Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
365-B/1998.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: DÍVIDAS DA HERANÇA
RESPONSABILIDADE
HERDEIROS
HERANÇA PARTILHADA
Data do Acordão: 09/12/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE CASTELO BRANCO 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 513º, 524º, 2097º E 2098º DO C CIV.
Sumário: I. Relativamente aos credores da herança, enquanto esta permanece indivisa o devedor é apenas um, ou seja, é aquele património autónomo, dotado de personalidade judiciária e, por isso, susceptível de ser parte, isto é, de demandar e de ser demandado. Mas após a partilha, esse devedor desaparece, dando lugar a uma pluralidade de devedores, tantos quantos os herdeiros .

II. Só que a medida da responsabilidade destes determina-se pela proporção da quota que lhes tenha cabido na herança e não por qualquer outro critério, designadamente pelo valor dos bens que lhes tenham sido adjudicados .

III. Após a realização de uma partilha deixa de fazer sentido aludir a bens da herança, pois cada um desses bens entrou na esfera jurídica patrimonial do herdeiro a quem coube, perdendo qualquer ligação à herança que, enquanto património autónomo, deixou de ter existência jurídica .

IV. As obrigações dos herdeiros da herança partilhada perante os credores desta não são solidárias, pois nada na lei impõe tal solidariedade – artºs 513º e 2098º do C. Civ. . Por isso, não é ao credor permitido exigir a cada herdeiro mais do que a proporção da sua quota na herança, nem assiste ao herdeiro que porventura pague mais do que aquela proporção o direito de regresso contra os demais herdeiros – artº 524º do C.Civ.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:


1. RELATÓRIO
Nos autos de execução sumária que, com o nº 365-A/1998, correm termos pelo 3º Juízo do Tribunal Judicial de Castelo Branco, em que são exequente A... e executados B..., C...., D..., E... e F..., foi pela executada C.... deduzida oposição à penhora do prédio urbano sito na Rua Nova da Escola ou Rua da Escola, nº 35, freguesia da Mata, concelho de Castelo Branco, inscrito na matriz respectiva sob o artº 519 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Castelo Branco na ficha nº 522/27122001, que lhe fora adjudicado nos autos de inventário facultativo a que se procedeu por óbito de José Esteves Beato, marido da 1ª executada e pai dos restantes executados.
Essa oposição foi, por decisão de 21/12/2005 certificada de fls. 82 a 85, julgada procedente e, consequentemente, decretado o levantamento da penhora (e ordenada, como a oponente requerera, a emissão de guias para pagamento da sua quota parte da dívida exequenda).
Irresignado, o exequente recorreu e, na alegação de recurso apresentada, formulou as conclusões seguintes:
1) O douto Despacho recorrido baseia a sua fundamentação no artigo 2098º, nº 1, do Código Civil, segundo o qual, "Efectuada a partilha, cada herdeiro só responde pelos encargos em proporção da quota que lhe tenha cabido na herança";
2) Todavia, importa atentar no conceito de sucessão adoptado pelo Código Civil, segundo o qual tal fenómeno consiste no chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a esta pertenciam;
3) Com a sucessão, dá-se uma transmissão dos direitos e obrigações titulados pelo "De Cujus" e a herança, enquanto património autónomo de afectação especial, responde pela satisfação das respectivas dívidas, "ex vi" artigos 2068º, 2097º e 2098º, todos do Código Civil;
4) O Autor/Exequente instaurou a competente acção declarativa de condenação para pagamento da quantia em dívida, no âmbito da qual foi proferida douta Sentença condenatória que motivou a presente execução, antes de se ter procedido à partilha da herança em apreço;
5) Não se questiona, no âmbito do actual Código Civil, que se podem demandar, mesmo antes da partilha, todos os herdeiros, em conjunto, isto é, colectivamente, como um todo;
6) Nesse sentido, "Haverá sempre, é certo, a possibilidade de, mesmo antes da partilha, requerer o pagamento da dívida, nos termos do artigo 2091, nº 1, in fine, de todos os herdeiros, mas dos herdeiros em conjunto, em bloco, não dos vários herdeiros em separado, como numa verdadeira pluralidade de devedores, com a multiplicidade correspondente dos seus próprios patrimónios." (Código Civil Anotado de Pires de Lima e Antunes Varela, vol. VI, Coimbra Editora - 1998);
7) Sem se olvidar que, "...quando, com a partilha da herança, nasce a pluralidade de devedores, cada um deles passa a responder, apenas, em princípio, pela quota-parte da dívida correspondente à proporção da sua quota hereditária." (Código Civil Anotado de Pires de Lima e Antunes Varela, vol. VI, Coimbra Editora - 1998);
8) Face à ressalva vertida em 7), terá de concluir-se que, na situação em concreto, se até hoje, os únicos bens pertencentes à herança que foi possível penhorar, foram os prédios pertencentes à Agravada, não se conhecendo, inclusivamente, outros bens penhoráveis dos restantes herdeiros, dúvidas não restam que o Agravante e Exequente só poderá satisfazer o seu crédito através dos citados imóveis;
9) A adoptar-se diferente interpretação do artigo 2098°, nº 1, do Código Civil, isto é, a não aceitar qualquer hipótese de um herdeiro responder para além da sua quota parte na herança, conduziria, na presente situação, a uma inegável violação do direito ao objecto de crédito, verificada que está, a impossibilidade de localizar outros bens penhoráveis, resultantes da aludida partilha;
10) Cumpre ainda salientar que a tese da oposição deduzida pela Agravada é, com o devido respeito, facilmente rebatível, na medida em que, mesmo estando aquela a assumir uma responsabilidade maior do que a proporção da herança que recebeu, sempre poderá, posteriormente, exercer o direito de regresso contra os restantes herdeiros.
A recorrida respondeu pugnando pelo não provimento do agravo.
Foi proferido despacho de sustentação.
Colhidos os pertinentes vistos, cumpre apreciar e decidir.
***

