Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
160/21.7T8CLB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: ACÇÃO DE DIVÓRCIO
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL DOS TRIBUNAIS PORTUGUESES
Data do Acordão: 01/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE CELORICO DA BEIRA, COMARCA DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: 61.º, 63.º, 98.º, 576.º.N.º 1 E 2, 577.º, AL. A) E 578.º, TODOS DO CPC;
342.º, 346.º E 414.º, TODOS DO CPC;
REGULAMENTO (CE) N.º 2201/2003, DO CONSELHO DE 27/11/2003
Sumário: I. A residência habitual é o centro permanente ou habitual onde se situam os interesses de uma pessoa, que se concretiza pela vontade do interessado em fixar o centro dos seus interesses no território de um Estado-Membro e a presença, com grau de estabilidade, nesse mesmo território.

II. Inexistindo consenso acerca dos elementos de facto que definem a residência habitual, decidida a questão quanto à competência internacional dos tribunais portugueses, sem a produção das provas para tal indicadas pelas partes, isso acarreta uma decisão deficiente, na sua dimensão de facto, implicando a revogação de tal decisão, a fim de se proceder à produção de tais provas.

Decisão Texto Integral:
 Relator: Henrique Antunes
Adjuntos: Mário Rodrigues da Silva
Cristina Neves




Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
1. Relatório.
AA propôs, no dia 24 de Novembro de 2021, no Juízo de Competência Genérica ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., contra o seu cônjuge, BB, acção declarativa constitutiva de divórcio sem consentimento, com processo especial, pedindo o decretamento do divórcio entre ambos.
Fundamentou esta pretensão no facto de ter casado, civilmente, com a ré, em França, no dia 18 de Maio de 1991, de há mais de 10 anos, terem deixado de comungar cama e mesa, e de, em 2017, ter decidido sair de casa, passando a residir em Portugal, ficando, quando vai a França em negócios, numa habitação a cerca de 10 km da casa de morada da família, não existindo, de parte a parte, a vontade de restabelecer a vida em comum.
O autor, na petição inicial, propôs a produção de prova testemunhal.
A ré, na contestação, defendeu-se por excepção dilatória - e mesmo só por excepção dilatória - invocando a incompetência internacional do tribunal, que fundamentou no facto de o autor ter a sua residência habitual em França, país onde se situa o centro efetivo dos seus interesses pessoais, familiares, sociais, profissionais, patrimoniais, políticos e religiosos, de a única nacionalidade que os cônjuges têm em comum ser a francesa, não se mostrando preenchido nenhum dos requisitos de atribuição de competência ao tribunal português para julgar a ação, nomeadamente, ter o autor fixado a sua residência em Portugal pelo menos nos seis meses imediatamente anteriores à data do pedido, pelo que os tribunais portugueses, não têm, no caso, competência internacional para decidir a acção de divórcio e, com base nisto, pediu a sua absolvição da instância.
A ré pediu a prestação, pelo autor, de depoimento de parte.
Em resposta, o autor afirmou que desde 2017 tem residido a maior parte do tempo em Portugal, onde com carácter regular e permanente, tem vindo a resolver os seus negócios, deslocando-se pontualmente a França, e que nos últimos oito meses foi pontualmente, a este país, por dois, três dias.
O autor juntou, posteriormente, documento produzido pelo do Presidente da Junta de Freguesia ..., ... e ..., datado de 4 de Abril de 2022, no qual aquele declara que o primeiro tem residência naquela Freguesia, documento cuja eficácia probatória a ré impugnou.
O Senhor Juiz de Direito, por despacho epigrafado Da (in)competência do tribunal - no qual não discrimina ou especifica os factos que teve por provados - sem produzir as provas pessoais propostas por ambas as partes, julgou verificada a excepção dilatória da incompetência absoluta, em razão da infracção das regras de competência internacional, e absolveu a ré da instância.
É esta decisão que o autor impugna no recurso - no qual pede a sua revogação e se ordene a remessa do processo à 1- instância para elaboração de despacho designando dia e hora de audiência de discussão e julgamento de forma a permitir a prova do alegado - tendo rematado a sua alegação com as conclusões seguintes:
A) O autor deduziu a presente ação de divórcio junto dos tribunais portugueses por considerar estar preenchido o critério da residência habitual em Portugal, previsto na alínea a) do n° 1 do artigo 3° do Regulamento (CE) n° 2201/2003;
B) Para esse efeito alegou ter naturalidade e nacionalidade portuguesa, e ter vindo residir para casa dos seus pais após se ter separado da ré no ano de 2017, mantendo-se em Portugal desde então;
C) Mais alegou que vai a França em negócios e que fica numa habitação que dista cerca de 10km da casa onde ficou a residir a ré;
D) Esclareceu ainda que em Portugal explora uma empresa cuja atividade comercial teve início no ano de 2019 e que se desenvolve entre os dois países, e que vai a França dois a três dias por mês para fiscalizar a gestão dos estabelecimentos comerciais localizados em França;
E) Confirmou que se mantém nos Conselhos Municipais mas sem qualquer tarefa executiva, e que nas idas a França em negócios, comparece a uma ou outra reunião mensal.
