Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1059/13.6TTCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FELIZARDO PAIVA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
DESCARACTERIZAÇÃO
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA DO SINISTRADO
Data do Acordão: 12/18/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO DO TRABALHO DE COIMBRA – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 14º, Nº 3 DA LEI Nº 98/09, DE 04/09 (LAT).
Sumário: I – Um acidente de trabalho descaracteriza-se, não dando lugar à reparação (artº 14º da LAT), no que ao caso interessa, quando provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado.

II - A negligência grosseira definida no artigo 14º, nº 3 da Lei 98/09, de 04/09, implica a violação das mais elementares regras de precaução em que a culpa é elevada pelo elevado teor de imprevisão ou de falta de cuidados elementares.

III - Traduz-se numa conduta temerária em alto e em relevante grau, fortemente indesculpável por violar as cautelas mais elementares.

IV - A apreciação deve ser feita em concreto em face do próprio sinistrado e não em função de um padrão geral e abstracto de conduta.

V - A negligência grosseira deve ser causa exclusiva da eclosão do acidente (alínea b) do nº 1 do citado artigo 14º).

VI - Deve poder estabelecer-se um nexo de causalidade (adequada, na sua formulação negativa) entre a conduta negligente e o evento infortunístico.

VII - A lei não se basta, pois, para a descaracterização do acidente, com uma simples imprudência, uma mera negligência ou com uma distracção. É necessário um comportamento temerário em alto e relevante grau, ostensivamente indesculpável, reprovado por um elementar sentido de prudência [que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão], e que constitua a única causa do acidente.

VIII - No caso, o sinistrado cometeu uma contra ordenação tipificada como leve por não ter observado o sinal vertical C4e que se encontrava colocado no acesso à EN 341 e que proíbe o trânsito a peões, a animais e a veículos que não sejam automóveis ou motociclos (indicação de acesso interdito a peões, animais e veículos que não sejam automóveis nem motociclos com cilindrada superior a 50 cm3).

IX – A negligência grosseira deve ser apreciada em concreto – em função, nomeadamente, das condições do próprio sinistrado – e não com referência a um padrão abstrato de conduta.

X - Todas as circunstâncias relevantes devem ser consideradas em cada caso, nomeadamente, sendo caso disso, a particular fragilidade do lesado (v.g. idosos), a sua qualificação formal para conduzir (v.g. estar, ou não, habilitado para conduzir), a velocidade e o tipo de veículo envolvido no acidente (com ou sem motor e inerente grau de perigosidade), etc”.

Decisão Texto Integral:








Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – C..., melhor identificado nos autos, intentou a presente acção emergente de acidente de trabalho, contra, SEGURADORA A..., S.A. pedindo que a Ré seja condenada a pagar-lhe:

1 - A quantia de €766,61€ (setecentos e sessenta e seis euros e sessenta e um cêntimos) a título de despesas médicas e medicamentosas já efetuadas desde a data do acidente até à presente data, acrescida do valor das despesas médicas e medicamentosas que venha a efectuar para a sua completa recuperação, cujo montante não é possível determinar na presente data, pelo que deverão ser liquidadas em sede de execução de sentença;

2 - O valor da pensão anual e vitalícia de €9.889,20 (nove mil oitocentos e oitenta e nove euros e vinte cêntimos), com início à data de 2/10/2015, valor que subsistirá até à data em que vier a ser revista a incapacidade que lhe foi atribuída, nos termos do artigo 22º, nº 2 da Lei 98/2009, de 4 de Setembro;

3 - O montante de €20.053,10 (vinte mil, cinquenta e três euros e dez cêntimos) correspondente à soma das indemnizações por incapacidade temporária (70% nos 12 primeiros meses - 1.04.2013 a 1.04.2014 – €7.691,60 + 75% nos restantes - €8.241,00 - 2.04.2014 a 1.04.2015+€4.120,50 - 2.04.2015 a 1.10.2015), acrescida de juros de mora à taxa legal, actualmente de 4%, desde o vencimento de cada prestação até efectivo e integral pagamento, que actualmente se liquida em €3.508,21 (três mil quinhentos e oito euros e vinte e um cêntimos).

Para tanto alegou, em síntese, que foi vítima de acidente no dia 1 de Abril de 2013, pelas 17,15 horas, ao Km 38,80, da EN ... quando efectuava o percurso de local de trabalho – residência, conduzindo o seu veículo motorizado matricula ..., tendo embatido no lado esquerdo traseiro do ligeiro de passageiros ...

