recurso terá de improceder e a sentença em causa de se manter, só assim se fazendo a acostumada Justiça!

O Exmo Juiz a quo pronunciou-se pela inexistência da arguida nulidade da sentença. 

           

 III – O Tribunal da 1ª instância, com base na prova testemunhal produzida e na prova documental junta aos autos, considerou indiciariamente provados, com relevância para a decisão, os seguintes factos:[1]

1-A requerente é uma sociedade anónima que tem por objecto o exercício de actividades financeiras permitidas por lei, entre elas o exercício da actividade de locação financeira.

2-A requerente é proprietária dos seguintes imóveis: o prédio urbano em regime de propriedade total, composto por terreno para construção, com a área de 1520 m2, sito em ..., ..., da freguesia ..., concelho ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...87 e inscrito na matriz predial urbana da freguesia ... sob o artigo ...29; e o prédio urbano em regime de propriedade total, composto por casa de ..., ... andar e sótão, destinado a comércio, sito em ..., ..., da freguesia ..., concelho ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial ..., sob o nº ...90 e inscrito na matriz predial urbana da freguesia ..., sob o artigo ...79.

3- Em 27.05.2009, no âmbito da sua actividade, a requerente celebrou com a sociedade P..., Lda, representada por CC, um contrato de locação financeira imobiliária, mediante o qual a primeira se comprometeu a adquirir os imóveis supra referidos e a cedê-los, posteriormente, sob o regime de locação financeira, à segunda, mediante o pagamento das rendas acordadas e durante o prazo convencionado.

4- Posteriormente, em 05.03.2013, foi celebrado um Acordo de cessão de posição contratual do contrato de locação financeira entre a requerente e os requeridos, constando a sociedade P..., Lda como cedente e os requeridos como cessionários.

5-Com a assinatura do acordo, os requeridos tomaram posse dos imóveis locados, declarando que os imóveis alvo de locação têm as características adequadas à utilização para o fim a que se destinam, aceitando-os sem quaisquer reservas e obrigando-se a utilizá-los para o fim previsto.

6- Sob o regime da locação financeira, a requerente comprometeu-se a ceder aos requeridos os imóveis acima identificados, pelo prazo de 240 meses, mediante o pagamento de rendas mensais, sendo as mesmas na quantia de € 1.243,05, acrescida da taxa de IVA legal em vigor.

7-As partes acordaram que o valor das rendas seria actualizado semestralmente em função do resultado da média aritmética simples das cotações diárias da taxa Euribor a seis meses acrescido de um spread de 6,00%.

8- Foi igualmente acordado que sempre que se verificasse um atraso no pagamento das prestações, os requeridos obrigavam-se ao pagamento da sobretaxa moratória máxima legalmente permitida, actualmente de 3% ao ano, que acrescia à taxa de juro contratualizada.

9 - Estabeleceram as partes que, em caso de resolução do presente contrato, os requeridos deveriam restituir os imóveis locados, em bom estado de conservação, devolutos de pessoas e bens, sob pena de se constituírem na obrigação de pagar uma quantia igual à última renda vencida por cada período ou fracção de tempo por que perdure o incumprimento deste dever contratual.

10-As partes estipularam ainda que, após o termo do prazo contratual, os requeridos AA e BB poderiam exercer o direito de opção de compra, através do pagamento do valor residual correspondente a 25,00% do investimento.

 11- Apesar de a tal obrigados, e não obstante as interpelações realizadas pela requerente, os requeridos deixaram de proceder ao pagamento das prestações respeitantes ao contrato de locação financeira acima identificado.

12- Encontra-se por liquidar a quantia de € 44.044,97, correspondente a rendas vencidas e não pagas, à indemnização de 20% da soma das rendas ainda não vencidas, com o valor residual, acrescida da cláusula penal por mora, nos exactos termos contratualmente estabelecidos.

13- O incumprimento reiterado pelos requeridos das obrigações decorrentes do contrato motivou a sua resolução, mediante carta de resolução registada enviada a estes, ao abrigo do disposto na cláusula contratual 14ª.

