Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
957/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. ANTÓNIO PIÇARRA
Descritores: CONTRATO DE TRANSPORTE DE MOBILIÁRIO
Data do Acordão: 03/30/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TOMAR
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Legislação Nacional: ART. 309º, 366º, 382º, 383º, 385º E 389º DO C. COMERCIAL
Sumário:

I – O contrato de transporte de mercadorias é um contrato de natureza comercial que se pode definir como a convenção pela qual uma das partes ( o carregador ) encarrega outra ( o transportador ) , que a tal se obriga, de deslocar determinados bens de um local para outro e de os entregar pontualmente ao destinatário, mediante retribuição, o também chamado frete .
II - Quando se trate de um contrato de transporte rodoviário internacional de mercadorias aplica-se-lhe a Convenção relativa ao Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada ( CMR), ratificada por Portugal através do DL nº 46235, in Diário do Governo nº 65, Iª série, de 18/03/65 .
III – O artº1º, nº 4, al. c), da CMR exclui do seu âmbito de aplicação os transportes de mobiliário por mudança de domicílio, que por alguns é classificado como contrato de mudanças, ao qual se aplica o Código Comercial .
IV- Há incumprimento contratual não só em caso de perda total ou parcial das coisas transportadas, que não chegam ao destino acordado, mas igualmente no caso de avaria das coisas – artºs 382º, 383º, 385º e 389 do C. Comercial .
Decisão Texto Integral: 4

Apelação n.º 957/04
3º Juízo do Tribunal da Comarca de Tomar
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Acordam na 3ª secção Cível da Relação de Coimbra:
Relatório
I – AA e sua mulher, BB, residentes no Entroncamento, intentaram acção declarativa de condenação, com processo sumário, contra CC, com sede em Torres Novas, alegando, em resumo, que:
Em Junho de 1997, depois de esclarecida dos bens a transportar, a Ré encarregou-se de efectuar o transporte dos seus bens da Suíça, onde residiam, para Portugal, ou seja, para lhes fazer “a mudança”.
A Ré assegurou-lhes que estava habilitada a efectuar esse tipo de transporte e que eventuais danos que se verificassem estariam cobertos pelo seguro que celebrara com a Companhia de Seguros DD.
Contudo, quando os bens chegaram a Portugal e foram descarregados na sua nova morada, foram detectados danos nalgum mobiliário objecto do transporte, nomeadamente no piano, numa mobília de quarto e numa sapateira, danos esses avaliados em 487.500$00 e respectivo IVA.
A Ré declinou a sua responsabilidade pela reparação dos danos, o que igualmente sucedeu com a referida seguradora, e na sequência disso viram-se privados do uso integral daquelas peças de mobiliário, em especial o piano, que é um bem de família de valor emocional elevado.
Com tais fundamentos, concluíram por pedir a condenação da Ré a pagar-lhes, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, a quantia de 687.500$00, acrescida de juros moratórios, à taxa legal, desde a citação.
A Ré, regularmente citada, apresentou contestação invocando a prescrição, dado a acção ter sido instaurada depois de decorrido mais de um ano desde o transporte, e sustentando nada ter a pagar aos AA., por ser não serem da sua responsabilidade os danos verificados no referido mobiliário.
Elaborou-se despacho saneador em que se afirmou a validade e regularidade da instância, remetendo-se para a sentença o conhecimento da invocada prescrição. Seleccionou-se a matéria de facto relevante, especificando a já assente e organizando a base instrutória, com reclamação dos AA. totalmente atendida.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento e respondeu-se à base instrutória, sem censura, após o que, foi proferida sentença que, na improcedência da prescrição e parcial procedência da acção, condenou a Ré a pagar aos AA. a quantia de 487.500$00, a título de danos patrimoniais, e 500 euros, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros moratórios, à taxa legal, desde a citação.