À data trabalhava nas instalações de ..., para quem desempenhava funções correspondente à categoria profissional de serralheiro, mediante o salário anual de €10.988,00 (€700,00x14+€108,00x11) de onde, naquele dia, tinha despegado pelas 17,00 horas e dirigia-se para a sua residência sita na Rua ...

A responsabilidade emergente do presente acidente encontra-se integralmente transferida para Companhia de Seguros A..., S.A..

Em consequência do acidente, o Autor sofreu várias lesões traumáticas, que lhe demandaram um período de doença com impossibilidade absoluta para o trabalho.

Continua em situação de carência de tratamentos, designadamente, de ser sujeito a cirurgia para colocação de Prótese total da anca (PTA) à direita.

A seguradora, declinou a sua responsabilidade por considerar que o autor circulava numa via em que o trânsito era proibido ao veículo que tripulava, invocando que, à data, existia no nó de entrada da aludida via de trânsito, um sinal C4E que proíbe a circulação a peões, animais e veículos que não sejam automóveis nem motociclos com cilindrada superior a 50 cm3.

Porém, no nó de entrada não existia, à data, o alegado sinal de proibição, como não existe actualmente.

Cerca de 10 dias após o acidente é que o sinal “apareceu” colocado sobre o rail do aludido acesso.

O percurso efetuado naquele dia é o percurso que utilizava habitualmente nas suas deslocações do seu local de trabalho para a sua residência.


+

Citada a Ré, esta deduziu contestação alegando ter o acidente ocorrido devido a negligência grosseira do sinistrado por este, aquando do embate, circular por uma via em que o trânsito era proibido ao veículo que conduzia (de cilindrada inferior a 50 cm3).

O ISS – IP – Centro Distrital de Coimbra e Centro Nacional de Pensões, deduziu pedido de reembolso do montante de €24.554,01 – sendo €18.772, 26, a título de pagamento de prestações por subsídio de doença, no período compreendido entre 01/04/13 a 30/03/16 e €5.781,75, a título de prestações pagas por pensão de invalidez, a partir de 31/03/16 -, que pagou ao aqui sinistrado na sequência do acidente em causa nos autos.

A Ré Seguradora respondeu concluindo pela improcedência do pedido do ISS com a sua consequente absolvição do pedido.

Foi admitido a ampliação do pedido do ISS (despacho de 12.03.2020)[1] no montante de €5.607,60 correspondente ao valor da pensão de invalidez, paga ao Autor, desde Abril de 2018 a Dezembro de 2019

No apenso para fixação da Incapacidade os senhores peritos responderam aos quesitos formulados e decidiram, por unanimidade, que o Autor se encontra actualmente afectado por uma, Incapacidade Permanente Parcial – IPP de 0,732, com Incapacidade para o Trabalho Habitual – IPATH.

Fixou-se a data da alta em 18.09.2019.

II – Foi proferido despacho saneador, seleccionada a matéria de facto assente e a controvertida com relevo para a decisão da causa e, no prosseguimento dos autos, veio a ser proferida sentença de cujo dispositivo consta o seguinte:

“Pelo exposto e ao abrigo dos normativos citados, julgo totalmente improcedente a presente acção de efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho e, em consequência:

Absolvo a Ré seguradora, dos pedidos formulados pelo Autor e pelo, ISS – IP – Centro Distrital de Coimbra e Centro Nacional de Pensões.”


***

III – Inconformado, veio o sinistrado apelar, alegando e concluindo:

          ...

Contra alegou a seguradora, rematando em síntese conclusiva que “ ...”.

Nesta Relação, o Exmº PGA emitiu fundamentado parecer no sentido da confirmação do julgado.

IV – Da 1ª instância vem assente a seguinte matéria de facto:

          ...

V - Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas respectivas conclusões a questão a decidir passa por saber:

1. Se há lugar à alteração da matéria de facto.

2. Se o sinistro ocorreu devido a negligência grosseira do sinistrado.

Da alteração da matéria de facto:

Pretende a recorrente que da redacção do facto 15º seja retirada da expressão “encontrando-se a imobilização daquele veículo devidamente sinalizadae que seja considerada provada a matéria dos pontos 2, 6 e 7 dos factos dados como não provados.

Antes de entrar propriamente na análise da impugnação importa relembrar, ainda que de forma breve, os critérios que devem presidir à reapreciação factual por parte do tribunal da Relação.

