Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
366/05.6TBTND-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: COSTA FERNANDES
Descritores: CRÉDITO AO CONSUMO
COMPRA E VENDA
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 02/12/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TONDELA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGO 10º; 77.º DA LEI UNIFORME SOBRE LETRAS E LIVRANÇAS (LULL . DEC. LEI Nº 359/91, DE 21/IX; ARTº 16º DO DEC.-LEI Nº 143/2001, DE 26/IV; ARTIGO 334.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. O 6º do Dec.Lei n.º 359/91, de 21/IX (crédito ao consumo) tem natureza imperativa, impondo a efectiva entrega ao consumidor de um exemplar do contrato, no momento da assinatura, sob cominação de nulidade deste.
2. É nulo o «contrato de crédito ao consumo» quando: a) não for reduzido a escrito; b) não haja sido entregue um exemplar do respectivo texto ao consumidor, no momento da sua assinatura.
3. Cabe ao credor provar a entrega de um exemplar do contrato de concessão de crédito, aquando da sua assinatura.
4. Se o crédito for concedido para financiar o pagamento de um bem vendido por terceiro, a validade e eficácia do contrato de compra e venda depende da validade e eficácia do contrato de crédito, sempre que exista qualquer tipo de colaboração entre o credor e o vendedor na preparação ou na conclusão do contrato de crédito.
5. Há abuso de direito, na modalidade de «venire contra factum proprium», quando alguém pretende exercer determinado direito, depois de ter tido um comportamento apto a convencer a outra parte de que jamais o exerceria.
6. A nulidade atípica prevista no art. 7º, 1 do Dec.-Lei nº 359/91, de 21/IX, pode não ser reconhecida, caso se verifique um comportamento subsequente comprovativo de que o comprador aceitou a validade do contrato de mútuo.
7. Configura uma situação de abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, o facto de, num um contrato de crédito ao consumo, os mutuários terem pago dezassete prestações sem terem posto em causa a validade do contrato.
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório:
A....e mulher, B...., residentes na Rua...., executados na execução nº 366/05.6TBTND, em que é exequente o Banco ...., S. A., que integrou, por fusão, o C...., S. A., com sede .... Porto, deduziram oposição à execução, pretendendo:
a) Que seja julgada extinta a instância executiva, invocando:
- O exercício válido do direito de arrependimento;
- A nulidade do contrato de compra e venda;
- A nulidade do contrato de concessão de crédito que motivou a emissão da livrança exequenda, com a consequente inexistência de qualquer crédito do exequente;
b) Ou, se assim não se entender, que seja julgado que o valor em dívida corresponde ao valor da mercadoria entregue.
Para tanto, alegaram, em síntese, que:
- Só depois da citação, tiveram consciência de que subscreveram a livrança dada à execução;
- Em Fevereiro de 2003, receberam um telefonema a dizer que lhes tinha sido atribuído um prémio e que, para o receberem, teriam de se deslocar a uma residencial, o que fizeram, tendo aí assinado uns papeis, ficando convencidos de que se destinavam a formalizar a entrega do prémio;
- Nesse mesmo dia, entregaram-lhe em casa um embrulho, dizendo-lhes que era o colchão que tinham comprado, não lhes tendo deixado factura ou outro documento, nem os informaram sobre o preço ou o montante que teriam de pagar, nem as condições de pagamento;
- Recusaram a entrega do colchão, mas o transportador recusou-se a levá-lo, encontrando-se, actualmente, no mesmo local onde o deixaram;
- Não têm consciência do que assinaram, nem conhecem com quem contrataram, nunca lhes tendo sido entregue cópia do contrato;
- Não têm consciência também de terem assinado o contrato de concessão de crédito, do qual não lhes foi entregue qualquer exemplar, sabendo apenas que o Credibanco lhe descontou, por 17 vezes, da sua conta, na Caixa Geral de Depósitos, 93,65 €, num total de €1.592,05 €;
- Nunca lhes foi explicado ou entregue qualquer «acordo» relativamente ao preenchimento da livrança, não sabendo o montante em dívida, por não conhecerem o valor do bem, e desconhecendo se a livrança foi validamente preenchida.
Concluíram pela nulidade dos contratos de compra e venda e de concessão de crédito, por violação dos princípios do dever de informar e da boa fé negocial e pré-negocial.