F) Não obstante, o Tribunal de 1g instância declarou a incompetência internacional dos tribunais portugueses e considerou que “nenhum dos critérios de atribuição de competência aos tribunais portugueses previstos no Regulamento (CE) n° 2201/2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental se mostra preenchido in casu”,
G) fundamentando essa decisão nos seguintes factos:
- que autor e ré casaram naquele país em 18.05.1991, aí vivendo toda a sua vida até à sua separação que terá ocorrido depois de 2017, ai tendo e criando os seus filhos, já maiores mas que ainda aí residem,
- que o autor aí estabeleceu a sua vida profissional, tendo empresas e atividades profissionais que mantém até hoje,
- que o autor está integrado na sociedade francesa.
H) Ora nenhum desses factos corresponde a qualquer um dos critérios previstos no Regulamento (CE) n° 2201/20O3 e, em concreto no artigo 3° do mesmo, sendo ainda certo que o Ex.mo Senhor Juiz não faz uma análise ponderada e criteriosa desses factos desvalorizando o que é alegado pelo autor.
I) Nomeadamente parte do princípio, sem qualquer prova que sequer indiciasse tal conclusão, que a atividade comercial e profissional do autor em Portugal “será muito mais recente e menos representativa do que as que prossegue em França”, quando em parte alguma do processo foi referido ou documentado qual o volume de negócios do autor em França e em Portugal.
J) O Ex.mo Senhor Juiz por um lado reconhece a mobilidade profissional no quadro europeu, mas por outro lado atende ao facto de o autor manter empresas em França para declarar a incompetência internacional dos tribunais portugueses.
K) Com a decisão proferida sem audiência de discussão e julgamento o autor ficou impedido de provar, nomeadamente através de prova testemunhal:
- que os seus negócios em França já não exigem a sua presença pessoal, uma vez que apenas fiscaliza a gestão do estabelecimento, o que pode fazer à distância, que não exerce qualquer função executiva nos conselhos municipais franceses, tendo apenas de comparecer a uma reunião por mês, que por tudo isso apenas vai dois a três dias por mês a França.
L) O Ex.mo Senhor Juiz não ponderou que depois de 26 anos de vivência conjugal em França naturalmente se manterão laços sociais e até laços profissionais, tal como não ponderou que se a vinda do autor para Portugal só ocorreu como alegado depois da separação de facto ( e, note-se, a Ré não contesta a separação referindo apenas ter sido em 2018 e não em 2017 como refere o autor) também naturalmente os laços sociais e profissionais em Portugal até poderão ser menos, porque o que importa é a intenção do autor em criar a sua estabilidade em Portugal e estar a construir essa estabilidade.
M) Pode concluir-se que autor e Ré não têm uma residência habitual comum pelo menos desde 2017. E até pode concluir-se que o autor tem uma residência em Portugal e outra em França e que tem negócios em França e em Portugal. E que até ainda mantém em França relações institucionais ou sociais.
N) Mas nada mais se provou: sendo certo que o autor alega ter o seu centro de vida pessoal em Portugal onde reside com os pais, sendo daqui que parte em visita aos filhos e que estes o visitam, que gere diariamente os seus negócios, indo apenas pontualmente a França (dois a três dias por mês).
O) Ora a prova em falta era essencial na consideração de qual a residência habitual do autor após a data da separação dos cônjuges. Sem esquecer que, a ponderação não poderia atribuir um peso de 26 anos de vida conjugal em França com a exigibilidade de prova de residência habitual em Portugal nos 6 meses anteriores ao pedido.
P) A Doutrina, nomeadamente, João Gomes de Almeida, em “ Casos Práticos de Divórcio Transnacional, in ebook do CEJ, intitulado “ Direito Internacional da Família”-www.cej.mj.pt- pág 64 e ss) tem entendido que: “ a residência habitual só tem de existir na data da instauração do processo, sendo a mera residência suficiente para preencher o requisito do período mínimo ininterrupto....Discute-se se este período mínimo se refere à residência habitual ou se, pelo contrário, a residência habitual só tem de existir na data da instauração do processo, sendo a mera residência suficiente para preencher o requisito do período mínimo.
Sufraga-se esta última posição, por duas ordens de razão:
1. A letra do preceito parece dispor em favor da última opção e 2. É muito difícil determinar precisamente em que momento adquiriu o requerente a residência habitual para se aferir a partir dessa data, se o respetivo período mínimo se encontra ou não preenchido. O que torna a verificação do requisito mais imprevisível”. Mais à frente continua o mesmo Autor:
“A intenção do interessado releva para a determinação da residência habitual. Isto mesmo se pode inferir da afirmação do TJ de que a “residência habitual é um local onde o interessado fixou, com a vontade de lhe conferir um carácter estável, o centro permanente ou habitual dos seus interesses, entendendo-se que para efeitos de determinação da residência habitual é importante tomar em consideração todos os elementos de facto constitutivos”.