Assim, a reapreciação da matéria de facto por parte do tribunal superior não pode nem deve constituir um segundo julgamento do objecto do processo, como se a decisão da 1ª instância não existisse[2], mas sim, e apenas, remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, a indicar expressamente pelo recorrente.

Em princípio, a alteração da decisão da matéria de facto só deve ocorrer quando se configure o denominado erro de julgamento, ou seja, quando possa ser detectada uma flagrante discrepância entre os elementos de prova e a decisão sobre a matéria de facto, devendo o tribunal de recurso apenas controlar a convicção do julgador de 1ª instância quando tal convicção se mostre contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos.

E dizemos em princípio porque a possibilidade da modificação da decisão da matéria de facto não deve estar limitada de forma absoluta à verificação de erros manifestos de reapreciação pois “desde que a Relação acabe por formar uma diversa convicção sobre os pontos de facto impugnados, ainda que por interferência de presunções judiciais extraídas a partir de regras da experiência deve reflectir esse resultado em nova decisão” - Abrantes Geraldes “in” Recursos no Processo do Trabalho, novo regime, 2010, págª 67[3].

Assim, sempre sem prejuízo desta convicção, em princípio, só quando os elementos dos autos conduzam inequivocamente a uma resposta diversa da dada em 1ª instância é que deve o tribunal superior alterar as respostas que ali foram dadas, situação em que estaremos perante erro de julgamento sendo ainda de referir que, em caso de depoimentos testemunhais contraditórios deve dar-se prevalência ao decidido em 1ª instância atendendo ao princípio da livre convicção do julgador.

Por outro lado, como se escreveu no acórdão desta Relação de 02.06.17, procº 2280/16.0T8LRA.C1, aliás, no seguimento de outros anteriormente proferidos, “ … a reapreciação da matéria de facto por parte do Tribunal da Relação, na base de uma reapreciação de meios de prova sem força probatória vinculativa, deve ser levada a efeito com especiais cautelas tendo em conta os princípios da oralidade, da imediação e da livre apreciação da prova, sendo de relevar que aquela imediação assiste este se produzem e só por ele são apreensíveis um conjunto de circunstâncias que relevam para efeitos de se aferir da credibilidade de depoimentos orais (v.g., reacções do próprio depoente ou de outros, hesitações, pausas, gestos, expressões, gestos corporais, trocas de olhares, ruboridades …), circunstâncias essas que são insusceptíveis de captação pela simples gravação áudio dos depoimentos.

Aliás, é sabido que: i) a comunicação não se estabelece apenas por palavras e que estas devem ser apreciadas no contexto da mensagem em que se integram; ii) numa situação de comunicação, só 7% da capacidade de influência decorre do uso das palavras, correspondendo ao tom de voz e à fisiologia, respectivamente, 38% e 55% desse poder.

Justamente por causa do que vem de referir-se, cabe principalmente ao juiz da primeira instância o poder de avaliar a credibilidade dos depoimentos produzidos na sua presença, sujeitando-os continuadamente a uma apreciação racional e crítica à face das regras comuns da lógica e da razão, bem como das máximas de experiência e dos conhecimentos científicos, sem perder de vista as razões de ciência reveladas, as certezas e lacunas evidenciadas, as contradições, as hesitações, as inflexões de voz, a serenidade, a objectividade, o grau de convicção e capacidade de sustentação, o distanciamento de interesses em relação ao objecto do litígio, a coerência de raciocínio e de atitude, a seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, as coincidências e inverosimilhanças registadas.

Como ensina Enrico Altavilla, “O … testemunho está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá também aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras.”.

Um testemunho não é necessariamente infalível nem necessariamente erróneo, devendo ter-se sempre bem presente, a máxima de Bacon segundo a qual “Os testemunhos não se contam, pesam-se.” .

Importa ter em conta, igualmente, que as provas produzidas devem ser objecto de análise e valoração conjuntas e globais, e não de forma individualizada e descontextualizada ou fraccionada.

Assim sendo, em sede de reapreciação fáctica, cabe ao Tribunal da Relação aferir se a matéria de facto decidida pelo tribunal recorrido padece de erro evidenciável e/ou se tem suporte razoável nas provas produzidas e nas regras da lógica, experiência e conhecimento comuns, não sendo suficiente para alterar aquela matéria a diferente avaliação que os impugnantes fácticos façam da prova oral produzida”.