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O exequente apresentou contestação, pugnando pela improcedência da oposição, alegando que:
- Desconhece o que se passou relativamente ao contrato de compra e venda, no qual não teve qualquer intervenção;
- A pedido dos oponentes/executados, celebrou com estes um contrato, mediante o qual lhes concedeu um crédito, no valor de 4.495,20 €, que deveria ser amortizado em 48 prestações mensais de 93,65 € cada;
- Esse crédito destinou-se à aquisição, por parte dos oponentes, de um colchão, sendo a entidade fornecedora .. ... Terapêuticos, Ldª;
- Tal contrato foi assinado pelos oponentes que ficaram com um exemplar do mesmo, tendo, aquando da assinatura, entregue cópia dos seus bilhetes de identidade, cartões de contribuintes e uma factura da electricidade emitida pela EDP, S.A.;
- A livrança foi preenchida em face do incumprimento dos executados, tendo-lhes esse preenchimento sido comunicado, por escrito, diversas vezes, nada havendo eles respondido;
- A invocada nulidade do contrato de compra e venda lhe é inoponível, assim com a existência de factos impeditivos, modificativos ou extintivos relativos à compra e venda;
- Existem dois contratos autónomos: um de compra e venda, em que não foi parte, e outro de financiamento, perfeitamente válido e eficaz, que celebrou com os oponentes, cuja cópia foi lhes fornecida, aquando da sua celebração;
- Ainda que o contrato de compra e venda seja declarado nulo, isso não acarreta consequências para o contrato de financiamento e para um terceiro de boa fé que nele não participa;
- Os oponentes não usaram da faculdade de resolverem o contrato de concessão de crédito;
- Foi do seu conhecimento o desconto de 17 prestações, sem que nada fizessem.
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Por sentença de fls. 116 a 124, a oposição veio a ser jugada improcedente.
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Os oponentes recorreram da sentença, pretendendo que a mesma seja revogada, julgando-se a oposição procedente.
Os recorrentes alegaram, tendo retirado as seguintes conclusões úteis:
1ª O exequente não lhes entregou, no momento da celebração do contrato de crédito um duplicado do mesmo;
2ª Não foram informados, aquando da assinatura do contrato de crédito, do conteúdo e condições do mesmo;
3ª Quando foi feita ao oponente a entrega do bem, embrulho contendo um colchão, este disse ao transportador que o levasse de volta, o que ele não fez;
4ª O embrulho ainda se encontrato intacto;
5ª O art. 18º do Dec.-Lei nº 143/2001, de 26 de Abril, diz que o consumidor pode resolver o contrato, no prazo de 14 dias, a contar da data da sua assinatura, ou até 14 dias ulteriores à entrega dos bens, se esta for posterior;
6ª Lograram demonstrar que o contrato de crédito foi para financiar o colchão vendido pela fornecedora ...... Terapêuticos, Ldª;
7ª O contrato de crédito foi assinado a 30-01-2003, data em que receberam em casa o referido colchão e em que assinaram a designada “Declaração de Renúncia” – compraram o colchão, na mesma ocasião em que celebraram o contrato de crédito, entregaram-lhes o colchão e fizeram a oponente mulher assinar a aludida declaração;
8ª O exequente não provou, como lhe competia, que não houve qualquer tipo de colaboração entre o credor e o vendedor na preparação ou conclusão do contrato e que os executados/oponentes sabiam os papeis que assinaram, com quem contactaram;
9ª Os documentos juntos aos autos pelo exequente revelam que é difícil identificar as entidades que contactaram com os oponentes, quer aquando da venda do bem, quer na altura da assinatura do contrato de crédito, pois deles não constam esses elementos;
10ª O valor mutuado foi entregue directamente ao vendedor pelo credor;
11ª Os factos resultantes das respostas aos quesitos traduzem uma relação de cooperação comercial entre credor e vendedor e uma funcionalidade entre os dois contratos, daí que a nulidade do contrato de crédito se repercuta no de compra e venda, nos termos do art. 12º do Dec.-Lei nº 359/91, de 21 de Setembro;