14-Na sequência da resolução do contrato, a requerente interpelou os requeridos para procederem à restituição imediata dos imóveis, o que não veio a acontecer.

15-A requerente procedeu ao cancelamento da locação financeira registada sobre cada um dos prédios urbanos.

 16-Até à data, os requeridos encontram-se a usufruir gratuitamente dos referidos prédios, impedindo a requerente, proprietária, da sua fruição.

17-Assim, a requerente, em virtude do comportamento dos requeridos, tem sofrido prejuízos, pois está impedida de usufruir do seu gozo e, designadamente, compensar o incumprimento verificado, mediante a rentabilização dos imóveis, quer através de nova locação dos mesmos a outra entidade, quer através da sua venda.

Acrescenta-se a esta matéria de facto a circunstância de os imoveis em causa terem sido entregues à Locadora em 20/10/2020 e apenas se ter conseguido a notificação, e edital, dos Requeridos, no princípio de 2022.

 

IV – Constituem questões a decidir no presente recurso, como resulta das conclusões das respectivas alegações, saber se a sentença é nula, nos termos das als a) e b) do nº 1 do art 615º CPC, e se não se verificou a resolução do contrato de locação financeira em causa nos autos.

           

Refere a apelante para fundamentar as nulidades da sentença a que se refere, que a mesma padece de falta de fundamentação, quer do ponto de vista formal, quer substancial – conclusão 20ª.

È evidente que terá sido por lapso que se referiu à nulidade constante da al a) do art 615º, fora de causa como está, que a sentença recorrida não contenha a assinatura do juiz.

Resta, pois, a da al b) dessa norma, que implica o que, também muito evidentemente, não sucede com a sentença em apreço - não conter a mesma a especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão -  sabido como é, que só é causa dessa nulidade a falta absoluta desses fundamentos, e não a, porventura, a insuficiência dos mesmos.

Apresentando a sentença fundamentos de facto e de direito, designadamente no que se reporta à declaração de resolução, a eventual insuficiência destes para suporte da concreta decisão só poderia relevar em sede de mérito da mesma e não de nulidade.

Improcede, pois, a invocada nulidade.

Pretende a apelante que a resolução do contrato de locação financeira a que a Requerente procedeu se mostra ilícita, na medida em que, para uma “peremptória e efectiva declaração de resolução”, era exigível a prévia interpelação admonitória da Requerida e os autos não a contêm.

Chama a atenção para a circunstância de o DL 285/01 de 3/11 ter revogado o art 16º do DL 149/95 de 24/7, do que resulta, como refere, que a resolução do contrato de locação financeira passou a fazer-se nos termos gerais de direito, e, por isso, do seu ponto de vista, a declaração de resolução deveria ter sido precedida da prévia interpelação admonitória da Requerida a que a Requerente não procedeu.

Referia o art 16º do DL 149/95 de 24/7, sob a epigrafe “Mora no pagamento das rendas”, que «1 - A mora no pagamento de uma prestação de renda por um prazo superior a 60 dias permite ao locador resolver o contrato, salvo convenção em contrário a favor do locatário. 2- O locatário pode precludir o direito à resolução, por parte do locador, procedendo ao pagamento do montante em dívida, acrescido de 50%, no prazo de oito dias contados da data em que for notificado pelo locador da resolução do contrato».

Efectivamente, essa norma foi revogada pelo DL 285/2001 de 3/11, que manteve, em todo o caso, o art 17º, no qual, a respeito da “Resolução do Contrato”, se refere, que «O contrato de locação financeira pode ser resolvido por qualquer das partes, nos termos gerais, com fundamento no incumprimento das obrigações da outra parte, não sendo aplicáveis as normas especiais, constantes de lei civil, relativas à locação».

A remissão que este art 17º faz a respeito da resolução para os «termos gerais»,  implica a aplicabilidade do arts 432º e ss CC – e, por isso, a admissibilidade da resolução do contrato por declaração extra judicial – valendo, em função dessa remissão, relativamente aos pressupostos para o exercício do direito  de resolução,  o genericamente disposto no art 801º CC – consequentemente,  o incumprimento definitivo culposo [2].             Resta saber quando é que se deve entender que se verifica no contrato em apreço o incumprimento definitivo culposo.

