Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
227/16.3T9MBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALCINA DA COSTA RIBEIRO
Descritores: ACÇÃO CÍVEL CONEXA COM A ACÇÃO PENAL;
PRESCRIÇÃO DO DIREITO À INDEMNIZAÇÃO CIVIL;
INVOCAÇÃO JUDICIAL DA PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 10/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE MOIMENTA DA BEIRA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 71.º E SS. DO CPP; ART. 303.º DO CC
Sumário:
Em acção cível conexa com a acção penal, não podendo a prescrição do direito à indemnização civil ser conhecida ex officio (cfr. 303.º do CC), o tribunal só pode pronunciar-se sobre aquela excepção na sentença se o demandado exercer o direito potestativo de a invocar até ao encerramento da discussão da causa.
Decisão Texto Integral:

I. RELATÓRIO

1. Por sentença proferida em 16 de Novembro de 2017, foi o arguido A.:

a) Absolvido da prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº1, alínea a), e nº 2, 4 e 5, do Código Penal;

b) Absolvido pela prática de dois crimes de ameaça agravada previsto e punido pelo artigo 153º, nº 1 e 155º, nº 1, alínea a), do Código Penal;

c) Condenado pela prática de um crime de ofensas à integridade física previsto e punido pelo artigo 143º, nº 1 e 145º, nº1, alínea), por referência ao artigo 132º, nº 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão, substituída por 240 dias de multa, à taxa diária de 7 euros, o que perfaz o montante global de 1 750,00 euros.

d) Condenado pela prática de um crime de detenção de arma proibida previsto e punido pelo artigo 86º. Nº 1, alíneas c) e d), por referência aos artigos 2º, nº 3, alínea p) e ac), 3, nº 2, alínea I) a Lei nº 5/2006, de 23.02. na pena de 250 dias de multa, à taxa diária de 7 euros, o que perfaz o montante global de 1 750,00€.

b) Condenado a pagar ao Centro Hospitalar de B., o valor de 270,59€ acrescido de juros vencidos e vincendos a contar da data da notificação do pedido, sendo a taxa a aplicar de 4% até efectivo e integral pagamento.

c) Condenado a pagar à assistente a quantia de 6 500,00 euros, a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescido de juros de mora, à taxa legal, contados da decisão condenatória até efectivo e integral pagamento.

2. Inconformado com esta condenação, dela recorre o arguido, formulando as seguintes conclusões:

«a) O presente recurso tem como objecto a matéria penal e a matéria civil, pretendendo-se com o mesmo a impugnação de determinados pontos da matéria de facto provada e o reexame da matéria de direito.

b) Atenta a manifesta inexistência e/ou insuficiência de provas que permitissem, com segurança e certeza jurídicas, dar determinados factos como provados, temos para nós que mal andou o tribunal recorrido ao condenar o arguido pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada e no pedido de indemnização civil.

c) No que há nulidade concerne, a sentença recorrida preconiza uma errada interpretação do direito processual aplicável, nomeadamente, à luz das normas constitucionais pertinentes, bem como uma incorrecta aplicação do direito substantivo aos factos dados como provados.

d) O arguido presentes autos vinha acusado entre outros, da prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, n.º 1, alínea a), n.º 2, 4 e 5 do Código Penal.

e) Na douta sentença e sem antes ter comunicado tal facto ao arguido, o tribunal a quo decidiu operar uma alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação e condenar o arguido pela prática, um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo artigo 143º, n.º 1 e 145, n.º 1, alínea a) por referência ao artigo 132º, n.º 2, alínea a) do Código Penal.

f) Para proceder à alteração da qualificação jurídica dos factos, o tribunal a quo, nos termos da lei processual, estava obrigado a comunicar essa alteração ao arguido.

g) Ao não o fazer, violou o disposto no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP.

h) O entendimento do tribunal a quo, para além de ilegal, prejudica gravemente os direitos de defesa do arguido.

i) Nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do CPP, a condenação por factos diversos da acusação sem cumprimento do disposto no artigo 358.º do CPP, acarreta a nulidade da sentença, nulidade essa que expressamente se alega para todos os efeitos legais.

j) Deve a douta sentença ser revogada e substituída por douto acórdão que declare, na parte em que procedeu à alteração da qualificação jurídica dos factos e à condenação do arguido por crime diverso do que constava da acusação, a respectiva nulidade, com as legais consequências.

k) Ao interpretar o artigo 358.º do CPP no sentido de que a alteração da qualificação jurídica da acusação para crime diverso não carece de ser comunicada ao arguido, o tribunal violou o disposto no artigo 32.º, n.º 1, da CRP, o que expressamente se alega, para todos os efeitos legais.

l) A sentença recorrida viola, entre outras normas e princípios legais, o disposto nos artigos 379.º, n.º 1, alínea b), 358.º, n.ºs 1 e 3, 283.º, n.º 3, alínea c), todos os CPP, nos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a), do CP e, ainda, no artigo 32.º, n.º 1, da CRP».

m) Quanto à parte penal, entendemos terem sido incorrectamente julgados os factos vertidos sob matéria de facto provada referida em 16 a 20. e, consequentemente, o ponto 28.

n) Quanto à factualidade vertida 16 a 20, a prova destes factos assentou essencialmente nas declarações da assistente.

o) Na verdade, tirando a assistente e o facto de no dia seguinte a sua vizinha … ter visto aquela com ferimentos, não foram carreados para os autos outros elementos relacionados com este acontecimento.

p) O tribunal recorrido não relevou, como devia, outros elementos essenciais para a formação da convicção.

q) Os factos ocorridos no dia 29 de janeiro de 2019, nas palavras da assistente aconteceram no final do dia, mas em hora que a própria teve dificuldade em concretizar, começou por ser ao final da tarde, estando o tempo lusco fusco, para depois após muita insistência ter sido afinal já com a noite caída, mas sem nuca ser capaz de concretizar ou precisar a hora dos acontecimentos.

r) Não se percebe, mas, a assistente foi ver se tinha correio ao domingo à noite.

s) Enquanto verificava a caixa de correio a assistente foi surpreendida por trás, tendo sido agarrada pelo pescoço, e agredida com socos e pontapés em diferentes partes do corpo, mas não obstante o que estava a acontecer, e apesar de viver num local rodeado de casas vizinhas, todas elas habitadas, a assistente não gritou, nem pediu por ajuda.