12ª A Mmª Juiz a quo, pela prova produzida, reconheceu que o contrato de crédito que os oponentes assinaram é nulo, pois o exequente não lhes entregou uma cópia do mesmo, aquando da sua assinatura;
13ª Por força da resposta dada ao quesito 23º, tem de se concluir que a livrança foi preenchida de forma abusiva, sem o acordo dos oponentes;
14ª O tribunal a quo afastou, mediante conhecimento oficioso, a nulidade do contrato de crédito, pela aplicação do abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, concluindo pela manutenção desse contrato, como sendo válido e eficaz;
15ª A interpretação e aplicação do art. 334º do Cód. Civil, no caso concreto, foi deficientemente fundamentada;
16ª O exequente, ao não lhes entregar cópia do contrato, não garantiu informação completa e verdadeira, imprescindível para a correcta formação da vontade de contratar por parte dos oponentes e para um esclarecido direito de reflexão/ponderação e para uma análise consciente do sentido contratual de revogação;
17ª O contrato, junto aos autos, não apresenta elementos identificativos da entidade fornecedora do bem; não identifica, nas suas cláusulas, a entidade que concede o crédito; dele não consta o período de reflexão, nem informação sobre o direito que assiste ao consumidor de resolver o contrato, violando o art. 6º da Lei do Crédito ao Consumo;
18ª O oponente marido tem 76 anos (nasceu em 18-06-1931) e a oponente mulher tem 66 anos (nasceu em 16-12-1941);
19ª “O abuso de direito consagrado no art. 334º do C. Civil pode manifestar-se num «venire contra factum proprium», quando a conduta do titular do direito objectivmente considerado, em face da boa fé e dos bons costumes, produz a convicção de que ele não exercerá o mesmo direito, pois tal exercício ofenderia clamorosamente a boa fé e seria manifestamente reprovado pela consciência social dominante” – Ac. do STJ, de 31-10-2002.
“O abuso de direito constitui um último recurso, algo a que só se pode lançar mão, à falta de outro meio, com vista a evitar a produção de situações clamorosamente injustas” – Ac. do STJ, de 01-03-2007;
20ª Não existe nos autos fundamento fáctico e legal para considerar que a conduta dos executados excedeu manifesta, clamorosa e intoleravelmente os limites impostos boa fé, bons costumes e fim social e económico, conforme o art. 334º do C. Civil;
21ª Os factos provados revelam que foi o exequente que, adoptando o comportamento exposto, se mostrou pouco leal, pouco correcto e não cumpriu com aquilo a que estava obrigado, nos termos do art. 6º do Dec.-Lei nº 359/91, de 21 de Setembro;
22ª Há que considerar que é o exequente que se encontra numa posição de supremacia e que limitou a informação e a análise das cláusulas contratuais, com a não entrega do duplicado do contrato;
23ª Não há abuso de direito sem informação e sem contrato;
24ª A Mrmª Juiz errou na apreciação dos factos provados e não provados, na aplicação das normas jurídicas e não considerou toda a dimensão fáctica da causa de pedir e, nessa sequência, decidiu de forma gravosa para os legítimos interesses dos executados e contra o Direito e a Justiça.
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O exequente não contra-alegou.
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O recurso foi admitido como apelação, com efeito devoluivo.
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Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II. Questões a equacionar:
Uma vez que o âmbito dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 690º, 1, e 684º, 3, do Código de Processo Civil, na redacção anterior ao Dec.-Lei nº303/207, de 24/VIII), importa apreciar as questões que delas flúem. Assim, «in casu», há que equacionar as seguintes:
a) Preenchimento da livrança;
b) Nulidade do contrato de concessão de crédito;
c) Repercussão da nulidade do contrato de concessão de crédito no contrato de compra e venda;
d) Abuso de direito.
