Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1639/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: CACILDA SENA
Descritores: CRIME DE USURA
DIREITO DE QUEIXA
COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL PENAL
Data do Acordão: 11/16/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS: 113º, N.º 1, DO C. P. PENAL, 226º, N.º 1, DO C. PENAL E 211º, N.º 1, AL. A) DO D. L. N.º 298/92 DE 31/12
Sumário: I- Provado o seu casamento com o assistente, aquando da prática do crime de usura, o seu cônjuge é titular do direito de queixa.
II- O requisito penal “vantagem manifestamente desproporcionada à prestação efectuada” deve determinar-se por juízos equitativos, seguindo o critério do que pensa sobre tal o homem médio nos casos socialmente localizados, indo além do conceito do direito civil, não se bastando com um critério matemático.

III- Cabe ao tribunal competente para julgar o crime a apreciação da contra-ordenação e aplicação da coima prevista no art.º 211º, n.º 1, al. a), do D. L. nº 298/92 de 31/12 (Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras).

Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

No proc. nº 928/96.6 JACBR do 2º juízo do tribunal criminal de Coimbra, foi o arguido A..., completamente identificado nos autos, condenado pela prática de um crime de usura, p.p. pelo artº 226º nº1 doo Cód. Penal, na pena de 180 dias de multa à taxa diária de € 50,00, perfazendo a multa global de € 9.000,00, ou subsidiariamente em 120 dias de prisão.
E, pela prática de uma contra-ordenação p.p. nos termos do artº 211º nº1 al. a) do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, Dec. Lei nº 298/92 de 31.12, na coima de € 20.000,00.
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Inconformado com o assim decidido, veio o arguido interpor recurso extraindo da respectiva motivação as seguintes
Conclusões:
1ª) Salvo o devido respeito, a douta sentença começa por violar o artigo 226/3 do C.P.
2ª) Efectivamente, a aludida norma estatui que o procedimento criminal por essa concreta espécie de ilícito penal depende de queixa,
3ª) O que significa que, nos termos do art. 490/1 do CP Penal, o Ministério Público só detém legitimidade para a investigação quando o ofendido der conhecimento do facto.
4ª) Ora o ofendido/assistente Rocha Fernandes não apresentou queixa, uma vez que quem o fez foi aquela, que à data, era sua esposa.
5ª) Todavia, o artigo 113/1 do C.P (que também se mostra violado) estatui que só tem legitimidade para apresentar queixa o ofendido, ou seja, “o titular dos interesses que a lei quis especialmente proteger com a incriminação”.
6ª) Assim, atendendo à espécie criminosa em análise em que além do património se protege, também, a liberdade negocial (vide, por todos a análise de TAIPA DE CARVALHO in Com. Conimbricense ao CP) óbvio se toma que o titular do interesse protegido com a incriminação é quem fez o negócio crismado de usurário.
7ª) Com efeito, a usura não se queda por um mero ataque ao património, dado que carece — para a respectiva verificação — do especial constrangimento da vítima da actividade, ou seja, in casu, de que esta experimentasse uma especial situação de necessidade.
8ª) Ora, o único contraente de negócios de mútuo com o arguido foi o assistente e nunca a sua, na altura, esposa;
9) Acresce, ainda, que nada nos autos inculca que a referida queixosa vivesse qualquer situação de necessidade ou estivesse numa qualquer das peculiares situações a que se refere a norma incriminadora.
10ª) É, pois, apodíctico, que a Sra. D. Lídia Fernandes não era titular do interesse protegido especialmente pela norma, pelo que estava desprovida da legitimidade para se queixar, até porque não se verificou o condicionalismo do art. 113/2, al. a) do CP, nem estava munida com o instrumento a que alude o 49/3 do CP Penal.
11ª) Resulta assim perspícuo que falta uma condição de procedibilidade, pelo que nunca o arguido poderia ser condenado pelo tipo que a douta decisão lhe assaca.
Sem prescindir,
12ª) Faz parte da factualidade típica plasmada no artigo 226º do CP a obtenção de uma vantagem manifestamente desproporcionada à prestação efectuada, concorrendo com o aproveitamento da situação de necessidade da vítima.
13ª) Ora, é convicção do recorrente que nenhum desses condicionalismos se mostra existente na presente hipótese, pelo que também esta norma se mostra violada.
14ª) na verdade, para o arguido não existiu aquilo que se crisma de vantagem manifestamente desproporcionada.
15ª) Com efeito, não obstante o arguido cobrar ao assistente a taxa de juro mensal de 3%, logo 36% anuais, a vantagem que auferia não ascendia a tal valor;
16ª) É que, como consta do ponto 33 da factualidade dada por demonstrada o arguido suportava, com a conta caucionada que utilizava para dispor dos montantes emprestados, um juro de 21% anual.
17ª) Logo a vantagem recebida era, apenas, de 14%, valor que entre os anos de 1993 e 1998 (atentas as taxas de juro então vigentes) está longe de se alcandorar à manifesta desproporção exigida pela norma incriminadora.
18ª) Com efeito, a vantagem não pode ser caracterizada só objectivamente, antes, pelo contrário, deve atender à situação individual e patrimonial do putativo agente da usura.
19ª) Por outro lado, também se não adere à visão que empresta à situação do assistente aquela de carência contemplada no preceito em análise.
20ª) De facto, todas as prestações efectuadas pelo arguido tiveram como destino a actividade comercial — potencialmente lucrativa — desenvolvida pelo Sr. Rocha Fernandes;
21º) Ora, a necessidade atribuída ao dinheiro mutuado é, indubitavelmente relevante para a caracterização de uma determinada situação como de necessidade.
22º) No que tange à contra-ordenação em que o arguido foi condenado pelo Mmo. Juiz a quo, cumpre desde logo referir que tal emerge em colisão com os artigos 38º/1 e 39º do DL 433/82 de 27 de Outubro e 208 do DL 398/92.
23ª) A boa hermenêutica destes postulados legais — como a mui douta sentença sublinha — que a legitimidade do tribunal penal para conhecer das contra-ordenações só existirá quando houver o chamado concurso real heterogéneo.
24ª) Como ensina Eduardo Correia (Direito Criminal, Vol. II, pág. 198) este só ocorre quando exista unidade de acção e pluralidade de normas violadas” e que estamos perante o mesmo facto quando o agente age sem renovar a resolução.
25ª) Na hipótese dos autos é patente a inexistência de qualquer unidade de acção quer pela pluralidade de resoluções — tomadas de cada vez que se intervinha num mútuo — quer pela diferença de sentido existente entre as espécies de ilícito em análise.
26ª) Bastará lembrar, de resto, que o ilícito de mera ordenação social exige uma actividade profissional e que só se demonstrou um crime de usura, razão mais do que bastante para afastar totalmente a hipótese de concurso ideal heterogéneo.
27ª) Ora, assim sendo, é apodíctico que o órgão competente para conhecer da contra-ordenação era não o Tribunal Criminal mas sim a entidade administrativa referida no DL 398/92 — o Banco de Portugal
28ª) Por outro lado, está o recorrente em crer que a factualidade apurada não é subsumível ao ilícito pelo qual foi condenado.
30ª) efectivamente, da concatenação da norma do nº 2 do art. 8º do DL398/92 com o 211º, 1, a) do mesmo diploma só comete o tipo em causa quem desenvolver uma actividade profissional.
31ª) Ora, o conjunto de factos imputados ao arguido — mais a mais num lapso de tempo de 7 anos — não possuem a reiteração e continuidade passível de legitimarem tal caracterização, razão porque tais normas também emergem violadas.
32ª) Neste conspecto, importa ainda sublinhar que a sanção/coima aplicada é demasiado elevada e, como tal, em colisão com o artigo 208, 4, als. a) e b) do DL 398/92 e 18º do 433/83.
33ª) Desde logo importa referir que a sanção aplicável não é a apontada pela douta decisão condenatória:
34ª) a sanção entre um arco de € 2 439,99 e € 2 493 989,49 cabe, tão-só, às pessoas colectivas, uma vez que as pessoas singulares são puníveis com uma coima entre os € 997,60 e os €997 595,79.
35ª) face a tal moldura, atendendo a que da actividade do arguido não resultaram prejuízos para o sistema financeiro, que não se apuraram quaisquer ganhos relevantes do arguido e à sua ausência de antecedentes contra-ordenacionais, bem como à sua situação económica, é patente que a coima prima por desfasada da legalidade aplicável.
36ª) Efectivamente a medida concreta da pena aplicada surge claramente desfasada dos preceitos normativos reitores deste segmento da juridicidade.
37ª) Designadamente mostram-se violados os art.s 71º/1 e 40/2, ambos do C P.
38ª) Os sobreditos incisos plasmam os critérios determinantes da fixação da medida da pena elegendo, a esse propósito, uma teleologia essencialmente preventiva, todavia temperada pela ideia da culpa.
39ª) Nomeadamente o nº2 do citado artigo 40º estabelece que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa o que é a repristinação do velho brocardo nulla poena sine culpa.
40ª) Ora é manifesto que a punição que se verbera não levou em conta que a liberdade do agente de agir de acordo com o direito se encontrava diminuída pelo facto de ser procurado insistentemente pelo assistente que o invectivava no sentido de lhe conceder empréstimos.
41ª) Aliás, esse comportamento do assistente — congruente com a tipologia do crime em análise (um dos chamados de comparticipação necessária do sujeito passivo) — abre a possibilidade de se falar no crime solicitado pela vítima a que alude o art. 72/2, al. b) do C. P.
42ª) Todavia, mesmo que não se adira a tal visão das coisas não deixará de se atentar na diminuição da culpa que o condicionalismo relatado propicia.
43ª) Razão pela qual a pena aplicada surge como demasiado elevada e em franca dessintonia com os preceitos invocados,
44ª) Impondo a predita normatividade que a pena se fixe num patamar sensivelmente menor, designadamente nunca ultrapassando o terço da moldura aplicável, isto é, 80 dias.
45ª) Por outro lado, também se não mostra imune a críticas o montante diário — de € 50,00 — fixado ao arguido.
46ª) Com efeito, este só pode ter emergido esquecendo que a situação económico-financeira e os encargos pessoais do condenado é que comandam esse quadrante da juridicidade, como de resto impõe o artigo 47º/2 do C.P.
47ª) Ora nenhuma referência das que são feitas a esses aspectos da vida do arguido legitimam tal montante.
48ª) De resto, não é nesses segmentos — impostos por lei — que o Mmo. Juiz se baseia.
49ª) De facto, apenas se chama à colação a alegada disponibilidade para proceder a movimentações de dinheiro.
50ª) Não obstante, esquece-se que essa disponibilidade era virtual, dado que assentava numa conta caucionada e omite-se, ainda, a necessidade que o arguido teve de contrair um vultuoso empréstimo (de €74 819,68).
51ª) Olvida-se, também, que muitos dos movimentos em causa eram apenas de cheques e já não de quantias efectivas.
52ª) Ou seja, arranca-se de pressupostos não elencados na lei e algo desfasados da realidade, razão pela qual haverá de se concluir que o montante em causa colide — frontalmente — com o comando legal inserto no sobredito artigo 47º/2 do C. P.
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Respondeu o assistente bem como o Magistrado do Ministério Público na 1ª instância defendendo a bondade da decisão recorrida e, em consequência, pugnando pelo improvimento do recurso.
Nesta instância, o Ex.mo Procurador Geral Adjunto, louvando-se, no essencial nas respostas emitiu parecer de improcedência.
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O arguido na resposta a que se reporta o artº 417º nº2 do CPP, alertou para a circunstância de nenhum dos sujeitos processuais se ter pronunciado acerca da complexidade do bem jurídico violado e seu reflexo na legitimidade para apresentar queixa, nem sobre a competência o tribunal criminal para decidir da contra-ordenação.