t) A assistente, que à data destes factos tinha protecção por teleassistência, em como telemóvel próprio, uma vez terminada a agressão recolheu a casa e não cuidou de pedir ajuda.

u) Foi a vizinha que vendo o estado da assistente, e sem ela pedir, tratou de obter ajuda para a assistente, sendo que esta apenas lhe referia que tinha sido o arguido que lhe tinha feito aquilo na noite do dia anterior.

v) A assistente não justificou ou apresentou qualquer justificação à vizinha para não ter pedido ajuda logo após a ocorrência.

w) A testemunha... indicou a forma como a assistente lhe apareceu, e não pode deixar de merecer relevo o facto de ter sido referido que o sangue não estaria seco (aqui note-se que a agressão terá ocorrido mais de 12 horas antes) e que existiam marcas de arranhões.

x) A assistente não actuou da forma que qualquer pessoa actuaria no seu lugar.

z) Para surpresa e estupefação de a quem quer se conte esta versão dos acontecimentos, a assistente que estava muito maltratada preferiu, como a própria referiu, arrastar-se até à cama e aí permanecer em vez de solicitar ajuda pelo serviço de teleassistência ou por telemóvel.

z) Apenas na manhã do dia seguinte é que a assistente se abeirou da casa da vizinha, mas mesmo aí não pediu ajuda, procurando apenas e só enfatizar o facto de ter sido o arguido a perpetrar os actos que resultaram no estado em que se apresentava.

aa) A vizinha, …, refere, mais de 12 horas após a agressão a existência de feridas ainda abertas, com sangue para o “fresco” pois não se encontrava seco.

bb) Algumas das lesões descritas pela testemunha vizinha, não têm qualquer correspondência com a dinâmica dos acontecimentos descritos pela assistente.

cc) algumas das evidencias de agressão relatadas pela assistente não encontram repercussão e não são corroborados pelo relatório médico legal.

dd) O arguido, é pessoa da terra, conhece perfeitamente o ambiente daquelas ruas, as pessoas que lá vivem, e as suas dinâmicas, tanto mais que foi vizinho delas durante anos, e por isso afigura-se como pouco crível que alguém conhecedor da vivência local, se expusesse ao risco de ser visto a agredir a assistente.

ee) Não é de todo inócuo o testemunho, valorado ainda que com reservas pelo tribunal recorrido, das testemunhas (…), (…) e (…), ao terem afirmado, tal como a assistente o fez, que o arguido teria estado naquela tarde numa prova de motocross, e que no final foi para casa da sua irmã onde lanchou na companhia de entre outros a testemunha (…), indo em seguida, quando se dirigia para casa, fazer uma entrega a pedido da sua irmã, tendo depois seguido sempre na companhia da testemunha … para sua casa.

ff) A testemunha (…) abandonou a viatura que foi estacionada pelo arguido na garagem, tendo em acto continuo cada um recolhido à sua respectiva residência, quando eram cerca de 19:30 ou 20:00 horas.

gg) Pelo que, o arguido estaria ou na companhia desta testemunha ou em casa.

h) Tudo analisado à luz do normal desenrolar das coisas e do seu normal acontecer, não podia o tribunal recorrido deixar de atender a toda esta “anormalidade” e por isso mesmo no mínimo não poderia ter valorado da forma como valorou as declarações da assistente.

ii) Ademais, no que tange à restante prova testemunhal produzida, nenhuma das testemunhas revelou ter conhecimento directo dos factos, motivo pelo qual o depoimento das mesmas não pode valer como prova dos factos.

jj) Assim, ao invés do que entendeu o tribunal recorrido, a assistente não logrou apresentar um testemunho coerente e credível, susceptível de conduzir, por si só, à condenação do arguido, na medida em que não é isento de discrepâncias inexplicáveis.

kk) Do tribunal a quo, não poderá ser dito que tomou a sua decisão de acordo com o princípio da livre apreciação das provas, uma vez que este princípio não tem carácter arbitrário nem se circunscreve a meras impressões criadas no espírito do julgador, estando antes vinculado às regras da experiência e da lógica comum, bem como às provas que não estão subtraídas a esse juízo, sendo por isso imprescindível que este seja motivado, estando ainda sujeito aos princípios estruturantes do processo penal, como o da legalidade das provas e “ in dubio pro reo”.

ll) Tudo motivos pelos quais não podia o tribunal recorrido ter considerado provados os factos referidos em 16 a 20, por referência ao texto da decisão recorrida.

mm) Sem prescindir, no mínimo aceita-se que, no caso concreto, se instalasse a dúvida sobre o seu cometimento perante o julgador.

nn) Sendo que, sempre que sobrem dúvidas acerca da conduta do arguido, não deve, em obediência aos mais elementares princípios do direito penal, ser aquele condenado. - princípio in dúbio pro reo.

oo) No caso concreto, da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados ou descritos, impossibilitam, por sua ausência, um juízo seguro (de direito) de condenação.

pp) Ao ter decidido contra o reo, violou o tribunal a quo o disposto no artigo 127º do código de processo penal e o artigo 32º, n.º 2 da constituição da república portuguesa.

qq) O pedido de indeminização civil da assistente fundou-se na prática de um crime do qual o arguido foi absolvido.

rr) os factos que sustentam a condenação cível do pedido da assistente, porque ocorridos há mais de 15 anos estão prescritos, prescrição essa que se invoca.

ss) Ao ter condenado civilmente o arguido por aqueles factos o tribunal a quo colocou em crise o principio da segurança juridica.

tt) Conforme resulta da douta sentença em crise, existiram dois arcos temporais, cuja referencia não é feita na fundamentação da sentença.

uu) Esta falta de fundamentação é geradora de nulidade, que para todos os legais efeitos e com as devidas consequências se invoca.

vv) Motivos pelos quais o pedido cível da assistente terá de ser julgado improcedente.

ww) No que concerne ao pedido de indeminização formulado pelo (…), este radica, como se depreende do pedido formulado, na prática pelo arguido do crime de um crime originou assistência hospitalar, ora não tendo o recorrente cometido o crime em apreço pelos motivos já aduzidos supra, não estará o arguido obrigado a reparar os prejuízos ou danos emergentes desse comportamento.

xx) Por ter condenado o arguido no pedido de indemnização civil, violou o tribunal o artigo 483º do Código Civil.