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III. Fundamentação:
A) Factos provados:
1. O exequente Banco ....., S. A., é portador de uma livrança da qual consta como data da emissão 10-01-2005 e data de vencimento 24-01-2005, no montante de 3.789,28 €, figurando como tomador, C...., S. A., no lugar dos subscritores constam as assinaturas dos executados/oponentes, B…. e A….., na parte referente ao valor consta, contrato de crédito nº 203 23746, constando, no local de pagamento, BCP, Porto;
2. A livrança referida no número anterior, subscrita e assinada pelos oponentes, foi preenchida pelo exequente;
3. O exequente tornou-se portador dessa livrança, pelo facto de, por fusão, ter passado a integrar o Crédibanco - Banco de Crédito Pessoal, S. A.;
4. Apresentada a pagamento, na data de vencimento, 24-01-2005, a livrança não foi paga;
5. Os oponentes/executados subscreveram um escrito particular, datado de 31-01-2003, intitulado “contrato de crédito” nº 20323746, do qual consta como valor do crédito solicitado 4.495,00 € a pagar em 48 prestações mensais, no valor de 93,65 € cada prestação, para aquisição de (um) aparelho de saúde, constando como entidade fornecedora .... Terapêuticos, Ldª;
6. A executada/oponente, B….., subscreveu o escrito intitulado “declaração de renúncia”, datado de 30-01-2003, do qual consta que, com a entrega do bem objecto do contrato de crédito nº 20323746, renuncia ao direito de reflexão e revogação, aceitando definitivamente a proposta de crédito aludida no nº 5;
7. Os oponentes/executados receberam um colchão em casa;
8. O Crédibanco descontou 17 prestações (das 48 aludidas no nº 5) da conta dos oponentes, no valor de 93,65 € cada, num total de 1.592,05 € (mil, quinhentos e noventa e dois euros e cinco cêntimos);
9. O Crédibanco, por carta datada de 10 de Janeiro de 2005, enviada aos executados/oponentes, informou-os de que iria efectuar o preenchimento da livrança de caução, entregue para o efeito, pelo montante de 3.789,28 €, quantia que devia ser paga até 24-01-2005;
10. No início do mês de Janeiro de 2003, os oponentes receberam um telefonema, dizendo que lhes tinha sido atribuído um prémio;
11. Para o receberam teriam que se deslocar à residencial Panorama, em Campo de Besteiros;
12. Os oponentes deslocaram-se à residencial referida no nº 11, onde foram recebidos;
13. No dia aludido no nº 12, foi entregue aos oponentes, em casa, um embrulho, contendo um colchão;
14. Quando foi feita a entrega do embrulho, o oponente referiu ao transportador para levar de volta o embrulho, o que este não fez;
15. O embrulho referido no nº 13 ainda se encontra intacto;
16. Na residencial aludida no nº 11, o oponente entregou às pessoas que ali estavam e que consigo falaram o seu bilhete de identidade, tendo sido extraída cópia do mesmo e, posteriormente, nesse mesmo dia, quando lhe foram entregar o colchão a casa, entregou ao transportador uma factura da electricidade emitida pela EDP.
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B) Enquadramento jurídico:
1) Preenchimento da exequenda livrança:

Em vista da factualidade provada, impõe-se concluir que estamos em face de uma execução, na qual o título executivo é uma livrança subscrita, em branco, pelos oponentes/recorrentes, a qual veio a ser preenchida pelo banco exequente.
Essa livrança foi entregue a uma instituição bancária (C..... Crédito Pessoal, S. A.) que veio a ser integrada no, aqui, exequente, no âmbito de um contrato de financiamento com vista à aquisição a crédito de um bem de consumo, visando garantir o reembolso do capital mutuado.
Na prática, havendo incumprimento, por banda dos mutuários, das obrigações assumidas no âmbito do contrato de concessão de crédito, a entidade financiadora acaba por inscrever na livrança subscrita (em branco) pelos devedores, o montante que, segundo as suas contas, está em dívida, apresentando-a, a seguir, a pagamento. Assim, a questão do preenchimento da livrança está intrinsecamente relacio- nada com a validade dos contratos (de compra e venda e de concessão de crédito ao consumo) e com o incumprimento dos mutuários, no que concerne ao reembolso do crédito.
Face ao disposto no art. 10º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças (LULL), aplicável às livranças, ex vi do seu art. 77º, nada obsta a que seja completado o preenchimento de uma livrança subscrita em branco, desde que o mesmo seja feito em conformidade com a convenção estabelecida entre o subscritor e o beneficiário, nesse sentido.
No caso dos autos, a livrança foi emitida em função do contrato de concessão de crédito, visando garantir, como ficou dito, o reembolso do capital mutuado ou, obviamente, a parte que ainda estivesse em dívida, em caso de não pagamento das prestações em que foi fraccionada a amortização do crédito.
A livrança veio a ser preenchida, em conformidade com a cláusula 13ª do contrato, depois de os, ora, oponentes terem deixado de amortizar o crédito que lhes fora concedido, tendo-se, aliás, provado que o mutuante, por carta datada de 10-01-2005, os informou de que iria ser feito o preenchimento, pelo montante de € 3.789,28 €, quantia que, segundo as suas contas, seria a exigível e devia ser paga até 24 desse mesmo mês.
