Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
443/03.8TMCBR-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TÁVORA VÍTOR
Descritores: INVENTÁRIO
DÍVIDA
RECLAMAÇÃO
CABEÇA DE CASAL
Data do Acordão: 11/03/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE FAMÍLIA E MENORES DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 303º Nº 3 E 1334º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1) Não existe hoje, ao contrário do que sucedia na primitiva redacção do artigo 1342º do Código de Processo Civil, norma segundo a qual a falta de resposta da outra parte quanto à alegação de existência de uma dívida activa em processo de inventário por parte do cabeça de casal se traduzia na respectiva aceitação.
2) Nestes casos rege hoje o artigo 1334º do Código de Processo Civil o qual manda aplicar à tramitação dos incidentes do processo de inventário, não especialmente regulados na lei, o disposto nos artigos 302º a 304º. Assim por força do artigo 303º nº 3 do citado Diploma Legal estatui que "A falta de oposição no prazo legal determina, quanto à matéria do incidente, a produção do efeito cominatório que vigore na causa em que o incidente se insere que será em princípio a confissão dos factos do incidente, mas não já o direito aplicável aos mesmos.

3) Tendo em reclamação contra uma dívida activa do cabeça de casal o devedor dito aceitar apenas uma determinada importância, não tem que se pronunciar sobre um requerimento ulterior onde se pretender ver a mesma actualizada de harmonia com os índices de inflação.

4) Reclamando o cabeça de casal em processo de inventário um crédito pecuniário o mesmo não está à partida sujeito a actualização dado que se lhe aplica o princípio nominalista segundo o qual "o cumprimento das obrigações pecuniárias faz-se em moeda que tenha curso legal no País à data em que for efectuado e pelo valor nominal que a moeda nesse momento tiver, salvo estipulação em contrário".

Decisão Texto Integral: 1. RELATÓRIO.

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra.

A... interessado e cabeça de casal nos autos de inventário para partilha de bens em casos especiais e em que é co-interessada B...., veio recorrer do despacho que incidiu sobre a reclamação da relação de bens junta a fls. 5 dos autos e apresentada pela interessada no tocante à fixação do valor da verba nº 1 da relação de bens que o cabeça de casal entende dever ser actualizada segundo os coeficientes do Instituto Nacional de Estatística.

Tal verba consta e tem origem do seguinte:

- No montante de 53.000,00 (CINQUENTA E TRÊS MIL EUROS): Requerente e requerida foram casados entre si no regime da comunhão de adquiridos, encontrando-se divorciados desde o dia 21 de Fevereiro de 2005. No dia 26 de Setembro de 1984, a requerida adquiriu, no estado de divorciada a fracção autónoma designada pela letra “D", correspondente ao primeiro andar e garagem número seis, com logradouro em frente à garagem, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal sito na ...... em Coimbra - doc. 1 que se juntou ao arresto constante dos autos - (apenso C), fracção que constituiu a casa de morada de família do extinto casal. Em simultâneo, contraiu um empréstimo bancário para aquisição da referida fracção ao Banco Pinto e Sotto Mayor, no valor de esc. 2.750.000$00 – doc. 1 e 2 junto ao arresto e que se dão integralmente por reproduzidos, a ser pago no prazo de vinte anos em prestações mensais e sucessivas – cláusula terceira do documento complementar á escritura – doc. 1.

No dia 20 de Outubro de 1984, ou seja, 24 dias após a aquisição daquela que constituiu a casa de morada de família, a requerida contraiu casamento com o requerente no referido regime da comunhão de adquiridos – doc. 3 junto ao arresto.

Desde a data em que contraiu casamento até ao divórcio a requerida utilizou o rendimento do extinto casal, nomeadamente o seu vencimento, conforme cláusula quarta do referido documento complementar à escritura (doc. 1) – bem comum do casal (artigo 1724º al. a) do Código Civil) - para pagamento das prestações bancárias e demais responsabilidades contraídas (cláusula terceira e sexta do doc. nº 1) a que se obrigou em data anterior à celebração do casamento com o requerente, - e como tal, dívida própria da requerida (artigo 1694º nº 2 do Código Civil). Assim sendo, fez nascer, em cada prestação paga, um direito de crédito a favor do requerente, tendo este, no momento da dissolução e partilha, direito à compensação (artigo 1 697º nº 2 do Código Civil) – acrescido de juros desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.

E em requerimento que apresentou posteriormente à sua reclamação reitera que lhe é devida a importância de € 19.711,39 já actualizada de harmonia com os índices de inflação.

Esse quantitativo obtém-se partindo do princípio que tendo a requerida amortizzdo € 23.828,49 da sua dívida para aquisição da sua habitação com dinheiro do casal o marido terá direito a metade daquela importância ou sejam € 11.914,25. A diferença entre este quantitativo e o reclamado (€ 7.797,14) corresponde à aludida actualização.