Deve ainda dizer-se que a impugnação da matéria de facto não se basta com a simples transcrição dos depoimentos das testemunhas e com a indicação do início e o fim das passagens constantes da gravação.

Tal impugnação exige, por parte do impugnante, uma análise crítica da prova[4] de maneira a justificar as alterações ou os porquês da alteração solicitada.

Há ainda a assinalar que do rol da matéria de facto não devem constar conclusões, juízos de valor ou conceitos jurídicos devendo dar-se por não escrita a matéria com essas características[5].

Por último, não se podem olvidar as razões que estiveram na base da formação da convicção do tribunal com vista a uma melhor compreensão do “iter” lógico-dedutivo que levou a 1ª instância a dar como provada/não provada certa factualidade.

No que respeita ao facto 15º a expressão “encontrando-se a imobilização daquele veículo devidamente sinalizada, reveste cariz marcadamente conclusivo.

Na verdade esta afirmação encerra um juízo de valor pois não se concretiza qual a sinalização que estava a ser utilizada (v. g. triângulo de pré sinalização) para além dos quatro “piscas” ligados.

Por isso decide-se suprimir da redacção do ponto 15º dos factos provados a expressãoencontrando-se a imobilização daquele veículo devidamente sinalizada”.

Relativamente à existência do sinal C4e (indicação de acesso interdito a peões, animais, veículos de tracção animal, velocípedes, ciclomotores, motociclos e triciclos de cilindrada não superior a 50 cm3, quadriciclos, veículos agrícolas etc) no acesso a EN 341, as testemunhas ouvidas a esse propósito – ... – foram unânimes e peremptórios em afirmar que na data do acidente esse sinal encontrava-se colocado no acesso à EN nº 347, o qual só posteriormente terá caído.

Consequentemente, é manifesto ser de manter o ponto 2 da matéria considerada não provada.

Quanto à dinâmica do acidente propriamente dita, entende o recorrente que a condutora do veículo onde aquele foi embater, guinou para a sua direita e parou o veículo inopinadamente na berma direita, imobilizando-o mais próximo à zona esquerda (faixa de rodagem) sem qualquer sinalização que o fizesse prever.

Ora, a prova produzida não aponta nesse sentido.

...

Da negligência grosseira:

Um acidente de trabalho descaracteriza-se, não dando lugar à reparação (artº 14º da LAT), no que ao caso interessa, quando provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado

A seguradora declinou a sua responsabilidade com base no disposto na al. a), 2ª parte, do nº 1 do artº 14º da LAT, ou seja por entender que o acidente resultou de negligência grosseira do sinistrado.

Considerando que o conceito de negligência grosseira é um dos conceitos mais trabalhados a nível da jurisprudência infortunística, de modo a evitar repetições e tornar fastidiosa a narração, podemos realçar de forma sintética o seguinte:

- a negligência grosseira[6], definida no artigo 14º, nº 3 da Lei 98/09, de 04/09, implica a violação das mais elementares regras de precaução em que a culpa é elevada pelo elevado teor de imprevisão ou de falta de cuidados elementares. Traduz-se numa conduta temerária em alto e relevante grau, fortemente indesculpável por violar as cautelas mais elementares;

- a apreciação deve ser feita em concreto em face do próprio sinistrado e não em função de um padrão geral e abstracto de conduta;

- a negligência grosseira deve ser causa exclusiva da eclosão do acidente (alínea b) do nº 1 do citado artigo 14º);

- deve poder estabelecer-se um nexo de causalidade (adequada, na sua formulação negativa) entre a conduta negligente e o evento infortunístico.

A lei não se basta, pois, para a descaracterização do acidente, com uma simples imprudência, uma mera negligência ou com uma distracção. É necessário um comportamento temerário em alto e relevante grau, ostensivamente indesculpável, reprovado por um elementar sentido de prudência [que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão], e que constitua a única causa do acidente.

No caso, o sinistrado cometeu uma contra ordenação tipificada como leve por não ter observado o sinal vertical C4e que se encontrava colocado no acesso à EN 341 e que proíbe o trânsito a peões, a animais e a veículos que não sejam automóveis ou motociclos (indicação de acesso interdito a peões, animais e veículos que não sejam automóveis nem motociclos com cilindrada superior a 50 cm3).

Como o sinistrado tripulava um velocípede com motor de cilindrada inferior a 50 cms cúbicos estava-lhe interdito circular pela referida EN 341 no troço desta estrada que é conhecido com “via rápida de Taveiro”.