yy) Ainda sem prescindir, quanto ao montante fixado a título de pedido de indemnização civil à assistente, não se pode distanciar do desvalor que a própria assistente conferiu aos factos geradores de indemnização.

zz) O valor fixado para compensar os danos não patrimoniais da assistente - €6.500,00 - está muito além daquele que se nos afigura justo e equitativo, por referência aos factos provados no âmbito dos presentes autos.

aaa) Atendendo ao dano que a actuação do arguido seria capaz de causar, bem como às condições económicas deste, a indemnização fixada pelo tribunal deve ser substancialmente reduzida e fixada em quantia não superior a € 2.000,00 (dois mil euros).

bbb) A sentença proferida violou assim o artigo os artigos 483º, 494º e 496º, n.º 3 do Código Civil.

ccc) sem prescindir, no que ao quantitativo de cada dia de multa, fixado em 7 euros, por referência aos critérios subjacentes à sua fixação deverá este montante ser reduzido para 5,50 euros.

ddd) O arguido relativamente ao crime de detenção de arma proibida confirmou-o, por confissão integral e sem reservas, de livre e espontânea vontade, demonstrando um arrependimento sincero por deter na sua posse aquela arma.

eee) Daí que, ao determinar a medida da pena o douto tribunal recorrido, poderia e deveria ter levado em conta a confissão, o arrependimento e vontade manifestada pelo arguido em não voltar a repetir condutas como a aqui em apreço.

fff) Salvo o devido respeito o tribunal recorrido não teve aqueles aspectos em consideração e em consequência violou os normativos correspondentes à determinação da medida da pena nos termos do disposto no artigo 71.º do código penal.

ggg) Isto porque, na determinação concreta da pena deve o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor, do arguido e contra ele, designadamente o modo e execução e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao arguido (grau de ilicitude do facto), a intensidade do dolo, os fins ou motivos que determinaram o cometimento do crime e os sentimentos manifestados as condições pessoais e económicas do agente, a conduta anterior e posterior ao facto.

hhh) Atento o supra, o recorrente não se conforma com a pena de 250 dias de multa que lhe foi aplicada.

iii) Sendo que em nossa modesta opinião, a pena a aplicar ao recorrente deverá ser fixada muito próximo do mínimo legal, por a tal não se oporem razões gerais ou especiais de prevenção, sendo esta pena reflexo da colaboração e confissão efectuada pelo recorrente no que à execução do crime concerne.

jjj) O que a não suceder viola o disposto no artigo 71.º do CP.

kkk) Violando ainda os princípios da proporcionalidade e adequação das penas.

lll) relativamente ao crime de ofensa à integridade física qualificada. o tribunal recorrido não teve em correcta consideração o facto do arguido não ter antecedentes criminais, nem o facto das consequências verificadas na integridade física da assistente terem revestido mediana gravidade, e salvo o devido respeito, entende o arguido recorrente que foram violados os normativos correspondentes à determinação da medida da pena nos termos do disposto no artigo 71.º do código penal.

mmm) Isto porque, na determinação concreta da pena deve o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor, do arguido e contra ele, designadamente o modo e execução e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao arguido (grau de ilicitude do facto), a intensidade do dolo, os fins ou motivos que determinaram o cometimento do crime e os sentimentos manifestados as condições pessoais e económicas do agente, a conduta anterior e posterior ao facto.

nnn) Atento o supra, o recorrente não se conforma com a pena de 1 ano de prisão, substituída por 240 dias de multa que lhe foi aplicada.

ooo) Sendo que em nossa modesta opinião, a pena a aplicar ao recorrente deverá ser fixada em 4 meses de prisão, por a tal não se oporem razões gerais ou especiais de prevenção, devendo esta pena de prisão ser substituída por pena de multa a fixar de acordo com os critérios previstos no artigo 71º do código penal – seguindo-se a interpretação do AUJ 8/2013.

ppp) O que a não suceder viola o disposto no artigo 71.º do CP.

qqq) Violando ainda os princípios da proporcionalidade e adequação das penas».

3. Em resposta ao recurso, a Assistente e a Digna Magistrada do Ministério Público defendem a manutenção da decisão recorrida.

4. Nesta Relação, o Digno Procurador – Geral Adjunto pronunciou-se no sentido do não provimento da nulidade de sentença, por violação do decidido no Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 138/2013.

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre, agora, decidir.

II. QUESTÃO A DECIDIR

- Nulidade da sentença

- Impugnação da decisão sobre a matéria de facto

- Violação do princípio in dubio pro reo

- Medida da pena

- Prescrição do direito à indemnização

III. A DECISÃO RECORRIDA

A primeira instância julgou a matéria de facto como a seguir se transcreve:

«FUNDAMENTAÇÃO

1. DE FACTO

A – Factos provados

Da acusação pública e da discussão da causa, e com relevância para a decisão a proferir, lograram-se provar os seguintes factos:

1) A assistente (…) e o arguido casaram entre si no dia … 1976 e residiram juntos na Rua (…), até ao dia 8 de Julho de 2016, data em que a assistente decidiu sair de casa.

2) A assistente e o arguido têm três filhos em comum, (…), já maiores de idade.

3) No dia 5 de Novembro de 2016, a assistente intentou acção de divórcio que corre termos no Juízo de Família e Menores de Lamego.

4) A relação da assistente e do arguido foi sempre pautada por discussões e, em datas não concretamente apuradas, por diversas vezes, no interior da residência e na presença dos filhos, o arguido acusou-a de ter amantes, apelidando-a de “puta”, “mula”, “vaca”.

5) Em datas não concretamente apuradas, há não menos de 20 anos, e cerca 3 ou 4 vezes por mês, no interior da residência de ambos e na presença dos filhos, o arguido desferiu murros e pontapés em diversas partes do corpo da assistente.

6) Em data que não logramos apurar situada no sexto mês de gravidez da sua filha (…), actualmente com 39 anos de idade, o arguido dirigiu-se à assistente e desferiu-lhe uma bofetada na face.

7) Em data não concretamente apurada mas há não menos de 15 anos, o arguido atirou uma tijela de barro contra a assistente causando-lhe um ferimento no lábio e num dedo da mão direita.

8) Por diversas vezes, há não menos de 20 anos, o arguido fechava a assistente fora de casa.

9) Em datas que não logramos apurar, mas há não menos 20 anos, quando a assistente e o arguido se encontravam a trabalhar no campo, o arguido, mesmo na presença dos restantes trabalhadores agrícolas, desferiu bofetadas na face da assistente, fazendo com que a mesma caísse no chão.