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Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
Para tanto, temos de ter em atenção que a sentença recorrida julgou os seguintes
Factos provados: (transcrição com numeração nossa)
1 - O arguido é licenciado em Direito, desenvolvendo alguma actividade como advogado, embora, desde há alguns anos a esta parte, a sua actividade profissional de maior importância consista na concessão de crédito a particulares e pequenas empresas, particularmente pequenos estabelecimentos de comercialização de veículos usados, que o procuram para tal efeito, bem como tarefas relacionadas com a cobrança, voluntária ou coerciva, dos valores mutuados;
2 - Com efeito, o arguido, face a especiais circunstâncias em que particulares, essencialmente pequenos comerciantes e titulares de pequenas empresas se encontram, quer por carecerem com urgência de fundos para cumprirem os seus compromissos, designadamente para com fornecedores, quer por não beneficiarem de crédito junto da banca, vem enriquecendo efectuando empréstimos, cobrando em regra um juro mensal que variou entre 2 a 3% ao mês ou 12% a 15% ao ano, consoante os casos;
3 - Para tanto, o arguido chegou a ter uma conta caucionada no banco para, em seguida, emprestar a quem o procure para esse efeito;
4 - Para melhor garantir o reembolso das quantias mutuadas e juros cobrados, quando os eventuais interessados o procurassem para tal efeito na sua residência, nesta cidade e comarca, o arguido seguia geralmente o procedimento que consistia ora em deduzir à quantia solicitada pelo mutuário o valor equivalente aos juros cobrados pelo período de 1 mês, emitindo aquele um cheque com vencimento a 30 dias pelo valor total, compreendendo a quantia mutuada e juros, procedimento renovado cada 30 dias, emitindo o mutuário novo cheque pelo valor da quantia emprestada e juros, ora exigindo a emissão de tantos cheques quantos os períodos de 30 dias em que deveria vigorar o empréstimo, títulos esses representativos do capital mutuado acrescido dos juros respectivos;
5 - Igualmente o arguido facultava a quem o procurava para esse efeito o valor de cheques emitidos com data futura, cobrando geralmente juros correspondentes ao período de tempo de antecipação do respectivo montante, descontando-os ao montante por si entregue ao mutuário;
6 - No final do ano de 1993, início do ano seguinte, António Manuel da Rocha Fernandes travou conhecimento com o arguido por razões relacionadas com a referida actividade mutuária, solicitando-lhe o empréstimo da quantia de Esc. 1.000.000$00 de que carecia com urgência para satisfazer de imediato parte do preço devido pela aquisição de um imóvel;
7 – O arguido satisfez tal pretensão, entregando àquele a quantia por ele pretendida, acordando-se que deveria ser satisfeita em prazo não concretamente determinado mas não inferior a 30 nem superior a 60 dias, tendo o arguido exigido o pagamento de pelo menos 3% de juro com referência àquele período;
8 - Como o referido António Fernandes não lograsse angariar meios para satisfazer integralmente a quantia em dívida ao fim daquele período, o prazo de pagamento do empréstimo foi alargado por, pelo menos, mais 30 dias, acabando o primeiro por solver integralmente a obrigação em tal prazo;
9 - Acontece que, pelo menos no ano de 1996, atravessando uma crise financeira decorrente da diminuição dos negócios e ainda por ter visto cessada a colaboração dos bancos a quem recorria para fazer face aos seus compromissos comerciais, face ao nível de endividamento a que havia chegado, o mesmo António Fernandes começou a experimentar uma constante carência de fundos, pelo que passou a recorrer a constantes empréstimos para satisfazer as obrigações relativas a encargos correntes com o seu negócio;
10 - Apercebendo-se da situação de extrema carência de fundos em que aquele se encontrava, e de que não tinha outras alternativas de financiamento, o arguido satisfazia as solicitações que o referido António Fernandes lhe endereçava, sempre mediante o pagamento de uma taxa mensal de 3% a título de remuneração do capital mutuado, o que o mesmo António Fernandes sem alternativa aceitou;
11 – No ano de 1995, o arguido emprestou a António Fernandes o montante global de Esc. 5.1 20.000$00;
12 - Mantendo-se, e mesmo agravando-se, as condições financeiras decorrentes do exercício do seu comércio, única fonte de rendimentos do referido António Fernandes, bem como as dificuldades de recurso à banca e a necessidade premente de fundos para satisfazer compromissos correntes da sua actividade comercial este, nos anos de 1996, 1997 e 1998, solicitou ao arguido sucessivos empréstimos que ascenderam aos valores globais de Esc. 3.177.000$00, 2.736.000$00 e 550.000$00, respectivamente;
13 - Para remuneração do capital mutuado, o arguido exigiu sempre àquele António Rocha Fernandes a taxa mensal de 3%, que o mesmo foi satisfazendo, quer por cheque quer em numerário;
14 - Assim, no ano de 1995 o referido António Fernandes entregou ao arguido a quantia global de Esc. 3.918.000$00, no ano de 1996 o montante total de Esc. 2.516.500$00, em 1997 o valor total de 262.000$00 e em 1998 a quantia global de Esc. 3.832.500$00;
15 - Sendo, porém que, em Maio de 1998, o mesmo António Fernandes ainda devia ao arguido, entre capital e juros, pelo menos a quantia total de Esc. 3.645.800$00 titulada pelo cheque n. ° 0974638866, de 05/06/1998, devido nesse mês, que o arguido deu à execução;
16 - No ano de 1998, o arguido emprestou a Agostinho de Jesus Mendes a quantia de Esc. 350.000$00, de que o mesmo carecia com urgência para satisfazer o preço de uma encomenda para um cliente, cobrando um juro mensal de 3%;
17 - Posteriormente, e sempre com o propósito de satisfazer compromissos para com fornecedores, de que o arguido tinha conhecimento, o mesmo Agostinho Mendes procurou-o a fim de o mesmo lhe emprestar quantias que variaram entre Esc. 300.000$00 e 400.000$00, sendo que no ano de 1999 o mesmo lhe emprestou a quantia de Esc. 700.000$00, cobrando-lhe sempre um juro mensal de 3%;
18 - O arguido igualmente emprestou quantias não apuradas a Armindo Sousa Couceiro, a fim de que o mesmo pudesse cumprir atempadamente os seus compromissos para com a banca, exigindo-lhe o pagamento de um juro correspondente ao que então vigorasse na banca acrescido de 2% ou 3%.
19 – Em tais condições, no ano de 1999, o arguido emprestou ao Armindo Couceiro a quantia de Esc. 1.500.000$00;
20 – O arguido emprestou a Fernando José Freitas Fernandes diversas importâncias, bem como antecipou-lhe os montantes representados em cheques antedatados, que no ano de 1999, entre Janeiro e Julho, ascenderam a uma importância global de Esc. 41.630.000$00, cobrando-lhe geralmente um juro a uma taxa anual de l4% a 15%, quer para satisfazer compromissos da sociedade, de que era titular, denominada “Finisaco, Lda.”, com sede na Rua dos Cravinhos, armazém n.º 5, Tentúgal, a qual, por se tratar de empresa jovem no mercado, experimentava dificuldades em obter crédito junto da banca, quer ainda para fazer face a encargos imediatos decorrentes da actividade de compra e venda de viaturas usadas que o mesmo desenvolve;
21 – O arguido, desde há mais de 10 anos, tem vindo a antecipar o pagamento de cheques antedatados e a emprestar quantias a António Manuel Ferreira dos Santos, sócio da “Leitão & Santos, Lda.” para este fazer face aos compromissos e encargos decorrentes da actividade de compra e venda de automóveis usados, sendo que entre Janeiro de 1999 e Fevereiro de 2000 o arguido emitiu cheques a favor daquele no valor total de Esc. 27.218.000$00, cobrando-lhe geralmente um juro que variou entre 12 a 15%;
22 – A sociedade “Leitão & Santos, Lda.” não dispunha de bens próprios para garantir empréstimos junto da banca, sendo que a descrita actividade desenvolvida pelo arguido tem-se assumido como fonte principal de financiamento da aludida actividade comercial;
23 - Do mesmo modo, o arguido antecipou capital titulado por cheques e mutuou quantias a Abel Ferreira dos Santos, enquanto titular do estabelecimento comercial “Stand Casa Branca”, que entre Janeiro de 1999 e Fevereiro de 2000 ascenderam a um total de Esc. 46.723.500$00, cobrando-lhe geralmente um juro que podia ascender a 15% por ano;
24 - O arguido travou conhecimento com António de Paiva Germano no final do ano de 1997, dedicando-se este, embora reformado da banca, à actividade de compra e venda de antiguidades, velharias, ourivesaria e relojoaria que então havia iniciado há pouco;
25 – O arguido disponibilizou então àquele a quantia de Esc. 2.000.000$00 para o mesmo usar no aludido negócio, exigindo-lhe a emissão de quatro cheques no valor de Esc. 500.000$00 sucessivamente antedatados, quantia sobre a qual se obrigaria a pagar um juro mensal de 3%;
26 - O arguido travou conhecimento com Adelino Manuel Simões, entre os anos de 1996 e 1997 quando aquele se lhe dirigiu, solicitando-lhe o empréstimo de uma quantia não apurada;
27 - Posteriormente, o mesmo Adelino Simões, pelo menos para o negócio de compra e venda de automóveis, recorreu a novos empréstimos de quantias monetárias que solicitava ao arguido, sendo que entre Janeiro de 1999 e Fevereiro do ano seguinte foram emitidos pelo arguido, a favor daquele, cheques no montante global de Esc. 24.445.000$00;
28 - O arguido pretendeu de forma continuada, disso vivendo e angariando grandes proventos monetários, mutuar quantias a quem o procurava, aproveitando-se pelo menos da situação de carência do António Rocha Fernandes, levando-o a obrigar-se a satisfazer-lhe uma taxa de remuneração do capital de 3%;
29 – O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, com conhecimento da ilicitude da conduta;
30 – O arguido exerce a actividade de advogado desde 1982, actividade da qual também obteve proventos, que se cumulam com duas reformas pequenas e a renda dum apartamento que possui em Carnaxide;
31 – A actividade de advogado do arguido foi sempre levada a cabo pelo próprio, sem auxílio de qualquer empregado;
32 – O arguido geralmente procurava apurar o destino da quantia mutuada;
33 – O arguido, pelo uso da conta caucionada ou de livranças pagava ao banco, em caso de utilização, juros anuais não inferiores a 21%;
34 – O arguido, perante liquidações adicionais de imposto, impugnou-as, vindo a ser proferida a sentença de fls. 1105 a 1114, julgando procedentes aquelas impugnações;
35 – A decisão judicial proferida nos autos n.º 138/2000, da 2ª secção da Vara Mista de Coimbra, cuja sentença consta como doc. n.º 2, junto com a contestação, datada de 25-09-2002, declara que nos vários mútuos efectuados pelo arguido, nunca se verificou o estado de necessidade do Rocha Fernandes, também não se tendo demonstrado que o arguido tivesse praticado anatocismo;
36 - A mesma sentença condenou o Rocha Fernandes, com os juros reduzidos ao imposto por lei e exclusão dos juros vincendos, por não terem sido pedidos na parte final da p.i.;
37 - O assistente emitiu o cheque n.º 0974638866, do então “Banco Fonsecas e Burnay”, datado de 1998.06.05, devolvido com a indicação de “conta encerrada”, sabendo que não seria pago;
38 – Aquando do início da relação entre o arguido e o assistente este explorava, com a esposa, na Adémia de Cima, um restaurante, o Litur, o Minimercado Litur e ainda a casa que havia adquirido através da execução específica, que tinha um café no rés-do-chão e uma habitação no 1º andar;
39 – O assistente, na contestação à acção 138/2000, alegou os factos aí descritos a fls. 1080 e ss., que se dão por reproduzidos, tendo sido condenado em 1ª instância como litigante de má fé;
40 - No acórdão do Tribunal da Relação, que confirmou a quantia em dívida do Rocha Fernandes para com o arguido, ficou referido a fls. 11 [1099 dos autos], quanto ao quesito 15 que «Assim, há que alterar a resposta em apreço, ficando a mesma com a seguinte redacção: - Provado, com o esclarecimento, que em relação aos cheques para pagamento numa semana o A. [ora arguido] não cobrava juros”;
41 – O assistente não liquidou os seus compromissos para com várias pessoas, tendo vendido património;
42 – Relativamente a Fernando Freitas Fernandes o arguido chegou a ceder-lhe cheques seus que aquele “descontava” no seu banco, financiando-se pela obtenção da importância titulada pelo cheque, antes da data referida no título, cobrando o banco uma taxa de “desconto” e emitia ao arguido um cheque seu para a data de vencimento constante do cheque emitido pelo arguido, podendo nestes casos o arguido não cobrar juros;
43 – O Fernando Freitas Fernandes é ainda devedor do arguido;
44 - O arguido mutuou quantias ao Freitas Fernandes para que aquele adquirisse máquinas de imprimir para sacos de papel;
45 – O António Manuel Ferreira dos Santos é ainda devedor do arguido;
46 - O Abel F. dos Santos, irmão do António Manuel F. dos Santos, foi a pessoa que deu origem a um maior volume de movimentos na conta do arguido, procurando-o frequentemente, podendo o arguido, quanto por prazos curtos, inferiores a uma semana, não cobrar juros;
47 – Alguns dos cheques do Paiva Germano continuam com o arguido e outros encontram-se nos autos, tendo este, na acção declarativa n.º 256/l999 do 1º Juízo cível do Tribunal de Coimbra, usado apenas como prova uma declaração de dívida comercial, que no início lhe havia passado, conforme doc. nº 8 junto com a contestação [fls. 1117 e 1118];
48 – O arguido propôs contra Adelino Simões uma acção declarativa de condenação, nos termos e com os fundamentos constantes de fls. 1119 e 1120 que aqui se reproduz;
49 – Foi emitido um impresso de cheque da conta n.º 00013373725, do “B.P.A.”, titulada por Manuel Jesus Roriz Fortes Santos, do qual consta uma assinatura correspondente ao titular da conta, no valor de Esc. 3.105.000$00, datado de 2000.04.05 ao portador, conforme doc. de fls. 1122 que aqui se dá por reproduzido;
50 – Manuel de Jesus Roriz emitiu cheques da firma “Euronovo, Lda.”, a favor do arguido, conforme fls. 1123 e 1124 que, apresentados a pagamento, foram devolvidos com a indicação de “conta encerrada”;
51 – Alguns comerciantes recorriam ao arguido pelo facto de lhes surgir um negócio de ocasião incompatível com a demora do crédito bancário;
52 – O arguido contraiu um empréstimo hipotecário junto do “Banco Totta & Açores”, formalizado em 2000.12.12, no valor de € 74.819,68;
53 – O arguido ainda vive com a esposa, em casa própria;
54 – Tem, como habilitações literárias, a Licenciatura em Direito;
55 – Não tem antecedentes criminais;
56 – Não demonstrou arrependimento;
57 – O assistente contraiu casamento católico com a queixosa, sem convenção antenupcial, no dia 16 de Novembro de 1974.