Assim, não se pode sustentar que a livrança haja sido preenchida de forma abusiva.
Todavia, o preenchimento da livrança pressupõe a validade do contrato de crédito. Caso este seja nulo, essa nulidade repercute-se na garantia prestada por meio da livrança, que passa a ser inválida, e no pacto de preenchimento. Donde, se este ocorresse em tais circunstâncias, seria abusivo.
Nesta conformidade, a questão do preenchimento da livrança está intrinsecamente relacionada com a validade dos contratos (de compra e venda e de concessão de crédito ao consumo) que subjazem à sua subscrição.
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2) Nulidade do contrato de concessão de crédito:
Os executados opuseram-se à execução, invocando a nulidade do contrato de concessão de crédito, por não lhes ter sido entregue uma cópia do mesmo, no momento da sua assinatura (nem posteriormente), sustentando que desconhecem o que assinaram e que foram violados os mais elementares princípios atinentes ao dever de informar e da boa fé negocial. Sustentaram, ainda, que sucedeu o mesmo com o contrato de compra e venda do colchão que esteve na origem do contrato de concessão de crédito, motivo pelo qual o preenchimento da livrança é ilegal, por não existir qualquer crédito do exequente relativamente a eles.
Apesar do título executivo ser uma livrança com as suas características de in-corporação, literalidade, autonomia e abstracção (cfr. Prof. Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, ed. da Universidade de Coimbra, 1975, Vol. III, p. 40 a 70), como estamos no âmbito das relações imediatas, podem os executados/oponentes reportar--se à relação jurídica causal ou subjacente, «in casu», o contrato de concessão de crédito, opondo ao exequente quaisquer excepções decorrentes deste – cfr. ob. cit. p. 71 a 74. Na verdade, os oponentes são os subscritores da livrança e o exequente o beneficiário da mesma, pelo facto de ter incorporado, por fusão, o banco que concedeu o crédito e a recebeu como garantia do reembolso do mesmo.
Tendo em vista a factualidade assente, impõe-se concluir que o negócio subjacente à emissão da livrança foi um contrato de concessão de crédito ao consumo regulado pelo Dec. Lei nº 359/91, de 21/IX.
No preâmbulo deste diploma, o legislador deixou bem vincado que importa proteger o consumidor das condições abusivas frequentemente insertas nesses contratos e garantir-lhe uma informação completa e verdadeira, susceptível de contribuir para uma correcta formação da vontade de contratar.
Segundo o artº 6º, 1, do referido decreto-lei, o contrato de crédito deve ser reduzido a escrito e assinado pelos contraentes, sendo obrigatoriamente entregue um exemplar ao consumidor, no momento da respectiva assinatura.
Prescreve o art. 7º, 1, que o contrato é nulo, quando não for observado o disposto no nº 1 do art. 6º.
Por seu turno, estatui o art. 7º, 4, que a inobservância dos requisitos previstos no art. 6º presume-se imputável ao credor e a invalidade do contrato só pode ser invocada pelo consumidor.
Fica assim patente que o mencionado art. 6º tem natureza imperativa, impondo a efectiva entrega ao consumidor de um exemplar do contrato, no momento da assinatura, sob cominação de nulidade deste.
Nesta conformidade, o «contrato de crédito ao consumo» é nulo, quando:
a) Não for reduzido a escrito;
b) Não haja sido entregue um exemplar do respectivo texto ao consumidor, no
momento da sua assinatura.
A cominação da indicada nulidade visa a protecção do consumidor, pois que, como se refere no Ac. do STJ, de 22-06-2005, in CJ(STJ), Ano XIII, T. II, p. 134 a 140, com a assinatura do contrato inicia-se o período de reflexão de 7 dias que o artº 8º, 1 assegura ao mutuário, pelo que este deve receber um exemplar do contrato, de forma a estar em condições de efectivamente ponderar, durante esse período de tempo, as consequências do compromisso assumido e, assim, exercer ou deixar de exercer, esclarecidamente o direito potestativo extintivo de arrependimento que essa disposição legal lhe confere.
Trata-se de uma nulidade atípica, no sentido de que só pode ser arguida pelo consumidor – cfr., neste sentido, os Ac. da RL, de 09-05-2006, Proc. 12156/1005-7, e de 09-11-2006, Proc. 7333/2006-6, in www.dgsi.pt.
