Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
14/05.4TTGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDES DA SILVA
Descritores: PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS OCASIONAIS E EVENTUAIS
EXCLUSÃO DA COBERTURA INFORTUNISTICA
Data do Acordão: 01/31/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 8º, Nº 1, AL. A), DA LAT – LEI Nº 100/97, DE 13/09
Sumário: I – Preceitua o artº 8º, nº 1, al. a), da Lei nº 100/97, de 13/09 (LAT), que são excluídos do âmbito dessa lei (cobertura infortunística da LAT) os acidentes ocorridos na prestação de serviços eventuais ou ocasionais, de curta duração, a pessoas singulares em actividades que não tenham por objecto exploração lucrativa.

II – Considera-se existir prestação de serviços ocasionais quando estes sejam fortuitos, de verificação imprevisível, havendo prestação de serviços eventuais sempre que estes se apresentem como contingentes, de inserção temporal indeterminável, ainda que previsíveis.

III – A curta duração do trabalho há-de definir-se em cada caso concreto, ante a natureza eventual ou ocasional do serviço prestado, que lhe determina a durabilidade.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I –

1 – Conforme Auto de fls. 60-61, terminou a primeira fase do processo sem que se tenha logrado a concertação das partes.
Com mandatário próprio, veio então a A., A..., viúva, residente na Rua do Castelo, em Seia, desencadear a presente fase contenciosa, mediante P.I., pedindo, a final a condenação das RR., Companhia de Seguros «B...» e C... e D..., devidamente identificadas, no reconhecimento de que o acidente a que se reporta é um típico acidente de trabalho e no consequente pagamento das indemnização e pensão discriminadas.

2 – As RR., alegando sinteticamente a Seguradora que a natureza dos trabalhos seguros era de empregada doméstica, sendo que no caso a co-R. C... mantinha ao seu serviço, em tal actividade, uma empregada doméstica de nacionalidade búlgara, de nome Kirika, que era assim a pessoa abrangida pelo contrato de seguro, que não a A., que desempenhava funções próprias de trabalhador agrícola.
As co-RR. patronais não aceitaram, por seu lado, que a A. tivesse sido vítima de um qualquer acidente de trabalho, sendo que a actividade que a A. lhes prestava era esporádica, incerta, casual e imprevisível, pois dependia da deslocação daquelas à localidade, o que se verificava sem qualquer regularidade.

3 – Condensada, instruída e discutida a causa, proferiu-se sentença a julgar a acção totalmente improcedente, com absolvição das RR. do pedido.
Inconformada, a A. veio apelar.
Alegando, concluiu:
· Tomando em conta a matéria de facto constante da decisão recorrida, no âmbito do contrato de trabalho celebrado, esteve a recorrente como trabalhadora e as recorridas como Entidade Empregadora. E caracterizando-se o acidente como de trabalho, não deve o mesmo ser excluído do âmbito da L.A.T. por não se verificar nenhuma das situações a que se refere a alínea a) do n.º 1 do seu art. 8.º;
· Já que a actividade laboral exercida pela recorrente para as recorridas (Entidade Empregadora) não cabe no conceito de serviço eventual ou ocasional nem de curta duração;
· Pelo que deverá ser revogada a sentença no sentido de a respectiva Entidade Empregadora indemnizar a recorrente de acordo com o montante recebido a título de salário;
· Sendo que a sentença recorrida violou ou não fez uma aplicação correcta do disposto no art. 8.º/1, a), da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, conjugada com o art. 4.º do D.L. n.º 143/99, de 30 de Abril.

Termos em que deve a sentença ser revogada decidindo-se que o acidente em causa não está excluído do âmbito da L.A.T.

Responderam as co-RR. patronais, pugnando pela manutenção do julgado.
Recebido o recurso e corridos os vistos legais devidos – tendo o Exm.º P.G.A. produzido Parecer no sentido da improcedência da impugnação – vamos decidir.
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II –