Mas pelo facto de circular em desobediência ao referido sinal vertical, poder-se-á concluir que agiu ou se comportou com negligência grosseira?

Com negligência certamente, pois estava obrigado a ver o sinal[7] e a saber que o seu velocípede com motor não podia entrar e passar a circular na EN 341.

Todavia, conforme se lê no ac. STJ de 07.05.2014, in www.dgsi.pt/jstj[8], “em face de uma violação das regras de circulação rodoviária que a lei qualifique como “grave” ou “muito grave”, não pode concluir-se que isso implica necessária e automaticamente a existência de negligência grosseira em sede de acidentes de trabalho, uma vez que não são coincidentes os critérios para aferir da culpa num e noutro domínio

Mais se escreveu no referido aresto que “….negligência grosseira deve ser apreciada em concreto – em função, nomeadamente, das condições do próprio sinistrado – e não com referência a um padrão abstracto de conduta.

Todas as circunstâncias relevantes devem ser consideradas em cada caso, nomeadamente, sendo caso disso, a particular fragilidade do lesado (v.g. idosos), a sua qualificação formal para conduzir (v.g. estar, ou não, habilitado para conduzir), a velocidade e o tipo de veículo envolvido no acidente (com ou sem motor e inerente grau de perigosidade), etc”.

No caso o trânsito não estava totalmente proibido na EN 341.

Por essa estrada circulavam motociclos com cilindrada superior a 50 cms cúbicos e outros veículos automóveis.

Nestas circunstâncias, o sinistrado, pessoa de baixas habilitações literárias (tinha a profissão de serralheiro) que por aquela estrada estava habituado a circular na ida e vinda do seu trabalho, com muita probabilidade estaria convencido que podia circular por essa via com a sua Gilera Typhonn de cilindrada inferior a 50 cms cúbicos, o que mitiga em muito a sua culpa.

Aliás é própria lei que tipifica a infracção como leve, punível apenas com coima e não também com sanção acessória de inibição de conduzir como acontece com as contraordenações graves e muito graves.

Situação diferente seria a de o trânsito estar totalmente proibido nessa via (nos dois ou em um único sentido) ou pelo menos totalmente proibido ao trânsito de todos os motociclos, o que levaria uma pessoa com os conhecimentos do sinistrado a pensar que também ela não poderia circular nessa via dadas as semelhanças entre os veículos de duas rodas.

Assim, tal com se decidiu no aresto do STJ citado “olhando para o conjunto das circunstâncias envolvidas nos factos, não cremos que se lhe possa assacar uma “atitude especialmente censurável de leviandade ou de descuido”, nem que no facto se encontrem plasmados traços “particularmente censuráveis de irresponsabilidade e insensatez.

Em suma, não é possível afirmar, para os efeitos da disposição legal em questão, que a A. tenha agido com negligência grosseira, sendo certo que o ónus da prova dos correspondentes factos impendia sobre a demandada, por terem natureza impeditiva do direito à reparação, nos termos do artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil.

Mas ainda que assim não se entenda, sem prescindir, diremos ainda que o evento infortunístico não pode ser atribuído exclusivamente à conduta do sinistrado

O acidente ocorreu na EN 341 que começa na Figueira da Foz na freguesia de Paião na N109 e termina em Coimbra junto da ponte-açude, atravessando os concelhos de Figueira da Foz, Soure, Montemor-o-Velho e Coimbra.

Todo o seu trajecto se desenrola ao longo da margem sul do Rio Mondego.

Nos últimos quilómetros entre Taveiro e Coimbra a estrada tem perfil de auto estrada com duas faixas de rodagem, cada uma delas com duas vias, com separador central.

Este troço é vulgarmente conhecido por “Via Rápida de Taveiro”.

Por ser uma estrada ou via equiparada a auto estrada, a paragem ou estacionamento na sua berma é proibida, constituindo a infracção a esta proibição contraordenação grave nos termos do disposto na al. g) do nº 1 do artº 145º do C. Estrada.

Deste modo, à condutora do veículo automóvel estava vedado parar na berma da via.

É certo que o veículo automóvel se encontrava imobilizado na berma, em virtude da sua condutora padecer de diabetes e ter sentido necessidade de colocar um pacote de açúcar debaixo da língua (facto 23).