Em vista do que fica dito, cabia ao, aqui, exequente provar que havia sido entregue aos, ora, oponentes, um exemplar do contrato de concessão de crédito, aquando da sua assinatura. Não o tendo feito, impõe-se concluir pela nulidade do mesmo.
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3) Repercussão da nulidade do contrato de concessão de crédito no contrato de compra e venda:
Os oponentes sustentaram, apoiando-se no artº 16º do Dec.-Lei nº 143/2001, de 26/IV, que «o contrato de compra e venda», que esteve na origem do «contrato de crédito ao consumo» aqui em causa, também é nulo, por não terem sido observados o dever de os informar correctamente, o princípio da boa fé e não lhes ter sido entregue cópia do mesmo.
O mencionado artº 16º, estatui que os chamados «contratos ao domicílio» e «equiparados» devem, sob pena de nulidade, ser reduzidos a escrito e conter os elementos previstos no seu nº 1, devendo o consumidor datar e assinar o documento e conservar em seu poder uma cópia, assinada igualmente pelo outro contraente.
Sucede que os oponentes, não lograram fazer prova de que, na celebração desse contrato, não tenha sido observado o indicado dispositivo legal, pelo que não há base fáctica que permita concluir no sentido da verificação da sua nulidade.
Cumpre contudo, analisar qual a repercussão da nulidade do «contrato de crédito» no referido contrato de compra e venda.
Estatui o artº 12º, 1, do já mencionado Dec.-Lei nº 359/91, que se o crédito for concedido para financiar o pagamento de um bem vendido por terceiro, a validade e eficácia do contrato de compra e venda depende da validade e eficácia do contrato de crédito, sempre que exista qualquer tipo de colaboração entre o credor e o vendedor na preparação ou na conclusão do contrato de crédito.
Temos, assim, que os dois contratos são distintos (separados), mas existe entre eles um nexo funcional, uma interdependência, pelo facto de concorrerem para uma finalidade económica comum – cfr., neste sentido, o Ac. da RP., de 22-11-2004, Proc. 0455179, in www.dgsi.pt. Mas, essa interdependência não é absoluta, pois a nulidade do «contrato crédito ao consumo» só se repercute no «contrato de compra e venda», quando tenha havido qualquer tipo de colaboração entre o credor (mutuante) e o vendedor na preparação ou na conclusão deste último.
Assim, embora o referido art. 12º, 1, estabeleça uma clara protecção dos consumidores, não implica uma protecção ilimitada e sem qualquer salvaguarda para a entidade financiadora - cfr. neste sentido Ac. da RP, de 20-12-2004, Proc. 0456575, in www.dgsi.pt.
«In casu», embora a sociedade vendedora haja utilizado para a celebração do «contrato crédito ao consumo» um impresso do banco financiador, limitando-se os, ora, oponentes, a assiná-lo, aderindo ao seu conteúdo, coloca-se a questão de saber se tanto basta para se considerar preenchida a previsão do mencionado art. 12º, 1. Sendo certo que alguma participação existe, pois que por via do uso de tal impresso, a entidade financiadora dita as suas condições, restando aos mutuários apenas a liberdade de as aceitar ou não, parece arriscado sustentar que isso baste para preencher a previsão desta disposição legal.
Assim, como não se provou qualquer outra colaboração entre a entidade financiadora e a vendedora, não se pode considerar que a nulidade do contrato de crédito afecta a validade do contrato de compra e venda.
Nesta conformidade, não se pode concluir pela nulidade do contrato de compra e venda, com a consequente, inexigibilidade do crédito exequendo.
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4) Do abuso de direito:
Na sentença recorrida entendeu-se que, em face do seu comportamento posterior à celebração do contrato de concessão de crédito, não era lícito aos oponentes arguírem a nulidade deste, pelo facto de isso implicar abuso de direito, na modalidade de «venire contra factum proprium».
E, acaba por ser este o cerne do recurso.
Na verdade, apesar de se ter concluído pela nulidade do contrato de crédito ao consumo que esteve na origem do preenchimento da livrança exequenda, também é certo que se provou que os mesmos acabaram por pagar 17 das 48 prestações mensais por que foi repartido o reembolso do crédito.
O abuso do direito é matéria de conhecimento oficioso, podendo (devendo) mesmo ser apreciada pelo tribunal de recurso, ainda que não haja sido equacionada no tribunal recorrido – cfr., neste sentido, o Ac. do STJ, de 07-01-1993, in CJ (STJ), Ano I, T. 1, p. 5 a 10.