Inconformada com tal decisão, apelou a Ré, finalizando a sua alegação, com as conclusões seguintes:
1. Ficou apurado que a Ré, transportadora, tinha limitações na execução do transporte, consequentemente o acordo entre as partes fez-se não ignorando os AA. que a Ré não era uma empresa de transporte de mobiliário;
2. Mais foi acordado que o transporte seria efectuado como carga geral e que os AA. ficaram encarregados do embalamento, carga e descarga dos bens a transportar;
3. Sendo um contrato de carga geral deve aplicar-se a convenção CMR e, em consequência, deviam os AA. ter deduzido a sua pretensão no prazo de um ano;
4. Não o tendo feito, desde logo prescreveu o seu direito;
5. Contudo, independentemente da qualificação do contrato, tem relevância para a boa decisão da causa terem os AA. ficado encarregados do embalamento, carga e descarga dos bens a transportar, ou seja, do seu embalamento e estiva;
6. Na verdade, o risco pelos danos causados pelo deficiente embalamento dos bens a transportar tem de ser considerado como assumido por quem efectuou essa tarefa;
7. Com efeito, os danos não ocorreram devido a qualquer acidente durante o percurso, mas ocorreram devido a mau embalamento e estiva, como decorre dos danos descritos nos autos;
8. A regra na convenção CMR, como no Cód. Comercial, é que a responsabilidade pelos danos que ocorram durante o transporte é, naturalmente, do transportador, mas deixa de o ser quando o embalamento e a estiva são da responsabilidade do dono da carga ou seu representante, o expedidor;
9. Assim, caso existam vicissitudes anormais, como um acidente, natruralmente que a responsabilidade pertence ao transportador; mas se os danos são consequência da embalagem e estiva, a responsabilidade do transportador é afastada;
10. Ora, nos termos do Cód. Comercial e da convenção CMR, a responsabilidade do transportador não existe quando a verificação dos danos se ficou a dever a culpa do expedidor - que é precisamente quem efectua a embalagem e a estiva - no caso o dono da carga;
11. A decisão recorrida violou os art.ºs 366º e seguintes do Cód. Comercial e a convenção CMR, ratificada por Portugal pelo DL 46.235, de 18/3/65;
12. Em consequência, a acção deveria ter sido julgada improcedente e a Apelante absolvida do pedido.
Os Apelados ofereceram contra-alegação, pugnando pelo insucesso do recurso e manutenção do sentenciado em 1ª instância.
Colhidos os vistos, cumpre agora apreciar e decidir.
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II - Fundamentação de facto
A factualidade dada como provada, na 1ª instância, é a seguinte:
1. Em Junho de 1997 os autores viviam na localidade de “Caslano” na Suíça;
2. A A. contactou a Ré, transportadora, com o objectivo desta efectuar o transporte dos seus bens para Portugal;
3. Foi então acordado o referido transporte tendo a A. esclarecido quais os bens a transportar e a Ré garantido a sua capacidade para o fazer;
4. De entre todos os bens e objectos a transportar a A. teve o cuidado de referir expressamente um piano e alguns outros móveis de elevado valor e estima, solicitando a certeza, por parte da Ré de que faria o seu transporte sem danificar tais objectos;
5. A R. assegurou que estava habilitada a efectuar esse tipo de transportes que fazia frequentemente;
6. Contudo, quando os mencionados bens chegaram a Portugal e foram descarregados na morada dos AA. em Carvalhos de Figueiredo - concelho de Tomar - foram detectados danos no mobiliário objecto deste contrato de transporte, nomeadamente no piano, numa mobília de quarto e numa sapateira;
7. A R. ao saber que havia bens danificados, solicitou à firma EE, que procedesse à sua peritagem, por carta datada de 19/6/97, constante de fls. 6;
8. Os AA., cansados de esperar e contactar a Ré sem que dela obtivessem qualquer esclarecimento, solicitaram, em Novembro de 1997, à Sociedade de Mediação de Seguros- “EE” que a informasse por escrito da situação do sinistro CMR/15454 participando à companhia de seguros DD;
9. Em Dezembro do mesmo ano foi informada por aquela Sociedade que os danos que tinham sofrido não se encontravam cobertos pelo seguro supra referido;
10. Com o transporte ficaram danificados uma mobília de quarto completa, uma sapateira de 2 gavetas e 2 portas e a estrutura do piano;
11. De acordo com o relatório do perito, efectuado a pedido da DD, Companhia de Seguros à qual foi participado o “sinistro”, os prejuízos foram calculados em 487.500$00 acrescidos do IVA.;
12. Os AA. são pessoas bastante cuidadosas com os seus bens e haveres;
13. Ao longo de todo este tempo, entretanto decorrido, os AA. viram-se privados do uso integral das peças de mobiliário que ainda hoje se encontram danificadas;
14. A Ré dedica-se ao transporte internacional de mercadorias;
15. Foi dito aos AA. que a Ré não tinha quem embalasse os bens a transportar;
16. Nem quem os carregasse ou descarregasse;
17. Mas que o transporte dos móveis, como carga geral, seria no valor de Esc. 270.000$00 (duzentos e setenta mil escudos);