2. QUESTÕES A SOLUCIONAR
Tendo em consideração que, de acordo com os artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foi colocada a questão de saber se, partilhada a herança, pode o credor fazer-se pagar pelo produto da venda de bem determinado que àquela pertenceu, independentemente de assim exceder a proporção da quota que ao herdeiro a quem o bem foi adjudicado coube na herança.
***

3. FUNDAMENTAÇÃO
3.1. De facto
Na decisão recorrida foi considerada provada a factualidade seguinte:
3.1.1. Por sentença proferida nos autos aos quais se encontram apensos os presentes e já transitada em julgado foram os executados condenados a restituir ao exequente a importância de 3.990.38 € acrescida de juros de mora desde a data da citação e até integral pagamento (A).
3.1.2. Os executados não pagaram qualquer importância (B).
3.1.3. Nos presentes autos foi penhorado o prédio urbano sito na Rua Nova da Escola ou Rua da Escola, n° 35, freguesia da Mata, Concelho de Castelo Branco, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artº 519 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Castelo Branco na ficha n° 522/27122001 (C).
3.1.4. Nos presentes autos foi penhorado o prédio rústico sito no Caroço, freguesia da Mata, Concelho de Castelo Branco, inscrito na respectiva matriz sob o artº 28 da Secção B e descrito na Conservatória do Registo Predial de Castelo Branco na ficha n° 447/0712891 (D).
3.1.5. Correram termos no 2° Juízo deste Tribunal autos de Inventário Facultativo, sob o n° 243/95, sendo requerente B....., viúva de José Esteves Beato, inventariado (E).
3.1.6. No referido processo de inventário foram relacionados os bens do de cujus a partilhar tendo sido atribuído o montante de 144.355,96 € do total a partilhar que resultou da soma das verbas constantes na referida relação de bens tendo sido proferida sentença homologatória da partilha, proferida a 13.05.97 e já transitada em julgado (F).
3.1.7. A Cabeça-de-Casal ficou com o direito a receber a quantia de 90.222,47 €, a título de meação e respectivo quinhão hereditário e, a cada um dos outros herdeiros e descendentes, que quantia de 13.533,36 € tendo sido os quinhões preenchidos em conformidade com o que consta do art° 15°, fls. 165/166 dos presentes (G).
3.1.8. À C... foi-lhe adjudicada a verba referida em C), tendo tal aquisição sido levada a registo a 03.10.2002 (H).
3.1.9. A verba referida sob a al. C) foi penhorada nos presentes autos a 24.01.2003 (I).
3.1.10. A ora oponente teve, para lhe ser adjudicado tal imóvel, de dar tornas ao herdeiro Manuel Paulo Esteves no valor de 11.406,51 € (J).
3.1.11. A quota-parte da dívida da ora oponente é de 882,21 €, acrescida dos respectivos juros legais, incidentes sobre a sua quota-parte (K).
Por se encontrar provado por documento – certidão de fls. 89 e seguintes – e ter interesse para a decisão do agravo, nos termos dos artºs 749º, 713º, nº 2 e 659º, nº 3 do Cód. Proc. Civil, considera-se ainda provado que:
3.1.12. A acção declarativa onde foi proferida a sentença referida no ponto 3.1.1., supra, foi distribuída em 8 de Outubro de 1998.
3.1.13. No artigo 3º da respectiva petição inicial o agravante, ali Autor, alegou expressamente que os herdeiros de José Esteves Beato, ali Réus, haviam já partilhado a totalidade dos bens que faziam parte da herança aberta por óbito daquele, no processo de inventário facultativo que correu termos sob o nº 243/95 pelo 2º Juízo, 2ª Secção do Tribunal Judicial da comarca de Castelo Branco.
***