De harmonia com o art. 334º do Código Civil, atinente abuso de direito, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico desse direito.
Como refere o Prof. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, 5ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 1986, Vol. I, p. 498 e 499, para que haja lugar ao abuso do direito, «é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder» …. «é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o direito e o interesse ou interesses a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito”.
No mencionado art. 334º do Cód. Civil, adopta-se uma concepção objectiva do abuso de direito, não, por isso, necessária a consciência de se atingir, com o seu exercício, a boa fé, os bons costumes ou o fim social e económico do direito conferido; basta que os atinja – cfr. Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Coimbra Editora, 1967, Vol., p. 217.
Há abuso de direito, na modalidade de «venire contra factum proprium», quando alguém pretende exercer determinado direito, depois de ter tido um comportamento apto a convencer a outra parte de que jamais o exerceria.
Como se refere no Ac. da RL, de 02-06-2005, Proc. 4336/2005-8, in www.dgsi. pt, a nulidade atípica prevista no art. 7º, 1 do Dec.-Lei nº 359/91, de 21/IX, pode não ser reconhecida, caso se verifique um comportamento subsequente comprovativo de que o comprador aceitou a validade do contrato de mútuo.
Ora, por via do pagamento das aludidas 17 prestações, o qual ocorreu ao longo de, pelo menos, 17 meses, é evidente que o, aqui, exequente tinha boas razões para se convencer de que os mutuários aceitaram como válido o contrato de mútuo e jamais iriam invocar qualquer nulidade que o afectasse. Deste modo, a invocação da referida nulidade por parte dos oponentes, põe em crise o seu comportamento anterior e os princípios da confiança e da boa fé que também devem estar presente nos negócios jurídicos, criando uma situação de «supressio» determinante que, nas circunstâncias concretas, já não lhes seja legítimo arguí-la.
Como se sustenta no Ac. da RL, de 01-04-2003, in CJ, Ano XXVIII, T. II, p. 103 a 105, citando Baptista Machado, in RLJ, Ano 117º, p. 136 e seguintes, o venire contra factum proprium está contido no segmento do mencionado art. 334º que alude aos limites impostos pela boa fé, traduzindo «o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente», comportamento esse que criou na outra parte a legítima convicção de que certo direito não seria exercido.
Na verdade, como se refere no Ac. da RL, de 02-06-2005, no Proc. 4336/2005--8, estando em causa uma nulidade atípica, a sua invocação, a todo o tempo, pode proporcionar situações absurdas e «clamorosamente ofensivas da boa fé», como por exemplo na situação que resultaria da invocação pelo mutuário da falta de recebimen- to de um exemplar do contrato, já depois de ter efectuado várias prestações – é, sem margem para dúvidas, o caso destes autos.
Neste mesmo acórdão, sustenta-se que pode mesmo considerar-se que um domínio de excelência de invocação das aludidas nulidades se prende com situações em que os contraentes só num momento ulterior, mas com alguma proximidade temporal relativamente à data da celebração do contrato, se apercebem do que afinal estava em jogo, quando contrataram. Mas, ultrapassado esse período temporal, mais ou menos amplo consoante as circunstâncias concretas, não se afigura que o mutuário se possa eximir às suas obrigações, invocando a nulidade, pois, procedendo assim, incorrerá em abuso de direito. No mesmo sentido, decidiu-se nos Acs, da RL, de 09-05-2006, Proc. 12155/2005-7, e de 09-05-2006, Proc. 12156/2005-7; e da RP, de 22-02-2005, Proc. 046038, todos in www.dgsi.pt.
No caso destes autos, estamos perante um contrato de crédito ao consumo celebrado em 30-01-2003, tendo os mutuários (aqui, oponentes) pago 17 das 48 prestações em que foi repartida a amortização do empréstimo, tendo, portanto, decorrido, pelo menos, um período de 17 meses, sem terem posto em causa a validade do contrato. Trata-se de um número de pagamentos, de um montante global (1.592,05 €) e de um lapso temporal de molde a convencer qualquer pessoa de mediano entendimento que jamais iriam pôr em crise tal contrato.