Apenas nos interessa a resolução do contrato ope voluntatis, isto é, por declaração extra-judicial, por ter sido essa a pretendidamente utilizada pela locadora na  situação dos autos, como resulta das cartas registadas com aviso de recepção por ela dirigidas  a cada um dos locatários, e onde se refere: 

«Considerando que continua por regularizar o contrato de locação financeira acima referido, vimos por este meio, notificar V. Excias da resolução do mesmo, nos termos e para os efeitos do disposto na cláusula 14ª das Cláusulas Gerais do supra identificado contrato.

Em consequência da resolução do contrato, devem V. Exªs restituir-nos o imóvel locado em perfeito estado de conservação, livre e desocupado de pessoas e bens, no prazo máximo de 8 dias, devendo entregar a chave no Banco 1..., S.A (…)

Devem   ainda V. Exº proceder ao pagamento da quantia de  € 44.044,97  relativa a rendas vencidas e não pagas, à indemnização de 20% da soma das rendas ainda não vencidas, com o valor residual, acrescida da cláusula penal por mora, nos exactos termos estabelecidos».

Na referida cláusula 14ª, sob a epigrafe “Incumprimento Contratual e Resolução do contrato”, diz-se:  

«1-O presente contrato poderá ser resolvido por qualquer das partes com fundamento no incumprimento das obrigações que à outra parte assistem;

 2 - Sem prejuízo dos restantes direitos previstos na lei em caso de incumprimento ou mora do locatário e dos restantes casos de resolução e caducidade fixados no presente contrato, pode o mesmo ser resolvido, pela locadora nos seguintes casos

a) Em caso de incumprimento de quaisquer obrigações do locatário se este, interpelado para cumprir, o não fizer no prazo de 60 dias a contar da data da referida interpelação   (…) [3].

E dispõe o nº 3 dessa mesma cláusula contratual que «a resolução, efectivada ao abrigo do disposto nos números anteriores, será comunicada à outra parte por carta registada com aviso de recepção» .

Estando junta aos autos apenas a acima referida carta registada com aviso de recepção cujos termos que já se referiram, teria razão, à partida, a aqui apelante para sustentar a falta de carta admonitória a que se reporta a referida al a) do nº 2 dessa cláusula.

Sucede que o contrato de locação financeira dos autos contempla uma outra cláusula  - a 15ª  - que rege relativamente “A outras causas de resolução do contrato”, referindo no seu nº 1 que, «Caso o Locatário incorra no incumprimento, temporário ou definitivo, de qualquer obrigação emergente da relação contratual celebrada  ou a celebrar com a Locadora  acordam expressamente, o Locatário e a Locadora,  que esse incumprimento constituirá causa objectiva de perda de interesse contratual na manutenção do presente contrato».

Estabelecido como fica nessa cláusula um dos pressupostos alternativos a que se reporta o art 808º CC para caracterizar o incumprimento definitivo da obrigação – a perda, em consequência da mora, do interesse do credor na prestação, caracterizando desde logo  essa perda de interesse na prestação como objectiva, como o exige o nº 2 desse art 808º-  e decorrendo da matéria de facto que a locatária deixou de proceder ao pagamento de rendas – pese embora  não se digam quais -  ter-se-á de concluir não ser necessária a interpelação admonitória, isto é, a fixação pelo credor ao devedor de um prazo suplementar razoável para se poder concluir, «para todos os efeitos», não cumprida a obrigação, sob pena de nenhum sentido se poder conferir à cláusula contratual em apreço  e tão pouco à  remissão no art 17º do DL 149/95 de 24/7, mantido como foi pelo subsequente  DL 285/01 de 3/11, para os termos gerais da resolução em função do incumprimento das obrigações da outra parte.

 Do que se deverá concluir, ao contrário do sustentado pela apelante, pela suficiência das cartas de resolução juntas aos autos para operar a resolução do contrato, tornando obrigatória para a locatária a restituição do locado  no prazo de 8 dias, bem como para o pagamento das rendas vencidas e não pagas e ainda para pagamento da indemnização devida, como dessas cartas resulta.