10) Em data que não logramos apurar mas que se situa na altura em que os filhos do casal frequentavam a escola primária, há não menos de 30 anos, portanto, o arguido desferiu pancadas em várias partes do corpo da assistente com um cinto da tropa.

11) Por diversas vezes, há não menos de 20 anos, o arguido cortou ramos de árvores e desferiu pancadas na assistente em diversas partes do corpo, com especial incidência no tronco e pernas.

12) Em data que não logramos apurar, há cerca de 15 anos, quando a assistente trabalhava como cozinheira na (…), o arguido dirigiu-se à assistente no seu local de trabalho ao mesmo tempo que a apelidava de “puta” e lhe dizia que andava a sorrir e a fazer-se aos homens.

13) No dia 04.06.2016, (…) e (…), filhos da assistente e do arguido, foram falar com o pai, à casa do casal, acerca da assistente e este, quando já se encontrava a abandonar a residência, de costas e no espaço exterior, disse-lhes “ainda faço como o (…), dou-vos um tiro que vos fodo a todos”.

14) No dia 09.12.2016, o arguido tinha na sua posse, no interior de um barracão anexo à sua residência, uma arma de alarme ou salva, semiautomática, transformada para funcionar como arma de fogo de calibre 6,35 mm, municiada com 6 munições de calibre 6,35 mm.

15) Junto ao carregador encontravam-se mais 2 munições de calibre 6,35 mm.

16) No dia 29.01.2017, quando a assistente se dirigiu à caixa de correio, no exterior da sua habitação sita na Rua (…), foi surpreendida pelo arguido que lhe desferiu, pelo menos 3 murros na cabeça, na face e no peito.

17) Em consequência dos comportamentos supra descritos, a assistente sofreu dores e hematomas e várias marcas visíveis em diferentes partes do corpo.

18) Em consequência do comportamento do arguido no dia 29.01.2017, a assistente sofreu dores e lesões nomeadamente na face, uma equimose periorbicular arroxeada à direita e no membro superior esquerdo, dor no ombro à mobilização e sequelas de fractura não recente da clavícula esquerda.

19) Tais lesões demandaram um período de 7 dias para a cura, sem afectação da capacidade de trabalho geral e com afectação da capacidade de trabalho profissional (7 dias).

20) Ao actuar da forma descrita em 16., o arguido quis, como conseguiu, maltratar e molestar o corpo e saúde da assistente e causar-lhe dores e lesões do tipo das provocadas.

21) O arguido conhecia bem o laço de parentesco que o liga à assistente.

22) Ao actuar da forma descrita em 4. a 12., repetidamente, o arguido pretendeu atingir o bem-estar psicológico da assistente, fragilizando-a, gerando um ambiente de intimidação e medo, que logrou alcançar.

23) O arguido actuou sempre com a intenção de agredir corporal e verbalmente a assistente, com a intenção de a ofender, humilhar e intimidar, o que conseguiu.

24) Sabia ainda o arguido, que ao praticar algumas das condutas no interior do domicílio comum coarctava as possibilidades de defesa e/ou fuga da assistente e lhe infligia ainda um maior sentimento de vergonha, intranquilidade e vulnerabilidade.

25) O arguido nunca se inibiu de praticar os factos acima descritos no interior da residência comum e na presença dos seus filhos quando os mesmos eram ainda menores de idade.

26) O arguido sabia que não podia deter a arma da classe A e munições de calibre 6,35 mm, por apenas possuir licença válida de uso e porte de arma de caça, e, não obstante isso, detinha-as nas circunstâncias descritas.

27) O arguido actuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, apesar de saber que as suas condutas eram especialmente censuráveis, proibidas e punidas por lei.

28) Por força das condutas descritas em 16., a assistente necessitou de tratamento hospitalar que foi prestado pela demandante (…) e cujo custo total ascendeu ao valor de 270,59 euros.

1) Por força das condutas descritas levadas a cabo pelo arguido, a assistente perdeu o ânimo, o orgulho, o preenchimento intelectual e emocional, sentindo-se envergonhada, humilhada, triste, enxovalhada, desprezada, desrespeitada e sem auxílio.

2) A assistente é tida, pelos seus filhos, como boa mãe e boa esposa, e pela comunidade como mulher honrada, honesta e trabalhadora.

3) O arguido é tido pelos seus pares como pessoa respeitadora e cumpridora.

4) O arguido é manobrador de máquinas agrícolas na (…) e aufere o salário mensal de 700 euros; reside sozinho; completou a 3.ª classe.

5) O arguido não apresenta antecedentes criminais.

B – Factos não provados

a) Nas circunstâncias descritas em 6., o arguido desferiu murros nos olhos e empurrões.

b) Em data não concretamente apurada mas há pelo menos 20 anos, o arguido carregou uma arma caçadeira, apontou-a à assistente e disse que a matava.

c) Nas circunstâncias descritas em 9., o arguido apontou facas ou navalhas de características não apuradas à assistente.

d) As circunstâncias descritas em 12. ocorreram há 12 anos e no contexto das mesmas o arguido desferiu bofetadas, murros e pontapés.

e) Em datas não concretamente apuradas, por diversas vezes, o arguido disse à assistente que a matava.

f) No dia 3 de Julho de 2016, o arguido dirigiu-se à assistente e disse-lhe que a matava.

g) De seguida, começou a dar murros na porta, ao mesmo tempo que a apelidava de “puta do caralho”, “mula”, “vaca”.

h) Ao proferir as frases acima referidas, usando um tom de voz alta, sabia o arguido que tal comportamento era adequado a provocar, como provocou, medo e inquietação na assistente.

i) Ao proferir a frase referida no ponto 13., usando um tom de voz alta, sabia o arguido que tal comportamento era adequado a provocar, como provocou, medo e inquietação nos seus filhos (…).

j) Ao assim proceder, o arguido tinha a intenção de perturbar o sentimento de segurança da assistente e dos seus filhos e afectá-los na sua liberdade.

k) O arguido retém bens comuns do casal que geram rendimentos mormente, a colheita de produção de uvas, com produção de mosto generoso.

l) A assistente vive numa casa sem condições de habitabilidade e dos rendimentos que obtém com trabalhos esporádicos no campo.

*

Motivação

(…).