Q) O Ex.mo Senhor Juiz não se pronunciou sobre a vontade do autor nem apreciou ou pretendeu apurar, os períodos de tempo que, depois de 2017, o autor está em França e está em Portugal, ponderação essencial como vimos para determinar a competência internacional dos tribunais portugueses.
R) Embora o Regulamento em causa não defina o que se deve entender por “residência habitual” não nos podemos alhear do entendimento da legislação portuguesa quanto ao conceito, nomeadamente no artigo 82° do Código Civil tal como não podemos deixar de considerar que se fala em residência habitual e não em residência permanente, conceito que provavelmente estará por detrás da decisão judicial objeto do presente recurso, mas que não é o critério exigido no Regulamento comunitário.
S) A decisão objeto do presente recurso, está assim em desacordo com o disposto no artigo 82° do Código Civil e faz errada aplicação da Lei no que respeita à interpretação do Regulamento (CE) n° 2201/2003 do Conselho de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria parental.
T) A Douta sentença apresenta uma fundamentação insuficiente ou mesmo falta de fundamentação na consideração da incompetência internacional dos tribunais portugueses para decidir o divórcio entre o Autor e a Ré, partindo de uma errada e deficiente apreciação da prova.
Na resposta, a apelada concluiu, naturalmente, pela improcedência do recurso.
2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.
Os factos relevantes para a conhecimento do objecto do recurso, relativos ao pedido e à causa de pedir apresentada pelo autor, à dinâmica processual e ao conteúdo da decisão impugnada, são os que, em síntese apertada, o relatório documenta.
3. Fundamentos.
3. 1. Delimitação do âmbito objectivo do recurso.
O âmbito objetivo do recurso é delimitado pelo objecto da acção, pelos casos julgados formados na instância de que provém, pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, e pelo recorrente, ele mesmo, expressa ou tacitamente, designadamente nas conclusões da sua alegação (art.° 635.° n°s 2, 1.9 parte, e 3 a 5, do CPC).
Face a estes parâmetros da competência decisória desta Relação, a - única - questão concreta controversa, objecto do recurso, isola-se com extrema facilidade: trata-se de saber se o tribunal a quo é ou não internacional - e, portanto, absolutamente - competente, para conhecer do objecto da acção.
A resolução deste problema passa pela determinação da função das regras de competência internacional e dos critérios de aferição da competência contidos no Regulamento (CE) n.° 2201/2003, do Conselho de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.° 1347/2000.
3.2. Função das regras de competência internacional.
Diz-se competência a medida de jurisdição de um tribunal. O tribunal é competente para o julgamento de certa causa quando os critérios determinativos da competência lhe atribuem a medida de jurisdição que é a suficiente e adequada para essa apreciação. A competência assim delimitada pode chamar-se competência jurisdicional.
A competência jurisdicional pode classificar-se, cumulativamente, quanto ao âmbito e quanto à origem. Quanto ao âmbito, a competência pode ser interna ou internacional (art.°s 61.° e 62.° do CPC).
A competência interna é, em regra, aquela que respeita a questões que, na perspectiva do Estado do foro, não apresentam qualquer elemento de conexão com uma ordem jurídica estrangeira; a competência internacional, pelo contrário, é aquela que se refere a objectos processuais que comportam uma ou várias conexões com uma ou várias ordens jurídicas distintas do ordenamento do foro.
A delimitação da competência é realizada através de determinados critérios legais que demarcam, no âmbito global da função jurisdicional, o tribunal competente para apreciar certa causa.
A competência é aferida segundo determinados elementos - como o objecto ou as partes - tal como se apresentam no momento da propositura da causa.
A competência jurisdicional é um pressuposto processual, i.e., uma condição necessária para que o tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da causa, através de uma decisão de procedência ou improcedência[1]. Como qualquer outro pressuposto processual é aferida em relação ao objecto apresentado pelo autor, requerente ou exequente[2].
A incompetência resolve-se numa excepção dilatória nominada de conhecimento oficioso, dado que respeita a matéria de interesse público, e pode dar lugar a uma das duas consequências, de pura forma, atribuídas às excepções dilatórias - a absolvição da instância, tratando-se de incompetência absoluta, ou à remessa do processo para o tribunal competente, se for meramente relativa (art.°s 576.°, n.°s 1 e 2, 577.°, a), e 578.° do CPC).
Trata-se, porém, de uma excepção dilatória imprópria, dado que se limita a impugnar um pressuposto processual positivo - a competência do tribunal - que o autor considera preenchido. Por essa razão, o regime da prova da excepção é aquele que se encontra estabelecido para os factos alegados pelo autor e impugnados pelo réu. Não é, portanto, o réu que tem de provar que o pressuposto não está preenchido - é antes o autor que tem que provar que o pressuposto se mostra satisfeito (art.° 342.°, n.° 1, do Código Civil). Daí que o risco da falta de prova do pressuposto positivo recaia sobre o autor (art.°s 346.°, in fine, do Código Civil, e 414.° do CPC). Assim, por exemplo, se o réu contestar a competência do tribunal, incumbe ao autor a prova dos factos que a justifiquem; se não a fizer, o tribunal deve julgar contra essa parte onerada, considerando-se incompetente[3].