18. Os AA. ficaram encarregados do embalamento, carga e descarga dos bens a transportar;
19. Quando o motorista chegou ao local da expedição, os bens encontravam-se embalados e prontos a ser carregados;
20. Então, o motorista da Ré ajudou os AA. a carregar o camião T.I.R.;
21. Os AA. e o motorista da Ré não comunicaram quaisquer reservas no inicio do transporte.
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III – Fundamentação de direito.
A apreciação e decisão do recurso, delimitado, como se sabe, pelas conclusões da alegação da Apelante (art.ºs 684º, n.º 3 e 690º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil), passa pela resolução das seguintes questões jurídicas por ela colocadas a este tribunal:
q Prescrição do direito dos AA.;
q Da responsabilidade da Apelante pela danificação dos bens transportados.
Apreciemos, então, separadamente cada uma dessas questões.
q Prescrição do direito dos AA.
A indemnização por estes pretendida decorre do contrato de transporte celebrado com a Ré, que se obrigou, na qualidade de transportadora, a efectuar a deslocação do mobiliário da sua residência na Suíça para Portugal. Trata-se de um contrato de transporte comercial (art.º 366º, do Código Comercial), que pode definir-se como a convenção pela qual uma das partes (o carregador) encarrega outra (o transportador), que a tal se obriga, de deslocar determinados bens de um local para outro e de os entregar pontualmente ao destinatário, mediante retribuição, o também chamado frete(()Cfr. sobre a noção deste contrato, Francisco Costeira da Rocha, O Contrato de Transporte de Mercadorias, Almedina, pág. 55, Adriano Anthero, «Comentário ao Código Comercial», vol. II, pág. 39, e Cunha Gonçalves, «Comentário ao Código Comercial», vol. II, pág. 394.).
Em regra, se essa convenção envolve a deslocação de determinados bens por estrada, desde um ponto de partida situado num dado país até um ponto de destino situado em país diferente, estamos em face de um contrato de transporte rodoviário internacional de mercadorias a que se aplica a Convenção relativa ao Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR), ratificada por Portugal pelo Decreto-Lei 46235 e publicada no Diário do Governo nº. 65, I Série, de l8/3/65 (e alterada pelo Protocolo de Genebra de 5 de Julho de 1978, aprovado para adesão pelo DL 28/88, de 6 de Setembro), e complementarmente a Convenção TIR (Convenção Aduaneira relativa ao Transporte Internacional efectuado ao abrigo das cadernetas TIR), de 14 de Novembro de 1974, ratificada pelo DL 102/78, de 20 de Setembro.
A primeira dessas Convenções, a também chamada CMR, estabelece que as acções emergentes dos contratos de transporte por ela regulados prescrevem no prazo de um ano. Nessa disposição se estriba a Apelante para, socorrendo-se do facto da acção ter sido instaurada em 27 de Outubro de 1998 e o transporte efectuado em Junho de 1997, concluir pela prescrição do direito à indmnização que os AA. reclamam.
Não tem, contudo, razão. É inquestionável que a acção foi instaurada já depois do decurso de um ano sobre a realização do transporte em que os AA. radicam a sua pretensão indemnizatória. Isso, porém, ao invés do que sustenta a Apelante, não implica a prescrição, na medida em que o art.º 1º, n.º 4, alínea c) da CMR expressamente exclui do seu âmbito de aplicação os transportes de mobiliário por mudança de domicílio(() Cfr., neste sentido, Francisco Costeira da Rocha, obra citada, págs. 28 e 60.), que por alguns é inclusive qualificado como contrato de mudanças(() Cfr. René Rodière, Droit des Transports, 2ª ed., Sirey, Paris, 1977, pág. 271, Clarke, International Carriage of Goods by Road , 2ª ed. Stevens and Sons, London, 1991, pág. 64, citados por Francisco Costeira da Rocha, obra citada, pág. 28.).