IV. DO MÉRITO DO RECURSO

1. Nulidade da sentença

Sustenta o recorrente que a sentença é nula, por ter condenando o arguido por crimes diversos dos que vinha acusado, sem lhe ter sido comunicada a alteração não substancial dos factos, ao abrigo do artigo 358º, do Código de Processo Penal, posição secundada pelo Digno Procurador Geral-Adjunto no parecer de fls. 800 a 803.

Apreciando e decidindo

O artigo 379º nº1, do Código de Processo Penal, determina quais as causas de nulidade de sentença, entre as quais consta, na alínea b), a condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358º e 359º.

O primeiro destes preceitos, sob a epígrafe, Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, determina:

«1. Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.

2. Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.

3. O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia».

O artigo 359º, do Código de Processo Penal define o regime da alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, estatuindo:

«1. Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância.

2. A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo.

3. Ressalvam-se do disposto nos números anteriores os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal.

4. Nos casos referidos no número anterior, o presidente concede ao arguido, a requerimento deste, prazo para preparação da defesa não superior a 10 dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário».

Sobre o que deve entender-se por alteração substancial dos factos, o artigo 1º, al. f), do Código de Processo Penal, define-a, como aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis».

A alteração substancial reporta-se à alteração dos factos materiais e concretos que constavam na acusação ou na pronúncia, tendo como efeito, a imputação de um crime diverso ou agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.

A alteração não substancial pressupõe, também, uma modificação dos factos materiais e concretos da acusação ou da pronúncia, mas deles não decorre a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.

Por último, a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia – mantendo-se os factos, altera-se a qualificação jurídico-criminal dos mesmos –segue o regime de comunicação ao arguido prevista no artigo 358º, nº 1, do Código de Processo Penal, por força do nº 3, do mesmo preceito e diploma.

Em qualquer destes casos, o arguido tem o direito a ser ouvido, devendo, por isso, ser-lhe dada a oportunidade efectiva de discutir e tomar posição sobre decisões as alterações de factos, seja ela substancial ou não substancial.

No caso dos autos, em causa está a convolação jurídico-fáctica do crime imputado ao arguido na acusação - violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea a), nº 2, 4 e 5 – no crime de ofensas à integridade física qualificada prevista e punida pelo artigo 143º, nº 1 e 145º, nº1, al. alínea a) por referência ao artigo 132º, nº 2, alínea b) do Código Penal, na pessoa da assistente.

O tribunal, perante os factos que se provaram, em audiência de julgamento, decidiu qualifica-los juridicamente de modo diferente do que constava na acusação, sem que comunicasse ao arguido, esta alteração, nos termos do artigo 358º, nº 1 e 3, do Código de Processo Penal, por entender que não há lugar a qualquer agravamento da sanção aplicável.

O Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão nº 11/2013 citado pelo Digno Procurador-Geral Adjunto, fixou a seguinte jurisprudência:

«A alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artigo 358.º n.º 1 e 3, do CPP».

Muito embora este não seja o caso dos autos, a alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação foi apreciada na sentença, depois de realizada a produção de prova em audiência de julgamento, ainda assim, importa reter, o que a este propósito se escreveu naquele aresto, citando o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/2008, de 25.06.2008:

«O instituto da alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia visa assegurar as garantias de defesa ao arguido. O que a lei pretende é que aquele não venha a ser julgado e condenado por factos diferentes daqueles por que foi acusado ou pronunciado, por factos que lhe não foram dados a conhecer oportunamente, ou seja, venha a ser censurado jurídico -criminalmente com violação do princípio do acusatório, sem que haja tido a possibilidade de adequadamente se defender.

Ao alargar o âmbito de aplicação do instituto à alteração da qualificação jurídica dos factos o legislador visou, também, assegurar as garantias de defesa do arguido, de acordo, aliás, com a Constituição da República, que impõe sejam asseguradas todas as garantias de defesa ao arguido — n.º 1 do artigo 32.º consabido que a defesa do arguido não se basta com o conhecimento dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, sendo necessário àquela o conhecimento das disposições legais com base nas quais o arguido irá ser julgado.

Assim e atenta a ratio do instituto, vem -se entendendo que só nos casos e situações em que as garantias de defesa do arguido — artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República — o exijam (possam estar em causa), está o tribunal obrigado a comunicar ao arguido a alteração da qualificação jurídica e a conceder -lhe prazo para preparação da defesa. Por isso, se considera que a alteração resultante da imputação de um crime simples ou “menos agravado”, quando da acusação ou da pronúncia resultava a atribuição do mesmo crime, mas em forma qualificada ou mais grave, por afastamento do elemento qualificador ou agravador inicialmente imputado, não deve ser comunicada, visto que o arguido ao defender –se do crime qualificado ou mais grave se defendeu, necessariamente, do crime simples ou “menos agravado”, ou seja, defendeu -se em relação a todos os elementos de facto e normativos pelos quais vai ser julgado.

O mesmo sucede quando a alteração resulta na imputação de um crime menos grave do que o da acusação ou da pronúncia em consequência de redução da matéria de facto na sentença, quando esta redução não constituir, obviamente, uma alteração essencial do sentido da ilicitude típica do comportamento do arguido, ou seja, quando não consubstanciar uma alteração substancial dos factos da acusação».

Não é novidade que o Supremo de Tribunal de Justiça, desde há muito que vem defendendo que não é necessária a comunicação ao arguido, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 358º, nº 1 e 3, do Código de Processo Penal, quando a alteração da qualificação jurídica redunda na imputação ao arguido de uma infracção que representa um minus relativamente à da acusação ou da pronúncia. (entre outros, cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.04.1991, in CJ Ano XVI, Tomo II, pág. 17; de 12.11.2003, proc. 1216/03.-3ª SASTJ, nº 75, 93; de 12.09. 2007, www.dgsi.pt.).

No mesmo sentido, pronunciaram-se, entre outros, o Prof. Pinto de Albuquerque (Comentário do Código de Processo Penal", Univ. Católica Editora, 4ª Edição, 2011, a páginas 930) e o Cons. Maia Gonçalves, (Código de Processo Penal anotado”, Almedina, 17ª Edição, 2009, pág. 815).

No caso dos autos, como se disse, o arguido vinha acusado pela prática de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152º nºs 1, a) e 2 do Código Penal e dois crimes de ameaça agravada, por factos que perduraram no tempo, com o último acto de execução em 29 de Janeiro de 2017.