De harmonia com a velha regra ubi acceptum est semel judicum, ibi et finem accipere debet, a competência fixa-se no momento em que a acção é proposta. As modificações do estado de facto ou no estado de direito posteriores são, em princípio, irrelevantes (art.° 38.° n.° 1 da LOSJ, aprovada pela Lei n.° 62/2013, de 26 de Agosto). É o que se chama perpetuatio fori ou iurisdicionis.
Considerada a sua função, as regras de competência internacional não são, em si mesmas, regras de competência, dado que não se destinam a aferir qual o tribunal competente para conhecer do objecto da causa, antes têm por finalidade a definição da jurisdição na qual se determinará, por recurso a verdadeiras normas de competência, qual o tribunal competente para apreciar o litígio. São, portanto, normas de recepção, i.e., normas - processuais - de conflitos que definem as condições em que os tribunais do foro são competentes para a apreciação de um objecto que apresenta uma conexão com várias jurídicas e visam limitadamente facultar o julgamento de uma certa situação plurilocalizada pelos tribunais de uma jurisdição nacional4.
A definição da competência internacional dos tribunais de uma certa ordem jurídica é, portanto, operada por estas normas de recepção.
Este enunciado mostra que as normas de recepção desempenham, no âmbito processual, uma função paralela àquela que as normas de conflitos realizam no plano substantivo: estas definem qual é a lei aplicável a uma relação jurídica plurilocalizada - se a lei do foro ou uma lei estrangeira; aquelas determinam se essa mesma relação pode ser apreciada pelos tribunais de uma certa ordem jurídica. Portanto, as normas - de recepção - de competência internacional limitam-se a determinar as condições em que uma jurisdição nacional faculta os seus tribunais para a resolução de um certo litígio que apresenta uma conexão - objectiva relativa ao objecto do processo, ou subjectiva, referida às partes na causa - relevante com uma ordem jurídica estrangeira, mas não definem a lei substantiva à luz da qual esse litígio deve ser resolvido: essa lei é definida pelas normas de conflito. A competência internacional é, assim, aferida independentemente da lei aplicável ao mérito da causa, pelo que os tribunais nacionais podem ser internacionalmente competentes, mesmo que a causa deva ser julgada por aplicação de uma lei estrangeira; o inverso é também verdadeiro.
No tocante ao momento do conhecimento da incompetência internacional, há que fazer um distinguo, consoante o momento da sua arguição: se aquela incompetência for arguida antes do proferimento do despacho saneador, pode conhecer-se dela imediatamente ou reservar-se a sua apreciação para aquele despacho (art.° 98.°, 1.9 parte, do CPC); se a incompetência for arguida posteriormente ao despacho saneador, deve conhecer-se logo da arguição (art.° 98.°, 2.9 parte, do CPC). Maneira que, tendo passado o despacho liminar e tendo o réu sido citado, e se este, como é comum, alegar na contestação a incompetência internacional do tribunal, abre-se ao juiz uma alternativa: conhecer imediatamente da excepção ou reservar aquele conhecimento para o despacho saneador. Esta regra deve, porém, ser habilmente entendida: tendo a incompetência sido arguida pelo réu na contestação, o seu conhecimento deve, evidentemente, aguardar a actuação do contraditório, pelo que não pode ocorrer antes da resposta do autor (art.° 3.°, n.° 3, do CPC). Foi, de resto, o que sucedeu no caso do recurso.
Note-se que a alternativa é entre o conhecimento imediato e a reserva para o despacho saneador, pelo que o juiz não pode reservar o conhecimento da incompetência para uma decisão separada do despacho saneador - como sucedeu, no caso, em que a excepção foi conhecida em despacho avulso.
Este regime mostra que, arguida a excepção da incompetência absoluta antes do despacho saneador, não é admissível relegar para a sentença final a sua apreciação: o conhecimento da excepção deve ocorrer, o mais tardar, naquele despacho, regra que, patentemente, visa evitar que o processo atravesse a fase morosa e complexa da instrução em pura perda, i.e., para, a final, se decidir que o tribunal é absolutamente incompetente e, em consequência, se proferir uma decisão de pura forma.
É axiomático que questão da competência do tribunal, seja qual for a sua modalidade, coloca, desde logo, um puro problema de facto relativo aos elementos de conexão relevantes, incumbindo às partes - no caso ao autor - a prova dos respectivos factos. Para se livrar desse ónus, às partes deve, evidentemente, ser facultada a produção das provas - de todas as provas - que, a propósito, propuseram.
A competência absoluta constitui um pressuposto processual absoluto, portanto, um pressuposto cuja falta torna inadmissível qualquer decisão de mérito. A prioridade da apreciação da incompetência absoluta determina que a falta da prova de um facto duplo, i.e., de um facto que é relevante para apreciação quer daquela competência, quer do mérito da causa, implique a incompetência absoluta do tribunal. Do carácter duplo do facto decorre a regra de que as provas propostas pelas partes para a prova do mérito da causa valem igualmente para a questão da competência internacional do tribunal.