O ora reclamante sustenta que a requerente admite o crédito em singelo a favor do cabeça de casal mas não impugna e não se pronuncia sobre o requerimento que deu entrada no Tribunal com carimbo de 29 de Maio de 2007 no qual o requerente e cabeça de casal apresenta o valor do seu crédito com as devidas correcções monetárias resultantes de coeficientes legalmente estabelecidos.

- Assim do crédito da verba nº 1 deveria constar o valor de € 19.711,39.

Produzida a prova que entendeu pertinente, o Sr. Juiz decidiu que "sendo o vencimento de ambos os cônjuges "bem comum" nos termos do artigo 1724º alínea a) do Código Civil, provado que até à entrada da acção de divórcio a requerida amortizou € 23.828,49 de dívida para a aquisição da casa que adquiriu e é sua, tem o cabeça de casal direito a um crédito sobre ela de € 11.914,24.

Daí o presente recurso de agravo interposto pelo cabeça de casal, tendo no termo da sua alegação pedido que revogando-se o despacho em análise, se substitua o mesmo por decisão que considere o valor a atribuir à verba nº 1 como sendo de € 19.711,39.

Foram para tanto apresentadas as seguintes,

Conclusões.

O despacho em crise violou:

1) O artigo 50º do Código de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares;

2) O artigo 490º nº 2 do Código de Processo Civil – manifestado através do silêncio da requerida ao não se ter pronunciado no prazo legal quanto ao valor resultante do crédito do cabeça de casal que aquele indicou de acordo com a aplicação dos referidos índices em € 19.711,39.

3) O artigo 1362º nº 3 do Código de Processo Civil – no sentido de que através do seu silêncio a requerida aceitou o valor atribuído ao bem por aplicação dos referidos coeficientes, não podendo o Juiz a quo determinar que a verba tenha um valor inferior ao que foi aceite pela requerida.

Não houve contra-alegações.

Corridos os vistos legais cumpre decidir.

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2. FUNDAMENTOS.

2.1. Os Factos.

Os factos que interessam à decisão da causa cons­tam do despacho agravado.

Assim, não tendo sido impugnada a matéria de facto nem havendo tão pouco qualquer alteração a fazer-lhe, nos termos do preceituado no artº 713º nº 6 do Código de Processo Civil, dá-se aqui a mesma por reproduzida.

                      +

2.2. O Direito.

Nos termos do preceituado nos artsº 660º nº 2, 684º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Processo Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformidade e considerando também a natureza jurídica da matéria versada, cumpre focar os seguintes pontos:

- Qual a consequência da falta de resposta à reclamação de uma dívida activa constante da reclamação de bens em processo de inventário?

As peculiaridades do caso em análise.

- Da pretendida actualização do crédito do cabeça de casal.

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2.2.1. Qual a consequência da falta de resposta à reclamação de uma dívida activa constante da reclamação de bens em processo de inventário?

O cabeça de casal reclama na sua relação de bens um crédito pecuniário a seu favor sobre o seu ex-cônjuge actualizado de harmonia com os coeficientes de desvalorização da moeda; posteriormente e com data de 29 de Maio explicita os cálculos de actualização da importância em dívida cujo total ascenderá assim a € 19.689,36.

A requerida (sua ex-mulher) aceita apenas na sua reclamação à relação de bens onde o crédito do cabeça de casal apenas no montante de € 11.914,24. Todavia não respondeu ao requerimento do cabeça de casal em que o mesmo reclama a actualização da quantia em análise para € 19.689,36. Esta a razão pela qual entende o cabeça de casal que o crédito se deverá ter-se por confessado mesmo com a actualização referida e faz valer essa pretensão em sede de recurso.

Cabe decidir:

Em sede geral e à luz da primitiva redacção do artigo 1 342º do Código de Processo Civil (antes aplicável também nesta hipótese) a falta de resposta quanto à reclamação de uma dívida activa traduzia-se na respectiva aceitação pela outra parte. Hoje não existe no Código qualquer equivalente expresso àquela norma com a cominação que estava prevista, o que pode constatar-se da análise das disposições combinadas dos artigos 1 348º a 1 351º vigentes. Perante isso há quem sustente que a falta de resposta à reclamação não tem efeito cominatório dando tão-somente lugar à produção das provas, finda a qual o Juiz decidirá da forma como entender pertinente[1]. No entanto quer-nos parecer que nestes casos rege o artigo 1334º do Código de Processo Civil o qual manda aplicar à tramitação dos incidentes do processo de inventário, não especialmente regulados na lei, o disposto nos artigos 302º a 304º. Ora neste particular o artigo 303º nº 3 estatui que "A falta de oposição no prazo legal determina, quanto à matéria do incidente, a produção do efeito cominatório que vigore na causa em que o incidente se insere. Não será assim despiciendo à luz do normativo em análise entender-se que a falta de resposta à reclamação de uma dívida activa implica a aceitação dos factos a que a mesma se reporta até por aplicação do disposto no artigo 480º do Código de Processo Civil… os factos mas não o Direito. Ora in casu a falta de resposta ao requerimento em análise reporta-se no fundo a uma questão de direito a saber se é actualizável uma dívida pecuniária do teor da que vem reclamada. Por outro lado também sempre a resposta a esta reclamação estaria respondida pelo cônjuge do cabeça de casal ao referir que apenas aceitava dever a importância de € 11.914,24.