3.2. De direito
Estatui o artº 2097º do Código Civil[ Diploma ao qual pertencem todas as disposições legais adiante citadas sem outra menção.] que os bens da herança indivisa respondem colectivamente pela satisfação dos respectivos encargos[ São encargos da herança, de acordo com o artº 2068º, as despesas com o funeral e sufrágios do seu autor, os encargos com a testamentaria, administração e liquidação do património hereditário, o pagamento das dívidas do falecido e o cumprimento dos legados.].
Preceitua, por sua vez, o nº 1 do artº 2098º que, efectuada a partilha, cada herdeiro só responde pelos encargos em proporção da quota que lhe tenha cabido na herança.
A lei é explícita ao estabelecer regimes diferentes para a liquidação dos encargos da herança conforme esta se mantenha ainda indivisa ou tenha sido já partilhada[ É o seguinte o sumário do acórdão da Relação do Porto de 04/11/1977, in BMJ, nº 273, pág. 322:
Se os herdeiros já se encontram determinados (embora a herança não esteja partilhada), aqueles são os representantes da herança, porque tal qualidade é-lhes conferida pelo artigo 2091.° do Código Civil. E daí que possam ser demandados par dívidas do de cujus, sendo, pois, partes legítimas em acção destinada à respectiva cobrança. Outro problema distinto é o de saber como, determinados os herdeiros, se devem liquidar os respectivos encargos. E aqui tem de se distinguir dois momentos: antes da partilha, os bens respondem colectivamente pela sua satisfação (artigo 2097.°); depois da partilha, cada herdeiro responde só pelos encargos na proporção da quota que lhe couber na herança, podendo até os herdeiros deliberar sobre a forma de efectuar esse pagamento (artigo 2 098.°)”.
Cfr. também o Ac. da Rel. do Porto de 13/01/2003 (Relator: Des. Paiva Gonçalves), in www.dgsi.pt/jtrp; Oliveira Ascenção, Direito das Sucessões, edição da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, págs. 613 e seguintes; Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, II, 2ª edição, págs. 118 e seguintes; e Eduardo dos Santos, O Direito das Sucessões, págs. 229/230.].
E essa diferença de regimes compreende-se perfeitamente: a herança indivisa constitui um património autónomo ao qual a própria a lei [artº 6º, al. a) do CPC] atribui personalidade judiciária, enquanto a herança já partilhada deixou de existir como património autónomo, dissolveu-se ou diluiu-se nos patrimónios dos herdeiros, passando cada um dos bens que a integraram a confundir-se com os demais bens do herdeiro a quem foi adjudicado.
Após a partilha deixa de fazer sentido aludir a bens da herança, pois cada um desses bens entrou na esfera jurídica patrimonial do herdeiro a quem coube, perdendo qualquer ligação à herança que, enquanto património autónomo, deixou de ter existência jurídica.
Relativamente aos credores da herança, enquanto esta permanece indivisa o devedor é apenas um, ou seja, é aquele património autónomo, dotado de personalidade judiciária e, por isso, susceptível de ser parte, isto é, de demandar e ser demandado[ Embora tenha de ser representado, umas vezes pelo cabeça-de-casal, outras pelo conjunto dos herdeiros (artºs 2079º e seguintes, com relevo para o artº 2091º).]. Mas, após a partilha, esse devedor desaparece, dando lugar a uma pluralidade de devedores, tantos quantos os herdeiros. Só que a medida da responsabilidade destes determina-se pela proporção da quota que lhes tenha cabido na herança e não por qualquer outro critério, designadamente, pelo valor dos bens que lhes tenham sido adjudicados.
Com efeito, as quotas que a cada um dos herdeiros caibam na partilha não têm de ser necessariamente preenchidas com bens, podendo, por exemplo, ser adjudicados todos os bens a um único herdeiro, pagando este as tornas devidas aos demais. Nesse caso, é óbvio que o herdeiro a quem foram adjudicados todos os bens não fica – a não ser que isso tenha sido acordado, como permite o artº 2098º, nºs 2 e 3 – responsável pela totalidade dos encargos, antes respondendo apenas na proporção da sua quota na herança. Mas com todo o seu património e não necessariamente e só com os bens herdados. E os restantes herdeiros, que não receberam qualquer bem da herança, não ficam, na proporção das suas quotas, desonerados do pagamento dos respectivos encargos, por eles respondendo, na dita proporção, com todo o seu património.
As obrigações dos herdeiros da herança partilhada perante os credores não são solidárias, pois nada na lei impõe tal solidariedade (artºs 513º e 2098º). Por isso, não é ao credor permitido exigir a cada herdeiro mais do que a proporção da sua quota na herança, nem assiste ao herdeiro que porventura pague mais do que aquela proporção direito de regresso contra os demais herdeiros (artº 524º).
Afirma o agravante que o descrito regime de pagamento dos encargos após a partilha conduz a uma inegável violação do direito ao objecto de crédito, verificada que está a impossibilidade de localizar outros bens penhoráveis, resultantes da partilha.
Mas não é assim.
Consumada a partilha e integrados os bens herdados nos patrimónios de cada um dos herdeiros a quem foram adjudicados, deixa de poder falar-se em bens da herança. E os herdeiros respondem pelos encargos em proporção das quotas que lhes tenham cabido na herança, mas não necessariamente e só com os bens herdados, podendo, até àquela proporção, ser penhorados quaisquer bens do seu património. Assim, em termos gerais, poderá até afirmar-se que a garantia do credor se reforçou. E o risco de perda dessa garantia não é, abstractamente, maior do que aquele que ocorria em vida do autor da herança ou do que é corrido por qualquer credor.