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A mesma sentença julgou
Não provados (transcrição com numeração nossa)
1 - O juro mensal de 3% constitui regra para os empréstimos concedidos a todas as pessoas;
2 - Para além da existência da conta caucionada – que em si configura a concessão de crédito – o arguido contraiu outros empréstimos junto de instituições bancárias para prover à sua própria actividade de concessão de crédito;
3 - Os juros cobrados pelo adiantamento do capital de cheques antedatados era geralmente o de 3% ao mês;
4 - O empréstimo original de Esc. 1.000.000$00, concedido ao assistente em 1994, foi pelo prazo preciso de 30 dias, tendo o assistente entregue especificamente, numa ocasião, Esc. 75.000$00;
5 - As dificuldades económicas graves do assistente tiveram início preciso em 1995;
6 - O Agostinho Mendes não tinha alternativas ao recurso ao arguido, facto que este conhecia;
7 - As quantias mutuadas a Armindo Couceiro destinavam-se à actividade particular de compra e venda de automóveis que aquele vinha praticando para além do seu emprego na “Portugal Telecom”;
8 - Os empréstimos concedidos ao Fernando Fernandes foram-no nas mesmas condições que ao Agostinho Mendes;
9 - Os sócios da “Leitão & Santos, Lda.” não tinham património pessoal;
10 - Entre o arguido e António de Paiva Germano encetou-se uma relação comercial nos termos da qual o arguido teria participação nos lucros obtidos pelo segundo na compra e venda de antiguidades;
11 - Quando o arguido conheceu o Adelino Simões este encontrava-se em situação económica muito difícil na sequência de não haver sido pago da quantia de Esc. 6.000.000$00 resultante da venda de veículos automóveis;
12 - O Adelino Simões recorreu ao arguido em situação de grande necessidade de fundos, quer para os negócios que então praticava, quer para fazer face aos encargos com a sua vida e de sua família;
13 - O montante global de cheques emitidos pelo arguido a favor do Adelino Simões, entre Janeiro de 1999 e Fevereiro de 2000, reporta-se, na totalidade, à concessão de crédito a juros;
14 - Os cheques emitidos ao Adelino Simões, no período considerado na pronúncia, atingiu Esc. 50.568.300$00 Aqui deverá ter existido lapso já que o montante mencionado na pronúncia para o período se reporta à testemunha Antero Santos, sócio da “Ademiauto”.;
15 - Por causa das dificuldades geradas pelo giro comercial o referido Adelino Simões veio a ser inibido do uso de cheque e, assim, impossibilitado de recorrer ao crédito bancário, o que o arguido sabia e se aproveitou, cobrando-lhe um juro mensal de 3%;
16 - No princípio do ano de 1999, Manuel de Jesus Roriz Fortes dos Santos encontrou-se com o arguido na residência deste, à Solum, nesta cidade e comarca, tendo-lhe solicitado a concessão de um empréstimo no montante preciso de Esc. 1.500.000$00 para fazer face a dificuldades financeiras decorrentes do exercício da actividade de compra e venda de veículos automóveis usados;
17 - O arguido, sabedor que o referido Manuel dos Santos não tinha já possibilidades de recurso ao mercado normal de crédito bancário, a tanto acedeu, cobrando-lhe o juro correspondente a Esc. 1.000$00 diários, equivalente a 2% mensais;
18 - O arguido, cobrando-lhe a aludida taxa de juro, emprestou ainda ao mesmo Manuel dos Santos em 19/01/1999 a quantia de Esc. 959.000$00, e em 29/02/2000 a quantia de Esc. 3.000.000$00 precisamente;
19 - O arguido e respectivo agregado viviam essencialmente da actividade de advocacia desenvolvida por aquele, de pensões e rendimentos prediais;
20 - Os mútuos concedidos não ultrapassaram os 33 durante os anos de 1998 a 2001, dos quais o arguido não veio a auferir quaisquer lucros mas sim elevados prejuízos;
21 - O arguido sempre esteve plenamente convicto, em todas as ocasiões, de que ao mutuar quaisquer quantias a curto prazo estava a ajudar e a contribuir para o progresso da actividade comercial das pessoas que o procuravam, não procedendo a qualquer empréstimo quando assim não fosse;
22 - O arguido dava conhecimento às pessoas que o procuravam de que pagava uma taxa de juro ao banco de 21%;
23 - Nunca o arguido admitiu, sequer, um enriquecimento ou incremento patrimonial desmesurado à custa de empréstimos, apenas tendo sido animado pela vontade de ajudar os outros;
24 - O que o levou à ruína, forçando-o a vender todo o património herdado;
25 - O primeiro empréstimo ao Rocha Fernandes era pelo prazo preciso de um mês, com Esc. 30.000$00 de juros, tendo o assistente gratificado o arguido com mais Esc. 20.000$00;
26 - As dificuldades económicas do assistente ficaram a dever-se ao facto de ter abandonado a mulher e a filha, amantizando-se com Valentina Ferreira, com quem se estabeleceu;
27 - O arguido sempre pensou que o assistente abundava em dinheiro, em face do seu grande giro comercial, possuindo um salão de jogos, sempre desconhecendo qualquer situação de carência pela vida faustosa que o assistente fazia e apregoava;
28 - O assistente desfez-se de todo o património para obstar às execuções, devendo as quantias precisas constantes do artº 32º da contestação e aos intervenientes aí referidos;
29 - Sempre que o Agostinho Mendes não podia liquidar os cheques nas datas dos respectivos pagamentos, não lhe era exigido mais juros pelos dias que haviam passado;
30 - O arguido só concedia empréstimos quando se tratava de incrementar uma actividade comercial;
31 - Todas as quantias mutuadas ao Armindo Couceiro se destinavam à actividade particular de compra e venda de automóveis que o Armindo Couceiro vem praticando;
32 - O Fernando Freitas Fernandes é devedor da quantia exacta de € 74.121,00 e ao juro anual de 5%;
33 - O empréstimo ao Fernando Fernandes para a compra de máquinas de impressão foi no quantitativo exacto de Esc. 19.500.000$00;
34 - O António Santos deve ao arguido o montante exacto de € 123.086,40 e juros à taxa de 10%, estando o arguido à espera que o devedor venda uma moradia com piscina que construiu;
35 - O arguido emprestava ao Abel dos Santos grandes somas de dinheiro, por períodos superiores a 3 dias, sem cobrar quaisquer juros;
36 - O Adelino Simões tinha a aparência de um comerciante abastado, como tal proprietário do bom restaurante que ainda possui em Poiares: - “A Mó”;
37 - Nunca o arguido teve conhecimento pelo Adelino Simões de que lhe não haviam sido pagos Esc. 6.000.000$00, resultante da venda de veículos;
38 - O arguido chegou a facultar quantias ao Adelino Simões sem juros, quando lhe emitia cheques para depositar à sexta-feira e pagos na segunda-feira seguinte;
39 - O arguido emprestou ao Manuel de Jesus Roriz a quantia de Esc. 3.000.000$00 para aquisição urgente de um BMW, tendo este liquidado com um cheque da sua conta bancária e prestado informação do destino do dinheiro;
40 - Os cheques de fls. 1123 e 1124 destinaram-se a liquidar novo empréstimo ao Manuel Roriz, este de Esc. 3.521.000$00, sendo sacados sobre uma conta de uma sociedade com a desculpa de que no momento não tinha cheques da sua conta;
41 - O Roriz, face à devolução dos cheques, agiu dolosamente e de má fé, pois sabia que os cheques da sua firma não seriam pagos, empresa esta, sedeada em Pombal, que mais tarde encerrou ou foi à falência, ficando o crédito do arguido sem qualquer tutela jurídica;
42 - O Roriz transferiu a luxuosa moradia de que era proprietário e onde residia, em Pombal, para o nome do sogro, através de dação em cumprimento, bem como outros bens;
43 - Nunca o arguido tivera conhecimento de que o Roriz não tinha possibilidades de recurso ao mercado normal de crédito;
44 - O empréstimo constante do extracto que constitui doc. 14 junto com a contestação destinou-se à aquisição especificamente da fracção D do artigo urbano 4265º;
45 - Se o extracto da conta bancária do arguido mostra um saldo positivo em 2003.10.01 de € 106,331,37 foi porque em Agosto de 2003 vendeu a sua quinta, património herdado, artigo rústico n.º 1726 e urbano n.º 26.
*
Os factos não especificamente dados como provados ou não provados, ou constituem simples negação de outros dados como provados ou não provados, ou são conclusivos, ou irrelevantes para o objecto do processo.
*
O tribunal fundamentou a sua convicção probatória nos seguintes termos:

O arguido apresentou-se em audiência demonstrando ressentimento para com aqueles que o acusaram, vitimizando-se e definindo-se como alguém que sempre quis “fazer o bem” e ajudar o próximo, prejudicando-se e arruinando-se com essa postura de amor ao próximo. A auto afirmada visão altruísta, contudo, não nos convenceu minimamente, ainda que suportada em alguns depoimentos que, passe o exagero, definem e caracterizam o Dr. Costa Andrade como um benemérito, alguém que ajudava o próximo pelo prazer de ajudar e pela simples satisfação moral.
Esta visão teológica do mútuo, anacrónica na actualidade (pois quase de um seguidismo tardio da visão comutativa de S. Tomás de Aquino quando ao mútuo) não merece acompanhamento, por inverosímil perante as evidências que a seguir se apontarão.
Na verdade, face à prova atendível, não nos oferece qualquer hesitação afirmar que o arguido se dedicava à concessão de empréstimos. E não como um epifenómeno. Fê-lo habitualmente e como a sua principal fonte de rendimento.
Regressando ao depoimento do arguido.
O arguido afirma, com convicção, que a sua actividade principal sempre foi a advocacia, actividade que lhe deu para viver (curiosamente não soube dizer quais os proventos de tal actividade). É relevante contudo ter afirmado o arguido que aquilo que declarou às Finanças como proventos da sua actividade liberal corresponde à verdade.