Daqui decorre que, ao contrário do que a agravante sustenta, a falta de resposta à sua reclamação na medida em que pretendia ver consagrado um crédito a seu favor no montante de € 19.711,39 não tem cabimento legal.

Pelo exposto improcedem as considerações do cabeça de casal neste particular.

                      +

2.2.2. Da pretendida actualização do crédito do cabeça de casal.

Resta agora considerar a outra pretensão da reclamante, a de ver actualizada a dita importância, que lhe foi atribuída de harmonia com índices de inflação publicados pelo Instituto Nacional de Estatística.

A este propósito distingue a lei consoante se trate de "dívidas pecuniárias" ou "dívidas de valor". Quanto a estas últimas tem-se entendido que devem ser objecto de actualização porque está em causa o "bem em si", intervindo o dinheiro apenas como "meio de liquidação", não lhe sendo aplicável, por isso, o "princípio nominalista" – artigo 551º do Código Civil[2]; Destas há porém que distinguir as "obrigações pecuniárias propriamente ditas", insusceptíveis de actualização nos termos supra-expostos – artº 550º – já que sujeitas ao "princípio nominalista" segundo o qual "o cumprimento das obrigações pecuniárias faz-se em moeda que tenha curso legal no País à data em que for efectuado e pelo valor nominal que a moeda nesse momento tiver, salvo estipulação em contrário".

Ora sendo o crédito em causa uma dívida pecuniária está submetida ao regime geral, não se lhe aplicando ipso facto qualquer actualização.

     Improcedem pois as conclusões do agravante; e nomeadamente no que toca aos normativos alegadamente violados, devendo aliás salientar-se que no tocante à invocação do artigo 50º do IRS não se diz nem se vislumbra onde se verifica in casu o respectivo cabimento.

 Nesta conformidade mau grado o Sr. Juiz a quo não se tenha pronunciado sobre a questão em análise, apreciada a mesma concluímos que a pretensão do agravante carece de fundamento jurídico em que se possa basear, o que dita o não provimento do agravo.

                          

     Poderá então concluir-se:

    

     1) Não existe hoje, ao contrário do que sucedia na primitiva redacção do artigo 1342º do Código de Processo Civil, norma segundo a qual a falta de resposta da outra parte quanto à alegação de existência de uma dívida activa em processo de inventário por parte do cabeça de casal se traduzia na respectiva aceitação.

     2) Nestes casos rege hoje o artigo 1334º do Código de Processo Civil o qual manda aplicar à tramitação dos incidentes do processo de inventário, não especialmente regulados na lei, o disposto nos artigos 302º a 304º. Assim por força do artigo 303º nº 3 do citado Diploma Legal estatui que "A falta de oposição no prazo legal determina, quanto à matéria do incidente, a produção do efeito cominatório que vigore na causa em que o incidente se insere que será em princípio a confissão dos factos do incidente, mas não já o direito aplicável aos mesmos.

     3) Tendo em reclamação contra uma dívida activa do cabeça de casal o devedor dito aceitar apenas uma determinada importância, não tem que se pronunciar sobre um requerimento ulterior onde se pretender ver a mesma actualizada de harmonia com os índices de inflação.

     4) Reclamando o cabeça de casal em processo de inventário um crédito pecuniário o mesmo não está à partida sujeito a actualização dado que se lhe aplica o princípio nominalista segundo o qual "o cumprimento das obrigações pecuniárias faz-se em moeda que tenha curso legal no País à data em que for efectuado e pelo valor nominal que a moeda nesse momento tiver, salvo estipulação em contrário".

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     3. DECISÃO.

     Pelo exposto acorda-se em julgar não provido o agravo mantendo assim o despacho em crise.

     Custas pelo agravante.


[1] É o que parece resultar do que escrevem João António Lopes Cardoso e Augusto Lopes Cardoso in "Partilhas Judiciais" I, 2006, 5ª Edição, pags 570 ss.
[2] Ou seja como lapidarmente explica Vaz Serra in Obrigações Pecuniárias Vaz Serra, em "Obrigações Pecuniárias", pág. 152, no sentido de que "compreende as dívidas que, não tendo, quando nascem, por objecto dinheiro, pois a sua finalidade é fazer entrar no património do credor uma determinada quantidade de bens reais (que lá estavam antes ou que, não estando, nele devem entrar), são convertidas em dinheiro, que substitui esses bens: como se pretende fundamentalmente que o credor obtenha os bens reais, para satisfação de determinados objectivos, a conversão em dinheiro deve fazer-se segundo o valor de tais bens no momento da conversão".