A prova produzida em audiência foi bastante para que o julgador julgasse provado que os factos nºs 4, 5, 10 e 12 e 14 da acusação ocorreram, pelo menos, há 30, 20 e 15 anos.

Por outro lado, julgou não provados os factos nºs 7, 9, 14, 16 e 17 da acusação.

Apreciando a globalidade dos factos provados, o tribunal recorrido definiu dois arcos temporais “estanques”, porque mediados por um longo intervalo de tempo entre eles (o último aconteceu há 15 anos) sem que se lograsse demonstrar alguma ocorrência fáctica, declarando prescritos os primeiros.

Quanto aos factos ocorridos em 2017, qualificou-os juridicamente como um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo artigo 143º, nº 1 e 145º, nº 1, alínea a), por referência ao artigo 132º, nº 2, alínea b), do Código Penal, em vez do crime de violência doméstica.

O crime de ofensa à integridade física qualificada previso e punido pelo artigo 143º, 145º nºs 1 al. b) e 2, por referência à alínea b) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal é punido com pena até 4 anos de prisão, enquanto o crime de violência doméstica é punido com a pena de dois a cinco anos e penas acessórias de proibição de contactos com a vítima e de proibição de uso de porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.

A modificação da qualificação jurídica não resultou da alteração dos factos da acusação, mas de entendimento jurídico-penal diferente, por via da prescrição dos factos nºs 1 a 12 e ausência de prova dos restantes.

Perante a identidade dos factos entre a acusação e a sentença e, constituindo o crime de ofensa à integridade física um minus em relação ao crime de violência doméstica, a alteração da qualificação jurídica não tem de ser comunicada ao arguido, nos termos do artigo 358º citado, pois que ao arguido foram dadas todas as oportunidades de defesa, tendo-as exercido da forma que melhor entendeu.

Sem censura, pois, o decidido pela primeira instância.

Esta interpretação não viola qualquer imposição legal, nomeadamente o artigo 32º, da Constituição da República Portuguesa.

2. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto

(…).

2. Violação do princípio in dubio pro reo

(…).

3. A medida da pena

Dispõe o artigo 40º do Código Penal:

1- A aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

2 – Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

Sobre a finalidade das penas, escreveu-se, entre outros, no Acórdão desta Relação de 7 de Março de 2012:

«Não tendo o propósito de solucionar por via legislativa a questão dogmática dos fins das penas, a disposição contém, no entanto, imposições específicas que devem ser respeitadas; a formulação da norma reveste a «forma plástica» de um programa de política criminal cujo conteúdo e principais proposições cabem ao legislador definir e que, em consequência devem ser respeitadas pelo juiz.

A norma do artigo 40º condensa, assim, em três preposições fundamentais o programa político criminal sobre a função e os fins das penas: protecção dos bens jurídicos e socialização do agente do crime, sendo a culpa o limite da pena mas não o seu fundamento (…)».

«O conceito de prevenção significa protecção de bens jurídicos pela tutela das expectativas comunitárias na manutenção e reforço da validade da norma violada» - Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 227 ss.

«A medida da prevenção, que não pode em nenhuma circunstância ser ultrapassada, está assim, na moldura penal correspondente ao crime.

Na determinação da medida concreta da pena, o tribunal está vinculado, pois, nos termos do artigo 71º, nº 1, a critérios definidos em função de exigências de prevenção, limitadas pela culpa do agente (…)».

«As circunstâncias e critérios do art. 71º, do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau da ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento) ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.

As imposições de prevenção geral devem, pois, ser determinantes na fixação da medida das penas, em função de reafirmação da validade das normas e dos valores que protegem, para fortalecer as bases de coesão comunitária e para aquietação dos sentimentos afectados na perturbação difusa dos pressupostos em que a assente a normalidade da vivência do quotidiano.

Porém, tais valores determinantes têm de ser coordenados, em concordância prática, com outras exigências, quer de prevenção especial de reincidência, quer para confrontar alguma responsabilidade comunitária no reencaminhamento para o direito do agente do facto, reintroduzindo o sentimento de pertença na vivência social e no respeito pela essencialidade dos valores afectados» Acórdão desta Relação de 7 de Março de 2012.

Também o Supremo Tribunal de Justiça, entre outros, o Acórdão de 4 de Junho de 2014, tem vindo a entender que a «defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, e o máximo, que a culpa do agente consente; entre estes limites, satisfazem-se quando possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização.

Daqui decorre que o juiz pode impor qualquer pena que se situe dentro do limite máximo da culpa, isto é, que não ultrapasse a medida da culpa, elegendo em cada caso aquela pena que se afigure mais conveniente, tendo em vista os fins das penas com apelo primordial à tutela necessária dos bens jurídico-penais do caso concreto, face a um facto já verificado, mas com significado prospectivo, correctamente traduzido pela necessidade de tutela da confiança e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada; neste sentido sendo uma razoável forma de expressão afirmar-se como finalidade primária da pena o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime, finalidade que, deste modo, por inteiro se cobre com a ideia de prevenção geral positiva ou de prevenção geral de integração, dando-se assim conteúdo ao exacto princípio da necessidade da pena a que o artigo 18º, nº2, da Constituição da República consagra».

Censura o Recorrente as medidas das penas principais em que foi condenado - um ano de prisão pela prática de um crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo artigo 145º, nº 1, do Código Penal, alínea a), e 250 dias de multa pela prática do crime de detenção de arma proibida previsto e punido pelo artigo 86º, nº 1, alíneas c) e d), por referência aos artigos 2º, nº 3, alínea p) e ac), 3º, nº 2, alínea l) da Lei nº 5/2006, de 23.02.

Para o efeito invoca, a ausência de antecedentes criminais, a mediana gravidade das lesões causadas na assistente e a confissão em relação ao crime de detenção da arma proibida.

Analisados estes fundamentos no contexto das circunstâncias em que praticou o crime e ponderadas a situação económica, social e familiar do Recorrente, podemos concluir que as penas aplicadas pelo Tribunal a quo se mostram ajustadas e adequadas às finalidades da pena em que o arguido foi condenado.

Na verdade:

Como e bem se refere na sentença recorrida, estamos perante uma conduta de ilicitude grave, traduzida, além do mais, na intensidade do dolo, porque directo, no modo de execução dos ilícitos, designadamente o número de agressões e as zonas atingidas (face e rosto), bem como nas lesões provocadas.