Se bem que este facto seja susceptível de poder fazer diminuir ou até excluir a culpa da condutora na prática da infracção, não é de excluir, à míngua de outros factos, a possibilidade da condutora poder parar noutro local, ou seja, fora da “via rápida de Taveiro”, pois tudo depende da mais ou menor urgência da necessidade ingerir açúcar.

Por isso, não é descartar em absoluto alguma culpa da condutora da viatura automóvel quando parou numa via em que essa paragem na berma estava e é proibida.

E como se decidiu no Ac. STJ de 26.10.2017 procº 156/14.5TBSRQ.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt “o concurso da culpa do condutor do outro veículo interveniente no acidente, ainda que em diminuto grau, é suficiente para impedir a descaracterização do acidente, pois a verificação desta depende da demonstração de que o acidente resultou, em exclusivo, da conduta culposa do sinistrado”.

Em jeito de conclusão dir-se-á:

- Inexistiu negligência grosseira por parte do sinistrado.

- Mesmo que se conclua pela sua verificação, esta negligência não foi causa exclusiva do evento infortunístico.

- Assim, o acidente não se encontra descaracterizado dando, em consequência, lugar à reparação.

E esta reparação, da responsabilidade da seguradora para a qual se encontrava transferida a responsabilidade, consiste no pagamento:

a) de uma indemnização por ITA relativa ao período de 01.04.013 a 18.09.2020 (artºs 48º nº 3/d e 50º nºs 1 e 3 da LAT);

b) de uma pensão anual e vitalícia calculada nos termos da alínea b) do nº 3 do artº 48º da LAT;

c) de um subsídio de elevada incapacidade calculado nos termos do nº 3 do artº 67º da LAT;

d) das despesas com transportes e com assistência médica e medicamentosas (artºs 25º nº1 al. a) e b) e 39º da LAT).

Cumpre, por último, apreciar o pedido de reembolso do ISS por ter pago ao sinistrado o montante de €18.772, 26, a título de subsídio de doença, e a quantia de €11.389,35 a título de pensão de invalidez (cfr. factos 8, 19 e 22).

Sob a epígrafe responsabilidade civil de terceiros dispõe o artigo 70.º da Lei 4/2007, de 16/01[9] que “no caso de concorrência pelo mesmo facto do direito a prestações pecuniárias dos regimes de segurança social com o de indemnização a suportar por terceiros, as instituições de segurança social ficam sub-rogadas nos direitos do lesado até ao limite do valor das prestações que lhes cabe conceder”.

Por seu turno o Artigo 7º (Concessão provisória do subsídio) do DL 28/2004, de 04/02[10], dispõe : “1 — Nas situações de incapacidade temporária para o trabalho decorrentes de acidente de trabalho ou de acto da responsabilidade de terceiro, pelo qual seja devida indemnização, há lugar à concessão provisória de subsídio de doença enquanto não se encontrar reconhecida a responsabilidade de quem deva pagar aquelas indemnizações. 2 - A concessão provisória do subsídio de doença cessa logo que se verifique o reconhecimento judicial da obrigação de indemnizar ou o pagamento voluntário da indemnização, sem prejuízo do disposto no artigo 31º. 3 - Sempre que seja judicialmente reconhecida a obrigação de indemnizar, as instituições de segurança social têm direito ao reembolso dos valores correspondentes à concessão provisória do subsídio de doença até ao limite do valor da indemnização”.

Por último dispõe o DL 187/2007, de 10/5[11]: Artigo 2.º (Caracterização das eventualidades) “1 - Integra a eventualidade invalidez toda a situação incapacitante de causa não profissional determinante de incapacidade física, sensorial ou mental permanente para o trabalho.2 - Integra a eventualidade velhice a situação em que o beneficiário tenha atingido a idade mínima legalmente presumida como adequada para a cessação do exercício da actividade profissional.3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, considera-se situação incapacitante de causa profissional a que resulta de acidente de trabalho ou de doença profissional”. Artº 7º “ (Direito ao reembolso das pensões pagas). “Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, se tiver havido pagamento de pensões, a instituição gestora tem o direito de exigir o respectivo reembolso.

Em face do estatuído nos preceitos que se transcreveram, o ISS tem o direito de exigir da responsável pela reparação infortunística as quantias que pagou ao sinistrado a título de subsídio de doença e de pensão de invalidez.

Na verdade, o direito do sinistrado a receber as referidas prestações da SS teve a sua origem no acidente de trabalho por cuja reparação é responsável a seguradora.

