Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2401/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: TÁVORA VITOR
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
USUCAPIÃO
Data do Acordão: 10/21/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Área Temática: DIREITOS REAIS
Legislação Nacional: ART.º 1547.º, 1548.º, 1549.º E 1287.º DO C.C.
Sumário: 1) Para a constituição de uma servidão de passagem por destinação de pai de família é além do mais essen-cial a presença de sinais inequívocos que revelem a existência de serventia de um prédio para outro no momento em que os mesmos, que haviam pertencido ao mesmo dono formando uma unidade, se venham a separar.
2) A servidão de passagem por usucapião tem que ser aparente para que se possa constituir; verificado contudo o exercício da servidão através do corpus tra-duzido nos actos materiais correspondentes e o animus, traduzido na convicção de que se exerce um direito próprio, não deve ser grande a exigência dos vestígios externos de qualquer forma sempre consonantes com a amplitude do direito que se pretende exercer.
3) Provando-se que as AA. acedem de pé aos seus prédios pelo prédio dos RR. através de uma abertura não inferior a 60 cm junto à sua confrontação e em toda a extensão da mesma numa largura não inferior a 60 cm, há mais de 30 anos à vista de toda a gente, sem a oposição de ninguém e na convicção de exercitar um direito próprio com o fim de colherem azeitona e faze-rem as vindimas, deverá considerar-se constituída por usucapião uma servidão de passagem sobre o prédio dos RR. e a favor do das AA..
4) A existência da aludida abertura é suficiente para consubstanciar a existência de sinal visível e perma-nente exigido por lei, considerando os actos materiais praticados pelos titulares da A., integrado-res daquela figura.
5) A eventual existência de outra passagem para os AA. através da parte norte do seu prédio, não impede que se declare constituída a servidão de passagem por usucapião pelo prédio dos RR.. A questão só poderá eventualmente colocar-se se em sede própria os RR. vierem posteriormente a intentar acção para extinguir a servidão de passagem por desnecessidade com o funda-mento no artº 1 569º nº 2 do Código Civil.
Decisão Texto Integral: 1. RELATÓRIO.
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Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra.
A Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de C......, representada pelas suas únicas e legais herdeiras Maria.......; e
A Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de José......, representada pelos seus únicos e legais herdeiros Maria ...........s, ........ intentaram a pre-sente acção sumária contra A...... e...F.... ......., pedindo que:
- Sejam as Heranças Autoras reconhecidas como donas e legítimas proprietárias dos prédios dominantes respectivos e melhor identificados em 1º e 2º da peti-ção inicial,
- e por via de tal facto igualmente reconhecida e declarada a constituição e existência de servidão de passagem a favor dos prédios das Heranças Autoras, sobre o dos Réus, com a extensão e características e modo de exercício correspondentes aos alegados na petição inicial e assim,
- Sejam condenados os Réus a reconhecer a consti-tuição de tal servidão nos termos do artº 1 549º do Código Civil por destinação de pai de família ou, quando assim se não entenda, por usucapião, nos termos do artº 1 548º do C. Civil.
- Os Réus sejam condenados a manter a referida servidão livre e desembaraçada, de forma permanente em toda a sua extensão e largura.
Alegaram para tanto e em síntese, que a 1ª Autora é dona e legitima possuidora de um prédio que identi-ficam no artº 1º da petição inicial, sendo por sua vez a 2ª Autora dona e legítima possuidora do prédio iden-tificado no artº 2º da petição inicial, invocando fac-tos consubstanciadores da sua aquisição por usucapião.
Por outro lado, os Réus são donos do prédio que identificam no artº 12º da petição inicial. Os prédios das Autoras e dos Réus, em tempos fizeram parte de um único prédio, que posteriormente foi dividido em três partes que hoje constituem os prédios das Autoras e dos Réus, sendo que na altura da divisão o prédio dos Réus ficou onerado com um caminho para servir os pré-dios das Autoras. O acesso de pé e de carro aos pré-dios das Autoras, desde tempos imemoriais, é feito pelo prédio dos Réus, numa extensão de 80m x 2m, em toda a confrontação poente de tal prédio, sendo certo que tal acesso tem vindo a ser exercido pelos interes-sados e seus antecessores à vista de toda a gente, de forma ininterrupta, sem a oposição de ninguém e na convicção de exercerem um direito próprio e sem pre-juízo para terceiros, tendo acesso em toda a sua extensão sinais visíveis e permanentes.