Como a nossa lei de processo logo acautela, o regime interno da competência internacional dos tribunais portugueses só é aplicável quando não deva ceder perante instrumentos internacionais e actos de direito europeu, designadamente perante o disposto no Regulamento (CE) n.° 2201/2003, do Conselho de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.° 1347/2000 (art.° 59.°, n.° 1, do CPC). Portanto, se o caso couber no âmbito de aplicação daquele Regulamento, é por este que se afere a competência internacional dos tribunais portugueses, dando-se, assim, corpo ao primado do direito de fonte europeia sobre o direito interno português.
E, no caso, é indubitável, que a situação jurídica objecto do processo se inscreve no âmbito de aplicação do apontado Regulamento, dado que este abrange, quanto ao direito português, desde logo, o divórcio sem consentimento do outro cônjuge, ponto que, aliás, não se controverte no recurso (art.° 1773, n.°s 1 e 2, do Código Civil).
3.3. Critérios de determinação da competência do Regulamento (CE) n.° 2201/2003.
Como resulta do considerado I, o Regulamento (CE) n.° 2201/2003 - doravante designado simplesmente por Regulamento - visa contribuir para criar um espaço de liberdade, segurança e de justiça, no perímetro do qual é garantida a livre circulação das pessoas. Ordenado por essa finalidade, o Regulamento estabelece, v.g., regras reguladoras, nomeadamente, da competência em matéria de dissolução do vínculo matrimonial, que visam garantir a segurança jurídica.
A aferição da competência para a acção de divórcio é realizada, no Regulamento, através da aplicação de vários critérios, que concretizam um ou vários elementos de conexão com a ordem jurídica de um Estado-Membro, sendo seguro que são, todos eles, alternativos entre si, i.e., que não há entre eles qualquer relação de hierarquia, pluralidade de critérios e de competências concorrentes que não deixam de constituir um incentivo ao forum shopping (art.°s 3.°, n.° 1, e 6.°)[4]. Esses critérios ou elementos de conexão objectivos, alternativos e exclusivos, podem sem agrupados do modo seguinte: critérios baseados na residência habitual de ambos os cônjuges ou do cônjuge demandado, concretizadores do princípio actor sequitur forum rei (art.° 3.°, n.° 1, al. a); critérios baseados na residência habitual do cônjuge demandante (art.° 3.°, n.° 1, b); um critério baseado na nacionalidade de ambos os cônjuges ou no domicílio de ambos os cônjuges na Irlanda; se ambos os cônjuges tiverem nacionalidades de dois Estados-Membros, são competentes os tribunais de qualquer desses Estados-Membros, pelo que os cônjuges podem escolher ao tribunais de um deles (art.° 3.°, n.°s 1, b), e 2).
Embora faça expressamente referência aos critérios da residência habitual dos cônjuges e do requerido, o Regulamento reconhece, também expressamente a aplicação da regra do forum actoris, admitindo, sob certas, condições a competência para decidir da dissolução do vínculo matrimonial ao órgão jurisdicional do Estado Membro em cujo território se situa a residência habitual do requerente (art.° 3., n.° 1, a), sexto travessão)[5]. Assim, se o requerente tiver residido no território de um Estado-Membro, pelo menos durante os seis meses imediatamente anteriores à data do pedido, quer seja nacional desse Estado-Membro ou não, os tribunais desse Estado-Membro são os competentes para conhecer do pedido de dissolução do casamento. Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, esta disposição visa preservar os interesses dos cônjuges e responde à finalidade prosseguida pelo Regulamento, dado que este institui regras de competência flexíveis a fim de ter em conta a mobilidade de pessoas e bens e de proteger também os interesses do cônjuge que abandonou o país da residência habitual comum, garantindo a existência de um vínculo efectivo entre o requerente e o Estado-Membro ao qual é atribuída a competência. Esta regra assegura, segundo aquela mesma jurisprudência, um equilíbrio entre a mobilidade das pessoas e a segurança jurídica.
A atribuição de competência internacional aos tribunais de um Estado-Membro pressupõe, pois, que a causa apresenta um ou vários elementos de conexão com a ordem jurídica desse Estado-Membro. Ao caso do recurso releva o elemento de conexão representado pela residência habitual. Em face deste elemento de conexão, há, desde logo uma conclusão que se impõe: a de que um cônjuge que divide a sua vida entre dois Estados-Membros apenas pode ter a sua residência habitual num desses Estados-Membros, pelo que só os tribunais da residência habitual são competentes para decidir do pedido de dissolução do vínculo matrimonial[6].
O Regulamento não contém uma definição do conceito residência habitual, em particular da residência de um cônjuge, nem remete expressamente para o direito interno dos Estados-Membros a determinação do sentido e compreensão desse mesmo conceito, o que vincula a uma interpretação autónoma do conceito, no contexto das disposições do Regulamento e de harmonia com os seus objectivos. As normas do Regulamento podem ser interpretadas, a título prejudicial, pelo Tribunal de Justiça, sendo, portanto, preferível uma interpretação autónoma dos seus termos e reconhecida, relativamente a eles, a jurisprudência do Tribunal de Justiça (art.° 267.°, § 1.°, b), do TFUE).