Mas, sob pena do sinistrado estar a receber em duplicado, as importâncias a reembolsar pela seguradora ao ISS terão de ser deduzidas nas prestações em que a seguradora foi condenada a pagar ao sinistrado em consequência do acidente de trabalho.

Só assim se evita a cumulação na esfera patrimonial do sinistrado das prestações decorrentes do acidente de trabalho e das prestações já pagas pela SS a título de subsídio de doença e pensão de invalidez que, nos termos dos normativos acima citados não são cumuláveis

A condenação da recorrente no reembolso das importâncias pagas pelo ISSS só se compreende se essas importâncias forem deduzidas ao montante das prestações em que foi condenada a pagar ao sinistrado em consequência do acidente de trabalho.

IV Termos em que se delibera julgar a apelação totalmente procedente em função do que se decide condenar a ré Seguradora:

1-  A pagar ao Autor:

a) Uma pensão anual e vitalícia, no montante anual de €16.086,43[12], desde 19 de Setembro de 2013 (por ser o dia seguinte ao da alta), a pagar, adiantada e mensalmente, até ao 3.º dia de cada mês, correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão anual, sendo os subsídios de férias e de Natal, cada um no valor de 1/14 da pensão anual, respectivamente, pagos nos meses de Junho e Novembro;

b) - Um subsídio por situações de elevada incapacidade permanente no valor de €4.609,97[13].

c) - Uma indemnização por ITA desde 02.04.2013 até 18.09.2019 no valor de €47.278,50[14].

d) - As despesas suportadas com assistência médica medicamentosa cuja quantificação se relega para liquidação de sentença.

e) Juros de mora, à taxa legal, sobre as prestações assinaladas em a), b) e c) desde o seu vencimento até pagamento.

2- A pagar a título de reembolso ao ISS a quantia de €18.772, 26, a título de subsídio de doença, e a quantia de €11.389,35 a título de pensão de invalidez, quantias estas que serão deduzidas nas prestações em que a seguradora foi condenada a pagar ao sinistrado em consequência do acidente de trabalho.

Custas a cargo da recorrida.

Valor: €241.109,45.


Coimbra, 18 de Dezembro de 2020

(Joaquim José Felizardo Paiva)

(Jorge Manuel da Silva Loureiro)

(Paula Maria Ferreira Roberto)

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[1] Nos termos do qual foi ordenado o seguinte: “….deve aditar-se, no caso, aos Factos Assentes a alínea H), com o seguinte teor: “H - O Instituto de Segurança Social/IP, Centro Nacional de Pensões, no período de abril de 2018 a dezembro de 2019 pagou ao Autor, a título de da pensão de invalidez, o montante de €5.607,60

[2] Daí que na reapreciação da matéria de facto pelo tribunal superior seja sempre de ponderar na fundamentação daquela feita pela 1ª instância de modo a perceber o“iter” lógico-dedutivo que levou à conclusão encontrada e a permitir o controlo da razoabilidade da decisão alcançada.
[3] No domínio do novo Cód. Proc. Civil escreve este autor in Recursos no Novo Cód.Proc. Civil, 2013, págª 224 que “quando esteja em causa a impugnação de determinados factos cuja prova tenha sido sustentada em meios de prova submetidos a livre a apreciação, a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras da experiência
[4]A omissão, a insuficiência ou a suficiência da análise crítica, pelo recorrente, das provas a reapreciar é questão que tem a ver com o mérito da impugnação, com a procedência ou improcedência do recurso, mas não com a sua liminar rejeição ou aceitação.” – Acórdão do STJ de 22/2/2018, proferido no processo 8948/15.1T8CBR.C1.S1, cujo sumário poderá consultar-se em http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/social/Mensais/Fevereiro_2018.pdf, no qual se lê que “Na verdade, ao recorrente ao dizer que determinado facto não devia ser dado como provado pelo confronto da prova testemunhal com a documental fazendo uma transcrição da primeira, não está a fazer uma análise critica da prova, nem sequer a fornecer os elementos necessários para permitir que o tribunal a faça, deixando nas mãos do tribunal uma actividade “recolectora” de todos os documentos e dos depoimentos identificados, não sendo assim possível ao tribunal de recurso refazer o percurso/raciocínio lógico-jurídico que o próprio recorrente fez para concluir de forma diferente daquilo que a instância inferior decidiu.
               Uma correta impugnação que cumpra o ónus previsto no art. 640º do Código de Processo Civil, passaria por identificar que determinado facto provado foi incorrectamente julgado, enunciando-o e apresentando o porquê de tal incorreção, isto é, dever-se-ia apresentar uma análise crítica dos elementos de prova de que o julgador deveria retirar uma conclusão diferente da que retirou, e apresentar o facto tal como deveria ter sido dado como provado e não provado”..