Para além disso, e como outros rendimentos, refere a existência de uma reforma (actualmente € 200,00 mensais) e de uma renda de um apartamento em Carnaxide (actualmente de € 1.500,00 a € 1.600,00 anuais).
Mencionou, também, uma quinta em Alcafache, cujos pinhais lhe permitiram adquirir, em Coimbra, uma fracção urbana. Refere também que a quinta, entretanto vendida para pagar dívidas fiscais, lhe proporcionava azeite e 500 almudes de vinho.
Relativamente aos pinhais refere terem ardido em 1986 e 1989.
Quanto à actividade versada nos autos, o arguido afirmou que não emprestava dinheiro, emprestava cheques (?), admitindo pontualmente a cobrança de juros próximos dos 15% e ainda de forma mais excepcional juros à taxa de 3%. Não põe em causa, contudo, e grosso modo, os valores mencionados na acusação como tendo sido movimentados através da sua conta.
Para aferir da verosimilhança de tais alegações vamos caracterizar, perante elementos objectivos, a condição económica do arguido.
Como actividade profissional lícita e para justificar o seu património e modo de vida, o arguido refere dedicar-se à advocacia, acrescentando ter uma pensão e auferir rendimentos prediais.
Relembre-se ter o arguido referido que as declarações por si prestadas ao Fisco são verdadeiras.
Analisemos então.
Fazendo o reporte aos períodos em causa nos autos – 1993 a 1999 – vamos tomar em conta os elementos documentais acessíveis nos autos, juntos pelo arguido, para aferirmos a grandeza dos rendimentos auferidos enquanto profissional liberal.
Assim, temos:
Anos fiscaisRendimentos líquidos anuais
1992 (fls. 748)Esc. 482.299$00
1993 (fls. 751)Esc. 224.025$00
1994 (fls. 718)Esc. 27.361$00
1995 (fls. 745)Esc. 195.103$00
1996 (fls. 741)Esc. 923.669$00
1997 (fls. 735)Esc. 2.344$00
1998 (fls. 737)Esc. 293.414$00
1999 (fls. 728)Esc. 34.051$00
2000 (fls. 722)Esc. 278.821$00
Considerando, então, 9 anos fiscais, temos uma média anual de Esc. 273.454$00 que, distribuídos pelos 12 meses de cada ano permitem um ganho médio mensal no período de Esc. 22.788$00. Ora, com o montante apurado está fora de cogitação qualquer capacidade de aforro ou entesouramento.
Refere também o arguido rendimentos prediais, provenientes de um apartamento arrendado em Carnaxide.
Façamos a mesma operação por amostragem.
Ano fiscalMontante declarado anualmente
1994 (fls. 747)Esc. 239.652$00
1995 (fls. 715)Esc. 250.440$00
1996 (fls. 742)Esc. 266.712$00
1998 (fls. 732)Esc. 272.844$00
Num período de 4 anos fiscais, em rendimentos de categoria H e atinentes ao apartamento de que o arguido será proprietário em Carnaxide, concelho de Oeiras, obtemos uma média anual de Esc. 257.412$00 e um rendimento mensal de Esc. 21.451$00.
Adicionando este rendimento aproximado com os decorrentes do exercício da advocacia temos, então, uma média mensal de Esc. 44.239$00.
Quanto às pensões auferidas pelo arguido e também por amostragem para os períodos em causa nos autos, temos:
Ano fiscalMontante declarado
1996 (fls. 740)Esc. 438.200$00
1997 (fls. 734)Esc. 443.800$00
2000 (fls. 721)Esc. 876.400$00
Considerando, quanto às pensões, períodos mais recentes (com maiores rendimentos declarados) e fazendo o apuro mensal por 14 meses/ano (mesmo não sabendo se a mesma é paga como correspondente a subsídio de férias e de Natal), temos uma média anual de Esc. 586.133$00 e mensal de Esc. 41.867$00 que, adicionada aos rendimentos anteriormente apurados perfazem Esc. 86.106$00, ou seja, pouco mais do que uma vez e meia o salário mínimo nacional, sendo que a esposa do arguido, nos períodos em causa, não apresenta rendimentos.
Com o montante apurado, o arguido teria que fazer face às despesas normais do agregado, com alimentação, vestuário, saúde, telefone, electricidade, água e gás, assim como – e como adianta o arguido – suportar a prestação de um empréstimo hipotecário, contraído em 2000.12.12 que, em 2003, importava em € 452,45 mensais (cfr. extracto de conta junto pelo arguido com a contestação).
Apesar de referidas pelo arguido, não foram apuradas outras fontes de rendimento, inexistindo outros rendimentos prediais declarados. Refere o arguido a venda do património imobiliário herdado, sem que dos autos conste a escritura O doc. de fls. 1126, que constitui doc. 15 junto com a contestação, apenas constitui um escrito particular denominado contrato promessa de compra e venda, sem assinaturas reconhecidas e que não demonstra a efectiva transferência da propriedade nem a veracidade das declarações nele contidas.. Refere-o, porém, não como forma de obter financiamento para actividades creditícias mas, tão só, para poder pagar às Finanças o que lhe foi exigido por métodos indiciários através de uma acção inspectiva. Ademais, se atentarmos no doc. de fls. 1134 consta-se a referência à venda de um prédio rústico em 1995 e não qualquer menção à alienação de um prédio misto, que constituiria a sua quinta e que, a fls. 1126, figura no contrato denominado de promessa de compra e venda (não se provando que o contrato prometido se tenha realizado, quer quanto à forma, quer em substância).
Retendo, então, os rendimentos apurados ao arguido, conducentes e uma situação económica humilde, vamos considerar factos objectivos que podem caracterizar o verdadeiro estatuto económico do arguido.
Assim, para além dos fluxos financeiros que envolvem o arguido e o assistente Rocha Fernandes, na ordem das duas dezenas de milhar de contos (cfr., por exemplo, docs. de fls. 43 a 51, 102 a 129, 132 a 144, 166 a 183, 189 a 197, 493 e ss., 534 e ss., 553 e ss.), entre empréstimos e pagamentos, temos também as cifras que constam dos duplicados dos cheques apreendidos na busca domiciliária efectuada, constantes das folhas de suporte 331, 333, 334, 335, 336, 337, 338, 339 e 340, que constituem os vols. III e IV dos autos, sendo que os cheques emitidos ultrapassam os Esc. 260.000.000$00 em pouco mais de 1 ano. Tal movimento em cheques sacados pelo arguido é perfeitamente anormal numa conta de um particular e virtualmente evidência impossível, considerando os rendimentos que o arguido declara obter.
Para além disso, o arguido tem uma conta caucionada (fls. 695), o que se afiguraria desnecessário para a actividade e proventos declarados pelo arguido, sendo que a mesma, por definição, envolve a concessão de crédito quando utilizado o plafond disponibilizado pelo banco.
Ainda no escopo de caracterizar a situação económica do arguido, atente-se no facto de este ter procedido aos seguintes depósitos em numerário na sua conta à ordem (23502447/001) e excluídos os depósitos de igual natureza feitos pelo arguido na conta do filho, conforme documentos incluídos a fls. 307 e apreendidos em casa do arguido:
DataValor em PTE
2000.05.17100.000$00
2000.03.30150.000$00
1999.12.22200.000$00
2000.01.13150.000$00
1999.12.29300.000$00
2000.03.17100.000$00
2000.02.04190.000$00
2000.01.05150.000$00
1999.11.181.150.000$00
1999.02.26380.000$00
1999.11.17800.000$00
2000.02.21765.000$00
2000.01.24500.000$00
2000.01.07100.000$00
1999.03.15250.000$00
1999.08.161.185.000$00
1999.08.18100.000$00
Para além dos depósitos em numerário, o arguido, conforme fls. 311 e ss., efectua frequentes depósitos em valores (cheques), de várias praças, na sua conta à ordem, referindo-se, a título de exemplo:
DataValor do depósito
1999.01.192.132.775$00
1999.08.101.183.000$00
1999.08.04383.000$00
1999.08.03770.000$00
1999.09.14481.246$00
1999.09.102.318.500$00
1999.09.08124.000$00
1999.09.06847.500$00
1999.09.271.025.500$00
1999.09.241.552.250$00
1999.09.21404.665$00
1999.10.111.500.000$00
1999.09.161.598.600$00
1999.09.17363.000$00
1999.10.01695.200$00
1999.09.302.605.900$00
1999.09.291.034.700$00
1999.08.1875.474$00
1999.09.032.088.300$00
1999.09.021.300.000$00
1999.08.31853.700$00
1999.08.30172.500$00
1999.08.271.242.500$00
1999.08.24640.000$00
1999.08.20839.500$00
Quanto ao acabado de referir, note-se que a esmagadora maioria dos cheques invocados a título de exemplo se concentra entre fins de Agosto de 1999 e Setembro de 1999, com depósitos quase diários. Com a mesma base foram ainda apreendidos comprovativos de depósitos em valores, referentes essencialmente aos meses de Janeiro e Fevereiro de 1999, com quantitativos ainda mais elevados. Cfr. também fls. 322, 325, 326, 327, 328, 329 e 330, sendo assombrosos os montantes movimentados.
Confira-se, também, os montantes que o arguido transferia para a sua conta caucionada n.º 023502447/240 (fls. 286, doc. 28 e ss.), a partir da sua conta à ordem supra identificada.
À margem de tudo isto abstemo-nos de tecer comentários, por especulativo face ao despacho de arquivamento nesta parte, perante os fluxos de capitais movimentados através da conta do filho do arguido e que este também movimentava, tudo conforme comprovativos de depósitos (em numerário e valores), transferências e cheques emitidos, apreendidos aquando da busca domiciliária.
Serve todo o exposto para dizer que o arguido declara rendimentos que lhe permitiriam, apenas, um estatuto económico humilde, principalmente se considerarmos a referência ao exercício da advocacia como modo de vida principal, apresentando, simultaneamente, movimentos nas suas contas gritantemente incompatíveis com tais rendimentos declarados, com grande movimentação de cheques, confessando o arguido a concessão (ainda que pontual) de empréstimos e referindo-os expressamente as testemunhas arroladas pela acusação.
A esta conclusão não obsta o facto de o arguido, conforme duas pastas arquivadoras juntas aos autos, desenvolver a actividade de advocacia. Esta actividade, necessariamente e para assumir relevância, teria que gerar rendimentos, que são os que de forma quase insignificante são declarados pelo arguido (que reiterou a fidedignidade das declarações fiscais). Se verificarmos tais documentos constatamos que são essencialmente relacionados com a actividade creditícia demonstrada. Vejam-se, por exemplo, as intervenções como mandatário da “Inforvideojogos” e da “Leitão & Santos, Lda.”, assim como a profusão de processos executivos e de natureza criminal com base em cheques. Para além disso assume relevância quantitativa a intervenção como mandatário da “Gelgurte”. Porém, essa relevância é apenas, como se disse, quantitativa. Na verdade, se atentarmos no depoimento do legal representante de tal sociedade – a testemunha Mário Jorge Lemos Rosa, arrolado pela defesa – o arguido é de facto advogado avençado da empresa mas receberá, em média, € 1.000,00 anuais o que, perante o volume financeiro movimentado pelo arguido, é perfeitamente marginal.
Ainda àquela conclusão não obsta, pelos mesmos motivos, as intervenções pontuais como procurador/advogado mencionada pelas testemunhas Orlando António Alves de Matos, Ester dos Santos Carvalho Dias, Juiz-Desembargador Manuel de Almeida Ribeiro, Luís Manuel Alves e Manuel Duarte Alberto, sempre considerando os proventos declarados da profissão e sem que daqui decorra que se confunda a responsabilidade criminal em causa com uma putativa fuga ao Fisco.
Assim sendo, é legítimo – e apoiado em elementos objectivos e nas regras de experiência comum – concluir que era desta actividade, a concessão de empréstimos, que o arguido obtinha a essencialidade dos ganhos para a sua subsistência, fazendo da concessão de crédito o seu modo de vida, a sua essencial e imprescindível fonte de rendimento.