No contexto da interpretação do Regulamento, o Tribunal de Justiça já declarou que a utilização do adjectivo habitual, utilizado no elemento de conexão, permite concluir, de um aspecto, que a residência deve ter uma certa estabilidade e regularidade e, de outro, que a transferência, por uma pessoa, da sua residência habitual para um Estado-Membro, reflecte a vontade dessa pessoa de aí se fixar, com intenção de lhe conferir um carácter estável, o centro dos seus interesses - interpretação que é corroborada pelo Relatório Explicativo da Convenção Relativa à Competência, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Matrimonial ou “Convenção Bruxellas II”, elaborado por A. Borras - JO, C 221, pág. 27 - que inspirou o texto do Regulamento, no qual se sustenta que na eleição da residência habitual enquanto critério de atribuição de competência em matéria de dissolução do vínculo matrimonial se teve particularmente em conta a definição dada pelo Tribunal de Justiça, noutros domínios, segundo a qual este conceito designava o lugar onde o interessado fixou, com a vontade de lhe conferir um carácter estável, o centro permanente ou habitual dos seus interesses[7].
Maneira que, de harmonia com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a residência habitual - enquanto conceito autonomamente construído, no sentido indicado - é o centro permanente ou habitual onde se situam os interesses de uma pessoa. Como a determinação da residência habitual coloca, essencialmente, uma questão de facto[8], cabe ao tribunal do Estado-Membro verificar se o seu território corresponde ao local onde se situa a residência habitual do requerente, na acepção do Regulamento.
Apesar da autonomia da construção do conceito de residência habitual, a verdade é que aquele que foi encontrado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça não difere, substancialmente, daquele que pode ser deduzido de fontes normativas de direito interno.
Afinal, tudo está em saber o que, neste contexto, se deve entender por residência.
Domicílio e residência coincidem em regra, visto que o domicílio é o lugar onde a pessoa singular tem a sua residência habitual - que não se confunde nem com a residência permanente nem com a residência ocasional (art.° 82, n.°s 1 e 2, do Código Civil).
Podem, porém, não coincidir, ou porque a pessoa tem o seu domicílio necessário num lugar e a residência efectiva noutro ou porque a pessoa tem diversas residências onde vive alternadamente.
As dificuldades de aplicação da regra legal surgem, assim, na determinação do conceito de residência.
A residência supõe uma certa fixação, uma certa permanência num lugar. Assim, não reside numa localidade quem se encontra nela acidentalmente, de passagem. Residência inculca estabilidade.
No nexo de uma pessoa com uma localidade, o domicílio exprime a ligação mais forte: é a residência habitual; a simples residência supõe ainda uma certa fixidez, uma certa demora, a habitação estável e prolongada - mas não excluiu a habitação durante algum tempo noutro lugar, dado que a lei figura, precisamente, o caso de uma pessoa ter mais que uma residência onde viva alternadamente (art.° 82.°, 2^ parte, do Código Civil).
A residência ocasional ou acidental é o laço mais ténue entre uma pessoa e uma localidade, dado que se traduz no facto de a pessoa se encontrar momentaneamente em determinado lugar (art.° 82.°, n° 2, do Código Civil).
Isto mostra a impossibilidade de fixar um conceito rígido de residência. Exige-se, para esta, estabilidade e continuidade. Contudo, a determinação sobre se a habitação num lugar já tem a duração suficiente para constituir residência, deve decidir-se em face de caso concreto, através da verificação de dois requisitos: um requisito material - a morada em certo lugar - um requisito subjectivo - a intenção ou o ânimo de se fixar nesse lugar, de nele permanecer.
A habitação, com alguma duração, em certo lugar pode não configurar residência porque, por exemplo, só circunstâncias acidentais forçam a pessoa a permanecer nessa localidade; ao contrário, a habitação num lugar por período de tempo relativamente curto pode inculcar residência se tudo revela que a pessoa está disposta a fazer desse lugar o centro da sua vida e dos seus interesses.
De tudo isto se conclui que o conceito de residência habitual é um conceito elástico, irremediavelmente necessitado de concretização jurisprudencial, o que torna particularmente difícil encerrá-lo numa definição que seja, a um tempo, suficientemente compreensiva para nada deixar de fora, e tão precisa quanto necessária para evitar quaisquer dúvidas sobre a sua aplicação aos casos concretos da vida. Não é, por isso, de estranhar que muitas vezes as definições se limitem a destacar, por vezes com recurso a neologismos expressivos, a ideia central que o conceito sugere: a da procura de um local que se possa considerar o centro da vida de uma pessoa, o lugar em que ela se encontra socialmente integrada. Se bem vemos, não é substancialmente outro, á luz do Regulamento, o entendimento do Tribunal de Justiça.
Seja como for, por residência habitual deve entender-se, no contexto do Regulamente, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, o local onde a pessoa fixou, com a vontade de lhe conferir um carácter estável, o centro permanente da sua vida. Ou dito doutro modo; o conceito de residência habitual, de harmonia com aquela jurisprudência, caracteriza-se por dois elementos: a vontade do interessado em fixar o centro habitual dos seus interesses no território de um Estado-Membro; uma presença com um grau de estabilidade nesse mesmo território.