Por outro lado, o recorrente detinha armas e munições que integram as diferentes alíneas do preceito incriminador, o que constitui circunstância agravante da ilicitude.

As necessidades de prevenção geral - prementes, não só pela frequência deste tipo de crimes, mas também pela repercussão pública decorrente do local público onde os factos foram praticados – exigem uma punição adequada.

A confissão da detenção de armas e munições assume fraca relevância atenuante.

A ausência de antecedentes criminais, as condições pessoais, familiares e sociais do recorrente – o arguido é pessoa laboral, social e familiarmente inserida – esbate as necessidades de prevenção especial.

Tudo ponderado, as penas de um ano de prisão e 250 dias de multa, mostram-se adequadas e proporcionais às finalidades de prevenção geral e especial exigidas pelos crimes cometidos pelo recorrente, segundo os critérios definidos nos artigos 71º e 40º, do Código Penal acima enunciados, não merecendo a sentença recorrida qualquer censura.

O mesmo se diga em relação ao quantitativo diário da multa, de 7 €.

É certo que o quantitativo diário da pena de multa é fixado em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais, a encontrar dentro de uma moldura abstracta que se situa entre os €5 e os €500 diários (cf. artigo 47º, nº 2, do Código Penal).

Não podemos, contudo, esquecer, como decidiu o Acórdão da Relação Guimarães de 18 de Outubro de 2010 (www.dgsi.pt) que, na fixação do montante da multa se deve ter em consideração, para além do mais, que esta não é uma pena «menor».

«A multa enquanto sanção penal, não pode deixar de ter um efeito preventivo e, portanto, não pode deixar de ter uma natureza de pena ou sofrimento, isto é, e por outras palavras, não pode o condenado na multa deixar de a “sentir na pele” (….) inequivocamente que o legislador de 1995 quis acabar com a difundida (judicial e socialmente) ideia de que a pena de multa de pena só tinha nome, pois que, na realidade, não passaria de uma forma de absolvição, isto é, de irresponsabilização penal do infractor» (Taipa de Carvalho, in Penas no Direito Português após a revisão de 1995, Jornadas de Direito Criminal – Revisão do Código Penal, ed. Centro de Estudos Judiciários, 1998, II V, pág. 24).

O montante diário da multa deve ser fixado em termos de se constituir um sacrifício real para o condenado sem, no entanto, deixar de lhe serem asseguradas as disponibilidades indispensáveis ao suporte das suas necessidades e do respectivo agregado familiar (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/10/97, in CJ, Tomo III, pg. 183). Este montante não deve ser doseado por forma a que tal sanção não represente qualquer sacrifício para o condenado, sob pena de se estar a desacreditar esta pena, os tribunais e a própria justiça, gerando um sentimento de insegurança, de inutilidade e de impunidade - Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 13/7/95, in CJ, Tomo IV, pg. 48 e do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/11/02, in www.dgsi.pt.

No mesmo sentido, sublinha o Acórdão desta Relação de Coimbra de 5 de Abril de 2000 (CJ, 1998, V, pág. 24):

«É indispensável que a aplicação da pena de multa não represente uma forma disfarçada de absolvição ou (…) de uma dispensa ou isenção de pena que se não teve a coragem de proferir, impondo-se pelo contrário, que a aplicação da multa represente em cada caso, uma censura suficiente do facto e simultaneamente uma garantia para a comunidade da validade e vigência da norma violada».

Em suma, na fixação da taxa diária da multa não cabe propriamente atender ao quantitativo que o condenado pode facilmente disponibilizar, mas sim ao quantitativo que só com um efectivo sacrifício patrimonial pode ser satisfeito. A lei, ao prefigurar a hipótese de pagamento da multa em prestações, está justamente a inculcar a ideia de que o quantitativo da multa não tem que se limitar àquilo que o condenado pode imediata e facilmente disponibilizar (cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16/01/02, in www.dgsi.pt.)

Por outro lado, também a Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça expressa entre outros arestos, no Acórdão de 7 de Abril de 2011, (www.dgsi.pt) , vem defendendo que só em casos de manifesto desequilíbrio e desproporcionalidade, haverá a medida que ser alterada em recurso, uma vez que o tribunal a quo fruiu, também, quanto à medida da pena, da imediação e oralidade.

A este propósito, ensina Figueiredo Dias, (Direito Penal Português As consequências jurídicas do crime, pág. 197), que a sindicação da instância recursória deverá reservar-se para as hipóteses em que «tiverem sido violadas regras de experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada», o que, aqui não sucede.

Perante a factualidade apurada – o arguido é manobrador de máquinas agrícolas, auferindo um salário mensal de 700€ e reside sozinho - bem andou o tribunal recorrido em quantificar o montante diário da pena de multa, em 7€.

4. A indemnização civil

4.1. Centro Hospitalar (…)

O recurso da decisão que fixou a indeminização a favor do Centro Hospitalar de … assentava na modificação da matéria de facto impugnada, que, nesta instância não mereceu provimento.

Encontra-se, assim, prejudicado conhecimento desta questão.

4.2. Indemnização concedida a favor da assistente

4.2.1. Da Nulidade

O recorrente aponta à decisão que fixou a indemnização de 6 500€ a favor da assistente o vício da nulidade, por ausência de indicação das razões pelas quais foram considerados os factos prescritos integrantes do crime de violência doméstica na determinação do quantum indemnizatório.

Porém, basta percorrer a sentença recorrida, para se detectarem os fundamentos que sustentaram aquela decisão.

São eles:

«No que concerne ao pedido de indemnização civil e uma vez que não existiu prova que sustentasse a condenação criminal pelo crime de violência doméstica, cumpre chamar aqui à colação o disposto no artigo 377º, nº1, do CPP, e bem assim a jurisprudência do Acórdão do Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/99, mantido pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.04.2015.

O entendimento perfilhado pelo Supremo Tribunal, naquele como neste aresto, vai no sentido de que, soçobrando a prova sobre a comissão do crime pelo acusado, apenas será de sustentar a condenação civil do arguido, se fundada na responsabilidade extra-contratual ou pelo risco (…), sendo este o alcance hermenêutico da expressão “sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se infundado”.