De todo o modo, sempre se dirá, que, a entender-se que não obstante o constante dessa clausula 15º/1 sempre teria sido necessário para operar validamente a resolução do contrato que a locadora, aqui Requerente, tivesse conferido aos locatários um prazo suplementar para porem  termo à mora, a circunstância de,  aquando da ordenada entrega do locado à  Requerente  - que teve lugar em 20/10/2020 -  se ter verificado  que o prédio se encontrava devoluto e que ninguém se encontrava no imóvel, tendo os Requeridos  sido citados editalmente e acabado por interpor o presente recurso  mais de um ano depois da entrega do imóvel, implicaria que se constituíssem em abuso de direito na invocação da resolução ilícita do contrato.

 Com efeito, age em abuso de direito «quem o exercita fora do objectivo natural e da razão justificativa da sua existência fazendo-o ostensivamente contra o sentimento jurídico dominante», falando-se a esses respeito do desequilíbrio no exercício de posições jurídicas.

Exemplifica Pedro Pais de Vasconcelos, como situação em que o exercício danoso é abusivo, aquela em que o exercício danoso se revela inútil ou injustificado - «é abusivo o exercício do direito que não represente qualquer vantagem para o seu titular, enquanto dele resulte para outrém um sacrifício injusto».

Com efeito, a entrega judicial e cancelamento do registo na locação financeira têm como objectivo a protecção dos interesses económicos do locador e, reflexamente, os da economia em geral, sendo em absoluto contrário a esse(s) interesse(s) que se admitisse que o locatário financeiro, que não paga as rendas devidas e que à data da entrega do locado já nem o utiliza e que nem sequer se mostra contactável, pudesse  pretender obstar àquela entrega judicial  invocando, largos  meses depois, que não lhe foi conferido prazo para pôr termo à mora.

Tanto mais que, mesmo que se concluísse pela indevida utilização pela locadora da providência cautelar que aqui está em causa por não ter sido licita à luz do contrato a resolução a que procedeu do mesmo, nem por isso seria possível reverter a operada entrega dos imóveis locados. Como o refere Pais de Vasconcelos, «a ilicitude da resolução não a priva, em princípio, da sua eficácia típica de destruir retroactivamente a relação contratual, mas constitui um caso de violação, de incumprimento definitivo do contrato, com as respectivas consequências, a resolução do contrato sem fundamento licito corresponde à recusa definitiva do seu incumprimento». Apenas «em casos excecionais, a ilicitude da resolução pode ter como consequência a sua ineficácia, deixando em vigor a relação contratual».  

Por isso, a posição do aqui recorrente afigura-se inútil ou injustificada, devendo julgar-se improcedente a apelação.

V – Pelo exposto, acorda este Tribunal em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.

Custas pelos apelantes. 

Coimbra, 12 de Julho de 2022
(Maria Teresa Albuquerque)
(Falcão de Magalhães
(Pires Robalo)

(…)


               [1] -Procede-se à respectiva numeração, que não vinha feita

               [2]  - Gravato Morais ,«Manual da Locação Financeira», Março 2006, p. 172

[3]  - Os demais casos previstos nas al b) e c) deste nº 2 não se mostram susceptíveis de aplicação à situação dos autos.

[4] - Ac R C 9/1/2017 (Luís Cravo) «Tratado de Direito Civil Português», Parte Geral, Tomo I, 2ª ed., p. 249-269, Pedro Pais de Vasconcelos, “Teoria Geral do Direito Civil”, 5ª ed, p.  276.


Nesta modalidade de abuso de direito verifica-se que «o exercício do direito, devido a circunstâncias extraordinárias dá origem a resultados estranhos relativamente ao  que é admissível pelo sistema, quer por contrariar a confiança ou aquilo que o outro podia razoavelmente esperar, quer por dar origem a uma desproporção manifesta e objectiva entre os benefícios recolhidos pelo titular ao exercer o direito e os sacrifícios impostos à outra parte resultantes desse exercício». [4] http://www.dgsi.pt/icons/ecblank.gif