É certo que esses pagamentos foram feitos por débito em conta, facto que dispensava qualquer atitude activa dos mutuários; e a autorização do débito em conta terá decorrido no mesmo ambiente de constrangimento (ainda que meramente psicológico) em que foram celebrados os contratos de compra e venda e de concessão de crédito. Mas tendo-se os mesmos, logo no próprio dia, arrependido da compra que fizeram, a ponto de terem dito ao transportador para levar o colchão de volta, não se entende por que motivos levaram 17 meses para se dirigirem ao balcão da Caixa Geral de Depósitos, onde tinham a sua conta, e revogarem tal autorização.
Sendo um facto que, ao que tudo indica, estamos em face de duas pessoas que vivem numa zona rural, claramente não habituadas a estas formas de comércio agressivo, em que vale quase tudo para impingir o que se pretende vender, mesmo a quem não carece dos produtos ou tem as maiores dificuldades para os pagar, a verdade é que, passadas aquelas horas de pressão psicológica, aquele corrupio de pôr papeis à frente para serem assinados de cruz, tiveram os, ora, oponentes muito tempo para se aconselharem e reagirem em momento oportuno.
Assim, terá que se concluir que o comportamento dos oponentes configura uma situação de abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, não lhes sendo já lícito invocarem a nulidade contrato de crédito nulo. Com efeito, há que ponderar que o banco financiador não esteve implicado nas negociações, para além da utilização de um impresso seu na formalização do contrato de concessão de crédito, e tem direito a ser reembolsado.
Impondo-se concluir pela validade do contrato e tendo os mutuários deixado de cumprir, é evidente que o mutuante/exequente podia legitimamente preencher a livran- ça e dá-la à execução.
Sendo certo que tudo indica que não foi prestada aos, aqui, oponentes uma in- formação completa e verdadeira quanto aos negócios jurídicos em que intervieram e aos encargos deles resultantes, o que poderá não lhes ter permitido uma correcta for- mação da vontade de contratar, a verdade é que não se pode sustentar que não haja contrato, como sustentam. As deficiências do contrato de concessão de crédito e o facto de não lhes ter sido entregue um exemplar do respectivo texto, traduzindo-se numa clara violação do art. 6º do Dec.Lei nº 359/91, de 21/IX («Lei do Crédito ao Consumo»), implica a sua nulidade, a qual foi reconhecida. Isso bastava para que ficassem desonerados das obrigações a que estavam adstritos, por via desse contrato. Mas, a questão do abuso de direito prefigura-se e torna-se incontornável, pelo facto de terem pago as prestações de amortização do crédito durante um longo período (pelo menos, 17 meses), criando na entidade financiadora a convicção de jamais viriam a discutir a questão da validade do contrato.
E, por mais que se possa afirmar que esta entidade (e também a vendedora) agiu (agiram) numa posição de supremacia e que terá sido explorada a falta de escla- recimento e até uma certa ingenuidade dos oponentes, é impossível não valorar a subsequente inércia destes, porquanto a mesma levou a que o contrato de concessão de crédito se mantivesse e fosse sendo cumprido.
Apesar de o instituto do abuso de direito constituir, como afirmam os oponen- tes (reportando-se ao Ac. do STJ, de 01-03-2007, Proc. 06A4571, publicado in www. dgsi.pt), um último recurso, algo a que só se pode lançar mão, à falta de outro meio, com vista a evitar a produção de «situações clamorosamente injustas», o seu compor- tamento posterior à celebração do contrato justifica que se faça apelo a esse instituto. É que isso impediu a entidade financiadora de reaver da vendedora o montante do financiamento, bem podendo suceder que, mais de dois anos depois, já não possa fazê-lo. Ora, tendo o mutuante direito a reaver o dinheiro que emprestou, o exercício do direito dos oponentes a desonerarem-se das obrigações que assumiram por via do contrato de crédito, nas actuais circunstâncias que eles criaram, pode significar para o primeiro a impossibilidade de conseguir o reembolso, tendo de se descortinar nisto uma situação «clamorosamente injusta». Não merecendo o banco qualquer especial protecção, a verdade é que a lei não deve ser aplicada por forma que possa conduzir à postergação dos seus direitos, quando foram os oponentes que, pela sua inacção, impediram a declaração de nulidade do contrato, num prazo razoável.
Assim sendo, não merece reparo a muito bem fundamentada sentença recor- rida, improcedendo o recurso.
***
IV. Decisão:
Pelo exposto, decide-se julgar a apelação improcedente, e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.
Coimbra, 2008-02-12

/António da Costa Fernandes/