Assim, o cônjuge que pretenda invocar o critério de competência regulado no art.° 3.°, n.° 1, a), sexto travessão, do Regulamento, deve necessariamente ter transferido a sua residência para o território do Estado-Membro diferente da sua residência habitual e, portanto, ter manifestado a vontade de estabelecer o centro habitual dos seus interesses nesse Estado-Membro e, por outro, deve demonstrar que a sua presença neste Estado-Membro revela um grau suficiente ou adequado de estabilidade. A dúvida sobre aquela vontade do cônjuge e esta estabilidade, - ou mais exactamente, sobre os factos materiais que, devidamente apreciados, permitem concluir por aquele propósito do autor e pela estabilidade da sua permanência no território do Estado-Membro - é, como se notou já resolvida contra ele, parte onerada com a prova (art.° 342.°, n.° 1, do Código Civil, e 414.° do CPC).
3.4. Concretização.
No caso do recurso, o autor, apelante, alegou logo na petição inicial que desde 2017 tem a sua residência em Portugal e só se desloca a França em negócios, o mesmo é dizer, que reside habitualmente em Portugal - alegação que a apelada controverteu na contestação, contrapondo que o autor tem a sua residência habitual em França, mas que aquele, noutro momento processual, reiterou; por decisão avulsa, o Sr. Juiz de Direito julgou procedente a excepção, por ter concluído da documentação junta (de cujo teor se extrai, sem que se tenham colocado em crise por nenhuma das partes, os elementos a seguir utilizados para fundamentar a presente decisão) facilmente se conclui, em termos da definição de ‘residência habitual', para efeitos da determinação da (in)competência deste Tribunal para o conhecimento da presente acção, que o autor tem a sua residência habitual em França, aí tendo o seu centro de vida e de interesses, profissionais, pessoais, familiares e sociais.
Sublinhou-se já que de harmonia com o conceito - autónomo - de residência habitual que a jurisprudência do Tribunal de Justiça extrai do Regulamento, a residência habitual é o local onde a pessoa fixou, com a vontade de lhe conferir um carácter estável, o centro permanente da sua vida. Aquele conceito é, pois, integrado por um elemento objectivo - a permanência da pessoa, com carácter de estabilidade no território de um Estado-Membro - e por um elemento subjectivo - a disposição a fazer desse lugar o centro da sua vida e dos seus interesses.
Como, com razão, o apelante nota na sua alegação, a decisão impugnada não se pronunciou sobre a vontade do autor em fixar a sua residência em Portugal, i.e., sobre a dimensão subjectiva do conceito de residência habitual, relevante nos termos do Regulamento.
Depois - e abstraindo da circunstância de não ter procedido a individualização ou especificação dos factos dos quais extraiu aquela conclusão - a decisão impugnada assentou nela a partir, apenas, da ponderação da prova documental produzida - muita da qual se mostra inteiramente submetida ao princípio da livre apreciação - não tendo procedido à produção das provas pessoais propostas por ambas as partes.
Os factos alegados pelo apelante relativamente à sua residência habitual em Portugal são, como se observou, factos duplos, dado que relevam quer para apreciação da competência do tribunal, quer para o conhecimento do mérito da causa, pelo que a falta da sua prova, dada a prioridade da apreciação da incompetência absoluta, determina essa incompetência. Ao autor deve, pois - no exercício do seu ineliminável direito à prova - ser assegurada, relativamente aos factos que alegou, na dimensão em que relavam para a decisão da questão da competência absoluta do tribunal, a produção de todas as provas que propôs, designadamente da prova testemunhal; simetricamente, á ré deve também ser garantida a produção das provas que também se propôs produzir, para satisfazer o ónus da contraprova - i.e., dos factos destinados a tornar incertos ou duvidosos aqueles que, a propósito desse objecto, foram articulados pelo autor - que a vincula (art.°s 342.°, n.° 1, e 346.° do Código Civil).
Tendo isto por certo, a derradeira conclusão a tirar é a de que a decisão da matéria de facto é deficiente e que essa deficiência não pode ser ultrapassada pelos elementos constantes do processo - porque não foram produzidas sobre os factos controversos todas as provas, designadamente algumas das propostas pelas partes, embora possam vir a sê-lo - pelo que se justifica que esta Relação actue, oficiosamente, os seus poderes de cassação ou de anulação da decisão da matéria de facto, e devolva o processo à 1.g instância para que proceda à produção daquelas provas e, ulteriormente decida, em face delas, os factos relevantes controvertidos (art.° 662.°, n.° 2, c), do CPC).
Importa, pois, cassar a decisão da matéria de facto, e reenviar o processo à 1.g instância para que produza as provas pessoais propostas por ambas as partes e decida, no despacho saneador - e não em despacho avulso e com indicação discriminada ou individualizada dos factos que julgue provados e não provados - a questão da competência absoluta do tribunal.