Contestaram os RR. impugnando os factos alegados pelas Autoras, referindo em síntese que o prédio da 2ª Autora encontra-se onerado com um caminho de servidão com a largura média de 2,50m por cerca de 133 metros de comprimento, o qual já existia quando os prédios formavam um unidade predial pertencente a um só dono; esse caminho tem início na via pública que ladeia o prédio das Autoras do seu lado norte, por onde se fazia o acesso àqueles prédios, não existindo qualquer caminho no prédio dos Réus, pelo que se os represen-tantes alguma vez por ali passaram fizeram-no de forma abusiva, não existindo quaisquer sinais visíveis e permanentes de tal passagem.
Conjuntamente com a contestação os Réus deduziram reconvenção contra os Autores pedindo que se declare que os Réus/reconvintes são donos e legítimos possui-dores do prédio identificado no artº 21º da contesta-ção/reconvenção, devendo a 2ª Autora e seus represen-tantes legais ser condenados a reconhecerem que por sobre o seu prédio identificado no artº 29º da contes-tação/reconvenção se encontra constituída uma servidão de passagem de pé e de veículos de tracção animal e mecânica, com as características mencionadas nos artsº 30º a 35º, por destinação de pai de família e até por usucapião, a favor do prédio dos Réus, devidamente identificado no artº 21º. Pedem ainda a condenação das AA. a absterem-se de impedir por qualquer forma o exercício, por parte dos Réus, de tal servidão e a 2ª Autora ainda condenada a manter tal servidão livre e desimpedida.
Os Autores responderam impugnando os factos ale-ga-dos pelos Réus na contestação/reconvenção, alegando que aquando da divisão o respectivo autor preservou e quis manter o acesso a todos os prédios através do caminho já existente, onerando com servidão aquele que directamente passou a confinar com a Estrada, que foi o dos Réus, encontrando-se os prédios das Autoras encravados, nunca existindo no prédio da 2ª Autora qualquer caminho, não havendo neste qualquer sinal visível e permanente resultante de qualquer passagem.
Concluem como na petição inicial, pugnando pela improcedência da reconvenção.
No saneador conheceu-se da validade e regulari-dade da instância, tendo sido elaborada a BI.
Procedeu-se a julgamento com a observância do for-malismo legal tendo sido proferida sentença que:
A – julgou a acção parcialmente procedente por provada e em consequência,
1) Declarou que a 1ª Autora, Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de Celestino Costa de Almeida é dona e legitima possuidora de um prédio rús-tico composto de terra de cultura com 10 oliveiras e 50 videiras, com a área de 1300 m2, a confrontar do norte com Maria Eugénia S. Andrade, nascente com Fran-cisco Costa Baião, sul com António Costa Almeida e do poente com José Costa Almeida, sito ao Pombal, ins-crito na matriz sob o artº 8309 da freguesia de Pinheiro de Ázere, omisso na Conservatória do Registo Predial.
2) Declarou que a 2ª Autora, Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de José Antunes de Almeida e Costa é dona e legítima possuidora de um prédio rús-tico composto de terra de cultura com 6 oliveiras e 50 videiras, com a área de 130 0m2, a confrontar de norte com caminho, do nascente com Maria de Lurdes Andrade Costa, sul com António Costa Almeida e poente com Joa-quim Almeida Batista, sito ao Pombal, inscrito na matriz sob o artº 8310 da freguesia de Pinheiro de Ázere, omisso na Conservatória do Registo Predial.
3) Condenou os Réus a reconhecer tais direi-tos das Autoras, absolvendo-os dos restantes pedidos contra eles formulados.
B – julgou a reconvenção parcialmente procedente por provada e em consequência:
4) Declarou que os Réus/reconvintes donos e legítimos possuidores de um terreno destinado à cons-trução urbana, sito ao Pombal, limite da freguesia de Pinheiro de Ázere, com a área de 1064m2, a confrontar de norte com Maria de Lurdes Costa (Autoras), sul com a estrada, nascente com Francisco Costa Baião e poente com Joaquim Almeida Baptista, inscrito na matriz pre-dial urbana sob o artº 1135, o qual proveio do artigo rústico 8308, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Comba Dão sob o nº 02365/080900, com inscrição a favor dos Réus por o terem adquirido a António Antunes da Costa Almeida e esposa, por escri-tura de compra e venda lavrada no Cartório Notarial de Santa Comba Dão, no dia 21/09/2000, a fls. 84 do Livro 118-A.