[5] Por imposição do artº 646º, nº 4, do anterior CPC tinham-se por não escritas as respostas do tribunal sobre questões de direito ou, o que é o mesmo, conclusivas. O mesmo deve considerar-se no quadro do actual CPC, na medida em que o juiz deve considerar apenas os factos que considera provados ou não provados (artº 607º, nºs 3, 4 e 5 do Novo CPC), do que resulta dever ser afastada a matéria notoriamente conclusiva ou de direito. Se apenas a matéria de facto releva para a decisão final, ela deve apresentar-se isenta de considerações jurídicas ou conclusivas que apenas devam ter leitura na apreciação de direito.

[6] Entre muitos outros veja-se a título meramente exemplificativo o Ac. do STJ de 24.02.2010 (Procº 747/04.2TTCBR.C1.S1), tirado no domínio da Lei 100/97 mas que mantém plena actualidade em face da LAT em vigor, consultável em www.dgsi.pt/jstj, do qual se destaca a seguinte parte do respectivo sumário:
(...).II - A descaracterização do acidente de trabalho com esteio no disposto no art. 7.º, al. b), da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, exige a adopção, pelo sinistrado, de um comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou nos usos e costumes da profissão (art. 8.º, n.º 2, do DL n.º 143/99, de 30 de Abril).
III - A negligência ou mera culpa consiste na violação de um dever objectivo de cuidado, sendo usual distinguir entre aquelas situações em que o agente prevê como possível a produção do resultado lesivo, mas crê, por leviandade ou incúria, na sua não verificação (negligência consciente) e aquelas em que o agente, podendo e devendo prever aquele resultado e cabendo-lhe evitá-lo, nem sequer concebe a possibilidade da sua verificação (negligência inconsciente). IV - A negligência pode também assumir diferentes graus: será levíssima quando o agente tenha omitido os deveres de cuidado que uma pessoa excepcionalmente diligente teria observado; será leve quando o padrão atendível for o comportamento de uma pessoa normalmente diligente e será grave quando a omissão corresponder àquela em que só uma pessoa excepcionalmente descuidada e incauta teria também incorrido. V - A negligência grosseira, correspondendo a uma culpa grave, pressupõe que a conduta do agente – porque gratuita e de todo infundada – se configure como altamente reprovável, à luz do mais elementar senso comum. VI - A culpa grave deve ser apreciada em concreto – conferindo as condições do próprio acidentado – e não com referência a um padrão abstracto de conduta. VII - A descaracterização do sinistro constitui um facto impeditivo do direito reclamado na acção, competindo ao demandado, por via disso, a prova da materialidade integradora dessa descaracterização (art. 342.º, n.º 2, do Código Civil).

[7] Embora não conste da matéria de facto, podemos verificar das fotografias juntas aos autos que o sinal C4e não se encontrava totalmente colocado na vertical mas ligeiramente inclinado.
[8] Proferido na sequência de Revista interposta de acórdão desta Relação de 14.11.2023 em o ora relator  foi 2º adjunto.
[9] Bases Gerais do Sistema de S. Social.
[10] Diploma define o regime jurídico de protecção social na eventualidade doença no âmbito do subsistema previdencial.
[11] Define e regulamenta o regime jurídico de protecção nas eventualidades de invalidez e velhice do regime geral de segurança social.
[12] Calculada segundo a fórmula: RA x 50% = Y;  RA x 70% = W;  W – Y = Z;  Z x IPP = Pensão
[13] De acordo com a seguinte fórmula: 419,22 (valor do IAS à data do acidente) x 12 = 5.029,44;  5.029,44 x 70% = 3.520,60;  5.029,44 – 3520,608 = 1.508, 83x 73,2% (IPP) = 1.089,37 [ 3.520,60 + 1.089,37 = 4.609,97].
[14] Assim calculada: RA : 365 x 70% x 365 dias;  RA : 365 x 75% x 2.094 dias, sendo que o valor de RA (remuneração anual) inclui já o valor dos subsídios de férias e de Natal;