Ora, sendo inaplicável aquela Convenção ao caso vertente, mas antes o Cód. Comercial, como bem ajuizou a 1ª instância, é óbvio que não se verifica a prescrição invocada, pois não decorreu, longe disso, o prazo previsto no art.º 309º do Cód. Civil.
Improcedem, assim, as conclusões da Apelante no que toca à prescrição, que, na realidade, não ocorreu.
q Da responsabilidade da danificação dos bens transportados
Por norma, o contrato de transporte apresenta estrutura triangular, constituindo o carregador, o transportador e o destinatário, todos diferentemente interessados no contrato, os vértices desse triângulo. Fica, todavia, postergada essa trialidade, se a pessoa do carregador coincidir no destinatário. É isso precisamente o que acontece, neste caso, pois os AA. são simultaneamente carregadores, na medida em que são eles que encarregaram a Apelante, a transportadora, de efectuar a deslocação do mobiliário e destinatários, já que este provindo da Suíça devia ser-lhes entregue, em Portugal.
Em tais casos, tudo funciona entre os dois intervenientes principais: o carregador e o transportador. Este cumpre o que lhe impõe o contrato de transporte quando entrega as coisas transportadas ao destinatário, ou seja quando as faz chegar ao seu destino, depois de as deslocar de um local para outro. Só que pelo contrato ele não se obriga apenas a fazer chegar as coisas ao seu destino, pois tem também o dever de custódia das mesmas, no sentido de que tem que fazê-las chegar intactas ou incólumes. É uma obrigação de resultado.
Por isso, há incumprimento contratual da sua parte não só em caso de perda total ou parcial das coisas, que não chegam ao destino acordado, mas igualmente no caso de avaria das coisas (art.ºs 382º, 383º, 385º e 389º do Cód. Comercial)(() Cfr., neste sentido, Francisco Costeira da Rocha, obra citada, pág. 31.).
Por outro lado, a recepção das coisas a transportar constitui o primeiro acto de execução do contrato de transporte, para o qual concorre igualmente o carregador ao entregar as coisas a deslocar. No entanto, o transportador deve receber as coisas se estas estiverem de acordo com o estabelecido e se não estiverem conformes, deve formular as respectivas reservas, sob pena de ser responsabilizado pelos defeitos que aquelas vierem a apresentar(() Cfr. Francisco Costeira da Rocha, obra citada, fls. 64 e 131.).
Retornando ao caso em apreço e ponderando que a Apelante, a transportadora do mobiliário, o recebeu sem quaisquer reservas, é de presumir que o mesmo não apresentava vícios aparentes no momento da expedição (art.º 376.º, do Código Comercial). E, se no decurso do transporte sofreu danos, terá a Apelante, ao contrário do que sustenta, que ser responsabilizada pela sua reparação, tanto mais que não se verificou qualquer caso fortuito ou de força maior (art.º 383.º do Código Comercial). É certo que os AA. se encarregaram de embalar, carregar e descarregar o mobiliário, mas não se provou que foi no decurso dessas operações que o mesmo se danificou. Pelo contrário, apurou-se que os danos ocorreram durante o transporte, conforme se alcança do ponto 10. do elenco factual provado, operação que estava a exclusivo cargo da Apelante. Não pode, pois, deixar de ser responsável pelos danos ocorridos nessa fase, tanto mais que nenhumas reservas colocou ao ser-lhe confiado o mobiliário, presumindo-se, por isso, que o mesmo lhe foi entregue em bom estado.
Em suma, a Apelante obrigou-se a transportar as peças de mobiliário, recebendo-as na casa dos AA. na Suíça e entregando-as intactas ou incólumes aos mesmos expedidores já em Portugal, no estado em que as recebeu. Tendo-as entregue com vários danos, não cumpriu perfeita e integralmente a sua obrigação, pelo que é responsável pelos prejuízos verificados (art.ºs 406º, n.º 1, 762º, n.º 1 e 798º do Cód. Civil).
Improcedem, pois, as conclusões da Apelante no que toca à sua pretendida desresponsabilização pela danificação do mobiliário transportado, o que determina a improcedência do recurso e a confirmação do sentenciado na 1ª instância.
IV - Decisão
Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e consequentemente confirma-se a sentença recorrida.
Custas pela Apelante.
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Coimbra, 30 de Março de 2004