5) Condenou as Autoras/Reconvindas a reconhe-cer tal direito dos Réus, absolvendo-as dos restantes pedidos contra elas formulados.
Daí o presente recurso de apelação interposto pelas AA. as quais no termo da sua alegação pediram que a decisão proferida seja anulada por estar minada de contradição, ou no mínimo seja declarada a consti-tui-ção de uma servidão a pé sobre o prédio dos RR.
Foram para tanto apresentadas as seguintes e algo confusas

Conclusões.

1) Na sentença não se acautelou ou deu como exis-tentes sinais visíveis e permanentes de servidão do prédio dos RR. a favor dos AA. não obstante ter sido dada como provada toda a matéria atinente ao exercício efectivo do direito correspondente à servidão de pas-sagem constituída por destinação de pai de família sendo certo que da prova produzida (resposta aos que-sitos 4º e 5º) se concluiu do modo como inequivoca-mente desde a divisão os AA. recorrentes têm acedido aos seus prédios, de onde poderia ter sido extraída a conclusão da destinação.
2) Tal conclusão sempre poderia ter resultado demonstrada por força do que fora dado como assente na especificação (al. D), atentas as confrontações origi-nárias do prédio primitivo donde se infere que a par-cela dos RR. foi a única que ficou a confrontar com caminho (Avenida), sendo certo que o prédio da 1ª herança AA. ainda se acha encravado.
3) À prova do animus das AA. quanto ao modo de exercício da servidão com o sentido e orientação defi-nidas e assumidas na sentença, se contrapôs a improce-dência da reconvenção quanto ao modo de exercício dos direitos de passagem nos prédios em apreço.
4) O exercício de actos de posse conforme os ale-gados e provados é incindível do corpus que exterior-mente corresponde à realidade predial onde aqueles se explanam.
5) A sentença, ao dar como inexistentes os sinais visíveis e permanentes no prédio dos RR., mas concomi-tantemente ao dar como provado que o prédio dos RR. “tem uma abertura de largura não inferior a 60 cm por onde os das AA. e seus antecessores passam a pé ( res-posta no quesito 17) enferma de obscuridade e contra-dição insanável por violação do artº 712º nº 4 do C.P.C..
6) Deveria pois, a sentença ter considerado assim constituída a servidão de passagem, pelo menos de pé já por destinação ou por via da usucapião, pois que a noção de aparência que se pretende dar como essencial para a dita procedência, não poderá ser descaracteri-zada se tivermos em conta a acepção da palavra tri-lho.....
7) Reforçada a ideia de acesso ininterrupto, per-manente e em todas as épocas do ano, logo teria de concluir-se pela existência da servidão aparente.
8) A sentença colocou os prédios das AA. no emba-raço de um verdadeiro “ encrave judicial” dado que ao tempo da divisão não confrontavam com quaisquer cami-nhos, não estando igualmente provado ou demonstrado que exista ou existisse quaisquer direitos de passagem sobre o caminho agora existente a norte, caminho esse cuja natureza de caminho público não foi tão pouco definida (conforme fundamentação da matéria de facto não provada).
Contra-alegaram os apelados pugnando pela confir-mação da sentença.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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2. FUNDAMENTOS.
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O Tribunal deu como provados os seguintes,
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2.1. Factos.
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2.1.1. A 1ª Autora, Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de Celestino Costa de Almeida, é dona e legítima possuidora de um prédio rústico composto de terra de cultura com 10 oliveiras e 50 videiras, com a área de 1 300m2, a confrontar do norte com Maria Eugé-nia S. Andrade, nascente com Francisco Costa Baião, sul com António Costa Almeida e do poente com José Costa Almeida, sito ao Pombal, inscrito na matriz sob o artº 8309 da freguesia de Pinheiro de Ázere, omisso na Conservatória do Registo Predial.