Para além do assistente, a concessão de crédito por parte do arguido foi referida pelas testemunhas Lídia Maria Franco, Joaquim Manuel Coelho, Adolfo dos Anjos Duarte, Agostinho Jesus Mendes, Antero Ferreira dos Santos, Américo Ferreira Simões, Armindo Sousa Couceiro, Carlos Alexandre Gaiola, Fernando José Fernandes, Maria Alice Nunes, António Manuel Ferreira dos Santos, Abel Ferreira dos Santos, Vítor Lopes Encarnação Cardoso, António Paiva Germano, José Maria Duarte Brásio, António Rama Raposo, Rui Manuel Campos Marques Afonso e Delia Mendes Ferreira. Tais testemunhas podem inclusivamente considerar-se representativas de um universo mais vasto de “clientes” do arguido, pois todas travam conhecimento com este, ou através de devedores mais antigos, ou de “ouvir” falar nos serviços do arguido como prestamista, ou através de estabelecimentos comerciais, e referindo, inclusivamente, existirem outras pessoas que recorriam aos mesmos serviços, embora sem as identificarem (e portanto não consideradas).
Neste momento podemos, então, desde já assentar que o arguido se dedicava à concessão de crédito e que o fazia com uma envergadura razoável, fazendo dessa actividade a principal e essencial fonte de rendimento. Também é da experiência comum, acrescente-se, que se o arguido refere pagar, pelo menos, 21% de juro pela conta caucionada, seria inverosímil a assunção de tão grande risco – com a grandeza dos movimentos efectuadas através da sua conta – se apenas “emprestasse” cheques ou recebesse cheques de terceiros desconhecidos pré-datados, adiantando os valores, sem qualquer perspectiva de ganho superior à remuneração do capital que pagaria ao banco.
Aqui chegados, passemos à análise dos termos concretos dos mútuos concedidos.
Neste segmento do nosso raciocínio deparamo-nos com dificuldades de prova não despiciendas. É que foi patente em audiência de julgamento que a maioria das testemunhas mantinham e mantêm com o arguido, ou relações de amizade ou de alguma dependência, estando no essencial “agradecidas” pelo crédito concedido. É difícil a demonstração da taxa efectivamente cobrada quando falamos de um negócio simbiótico, estribado na necessidade ou urgência na disponibilização do capital de forma imediata e na perspectiva de lucro, respectivamente considerando a óptica do mutuante e do mutuário.
No essencial, quanto à cobrança dos indicados 3% ao mês, depuseram afirmativamente António Manuel da Rocha Fernandes, Lídia Maria Franco (queixosa e ex-mulher do assistente), Joaquim Manuel Coelho, Agostinho Jesus Mendes, Américo Ferreira Simões e António Paiva Germano.
De forma distinta, a restante prova testemunhal, que com o arguido contratou, aponta para valores que vão, desde a ausência total ou pontual de juros até aos 10% a 15% ao ano.
Aqui impõe-se que se faça uma chamada de atenção, com ulteriores desenvolvimentos a propósito da caracterização do tipo legal. É que para que exista usura criminal, abstraindo-nos agora do elemento subjectivo, é necessário que a taxa cobrada seja manifestamente desproporcionada à contraprestação (impondo-se, por isso, um maius relativamente à usura civil) e que a vítima se apresente de tal forma necessitada que lhe coarcte a vontade, para que não goze da necessária autonomia negocial, prejudicando-se patrimonialmente. Essa necessidade, apreciada objectivamente, deve traduzir-se na essencialidade dos motivos que a levam a recorrer ao mútuo quer, ainda, na ausência de alternativas.
Assim, Maria da Piedade Gomes terá recorrido ao arguido, solicitando cerca de Esc. 500.000$00 a título de empréstimo, afirmando que o arguido não lhe cobrou juros, afirmação que se considera questionável, inverosímil e contrária às regras de experiência, sem que contudo seja possível detectar uma taxa de juro concreta acordada.
Adolfo dos Anjos Duarte terá pedido dinheiro emprestado ao arguido porque sabia que o mesmo emprestava. O empréstimo destinou-se à aquisição de um automóvel no stand “Leitão & Santos, Lda.”, para a qual não tinha dinheiro. Posteriormente voltou a pedir dinheiro, pelo menos mais uma vez mas, em ambos os casos, o arguido não terá cobrado juros. Não recorreu ao banco por considerar “complicado”. Neste caso, não aceitamos como credível que o arguido fosse conceder dois empréstimos à testemunha sem qualquer remuneração para o capital quando, como afirmou em audiência e na contestação, teria que pagar ao banco juros que começariam nos 21% caso fizesse uso da conta caucionada.
Porém, a aquisição de um veículo não pode reputar-se de absolutamente essencial e, na indefinição da taxa de juro, não pode a mesma ser qualificada de excessiva.
Antero Ferreira dos Santos é empresário em nome individual do ramo automóvel, sendo proprietário do stand “Ademiauto”. Para facilitar a venda de automóveis aceitava, dos seus clientes, cheques pós-datados que, para realizar imediatamente o capital, “descontava” junto do arguido, mediante um juro que negociavam entre os 12 ou 13% ao ano. Sendo não obstante pouco credível que o arguido remunerasse o capital com uma taxa mais baixa do que aquela que o banco lhe cobrava a si, também não se oblitera o facto de inexistirem elementos documentais que permitam assumir uma taxa diversa.
Poder-se-ia então referir, com base na taxa cobrada ao arguido na conta caucionada, que o juro efectivamente cobrado por aquele teria que ser superior. Fá-lo-íamos com base em critérios de experiência comum até porque o arguido, ao aceitar os cheques de terceiros, estaria a assumir o risco da sua devolução por falta de provisão.
Porém, não se oblitera o facto de o arguido ter capitais próprios (entretanto gerados), pelo que nem sempre recorreria à conta caucionada e, assim, estaria a remunerar o seu capital a uma taxa mais vantajosa do que a geralmente concedida pelos bancos para os depósitos. Por outro lado, não se provou que da parte da testemunha existisse aquela caracterizada e inequívoca necessidade, não afastável de outro modo, que o impedisse de não aceitar o negócio proposto ainda que este, na realidade, possa ter sido menos vantajoso para a testemunha do que aquilo que afirmou.
Quanto à testemunha Armindo Couceiro, que confirmou o modus operandi do arguido, entende o Tribunal que se indicia a necessidade (conta com saldo negativo, necessidades familiares prementes) mas não se demonstra, acima de qualquer dúvida, a desproporção da contraprestação face à taxa declarada. Ainda que o negócio afirmado pela testemunha possa ser usurário em termos civis, a taxa de juro por si referida, na ordem dos 3% acima do cobrado pelos bancos, não é manifestamente excessiva para o espartilho penal. Sobre esta testemunha refira-se, ainda, que a venda de automóveis que referiu contempla, apenas, a venda dos carros que, ao longo do tempo, foi tendo para seu uso pessoal, infirmando o alegado pelo arguido na contestação e, como tal, considerado não provado.
No que concerne à testemunha Carlos Alexandre Gaiola, temos “mais do mesmo”. Esta testemunha foi funcionário do stand da “Leitão & Santos, Lda.” e dedicou-se, particularmente e pontualmente, à venda de veículos – quando se lhe deparava um bom negócio em perspectiva – recorrendo ao arguido para esses fins paralelos aos da sua actividade profissional. Quando assim sucedia, recorria aos “serviços” do arguido, descontando cheques seus, retirando o arguido, “à cabeça”, o equivalente aos juros do período do empréstimo, considerada uma taxa de referência de 15% ao ano. Se, pelos motivos acima apontados, consideramos questionável a afirmação da taxa de juro alegadamente aplicada, soçobra aqui a demonstração da essencialidade dos motivos e da efectiva necessidade da testemunha ou inevitabilidade do recurso ao arguido.
Quanto a Fernando José Fernandes, refere que paralelamente à sua actividade profissional se dedica, em nome individual, à venda de automóveis. Referiu que por vezes o arguido nem lhe cobrava juros, e conforme já fazia eco o relatório da Inspecção de Finanças que o arguido, de forma parcelar, fez juntar aos autos com a contestação, por vezes existiam “empréstimos” de cheques. Verbalizou uma taxa de 15% ao ano que, pelo já mencionado, não seria manifestamente desadequada para efeitos criminais. Se, como afirmámos, questionamos a veracidade da taxa de juro, não existem elementos para afirmar positivamente o contrário. Além disso, o efectivo estado de necessidade não se apresenta inequívoco.
Maria Alice Nunes, também amiga do arguido, prestou um depoimento que afirma a existência de necessidade de recurso ao crédito. Referiu textualmente que “estava aflita para pagar a fornecedores” e, como tal, “descontou” cheques junto do arguido. Porém, afirma não ter pago juros, presenteando apenas a esposa do arguido.
Não acreditamos na afirmação da ausência de juros.
Porém, os documentos apreendidos não permitem afirmar uma taxa de juro nominal que possa vir a ser considerada usurária em termos criminais.
António Manuel Santos, proprietário da “Leitão & Santos, Lda.”, recorria muitas vezes ao arguido como forma de se financiar, atentas as especificidades do negócio automóvel, descontando cheques do arguido por períodos curtos em que, afirma, nem eram cobrados juros. Quando o arguido cobrava juros, estes situavam-se nos 12 a 15% ao ano.
Neste caso, porém, é detectável uma situação de efectiva necessidade. A testemunha já havia beneficiado de créditos bancários mas, por aquela altura, já tinha entrado em incumprimento o que, aliado ao pouco movimento financeiro declarado, impossibilitaria o recurso ao crédito em instituições financeiras. De forma surpreendente, porque sincera, mas também impressiva do funcionamento de algumas empresas no nosso país, referiu a testemunha que “contabilisticamente a firma está falida”.
Não obstante o exposto, se aqui se vislumbra a essencialidade, não se demonstra a existência de uma taxa de remuneração do capital que importe numa desproporção manifesta que apele à intervenção do Direito Penal. Mesmo considerando os cheques emitidos, não é possível quantificar uma taxa inequívoca (para ulterior consideração como usurária), concedendo-se também, como se fez repercutir nos factos provados, que pela relação de confiança criada com tantos comerciantes do ramo automóvel o arguido possa, ainda que pontualmente, deixar de cobrar juros por prazos curtos.
Abel Ferreira dos Santos, que foi proprietário do “Stand Casa Branca” reafirma o modo como este tipo de comerciante recorre ao arguido. Através da venda a prestações ao cliente, e no sentido de realizarem imediatamente o capital, “descontam” os cheques junto do arguido, que lhes adianta o capital titulado pelos cheques entregues dos clientes, reduzido do valor do juro convencionado que situa entre os 12 a 15%. Refere, por outro lado que, a perspectiva de um negócio de ocasião e a necessidade de rapidez de actuação não viabilizavam o recurso às instituições financeiras.
Aqui falece a demonstração da necessidade, da essencialidade dos motivos, para além da taxa de juro afirmada não comportar a excessiva desproporção pressuposta pelo tipo legal e que a seguir se desenvolverá.
Vítor Lopes Cardoso, guarda-prisional, refere ter travado conhecimento com o arguido através da aquisição de um automóvel, dando algum flanco e sustentabilidade à alegação dos comerciantes do sector automóvel de que o arguido lhes “descontaria” os cheques. Segundo esta testemunha adquiriu um automóvel pagando com cheques pós datados, tendo falhado o pagamento de um deles. Quando isso sucedeu veio a ser confrontado com o facto desses cheques estarem na posse do arguido, passando um cheque em substituição do devolvido e, a partir daí, tendo passado a recorrer ao arguido para empréstimos, geralmente entre os Esc. 10.000$00 a Esc. 100.000$00 para acorrer a necessidades pontuais do agregado e ultrapassar períodos de maior aperto do ponto de vista económico. Porém, menciona uma taxa na ordem dos 10%, o que afasta, como a seguir desenvolveremos, a existência de “usura criminal”.
José Maria Brasio refere ter adquirido um veículo na “Leitão & Santos, Lda.”, através do identificado esquema dos cheques pós datados, sabendo que os mesmos passaram a estar na posse do arguido. Mais tarde, recorreu ao arguido por 2 ou 3 vezes, confessando que tinha dificuldades junto da banca, estando inclusivamente inibido do uso de cheque, pretendendo adquirir um “pronto-socorro” para se iniciar nessa actividade. O juro combinado terá sido de 15% ao ano.