A – OS FACTOS.
Vem assente a seguinte factualidade:
- No dia 8 de Abril de 2004, pelas 12:00 horas, na residência das RR.C... e D..., sita em Seia, a A. A... foi vítima de um acidente, traduzido na queda de uma escada quando colhia laranjas de uma laranjeira existente no quintal da casa;
- As laranjas que a A. estava a colher eram destinadas ao consumo das RR. C... e D...;
- Na data e local referidos atrás, a A. prestava serviços de empregada doméstica sob as ordens e fiscalização da R. D..., o que vinha sucedendo há pelo menos cinco anos, nas vezes em que a dita R. lhe solicitava a prestação de tais serviços, durante pelo menos 30 dias em cada ano, e por pelo menos 4 horas diárias, dela recebendo, em contrapartida, a retribuição de € 2,50 por hora;
- As RR. C... e D... utilizam a residência identificada acima como casa de campo ou de férias/fim-de-semana, mantendo a residência habitual em Carcavelos;
- Em consequência do acidente atrás descrito, a A. sofreu tetraparésia sem alteração dos esfíncteres, ficando afectada de uma IPP para o trabalho de 67,5% a partir da data da alta (1 de Julho de 2004), com Incapacidade Permanente Absoluta (100%) para o Trabalho Habitual;
- Em consequência do acidente descrito a A. andou afectada de ITA no período compreendido entre os dias 8-4-2004 e 30-4-2004 e de ITP de 75% no período compreendido entre 1-5-2004 e 30-6-2004;
- A R. C... e ‘outro’ celebraram um acordo de seguro de acidentes de trabalho com prémio fixo com a R. Companhia de Seguros «B...», titulado pela Apólice n.º 1900/320827/19, cuja cópia se encontra a fls. 28-37, abrangendo uma empregada doméstica, da profissão de limpeza, não identificada no acordo, que trabalho 8 horas por semana, de segunda a sexta-feira, 2 horas por dia, com o vencimento mensal de € 111,28 x 14 meses, correspondente ao salário anual de € 1.557,92;
- Na data referida no ponto 1, a R. C... mantinha ao serviço uma empregada doméstica, de nacionalidade búlgara, de nome Kirilka, que prestava a sua actividade na residência da dita R., sita na Rua José Régio, n.º 172, em Sassoeiros, Carcavelos;
- A A. nasceu no dia 18 de Abril de 1945.
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B – CONHECENDO.
Ante o teor das conclusões da Apelação – por onde se afere e delimita o objecto da impugnação, exceptuadas as questões que seja de conhecimento oficioso e logicamente excluídas aquelas cuja solução tenha ficado prejudicada pelo tratamento dado a outras, como se sabe – é apenas uma a questão que importa resolver: não se discutindo que o caso sujeito configura um acidente de trabalho, enquanto desastre ocorrido na constância de uma relação de trabalho subordinado, estará o mesmo excluído do âmbito da L.A.T.?

Preceitua o art. 8.º, n.º1, a), da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, (norma que contempla um conjunto de situações específicas que o legislador, por razões de conveniência económico-social, entendeu afastar da cobertura infortunística, não lhes reconhecendo o direito à respectiva reparação – cfr. nota 13.ª na fundamentação do Acórdão do S.T.J. de 14.12.2006, adiante melhor identificado), que são excluídos do âmbito da presente lei ‘os acidentes ocorridos na prestação de serviços eventuais ou ocasionais, de curta duração, a pessoas singulares em actividades que não tenham por objecto exploração lucrativa’.

Reportados à materialidade fixada e perscrutando detidamente a normatividade da previsão, impõe-se-nos reconhecer – e deixamo-lo consignado – que a solução que acabou por prevalecer, tendo demandado demorada reflexão, não é de todo isenta de dúvidas.
Cremos porém ter interpretado adequadamente os factos, no respectivo contexto, acreditando que a resposta eleita é a mais consentânea para o caso concreto, de contornos complexos embora, mas ainda enquadrável, em nosso entendimento, na hipótese legal.
Até aqui chegar, buscámos o apoio da doutrina produzida à volta das noções de ‘eventualidade’, ‘ocasionalidade’ e ‘curta duração’ (é fora de discussão que, 'in casu', a prestação de serviços o era a pessoas singulares, em actividades que não tinham por objecto exploração lucrativa) e tentámos aferir/afinar a sensibilidade na compreensão dos fundamentos e no tratamento dado a casos afins, já resolvidos pela Jurisprudência, lembrando, dentre vários destes, os versados nos Acórdãos do S.T.J. de 19-6-2002 e de 14-12-2006, publicitados na C.J./S.T.J., Ano X, Tomo II, pg. 270 e ss. e em www.dgsi.pt, proc. 06S789, este citado na sentença aprecianda.

E porque, a final, concluiremos pela ratificação do juízo alcançado na decisão 'sub judicio', lembremos, antes de avançar, os passos mais relevantes da sua argumentação, enquanto analisamos também os pontos de facto determinantes.
Invocando, por um lado, a reflexão de Cruz de Carvalho, (op.loc.cit.), em cujos termos na base desta prevista exclusão está um elemento fundamental – a curta duração do trabalho – e, por outro, a doutrina do referido Acórdão do S.T.J., (segundo o qual se considera existir prestação de serviços ocasionais quando estes sejam fortuitos, de verificação imprevisível, havendo prestação de serviços eventuais sempre que estes se apresentem como contingentes, de inserção temporal indeterminável, ainda que previsíveis), considerou-se inexistir entre a A. e a R. D... um vínculo estável, certo e definido, no sentido de se poder saber, com antecedência…e reproduzimos textualmentequando a primeira prestaria a sua actividade de empregada doméstica por conta da segunda, e durante quanto tempo.
A dita R. apenas recorria aos serviços da A. quando necessitava de utilizar a sua casa de campo ou de férias, o que sucedia de forma intermitente e indefinida, ou seja, não estava previamente determinada no tempo.
Além disso, tal recurso aos serviços da A. não era certo, isto é, não existia uma relação directa entre a presença da R. na sua casa de campo/férias e a prestação, pela A., da sua actividade ao serviço daquela.
Por isso se concluiu que …os serviços prestados pela A. à R. devem caracterizar-se como incertos, contingentes, não determináveis temporalmente e, logo, eventuais.
Por outro lado…os ditos serviços, remunerados à hora, devem caracterizar-se de curta duração, sendo prestados a uma pessoa singular numa actividade sem fins lucrativos.