2.1.2. A 2ª Autora Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de José Antunes de Almeida e Costa é dona e legitima possuidora de um prédio rústico com-posto de terra de cultura com 6 oliveiras e 50 videi-ras, com a área de 1300m2, a confrontar de norte com caminho, do nascente com Maria de Lurdes Andrade Costa, sul com António Costa Almeida e poente com Joa-quim Almeida Batista, sito ao Pombal, inscrito na matriz sob o artº 8310 da freguesia de Pinheiro de Ázere, omisso na Conservatória do Registo Predial.
2.1.3. Os Réus são donos e legítimos possuidores de um terreno destinado à construção urbana, sito ao Pombal, limite da freguesia de Pinheiro de Ázere, com a área de 1064m2, a confrontar de norte com Maria de Lurdes Costa (Autoras), sul com a estrada, nascente com Francisco Costa Baião e poente com Joaquim Almeida Baptista, inscrito na matriz predial urbana sob o artº 1135, o qual proveio do artigo rústico 8308, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Comba Dão sob o nº 02365/080900, com inscrição a favor dos Réus por o terem adquirido a António Antunes da Costa Almeida e esposa, por escritura de compra e venda lavrada no Cartório Notarial de Santa Comba Dão, no dia 21/09/2000, a fls. 84 do Livro 118-A.
2.1.4. Os prédios das Autoras e dos Réus formaram outrora um único prédio, denominado de Pombal, ins-crito na matriz sob o artº 2807, que era composto por terra de seca vinha e olival, sita ao Pombal, limite da freguesia de Pinheiro de Ázere, a confrontar de nascente com Francisco Gomes Baião, poente com Joaquim de Almeida Batista, norte com Francisco Henrique Ribeiro e sul com Avenida.
2.1.5. O prédio referido no nº 4 foi adjudicado na proporção de 1/6, para cada um, aos autores das heran-ças e ao antecessor dos Réus, em inventário orfa-noló-gico por óbito da avó daqueles, Maria Deolinda da Costa Ferreira, reservando-se então para o cabeça de casal, António Antunes de Almeida, a meação de tal prédio; no entanto, aquando de tal partilha, em 1950 o cabeça de casal dispôs da meação a favor dos três her-deiros, que consensualmente o dividiram e demarcaram em 3 partes, que correspondem aos actuais prédios das Autoras e dos Réus.
2.1.6. Desde a data da divisão referida no nº 5 que as Autoras acedem de pé aos seus prédios pelo pré-dio dos Réus junto à sua confrontação poente e em toda a extensão de tal confrontação e numa largura não inferior a 60 cm.
2.1.7. Acesso esse que tem sido feito pelas Auto-ras e seus antecessores de forma ininterrupta, em todas as épocas do ano e à vista de toda a gente.
2.1.8. As Autoras têm agido sem oposição de nin-guém e na convicção de exercerem um direito próprio de passagem.
2.1.9. As Autoras aí passam a pé para cultivar os seus prédios, colherem azeitona e fazerem as vindimas.
2.1.10. O acesso ao prédio referido no nº 4, antes da divisão, fazia-se indistintamente pelo prédio hoje dos Réus, na sua confrontação poente, fazendo-se o acesso com carros de bois e tractores para a parte que hoje constitui o prédio dos Réus através deste prédio e para a parte que hoje constitui os prédios das Auto-ras através do prédio da 2ª Autora com início no cami-nho que ladeia este prédio do seu lado norte.
2.1.11. Existia e existe uma abertura ou entrada de fácil acesso a partir do caminho existente a norte do prédio da 2ª Autora, para este prédio.
2.1.12. O acesso para lavrar, semear, fazer as colheitas e tratar do prédio referido no nº 4 e depois da divisão para os três prédios a que deu origem tem sido feito nos termos referidos no nº 10.
2.1.13. O prédio dos Réus fica situado num plano inferior à estrada em altura não inferior a 50cm.
2.1.14. O prédio dos Réus é murado e vedado junto à estrada, há mais de 30 ou 40 anos, por um muro de pedra, à excepção de uma abertura de largura não infe-rior a 60 cm, por onde os Réus e seus antecessores e os titulares das Autoras e seus antecessores passam a pé.
2.1.15. O prédio da 2ª Autora confina a norte com caminho, por onde tem acesso.
2.1.16. Em data não concretamente apurada foram colocadas pedras a vedar a abertura referida em 2.1.14., que posteriormente daí foram retiradas pelos RR..