Mais uma vez, nem a taxa apurada nos permite concluir pela usura relevante para efeitos criminais, nem o fim a que se destinava o mútuo se apresenta com meridiana clareza atendível.
Curiosamente a testemunha Adelino Simões que, como comerciante de automóveis, é-lhe atribuída a declaração de fls. 275 dos autos, apreendida no domicílio do arguido, não compareceu em julgamento por não ter sido possível a sua notificação. Assim, apenas se demonstra a emissão de cheques a seu favor, atendendo aos duplicados apreendidos na residência do arguido, mas desconhecem-se os exactos contornos do negócio, a percentagem dos movimentos que corresponderiam a verdadeiros mútuos remunerados, os motivos para o recurso ao arguido e a condição económica e efectiva necessidade da testemunha. Da inexistência de tais elementos, face à não comparência da testemunha, se fez eco nos factos não provados, quer da pronúncia, quer da contestação.
António Rama Raposo, amigo do arguido, refere que se dedicava à venda de automóveis usados, em nome da esposa, ao mesmo tempo que era funcionário dos HUC. Para além dos “juros gratuitos” a testemunha concretiza a taxa em 15% ao ano o que, na ausência de prova quanto aos montantes mutuados e entregas, não permite ao Tribunal concluir por taxa diversa, compatível com a relevância criminal da usura.
Rui Manuel Afonso conheceu o arguido quando era empregado bancário no BTA – Agência da Miguel Torga, e ainda lhe deve dinheiro.
Refere ter solicitado um empréstimo ao arguido porque teve uma avaria no carro e necessitava de comprar outro, já tendo o seu plafond de crédito esgotado no banco, sendo que a necessidade de mais crédito era desconfortável para a sua imagem perante o banco. Não sendo “essencial” o motivo invocado, esta testemunha também não concretizou qual a taxa de juro cobrada pelo arguido.
A testemunha Delia Ferreira não mereceu credibilidade quanto ao destino por si declarado para os empréstimos concedidos. Refere que necessitou de dinheiro para pagar umas dívidas e para comprar um carro à filha. Porém, refere que “estava aflita”, que “estava inibida do uso de cheque” e que a filha estava desempregada. Compreende-se a alegação de que o dinheiro se destinava à aquisição de um carro para a filha. Porém a mesma não procede, ou seria o cúmulo da irresponsabilidade. Quanto à verdadeira necessidade desta testemunha na obtenção de crédito, o documento de fls. 271, apreendido em casa do arguido, “fala por si”.
Esta testemunha, porém, afirmando que os pagamentos se faziam por cheques da sua filha para um empréstimo de Esc. 500.000$00, não mencionou, alegando desconhecimento, a taxa de juro aplicada.
Se considerarmos os cheques de fls. 265 e 266, em nome da filha da testemunha, era configurável o empréstimo de Esc. 300.000$00, a 10 meses, acrescentando em cada mês Esc. 900$00 que equivale a 3%. Porém, desconhecendo-se o capital mutuado e o prazo para pagamento, o acima afirmado é apenas uma hipótese possível, mas não insofismável, funcionando sempre a dúvida a favor do arguido.
Aqui chegados, e como empréstimos a 3%, taxa que definimos como usurária para efeitos criminais, temos os depoimentos de António Manuel da Rocha Fernandes, Lídia Maria Franco, Joaquim Manuel Coelho, Agostinho Jesus Mendes, Américo Ferreira Simões e António Paiva Germano, permitindo-nos referir, em tese geral, que existiam empréstimos remunerados a esta taxa (como o faz a pronúncia, embora generalizando à maioria dos empréstimos mas depois, na concretização, fá-lo maioritariamente perante casos em que, ou expressamente constavam taxas mais moderadas, ou as testemunhas envolvidas afirmaram essa taxa menos prejudicial).
Começando pelo depoimento de Agostinho de Jesus Mendes, este dedica-se à venda de material dentário em nome individual. Tendo montado um negócio consistente num laboratório de próteses dentárias, surgiu a oportunidade de ir a Espanha, onde se propunha adquirir material em condições mais vantajosas que em Portugal, sem recurso a intermediários. Como tinha uma certa urgência nos produtos, para satisfazer encomendas, e só precisaria do dinheiro por 1 semana a 15 dias, o empréstimo bancário não se prefigurou como uma solução viável. Assim, recorreu aos préstimos do arguido, tendo posteriormente solicitado mais empréstimos, afirmando ser verídica, nesta parte, a acusação.
Nesta parte, e quanto a nós, temos uma taxa de juro que se afigura desproporcionada, por excessiva, e incluindo-se no que definimos objectivamente como juro usurário para efeitos criminais. Porém, soçobra aqui a demonstração da efectiva e inarredável necessidade que, pelas suas características, tenha de forma inelutável conduzido a testemunha ao arguido e tolhendo-lhe a necessária liberdade negocial. Indicia-se uma certa voluntariedade no recurso ao arguido, num negócio aceite pela testemunha (note-se que, em montantes reduzidos e por prazos curtos a taxa, mesmo a 3%, traduz um encargo mais suportável e a rapidez do empréstimo apetecível).
Quanto à testemunha Américo Simões, o mesmo confirmou as declarações de fls. 242 e 243, que lhe foram lidas por haver concordância dos intervenientes e nos termos das quais o arguido lhe terá emprestado cerca de 300 ou 400 contos à taxa mensal de 3%.
Também Joaquim Coelho, ligado à “Inforvideotexto”, refere ter obtido empréstimos do arguido remunerados à taxa de 3%. Estava inibido do uso de cheques, o mesmo sucedendo com a empresa, pelo que não podia depositar os cheques dos clientes sob pena de os montantes ficarem imediatamente cativos e, como tal, privaria a empresa de meios para continuar a subsistir. Esta situação de dificuldade era do conhecimento do arguido, porque lhe foi comunicada, acrescentando nós que o arguido era advogado de tal empresa (cfr. depoimentos de Américo Simões e do próprio Joaquim Coelho, conjugado com as acções juntas pelo arguido em arquivador, em que é notificado nessa qualidade).
Aqui, quanto a nós, é patente não só a fixação de um juro usurário como também uma situação de necessidade, sem alternativa do recurso à banca, do conhecimento do arguido.
Quanto à testemunha António Paiva Germano, a mesma apresentou-se bastante abalada, confusa, em alguns aspectos contraditória, com um mau relacionamento actual com o arguido mas, no essencial, credível quanto ao empréstimo de Esc. 2.000.000$00 e à remuneração estipulada (que, aliás, consta de declaração subscrita e junta aos autos). Afirmou a remuneração dos empréstimos contraídos à taxa de 3% ao mês, o que já definimos como usurária. A fixação dessa taxa é até, como dissemos em breve nota, apreensível dos docs. de fls. 280 e 281, recepcionados pelo arguido porquanto apreendidos no seu domicílio.
Debrucemo-nos, então, sobre o requisito da necessidade.
Esta testemunha referiu que, quando conheceu o arguido, era bancário na reforma recebendo, naturalmente, a correspondente reforma. Sendo expectável que fosse para aumentar os seus rendimentos, esta testemunha dedicava-se, ainda, à compra e venda de antiguidades. O arguido terá então aberto uma conta-corrente de 2000 contos, remunerada àquela taxa, para o exercício daquela actividade, tendo tudo corrido bem até que, em seu entender, o arguido se recusou a devolver cheques pagos ou já substituídos. Ora, o recurso ao empréstimo neste caso – no fundo numa expectativa por parte da “vítima” de aumentar os seus recursos financeiros, paralelamente à sua reforma como bancário e não, como se exige, para aplacar uma situação de carência extrema – não é abarcado pelo campo previsivo da norma incriminatória, sem prejuízo da tutela cível que ao caso couber, face à taxa exagerada praticada.
Resta a questão do assistente.
Como já se referiu no início deste exame crítico da prova produzida, nos autos está plasmada e documentada a existência de empréstimos, remunerados à taxa confessada pelo próprio arguido de 3%.
O depoimento do assistente deve também ser encarado com algumas reservas, atendendo ao seu interesse na causa e ao mau relacionamento existente, com várias litígios judiciais de permeio. Além disso, o último cheque, de 1998, é emitido sobre uma conta há muito encerrada mostrando uma faceta menos correcta do assistente, mesmo eivada de desonestidade, ainda que possa ser mitigada por uma efectiva necessidade. No mesmo sentido vão as alegações por si contidas em contestação cível, conforme prova documental junta com a contestação, que referem um quadro fáctico distinto, ainda que outras decisões venham a dar razão ao assistente, em desabono também de alegações do arguido desfasadas da realidade, como no caso do acórdão da Relação de Coimbra de fls. 685, que dá por demonstrada a inexistência de crédito ao assistente e a existência de indícios que “(...) apontam para que o crédito invocado pelo requerente incorpora juros à incrível taxa de 3% ao mês, contados dia a dia, sabendo aquele que o requerido não tinha possibilidades de recorrer ao empréstimo bancário”, concluindo pelo afastamento da probabilidade do crédito e determinando o levantamento do arresto. É certo que se trata de uma decisão provisória, porque proferida em sede de procedimento cautelar. Contudo, não deixa de demonstrar que em acções cíveis nem tudo se passou como agora decorreu deste processo, onde os elementos probatórios são mais vastos (houve uma busca domiciliária) e sendo certo que o arguido, em tais acções, nem sempre terá referido as taxas de juro cobradas, atenta a literalidade e abstracção dos cheques para efeito de execução.
Não obstante isso, ou considerando esse mesmo enquadramento, decorreu do depoimento do assistente, é confirmado pelo arguido no art.º 20º da contestação, a existência do primeiro empréstimo, de Esc. 1.000.000$00, constando dos autos os cheques de fls. 397, 514 e 515. Desenvolvimentos ulteriores estão documentados nos autos (cfr. fls. 16 a 35, 43 a 51, 102 a 129, 132 a 144, 166 a 183, 189 a 197).
Confessados os empréstimos e aceite a taxa remuneratória, nega o arguido que soubesse de qualquer dificuldade económica do assistente Rocha Fernandes, conhecendo-lhe, ao invés, o património, sendo que os montantes mutuados ajudariam a incrementar os negócios.
Numa primeira face admite-se que o arguido possa ter razão.
O assistente, a propósito do primeiro empréstimo, referiu em audiência que pretendia adquirir uma casa e que tinha crédito bancário, recorrendo ao arguido apenas por uma questão de rapidez e comodidade. Refere ainda um segundo empréstimo, de Esc. 300.000$00 para adquirir mercadoria (cheque 52371939), já reportado a 1995 e numa altura em que o assistente refere ainda gozar de crédito na banca. A partir daí refere ter passado a recorrer ao arguido com regularidade, embora já tivesse problemas económicos que situa em 1996 (depois rectificado para finais de 1995, início de 1996 e por fim início de 1995). Apesar disso menciona a existência de um prédio na Adémia, livre e desonerado, que “nunca pensou” usar como garantia hipotecária para a concessão de um empréstimo junto da banca.
Segundo afirmou, as penhoras e os arrestos iniciaram-se em fins de 1998, início de 1999.
Situa o último empréstimo, de Esc. 550.000$00, em 16 de Janeiro de 1998.
A ex-mulher do arguido acompanha-o, quando à necessidade económica (que situa em 1996), embora remetendo para o arguido o pormenor das negociações.
Face à evidência da concessão de sucessivos empréstimos e dificuldades no pagamento, com pedidos de moratória, defende-se o arguido dizendo que remunerou o empréstimo a 3% para ver se o assistente deixava de recorrer aos seus préstimos. A este argumento esgrimido pergunta-se, se assim era, por que razão logo o primeiro empréstimo foi remunerado a essa taxa ou porque não disse o arguido simplesmente “não” às solicitações?
Refere também o arguido que o assistente tinha património, aparentava uma vida faustosa, nunca se tendo apercebido da efectiva necessidade daquele. Em subsídio do seu entendimento invoca uma decisão cível onde se declara inexistir um estado de necessidade e ainda a lógica afirmação de que, se soubesse que o assistente não tinha património não lhe emprestaria dinheiro, nem a ele nem a ninguém.