As considerações expostas, que impõem a cassação da decisão impugnada, podem sintetizar-se nestas proposições:
- A incompetência absoluta resolve-se numa excepção dilatória nominada de conhecimento oficioso; trata-se, todavia, de uma excepção dilatória imprópria, dado que se limita a impugnar um pressuposto processual positivo - a competência do tribunal - que o autor considera preenchido, razão pela qual não é o o réu que tem de demonstrar que o pressuposto não está preenchido, mas antes o autor que tem que provar que o pressuposto se mostra satisfeito;
- As regras de competência internacional não são, em si mesmas, regras de competência, mas antes normas de recepção, dado que não se destinam a aferir qual o tribunal competente para conhecer do objecto da causa, antes têm por finalidade a definição da jurisdição na qual se determinará, por recurso a verdadeiras normas de competência, qual o tribunal competente para apreciar o litígio;
- O regime interno da competência internacional dos tribunais portugueses só é aplicável quando não deva ceder perante instrumentos internacionais e actos de direito europeu, designadamente perante o disposto no Regulamento (CE) n.° 2201/2003, do Conselho de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.° 1347/2000;
- Embora faça expressamente referência aos critérios da residência habitual dos cônjuges e do requerido, o Regulamento (CE) n.° 2201/2003, reconhece, também expressamente a aplicação da regra do forum actoris, admitindo, sob certas, condições a competência para decidir da dissolução do vínculo matrimonial ao órgão jurisdicional do Estado Membro em cujo território se situa a residência habitual do requerente, pelo que se o requerente tiver residido no território de um Estado-Membro, pelo menos durante os seis meses imediatamente anteriores à data do pedido, quer seja nacional desse Estado-Membro ou não, os tribunais desse Estado-Membro são os competentes para conhecer do seu pedido de dissolução do casamento;
- De harmonia com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a residência habitual - enquanto conceito autonomamente construído - é o centro permanente ou habitual onde se situam os interesses de uma pessoa, que se caracteriza por dois elementos: a vontade do interessado em fixar o centro habitual dos seus interesses no território de um Estado-Membro; uma presença com um grau de estabilidade nesse mesmo território, cabendo ao tribunal do Estado-Membro verificar se o seu território corresponde ao local onde se situa a residência habitual do requerente, na acepção do Regulamento;
- Dada a natureza dupla dos factos relativos à competência internacional, i.e., de factos que são relevantes, simultaneamente, para apreciação quer daquela competência, quer do mérito da causa, as provas propostas pelas partes para a prova do mérito da causa valem igualmente para a questão da competência internacional do tribunal, pelo que ao autor deve - no exercício do seu ineliminável direito à prova - ser assegurada, relativamente aos factos que alegou, na dimensão em que relavam para a decisão da questão da competência absoluta do tribunal, a produção de todas as provas que propôs, designadamente da prova testemunhal;
- Se a questão da competência internacional tiver sido decidida sem a produção das provas pessoais propostas pelas partes, essa decisão é, na dimensão de facto, deficiente, e como tal deficiência não pode ser ultrapassada pelos elementos constantes do processo, a Relação deve actuar, oficiosamente, os seus poderes de cassação ou de anulação da decisão da matéria de facto, e devolver o processo à 1.g instância para que proceda à produção daquelas provas e, ulteriormente decida, em face delas, os factos relevantes controvertidos.
As custas do recurso deverão ser satisfeitas pelo sucumbente: a apelada (art.° 527, n°s 1 e 2, do CPC).
4. Decisão.


Pelos fundamentos expostos, anula-se a decisão da matéria de facto contida na decisão impugnada,
revoga-se esta decisão e determina-se o reenvio do processo para o tribunal da 1.g instância para que proceda à produção às provas pessoais propostas pelas partes e, ulteriormente, se decida, no despacho saneador, a questão da competência absoluta do tribunal.
Custas pela apelada.

2013.01.10





[1] Note-se, porém, que, por força do princípio da auto-suficiência do processo, o tribunal incompetente para se pronunciar sobre o mérito da acção tem competência para se pronunciar sobre a sua competência. Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Introdução ao Processo Civil, Lisboa, 1993, pág. 46.
[2]   Acs. da RE de 20.02.1986, BMJ n.° 356, pág. 456; RP de 05.06.1986, BMJ n.° 358, pág. 606, e da RC de 07.07.1993, CJ, 93, IV, pág. 33.
[3]   Miguel Teixeira de Sousa, Introdução ao Processo Civil, Lisboa, Lex, 2000, págs. 85 e 86.
[4] Ac. da RE de 28.03.2019 (2428/17.8T8FAR.E1).
[5] Ac. do TJ de 13 de Outubro de 2016, Mikolajczyk, C-294/15, EU:C:2016:772, n.° 41.
[6]  Ac. do TJ (3.^ Secção), de 23 de Novembro de 2021, disponível em www.curia.europa.eu.
[7] Ac. do TJ de 22 de Dezembro de 2010, Mercredi, C-497/10, PPU, EU.C:2010, 829, n.°s 44 a 51.
[8] Ac. do TJ de 8 de Junho de 2017, OL, C-111/17, PPU, EU:C:2017:436, n.° 51.