2.1.17. O prédio da primeira Autora não confina com caminho público.
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2.2. O Direito.
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Tendo em linha de conta que nos termos do precei-tuado nos artsº 684º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Pro-cesso Civil as conclusões da alegação de recurso deli-mitam os poderes de cognição deste Tribunal e con-side-rando a natureza jurídica da matéria versada, cum-pre focar os seguintes pontos:
- Mostra-se constituída a favor dos prédios das AA. e sobre o prédio dos RR. uma servidão de passagem por destinação de pai de família?
- Face à prova produzida é possível concluir pela existência de uma servidão de passagem por usucapião sobre o prédio dos RR. e a favor dos prédios das AA.?
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2.2.1. Mostra-se constituída a favor dos prédios das AA. e sobre o prédio dos RR. uma servidão de passa-gem por destinação de pai de família?
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De harmonia com o disposto no artº 1 547º nº 1 do Código Civil – Diploma ao qual pertencerão doravante os restantes normativos a citar sem menção de origem – "as servidões prediais podem ser constituídas por con-trato, testamento, usucapião ou destinação de pai de família; e o artº 1 549º preenche o conceito da servi-dão por destinação de pai de família definindo-a pra-ticamente nos mesmos termos em que o fazia o artº 2 274º do Código de 1876. "Se em dois prédios do mesmo dono, ou em duas fracções de um só prédio houver sinal ou sinais visíveis e permanentes postos em um ou em ambos que revelem serventia de um para o outro, serão esses sinais havidos como prova da servidão quando em relação ao domínio dos dois prédios, ou as duas frac-ções do mesmo prédio vierem a separar-se salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respectivo documento".
A servidão por destinação de pai de família é pois integrada pelos seguintes elementos: 1) os dois pré-dios ou fracções devem ter pertencido ao mesmo dono; 2) existam sinais visíveis e permanentes que revelem de forma inequívoca uma situação estável de serventia de um para o outro; 3) Que os dois prédios se separem quanto ao seu domínio não havendo no respectivo docu-mento nenhuma declaração oposta à constituição do encargo Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela "Código Civil Anotado" III, Coimbra Editora, 2ª Edição pags. 633 ss; Mota Pinto "Direitos Reais" Almedina Coimbra pags. 322 s. Máximo Bianca "Diritto Civile 6, La Proprietà Giuffrè Editore, Milano, 1999 pags. 687 ss..
Considerando os requisitos do instituto supra-apontados, vejamos se procedem as considerações das AA. em ordem a poder considerar-se constituída a ser-vidão de passagem por destinação de pai de família sobre o prédio dos RR. que reivindicam.
Sendo mútuo o assentimento de que os prédios de AA. e RR pertenceram ao mesmo dono e se fraccionaram em unidades independentes, a divergência entre as par-tes começa com a ausência de sinais visíveis e per-ma-nentes que revelem a existência de serventia de um para o outro e que foi dada como assente na sentença apelada. A este respeito refira-se terem recebido res-posta negativa os quesitos nsº 2º e 3º que indagavam se o caminho existente a poente do prédio dos RR. (a pretensa servidão) tem uma extensão de 80 m de compri-mento por 2 metros de largura nele existindo visíveis trilhos inerentes ao seu uso de passagem.
Pretendendo suprir a lacuna da prova chamam as AA. a atenção para o facto de nos quesitos 4º e 5º se haver dado como provado que desde a data da divisão referida em E) as AA. acedem de pé aos seus prédios pelo prédio dos RR. junto à sua confrontação poente e em toda a extensão de tal confrontação numa largura não inferior a 60 cm o que tem sido feito à vista de toda a gente e na convicção de exercerem um direito próprio; por outro lado, as AA. não aceitam que se possa exercer o corpus dos actos de posse sem que os sinais correlativos tenham expressão exterior através de vestígios ou marcas que os atestem; estes serão pois necessariamente inerentes ao exercício da passa-gem, nomeadamente por parte dos apelantes.