Começando por este último argumento, que parece de uma lógica sólida e inatacável, o mesmo é, salvo o devido respeito, falacioso. É que a própria essência da usura e do crime de usura pressupõe que a vítima tenha património. Quando assim não é inexiste ataque a esse universo (o património) que a lei eleva a bem jurídico protegido com a incriminação. Subentende que a vítima tenha património, senão também o usurário não poderia obter as vantagens a que aspira e, como afirma o arguido, neste enfoque com razão, não emprestaria ou só o faria “estando louco”. A usura pressupõe património que o usurário, pela desproporção da contraprestação, visa delapidar, sendo que existe usura até com garantia real.
Quanto ao alegado desconhecimento da necessidade do assistente (mesmo tendo património), em nosso entender o argumento falece. Sem considerar a própria necessidade que se antevê do recurso ao crédito em condições desvantajosas (juros a 3%), há incumprimentos documentados (fls. 629, 651 e 684, com passagem pela “lista negra” do Banco de Portugal). Os insistentes pedidos do assistente e moratórias concedidas, o confessado apuramento do destino do dinheiro que o arguido alega fazer, os motivos referidos em audiência para os empréstimos (pagar a fornecedores para o minimercado poder continuar a funcionar) são tudo factores que credibilizam a alegação, quer da efectiva necessidade, quer do conhecimento do arguido face a essa necessidade, não se coibindo dos cobrados 3% quando falamos de dinheiro para fornecimento de mercadorias em minimercado, onde as margens de lucro não serão grandes e desde logo se indicia que o negócio não gera proventos próprios para, pelo menos, pagar aos fornecedores.
Essa mesma patente necessidade foi referida pelas testemunhas Luís Gonçalves Temudo e Carlos Alberto Gomes que, ouvidos a pedido da defesa ao abrigo do art.º 340º do Cód. Proc. Penal, foram assertivos na afirmação de que nos negócios que os ligaram ao assistente se aperceberam que o mesmo estava em dificuldades e necessitado de dinheiro, percepção que o arguido necessariamente teria ao lidar de forma mais próxima e prolongada no tempo com o assistente.
Assim se justificam os factos assentes atinentes à situação de necessidade do assistente e à atitude do arguido perante esse conhecimento Veja-se a declaração de fls. 277, apreendida na busca domiciliária, sendo indiciadora do conhecimento que o arguido tem – Licenciado em Direito – da existência do crime de usura e dos seus elementos típicos, tendo o cuidado de por, na declaração que elabora para ser elaborada por que recorre ao crédito, que o “cliente” não está em estado de necessidade., aliado à taxa de juro que já definimos como usurária.
Aqui chegados temos apenas duas situações concretas em que se alia uma taxa usurária a uma situação de necessidade: - a do assistente e da testemunha Joaquim Coelho. Duas situações que, contudo, não se nos afiguram suficientes para caracterizar o modo de vida como condicionante da agravação. Se há modo de vida demonstrado quanto à concessão de crédito a juros, seria necessária a demonstração de modo de vida para a concessão de crédito a juros usurários.
As alegações, em tese geral, constantes da acusação e da pronúncia (por remissão) de que existiam outras pessoas nas mesmas condições não permitem colmatar a falta. É que não basta essa alegação, aliás sólida, de que outros empréstimos terão sido concedidos a 3% ao mês. Seria necessário identificar as pessoas que assim contrataram para que se pudesse aquilatar da concreta situação económica de cada um e da essencialidade dos motivos, o que não é possível perante a indefinição do sujeito. Assim, outros empréstimos a esta taxa terão que ser considerados empréstimos a uma taxa usurária mas não crime de usura, pois este não se basta com a objectivação dessa taxa, antes sendo imprescindível a aferição das demais condicionantes do negócio e postura do arguido perante os mesmos.
O Tribunal, para além do já mencionado, considerou, ainda, o teor dos livros de cheques n.ºs 68, 69 e 72 que foram apreendidos na busca domiciliária realizada, extraindo-se dos duplicados os cheques emitidos pelo arguido às testemunhas e respectivos montantes.
A ausência de antecedentes criminais mostra-se documentada nos autos através do respectivo CRC.
Relativamente aos factos dados como não provados, para além de tudo o que já se referiu na análise efectuada, temos que quanto à testemunha Roriz, o mesmo não compareceu, pelo que nada mais do que o teor dos documentos considerados ou a confissão do arguido poderá ser pondero.
Dos factos apurados noutras jurisdições, o art.º 7º do Cód. Proc. Penal consagra a autonomia do processo penal, sendo que apenas nesta audiência, e com o acervo probatório aqui apresentado, se poderão considerar os factos, não sendo legítimo proceder a raciocínios extrapolativos.
Quanto ao Adelino Simões, o mesmo também não compareceu, desconhecendo-se que património tinha, se o recurso ao arguido se fez em dificuldades pela devolução de cheques ou qual o montante efectivamente mutuado, persistindo, apenas, os cheques emitidos à sua ordem. Não se avaliando o montante do empréstimo e estando o Tribunal privado do seu depoimento (não obstante as tentativas), também o Tribunal não pode aferir das motivações da testemunha para o recurso ao crédito ou a taxa convencionada para a maioria destes, isto não obstante a declaração manuscrita de fls. 275 (vol. II) fazer referência a uma taxa de 3%.
Apurou-se genericamente que o arguido é credor de algumas testemunhas, conforme referido supra, sem contudo se aquilatar dos montantes precisos dos débitos.
Quanto ao demais, se se demonstra a contracção de um empréstimo por parte do arguido, não se demonstra documentalmente o fim preciso, sabendo-se apenas que se trata de um empréstimo hipotecário. Da mesma forma inexiste documentação comprovativa da venda do património imobiliário.
*
Decidindo:
Como é sabido são as conclusões de recurso que delimitam o âmbito dos poderes de cognição do tribunal de recurso.
O recorrente, que não põe em causa, pelo menos nos termos do artº 412º nº3 e 4 do CPP Como serão todos os que doravante se indicarem sem menção de diploma., a matéria de facto assente pelo tribunal a quo.
Por outro lado, não se vislumbram vícios que inquinem a matéria de facto, que de resto também não foram alegados, assim, o recurso visa penas da matéria de direito pondo o recorrente á nossa cogitação os seguintes pontos sobre os quais versará a sua apreciação.
I – Legitimidade da mulher do assistente para apresentar queixa relativamente ao crime de usura (conclusões 1º a 11ª)
II – Elementos do tipo de crime de usura (conclusões 12ª a 21ª)
III – Competência do tribunal criminal para julgar a contra-ordenação pela qual o arguido foi condenado (conclusões 22ª a 27ª)
IV – Verificação do elemento do tipo de contra-ordenação – actividade profissional – (conclusões 28º, 30º e 31º Não existe conclusão 29º.).
V – Medida da coima (conclusões 32º a 35º)
VI – Medida da pena de multa relativamente ao crime de usura, tanto no que concerne ao número de dias como ao seu quantitativo diário (conclusões 37º a final 52º).
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Como referiu o Mmº Juiz a quo no despacho de fls. 1485 que mandou subir o processo a este tribunal a sentença enferma de lapso relativamente á medida da coima aplicável à contra-ordenação p.p. pelo artº 211º nº1 al. a) do Dec. Lei 298/92 de 31.12, que se se cifra entre € 997,60 e € 997.595,79 (200.000$00 a 200.000.000$00), e não em € 2.439,99 e € 2.493.989,49 (500.000$00 a 500.000.000$00), Artº. 1º do Dec.Lei nº 323/2001 de 17 de Dez – conversão em euroscoima que se aplica ás pessoas colectivas.
Nos termos do artº 380º nº2, aqui fica ressalvado tal lapso da sentença, passando a constar da sentença, fls. 1410, aquela primeira moldura penal em vez da que aí consta.
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I - Legitimidade da mulher do assistente para apresentar queixa relativamente ao crime de usura.
Como resulta da sentença, o arguido foi condenado pela prática de um crime de usura p.p. pelo artº 226º nº1 do Cód. Penal, cujo procedimento criminal, por força do nº3 do mesmo artigo depende de queixa, que como é aceite por todos, foi feita pelo cônjuge do assistente.
Dispõe o artº 113º nº1 do Cód. Penal, na parte que aqui interessa que “ Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação” (sublinhado nosso).
Como defende Figueiredo Dias Direito Penal Português “Consequências Jurídicas do Crime” Editorial Noticias, pág. 668 a pessoa ofendida é o portador do bem jurídico, para o qual se apresenta como decisiva a interpretação do tipo de ilícito respectivo.
Assim, o titular do direito de queixa relativamente a cada crime pertencerá àquele ou aqueles que a lei quis proteger com a tipificação da respectiva conduta, o que equivale a dizer que o titular do direito de queixa corresponde ao titular do bem jurídico que se quis proteger com a incriminação, o que nos reconduz a saber qual o bem jurídico protegido com o crime de usura.
Embora o bem jurídico protegido por este crime assuma duas vertentes a liberdade, na medida em que o agente do crime se aproveita conscientemente de uma situação de necessidade do sujeito passivo que lhe reduz drasticamente a capacidade de contratar, e nesta perspectiva é um crime que carece da participação de vítima, é a vertente património a que é directamente protegida pelo crime de usura. Neste sentido Américo Taipa de Andrade in Comentário Conimbricense ao Código Penal tomo II, pág. 386.
Assim, são titulares que a norma quis proteger com a incriminação, não só o sujeito passivo do crime mas também todos os titulares do património que a lei visa proteger directamente com a incriminação, e assim sendo são também eles titulares do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação e portanto titulares do direito de queixa.
Se assim não fosse, deixaríamos á mercê do cônjuge ou do comproprietário administrador o direito de se queixar de violações contra o património comum, certo sendo que próprio também participou, embora por via indirecta nessa violação, e por via disso, a maior parte das vezes, não lhe interessa, pelo menos em tempo útil Tenha-se em vista o caso dos autos onde a pessoa directamente enganada posteriormente à queixa apresentada pelo seu cônjuge veio constituir-se assistente revelando uma atitude clara de querer perseguir criminalmente o autor do crime., por a nu ou tornar pública essa fraqueza.
Conclui-se assim que o cônjuge do sujeito passivo do crime é também ela titular do direito de queixa, provado que está, ponto 57 dos factos provados, o casamento entre a autora da queixa e o assistente aquando da prática do crime Vigorando o regime imperativo de comunhão de adquiridos – artº 1717º do Cód. Civil., tem de se concluir aquela tem legitimidade para apresentar queixa nos termos do nº1 do artº 113º do CP, improcedendo a 1ª questão levantada.
II – Elementos do tipo de crime usura:
Defende o arguido, nesta sede, que a conduta provada relativamente ao assistente Rocha Fernandes não preenche os elementos típicos do crime de usura, porquanto nem se verificou a obtenção de vantagem manifestamente desproporcionada nem o aproveitamento da situação de necessidade da vítima.
Em primeiro lugar dir-se-á que ao contrário do que afirma o recorrente não consta do acervo factual provado máxime do nº 33 que o arguido suportava com a conta caucionada que utilizava para dispor dos montantes emprestados, um juro de 21% anual.
O que consta do referido nº 33: “O arguido pelo uso da conta caucionada ou de livranças pagava ao banco em caso de utilização, juros anuais não inferiores a 21%” (sublinhado nosso), é bem diferente do afirmado, pois que ao contrário do pretendido pelo recorrente não é possível retirar da matéria de facto apurada que o arguido usou a conta caucionada para obter fundos que lhe permitissem mutuar as quantias que mutuou ao assistente, mas apenas que ele tinha uma conta caucionada e a taxa de juros que lhe era cobrada em caso de a utilizar bem como a que suportava em caso de desconto de livranças (… não inferior a 21%).
Assim é abusivo, face á matéria de facto assente, subtrair esta taxa de juro daquela recebida pelo arguido que se cifrava a 3% ao mês (nº13 e 28 dos factos provados).