Assim entendemos também.
Ponderou-se correctamente.
Com efeito:
Como bem se considerou, o elemento fundamental subjacente é a curta duração do trabalho.
O que como tal deve entender-se, em tese, não no-lo adianta a Lei, deixando essa tarefa à intervenção da ‘equidade pretoriana’ (Ac. S.T.J. de 14.12.2006, supra identificado).
Parece-nos dever ora ter-se por ultrapassado o entendimento jurisprudencial que durante muito tempo tomou como referência da curta duração todo o serviço que não durasse mais do que algumas horas ou alguns dias, contanto que não excedesse uma semana de trabalho.
(Assim a Jurisprudência produzida pelo STA, na vigência da Lei n.º 1942, 'maxime' por força da previsão constante do seu art. 6.º, n.º2, § único, e ainda também pelo S.T.J., na sequência de autores como Veiga Rodrigues, de que dá nota Carlos Alegre, ‘Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais’, 2.ª Edição, pg. 66).

Hoje, o S.T.J. vai assumindo já o afastamento dessa Jurisprudência, ora sem suporte, já que o legislador da Lei 2.127 e da actual L.A.T., omitindo a alusão a uma qualquer unidade de tempo, terá pretendido significar isso mesmo.
(Vide o citado Acórdão de 14.12.2006).
Assim, a curta duração do trabalho, há-de definir-se em cada caso concreto em função da natureza eventual ou ocasional do serviço prestado, que lhe determina, pois, a durabilidade.
Havendo uma certa sobreposição/convergência de conteúdo dessas noções, teremos de qualificar como serviços ocasionais os que se apresentem como fortuitos, de verificação imprevisível, resultando a sua eventualidade da circunstância de se apresentarem como contingentes, temporalmente indetermináveis, ainda que previsíveis.

Como se escreveu no Acórdão do S.T.J. de 19.7.2002, (in C.J./S.T.J., Ano X, Tomo II/273, Relator o Cons. Mário Torres), citando os conhecidos autores Carlos Alegre e Cruz de Carvalho e um outro Aresto do mesmo Alto Tribunal de 27.2.1991, (publicado no BMJ n.º 404/316) – e que se invoca em reforço do acima já dito – o serviço ocasional é aquele cuja necessidade surge, imprevista, acidental, fortuita e excepcionalmente, em determinada ocasião, não sendo exigida a sua periodicidade, correspondendo o termo ‘eventual’ à ideia de contingente, variável.

Concretizando, diremos – à luz da sensibilidade induzida na dilucidação feita – que não é a verificação, a posteriori, da média dos dias de serviço doméstico prestados por ano, naquelas circunstâncias, que imporá conclusão diversa…
…Nem o facto de assim vir acontecendo há alguns anos.
Na verdade, o que se nos afigura decisivo é que o serviço prestado pela A. tanto podia acontecer, como não.
Não era certo e seguro que as RR., mesmo vindo uns dias de férias ou um ou outro fim-de-semana à sua casa de Seia, durante o ano, solicitassem a intervenção da A.
Esta não poderia contar, com antecipação e assegurada periodicidade, que fosse contratada para a prestação daqueles serviços domésticos.
Mesmo estando as RR. na sua casa de campo/férias, a A. poderia ou não ser solicitada…ainda que admitisse que o pudesse ser em épocas coincidentes com a estada das RR. na localidade, cuja residência habitual é, como se sabia, em Carcavelos.

Os serviços que a A. prestava, pois, sendo pagos à hora, eram contingentes, fortuitos, de inserção temporal imprevisível, ainda que previsíveis.
Inexistiu qualquer vínculo estável e permanente, qualquer acordo prévio com períodos de tempo de prestação de trabalho antecipadamente estabelecidos, contrariamente ao sustentado pela apelante.

Em conclusão:
O caso sujeito, configurado, assim, como sendo de uma prestação de serviços eventuais ou ocasionais, de curta duração, fica excluído da cobertura infortunística da L.A.T., nos termos do seu art. 8.º, n.º1, alínea a), como acertadamente se ajuizou.

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III – DECIDINDO:
Nos termos e com os fundamentos expostos, delibera-se julgar improcedente a Apelação, mantendo a sentença impugnada.
Custas pela recorrente.
Honorários tabelares ao Exm.º patrono nomeado à A. – fls. 8.
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Coimbra,