As AA. não têm razão; não há qualquer possibili-dade de concluir pela existência de sinais visíveis e permanentes onde eles não existem, sendo os mesmos requisito fundamental e caracterizador deste tipo de servidão, por contraposição aos actos esporádicos e de mera tolerância ocasional; por outro lado é própria lei que responde ao argumento das AA. quando se repor-tam ao facto de toda a passagem por um trilho deixa as suas marcas o que bastaria para preencher os requisi-tos da servidão em análise; com efeito e independente-mente de tal conclusão dos apelantes se não impor de forma necessária, há a considerar que o artº 1 549º exige que os sinais de passagem sejam permanentes fri-sando a ideia de que deve ser excluída a precariedade dos vestígios, de harmonia aliás com o desfavor que a lei trata as servidões não aparentes, nomeadamente em matéria de usucapião – artº 1 548º do Código Civil Cfr. Carvalho Fernandes "Lições de Direitos Reais" Quid Iuris Lisboa 1996, pags. 393.
É bem certo que vem dado como provado (resposta ao quesito 17º) que o prédio dos RR. "tem uma abertura de largura não inferior a 60 cm por onde as AA. e os seus antecessores passam a pé"; este facto está, na tese dos apelantes, em contradição com o decidido na sen-tença sob censura, segundo a qual não existem os alu-didos sinais visíveis da passagem; é aliás na esteira desse raciocínio que os AA. fundamentam o pedido de anulação do julgamento de harmonia com o disposto no artº 712º nº 4 do Código Civil;). Todavia a alegada contradição entre os fundamentos e decisão da sentença que analisamos não existe, como demonstraremos mais abaixo.
Tem-se entendido e bem, que os sinais caracteriza-dores da servidão de passagem a que nos estamos repor-tando só poderão ser considerados como tal 1) se forem inequívocos, revelando uma situação estável e 2) terem sido colocados com o fim de assegurarem a serventia de um para outro prédio com carácter de permanência; admite-se até para afastar a equivocidade dos sinais, o recurso a elementos estranhos aos mesmos, através de quaisquer meios de prova, nomeadamente a testemunhal Cfr. Pires de Lima e A. Varela Ob. cit., pags 630; Cunha Gonçalves Tratado de Direito Civil XI, pags, 662 ss e o supracitado Ac. desta Relação de 2-11-1988 (R. 411/88). Ainda no que toca ao requisito da existência de sinais visíveis e permanentes da servidão, cfr. a anotação de Henrique de Mesquita ao Ac. da Rel. do Porto de 27-11-1995 in Rev. de Leg. e Jur., 129, 248, maxime pags. 272 s. . Reportando-nos ao primeiro requisito supra-apontado, não há menção de que alguém colocasse ou mandasse colocar qualquer tipo de sinal, nomeadamente na linha divisória do prédio dos 2sº AA. para os dos RR. que indiciasse servidão deste último para com o primeiro; aliás o único quesito que se referia ainda que de forma vaga a esta questão, o primeiro, obteve res-posta negativa.
Por outro lado – segundo requisito - a citada abertura recorta-se no muro que veda a propriedade dos RR. a sul poente junto à estrada, não sendo por si esclarecedora para a caracterização dos elementos cons-titutivos da servidão em análise. Por último sem-pre se teria que provar que os sinais que revelassem serven-tia do prédio dos RR para o das AA., já existiam no momento em que se deu a divisão do primitivo pré-dio; ora não vem provado que a aludida abertura do muro existisse no momento em que teve lugar o fraccio-na-mento do prédio primitivo no ano de 1950, provando-se apenas essa existência apenas há mais de 30 ou 40 anos.
Não se encontram pois preenchidos requisitos con-substanciadores da servidão por destinação de pai de família, que assim deverá ter-se por inexistente.
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2.2.2. Face à prova produzida é possível concluir pela existência de uma servidão de passagem por usuca-pião sobre o prédio dos RR. e a favor dos prédios das AA.?