Vejamos então se está preenchido o requisito “vantagem manifestamente desproporcionada à prestação efectuada” se encontra preenchida:
Seguindo Simas Santos e Leal Henriques Citando por seu turno o MºPº do Porto, in Código Penal Anotado, 2º volume pág. 958.Não existe um padrão, um critério, para aferir das situações manifestamente proporcionais. Certamente que o legislador quis intencionalmente deixar ao julgador a análise, em cada caso concreto, do que se poderia entender por manifestamente desproporcionado. Em contrapartida, seria extremamente difícil ao legislador criar tabelas, quantitativos para tipificar ou não certos negócios como usurários, além do mais, perante um grande número de possibilidades usurárias e, por outro lado, perante o contínuo desajuste que qualquer quantitativo sofreria face ao movimento inflaccionário continuado.
Ao deixar ao julgador o ajuizar do que deve ser uma vantagem desproporcionada e uma vantagem manifestamente desproporcionada, certamente que o legislador tem de se determinar por juízos equitativos, seguindo o critério do que pensa sobre tal o homem médio nos casos socialmente localizados.
Ora, aplicando estes ensinamento ao caso concreto, temos de ter em conta, em primeiro lugar, a época em que os empréstimos foram celebrados entre o arguido e o assistente, que a matéria de facto nos localiza entre o final do ano de 1993 início de 1994 a 1998 (pontos 6., 9, 11, 12 e 14 dos factos provados.
Durante este período os juros legais variaram entre 15% (Portaria nº 339/87 de 24.4) e 10% Portaria 1171/95 de 25.9, que foi substituída pela Portaria 263/99 de 12 de Abril.
Nos termos do artº 1146º nº1 do Código Civil é havido como mútuo usurário aquele cujas taxas excederem a taxa legal em 3% e 5%, conforme exista ou não garantia real, devendo o contrato onde se fixam taxas superiores a estas, reduzido para estes montantes máximo (nº3 do referido artº 1146º). Pode assim dizer-se que a lei civil considera vantagem desproporcionada a taxa de juro que ultrapasse aqueles montantes Neste sentido conf. A. Taipa de Carvalho in Comentário Conimbricense ao Código Penal, vol ll, pág. 389..
Porém, e como já vimos a lei penal com o conceito manifestamente desproporcionada vai mais além do que a lei civil, não se bastando com um critério matemático embora se posa dizer que não pode ficar aquém da usura civil definida nos termos referidos.
Apurou-se que o arguido cobrava ao assistente uma taxa de 3% ao mês que corresponde a 36% ao ano (pontos 13 e 28 dos factos provados).
Ora, se atendermos ás taxas de juro legais que vigoravam na altura, os juros cobrados são pelo menos ao dobro dos valores considerados como usurários para a lei civil, (juro legal acrescido da taxa a que se reporta o nº 1 do artº 1146º do Cód. Civil) o que nos permite afirmar que as taxas cobradas são manifestamente desproporcionadas para o beneficio resultante do capital mutuado, mesmo atendendo aos riscos inerentes ao retorno desse capital, o que configura quer objectivamente quer subjectivamente uma situação de vantagem manifestamente desproporcionada.
Entende também o recorrente que não se verifica o requisito “aproveitamento da situação de necessidade da vítima”.
Mas também aqui sem razão.
Seguindo J.A. Barreiros In Crimes Cntra o Património no Código Penal de 1995, 221 e 222, citado Por Simas Santos e Leal Henriques ob. citada pág. 956. a situação de necessidade para o preenchimento do tipo, que é a configurada no caso concreto, corresponde a um estado de carência, porquanto a necessidade explorada pelo usurário não é a aquela situação de necessidade que está prevista nos artº 34º e 35º do Cód. Penal, e que o sujeito actua ante um perigo actual que ameace interesses jurídicos protegidos ou alguns desses interesses específicos e também não é a que está tipificada no artº 339º do Cód. Civil, em que também está em causa o remover de um perigo, sem esquecer que, sendo um estado de carência, não equivale, porém a uma situação de penúria económica.
Trata-se de uma necessidade económica, independente da causa que a tenha provocado tendo em vista o fim ou necessidade que a prestação visa satisfazer e a inexistência no caso concreto de alternativas Conf. A Taipa Carvalho ob e lugar citados pág. 387.
Ora se atentarmos á matéria vertida nos pontos 6,7,8,9,1012, 28 dos factos provados, de onde resulta que o assistente atravessava sérias dificuldades económicas, sem possibilidade de recorrer ao crédito bancário e que utilizava os montantes que lhe eram mutuados pelo arguido para solver compromissos inerentes à sua actividade comercial, temos de concluir que a situação de carência ou necessidade que acima se deixou configurada existia no caso concreto.
Resultando provados os elementos objectivos e subjectivo do ilícito, (pontos 28 e 29 dos factos provados) carece de fundamento a alegação de que o comportamento do arguido não preenche a factualidade típica configurada no artº 226º do Cód. Penal.
III – Incompetência do Tribunal criminal para julgar a contra-ordenação :
Entende o recorrente que o tribunal criminal carece de competência para o julgamento da contra-ordenação ao artº 211º nº1 al. a) do Dec.Lei nº 289/92 de 31.12, cuja competência reside no Banco de Portugal – artº 213ºnº1.
Mas também aqui cremos que não lhe assiste razão.
A sentença recorrida condenou-o pela prática de actividade bancária por factos que na tese da acusação integravam crime de usura, não só relativamente ao assistente, pelo qual o arguido foi condenado, mas também a outras pessoas, relativamente às quais o arguido foi absolvido, quer por não existir queixa, caso de Joaquim Coelho, quer porque não se provaram os elementos integradores do tipo de crime usura.
Portanto a condenação do arguido relativamente aquela contra-ordenação, resulta dos mesmos factos alegados pela acusação para imputar ao arguido o crime de usura na forma continuada onde figuram como vítimas não só o assistente mas também todos as outras pessoas a quem o arguido efectuou empréstimos que a acusação classifica como usurários.
Temos assim que são os mesmos os factos que preenchem o tipo de crime e a contra-ordenação, sendo que a punição visa proteger coisas deferentes, ali o património e a liberdade negocial e aqui a protecção da actividade bancária que está vedada a quem não está provido de licença para tal – existe um concurso de infracções que configura o primeiro termo da alternativa referida no nº1 do artº 38º do RGCC.
Verifica-se, assim, no caso dos autos, um caso de concurso de crime e contra-ordenação relativamente ao qual e desde o início se instaurou um único processo, não sendo aqui aplicável o disposto no artº 208º do RG Instituições de Crédito, e assim, nos termos do artº 38º e 39º do RGCC cabe ao tribunal competente para o julgamento do crime a apreciação da contra-ordenação e a aplicação da coima a que houver lugar Conf. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol I, pág. 120.
IV – Elementos do tipo da contra-ordenação:
Apesar de o arguido só ter sido condenado por um crime de usura, na verdade provaram-se dois, faltando a um deles como já foi dito uma condição para existir punição – a queixa – nem por isso a factualidade apurada deixa de preencher o ilícito típico configurado no artº 211º do falado Dec.-Lei 298/92 Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, hoje alterado pelo Dec.-Lei 201/2002 de 26.09, cujo regime no caso dos autos não apresenta alterações relevantes.
Dispõe o falado artº 211º, al.a) que é punida com coima a prática não autorizada, por quaisquer indivíduos ou entidades, de operações reservadas às instituições de crédito ou às sociedades financeiras;
Por seu turno, o artº 8º nº2 do mesmo diploma dispõe, na parte que aqui interessa: “Só as sociedades financeiras podem exercer, a título profissional, as actividades referidas nas alíneas b) e i) do artigo 4º (…)”.
Ora a matéria provada permite concluir que o arguido fazia da actividade de concessão de crédito a particulares e pequenas empresas a sua actividade profissional de maior importância (ponto 1., 2., 3 e 28 do acervo factual provado) provando-se ainda actos concretos praticados no exercício desta actividade durante os anos de 1993 a 1999 - pontos 6 a 27, o que de resto resulta proficientemente demonstrado na fundamentação à matéria de facto para a qual se remete, onde se procedeu à comparação dos demais rendimentos auferidos pelo arguido com a actividade agora apreciada.
Nenhum reparo merece também a sentença recorrida ao sancionar o arguido pela prática desta actividade profissional por prosseguida.
V – Medida da coima
A contra-ordenação praticada pelo arguido é punida com coima que, como já acima se referiu, se cifra entre € 997,60 e € 997 595,79.
Em sede de graduação da medida da coima rege o artº 18º nº1 do RGCC de harmonia com o qual “A determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que retirou da prática da contra – ordenação”.
Ao contrário da pena de multa aplicada em processo penal sanção que se aproxima mais da coima, que se faz em dois momentos: fixação do numero de dias por referência aos critérios gerais a fixação das penas, referidos no artº 71º nº1 e 2 do Cód. Penal; e, a fixação da taxa diária em função da situação económica do agente, artº 47º nº2 do mesmo código, a graduação da coima efectua-se de uma só vez, sopesando, no seu conjunto os elementos referidos no citado artº 18º do RGCC Conf. neste sentido A. Oliveira Mendes / J. Santos Cabral, in Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, Almedina, 2ª Edição, pág. 58..
Embora não se tenha provado em concreto o benefício económico que o arguido retirou da prática da actividade financeira ora sancionada, ela assume alguma gravidade não só pela envergadura quer em termos de capital mutuado quer em termos de tempo em que a referida actividade foi prosseguida, mas também no que toca á culpa do agente que apetrechado com um curso superior que lhe permitia prosseguir uma actividade lícita para obter a sua principal fonte de rendimentos optou por prosseguir esta contra o direito, certamente por se lhe apresentar de lucro mais fácil.
Sopesando ainda que o arguido não tem antecedentes contra-ordenacional e ainda que usufrui de uma situação económica desafogada, o que é revelado não só pela capacidade que demonstrou de dispor de quantias monetárias e lucros por ela gerados, mas também pela facilidade de recurso ao crédito, entende-se que a coima de € 20.000,00 mais próxima do limite mínimo do que do máximo, e longe de atingir o meio da coima, se mostra perfeitamente ajustado nenhum reparo merecendo a sentença recorrida.
VI - Medida da Pena aplicada ao crime de usura:
Como vêm sendo repetido neste tribunal a pena de multa, opção que não é, e bem, questionada, deve assumir a verdadeira função de pena, ou seja, transmitir à comunidade a ideia de censura social do comportamento de qualquer cidadão.
Assim, e como já foi referido supra numa primeira fase, a da fixação dos dias de multa deve ter-se em atenção o binómio culpa e prevenção temperado com as circunstâncias referidas no nº2 do artº 71º que são inerentes á culpa.
Assim, tendo em conta que a medida abstracta da multa se cifra entre 10 e 240 dias (artº 226º e 47º do Cód. Penal), que a culpa assume grau médio que são prementes as necessidades de prevenção tanto a nível geral como a nível especial, que o arguido tendo formação académica com um curso superior em direito, que como já se referiu lhe permitia ganhar a vida sem recurso a expedientes ilícitos, que não tem antecedentes criminais nem mostrou qualquer sentimento de censura pela sua actividade ilícita, mostra-se correctamente fixada a multa em 120 dias metade do limite máximo previsto para os crime em que as necessidades de punição são mais atenuadas de modo a permitir a aplicação de pena de multa.
No que concerne ao quantitativo diário de multa e como se refere no Ac. STJ de 2/10/97 Col. Juris ano V, tomo III, pág. 183., o montante diário da multa deve ser fixado em termos de constituir um sacrifício real para o condenado de forma a fazê-lo sentir o juízo de censura que através dessa condenação se quer transmitir. Aliás, não se pode deixar de considerar a função preventiva quer a nível geral ou especial, que qualquer condenação acarreta.
Imanente á pena está a função retributiva que a mesma exerce e que consiste em o condenado dar uma satisfação social, o que não se cumpre se os tribunais enveredarem por aplicar penas que se traduzem em absolvições encapotadas.
Em sede de quantificação da pena de multa, rege o artº 47º nº2 do Cód. Penal de harmonia com o qual “cada dia de multa corresponde a uma quantia entre €1 e 498,80 que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais”.
Valem estas considerações para dizer que o montante de € 50,00, se mostra perfeitamente adequado a sancionar o arguido tendo em conta a sua situação económica, pelo que também aqui não merece censura a sentença recorrida.
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Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedente o recurso e manter na íntegra a sentença recorrida.
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Custas pelo recorrente com a taxa de justiça que se fixa em 10 UC.
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Coimbra,