Aplicando o regime definido de pagamento dos encargos da herança após a partilha ao caso concreto que nos ocupa, começaremos por contrariar a afirmação feita pelo agravante na conclusão 4ª da sua alegação.
Com efeito, tal como resulta dos pontos 3.1.12. e 3.1.13., supra, não corresponde à verdade que “o Autor/Exequente instaurou a competente acção declarativa de condenação para pagamento da quantia em dívida, no âmbito da qual foi proferida douta Sentença condenatória que motivou a presente execução, antes de se ter procedido à partilha da herança em apreço”, porquanto a partilha foi homologada por sentença proferida em 13/05/1997, transitada em julgado (cfr. ponto 3.1.6., supra), e a acção declarativa em questão foi distribuída em 8 de Outubro de 1998. O que o agravante, ali Autor, não ignorava, pois no artigo 3º da respectiva petição inicial alegou expressamente que os herdeiros de José Esteves Beato, ali Réus, haviam já partilhado a totalidade dos bens que faziam parte da herança aberta por óbito daquele, no processo de inventário facultativo que correu termos sob o nº 243/95 pelo 2º Juízo, 2ª Secção do Tribunal Judicial da comarca de Castelo Branco.
Consequentemente, face ao aludido regime de pagamento dos encargos após a partilha, é inequívoco que a executada C... só respondia pela dívida da herança ao exequente na proporção da quota que lhe coube na dita herança, ou seja, no montante de € 882,21, acrescido dos respectivos juros legais (cfr. ponto 3.1.11., supra).

Soçobram, portanto, todas as conclusões da alegação do recorrente, o que conduz ao não provimento do agravo e à manutenção da decisão recorrida.
***

4. CONCLUSÃO
Face ao exposto, acorda-se em negar provimento ao agravo e, em consequência, em manter a decisão recorrida.
As custas são a cargo do agravante.
***

Coimbra,