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De harmonia com o que deixámos dito, uma das for-mas de constituição da servidão é a usucapião – artsº 1 547º nº 1 e 1 548º. Baseia-se este título constitu-tivo na posse desse direito real de gozo por certo lapso de tempo que faculta a aquisição do mesmo veri-ficados que estejam determinados requisitos – artsº 1 287º e 1 547º. Veda contudo a lei a possibilidade de constituição por usucapião às servidões não aparentes, de harmonia com o que expressamente se dispõe no artº 1 548º nº 1; por seu turno, esclarece o nº 2 do citado preceito legal, que "consideram-se não aparentes as servidões que não se revelam por sinais visíveis e permanentes" Constitui ponto muito acentuado pela Doutrina e Juriprudência Cfr. v.g. Oliveira Ascensão "Direito Civil Reais" 5ª Edição Coimbra Editora pags. 496, onde se refere expressamente "mesmo que alguém exerça longamente poderes correspondentes a uma servidão, isso de nada lhe pode aproveitar para o efeito da aquisição desta, desde que esse exercício não se revista da aparência que se julgou indispensável à posse prescricional". Na Jurisprudência ver Acs. do S.T.J. de 14-11-1996 (P. 11/96 in Col. de Jur., 1996, 3, 101; desta Relação de 2-11-1988 (R. 411/88) in Col. de Jur., 1988, 5, 65. .
No caso concreto não se levantam dúvidas quanto à passagem dos herdeiros das AA. pelo prédio dos RR. que lhes fica a sul para acederem a pé aos seus prédios, o que tem sido feito por eles e seus antecessores inin-terruptamente, à vista de toda a gente, desde há mais de 50 anos, e na convicção de que exercem um direito próprio.
E quanto ao carácter visível e permanente da pas-sagem?
Ao contrário do que à primeira vista poderia pare-cer, a apreciação deste requisito em sede de usucapião terá que ser diferente da que fizemos quando apreciá-mos os pressupostos da usucapião por destinação de pai de família, podendo perfeitamente suceder que os sinais existentes sejam inócuos quanto àquela e já relevarem no que concerne à aquisição da servidão de passagem por usucapião, desde logo porque concatenados com factos integradores do corpus e animus da posse. Nesta parte também a sentença apelada considerou não estar verificada a existência de sinais visíveis e permanentes requisito do artº 1 548º do Código Civil.
Após ponderada análise dos factos provados, não podemos acompanhar o decidido. A avaliação dos sinais inerentes a uma servidão de passagem terá que ser feita de harmonia com a extensão do direito que se pretende fazer valer; terá que ser mais exigente para uma servidão de carro do que simplesmente de pé; os vestígios que esta última deixa serão necessariamente mais ténues do que os provocados pela passagem de um veículo; por isso defendemos que provados de forma inequívoca os restantes elementos de que depende a constituição da servidão por usucapião, basta que os sinais apontem para uma confirmação mínima da reali-dade jurídica que se pretende ver declarada. Impõem este entendimento não apenas princípios de justiça material mas também a ratio legis do disposto no artº 1 548º, sabendo-se que a exigência de sinais visíveis e permanentes numa servidão destina-se a obstar a que se confundam a tolerância ou relações iure familiari-tatis do proprietário do prédio pretensamente ser-viente com direitos autónomos; contudo, verificado o exercício da servidão através do corpus traduzido nos actos materiais correspondentes e o animus, não deve ser grande a exigência dos vestígios externos e de qualquer forma sempre consonantes com a amplitude do direito que se pretende exercer. Aliás a própria lei não exige a verificação de todos os sinais correspon-dentes à servidão, antolhando-se-nos bastar um sinal desde que suficiente para revelar aos olhos do obser-vador o exercício do direito aludido No direito espanhol a Lei – artº 532º nº 5 do Código Civil - é mais explícita estatuindo que a servidão será não aparente quando não apresente nenhum sinal exterior de existência. Cfr. para mais esclarecimentos nomeadamente quanto à ponderação casuística dos sinais da servidão C. Cerdeira Bravo de Mansilla "Usucapión de Servidumbres" Marcial Pons, Madrid – Barcelona, 2000, pags. 71 ss. Díez-Picazo/Gullón "Sistema de Derecho Civil" III, 3ª Edição tecnos 1985, pags. 424. ; este factor terá porém que resultar da apreciação casuística das carac-terísticas dos factos em análise.
Revertendo ao caso concreto, vem provado que desde o desmembramento do primitivo prédio as AA. acedem a pé aos seus prédios pelo prédio dos RR. junto à sua confrontação e em toda a extensão de tal confrontação numa largura não inferior a 60 cm, o que têm feito em todas as épocas do ano, à vista de toda a gente, sem a oposição de ninguém e na convicção de exercitar um direito próprio com o fim de colherem azeitona e faze-rem as vindimas. Mais se prova que não obstante o pré-dio dos RR. seja murado a sul, existe há mais de 30/40 anos contudo uma abertura de largura não inferior a 60 cm por onde nomeadamente os titulares das AA. e seus antecessores passam a pé. Ora atento o conjunto da prova produzida, entendemos que a existência dessa abertura é suficiente para con-substanciar a existência de sinal visível e permanente (anote-se o tempo de permanência da abertura no muro) exigido, mostrando-se inequivocamente reportado ao exercício da servidão, considerando os actos pratica-dos pelos AA.. No que toca ao problema da existência ou não de outra passa-gem para os RR. através da parte norte do seu prédio, diremos apenas que no caso ver-tente questiona-se a existência de uma servidão por usucapião e a mesma é independente do facto de as AA. terem a possibilidade de aceder por local próprio ao seu prédio. A questão só poderá eventualmente colocar-se se em sede própria os RR. vierem ulteriormente a intentar acção para extinguir a servidão de passagem por desnecessidade com o fundamento no artº 1 569º nº 2.
Nesta conformidade a apelação procederá parcial-mente nos termos acima descritos. Esclareça-se contudo que ao contrário do que os apelantes referem, não se verifica qualquer contradição entre as respostas aos quesitos; o dar-se como provado que o prédio dos RR. tem uma abertura de largura não inferior a 60 cm por onde os AA. e seus antecessores passam a pé e inexis-tentes sinais visíveis e permanentes, não é algo que se tra-duza numa contradição forçosa; antes é questão de fundo a ser dilucidada através da análise do alcance dos "sinais" a que se reporta o artº 1 548º.

Poderá assim concluir-se o seguinte:

1) Para a constituição de uma servidão de passagem por destinação de pai de família é além do mais essen-cial a presença de sinais inequívocos que revelem a existência de serventia de um prédio para outro no momento em que os mesmos, que haviam pertencido ao mesmo dono formando uma unidade, se venham a separar.
2) A servidão de passagem por usucapião tem que ser aparente para que se possa constituir; verificado contudo o exercício da servidão através do corpus tra-duzido nos actos materiais correspondentes e o animus, traduzido na convicção de que se exerce um direito próprio, não deve ser grande a exigência dos vestígios externos de qualquer forma sempre consonantes com a amplitude do direito que se pretende exercer.
3) Provando-se que as AA. acedem de pé aos seus prédios pelo prédio dos RR. através de uma abertura não inferior a 60 cm junto à sua confrontação e em toda a extensão da mesma numa largura não inferior a 60 cm, há mais de 30 anos à vista de toda a gente, sem a oposição de ninguém e na convicção de exercitar um direito próprio com o fim de colherem azeitona e faze-rem as vindimas, deverá considerar-se constituída por usucapião uma servidão de passagem sobre o prédio dos RR. e a favor do das AA..
4) A existência da aludida abertura é suficiente para consubstanciar a existência de sinal visível e perma-nente exigido por lei, considerando os actos materiais praticados pelos titulares da A., integrado-res daquela figura.
5) A eventual existência de outra passagem para os AA. através da parte norte do seu prédio, não impede que se declare constituída a servidão de passagem por usucapião pelo prédio dos RR.. A questão só poderá eventualmente colocar-se se em sede própria os RR. vierem posteriormente a intentar acção para extinguir a servidão de passagem por desnecessidade com o funda-mento no artº 1 569º nº 2 do Código Civil.
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3. DECISÃO.
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Pelo exposto julga-se a apelação pro-cedente e revo-gando neste ponto a sentença apelada condenam-se os RR. Avelino Antunes de Oliveira e mulher Ana Caro-lina Gomes de Melo Oliveira a reconhe-cer que sobre o seu prédio identificado na alínea C) dos factos prova-dos, está constituída uma servidão de passagem a pé por usucapião a favor dos prédios das AA., a qual parte de uma abertura não inferior a 60 cm de largura no muro que ladeia a estrada a sul do pré-dio dos RR. nele se prolongando para norte junto à sua confronta-ção poente em toda a extensão de tal confron-tação e numa largura não inferior a 60 cm até atingir o prédio da 2ª A.
Mantém-se no mais todo o decidido que aliás não foi posto em causa.
Custas pelos RR.