Foi o que atrás fizemos. Pese embora por razões atinentes a institutos de direito penal o arguido não tenha sido condenado pela prática do crime de violência doméstica, a verdade é que tal factualidade resultou demonstrada e essa mesma factualidade sustentou o pedido de indemnização civil formulado. Por outro lado, não tendo sido invocada a prescrição do direito de indemnização (artigo 498º do CC), quanto a tais factos recuados, e não sendo esta de conhecimento oficioso (art. 303º, do CPC) nada obsta á condenação nos termos determinados».

Sendo estas as razões pelas quais o tribunal a quo considerou os factos prescritos na determinação do montante da indemnização, carece de fundamento a nulidade da decisão apontada pelo recorrente.

4.2.2. Prescrição do direito à indemnização

Defende o recorrente que os factos ocorridos há mais de 15 anos não podem servir de base à fixação da indemnização cível porquanto que se encontram prescritos.

Vejamos se assim é.

A extinção do procedimento criminal por via da prescrição não determina a extinção da instância na parte cível, quando o pedido cível já tiver sido formulado na acção penal (cf., entre outros, Simas Santos e Leal Henriques, in Código de Processo Penal Anotado, vol. I, 2008, pág. 232).

Por outro lado, estabelece o artigo 377º, nº 1, do Código de Processo Penal,

«A sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 82.º A». A absolvição do crime não funciona, assim, como causa automática de extinção da obrigação de indemnizar pelos danos peticionados na acção penal, podendo e devendo ser conhecida na sentença final, como fez e bem a primeira instância.

Chegados aqui, importa apreciar a questão de saber se a prescrição do direito à indemnização civil peticionada na acção penal é de conhecimento oficioso como defende o Recorrente.

O artigo 129º, do Código Penal estabelece que a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.

Isto significa que a indemnização decorrente de crime não constitui um efeito da condenação penal em processo penal (como sucedida no Código Penal de 1886) mas está sujeita ao regime jurídico previsto na legislação civil.

A prescrição do direito à indemnização rege-se por normas do direito civil e não do direito penal, que aliás, é omisso em relação ao instituto da prescrição dos direitos de natureza cível.

É, pois, a jurisdição civil que dá a resposta à questão que apreciamos.

Assim decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 29 de Abril de 1999 (SASTJ, nº 30, 86), decidindo:

«1- A extinção do procedimento criminal por qualquer causa, nomeadamente por prescrição, não acarreta a extinção do direito à indemnização.

II – Em acção cível conexa com a acção penal, a prescrição do direito à indemnização está sujeita à regra geral do artigo 303º, do Código Civil, ou seja para ser eficaz tem de ser invocada por aquele a quem aproveita ou pelo seu representante».

A prescrição no direito civil assenta em vários fundamentos, traduzindo um compromisso entre os valores da justiça e da segurança.

«Sem querer na discussão de qual seja exactamente o fundamento da prescrição, que uns vêem na probabilidade de ter sido feito o pagamento, outros na presunção da renúncia do credor, ou na sanção da sua negligência, ou na consolidação das situações de facto, ou na protecção do devedor contra a dificuldade da prova do pagamento ou sossegado quanto a não-exigência da divida, ou na necessidade social da segurança jurídica e certeza dos direitos, ou na de sanear a vida jurídica e certeza dos direitos praticamente caducos, ou na de promover o exercício oportuno dos direitos, pode dizer-se que a prescrição se baseia, mais ou menos, em todas estas considerações, sem que possa afirmar-se só um delas ser decisiva e relevante». Vaz Serra, Prescrição Extintiva e Caducidade, pág. 32.

No direito civil, a prescrição assume natureza substantiva.

A prescrição de direitos (neste caso de um direito à indemnização por factos ilícitos) constitui um meio de defesa do devedor, por excepção peremptória de direito material (v.g. entre outros, Almeida Costa, Direito das Obrigações, pág. 1120). Atribui ao beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo ao exercício do direito prescrito, nos termos do artigo 304º, nº 1, do Código Civil.

Por outro lado, não pode, contudo, ser repetida a prestação realizada espontaneamente em cumprimento de uma obrigação prescrita, ainda quando feita com ignorância da prescrição (artigo 304º, nº 2, do Código Civil).

Por seu turno, dispõe o artigo 303º, do Código Civil:

«O tribunal não pode suprir, de ofício, a prescrição; esta necessita, para ser eficaz, de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita, pelo seu representante ou, tratando-se de incapaz, pelo Ministério Público».

Sobre o devedor, recai, assim, o ónus de invocar a prescrição ou de a ela renunciar.

«O simples decurso do prazo prescricional dá lugar ao aparecimento de um direito potestativo, o de invocar a prescrição, não podendo o tribunal conhecê-la ex officio». Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, volume V, página 146.

Para que a prescrição produza efeitos, é necessária ser invocada pelos interessados a quem aproveita.

A prescrição não opera, pois, automaticamente, logo que completado o prazo, exigindo o artigo 303º Civil, a sua arguição por parte de quem dela beneficia, regra que se aplica ao direito de indemnização com base em ilícito penal, por via do que dispõe o artigo 129º, do Código Penal.

O momento oportuno para a alegação e prova da prescrição é, no processo civil, o da apresentação da respectiva defesa, ou seja, através da respectiva contestação, meio próprio para deduzir os meios de defesa por excepção ou impugnação, que entenda por pertinentes, de acordo com o estatuído no artigo 573º do Código de Processo Civil, onde se lê:

«1 - Toda a defesa deve ser deduzida na contestação, excetuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado.

2- Depois da contestação só podem ser deduzidas as exceções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente.»

Quando o pedido cível emerge da prática de um crime e é deduzido no processo penal respectivo, nos termos do artigo 71º, do Código de Processo Penal, a disciplina processual daquele rege-se pelas regras processuais penais.

O pedido cível e a contestação mantêm autonomia em relação à acusação e defesa penal, como resulta, além do mais, do confronto entre dos artigos 77º e 78º e artigos 283º, e 315º, do mesmo diploma.

O artigo 78º, nº 1 e 2, do Código de Processo Penal estabelece a forma e o prazo para a apresentação da contestação ao pedido de indemnização cível. Deve ser deduzida por artigos, no prazo de 20 dias contados da notificação daquele mesmo pedido.

Por outro lado, a falta de contestação não importa a confissão dos factos alegados pelo demandante (cf. artigo 78º, nº 3, citado).

O Código de Processo Penal não contém norma idêntica à do citado artigo 573º, do Código de Processo Civil, omitindo regulamentação específica acerca do momento próprio para a arguição, por parte dos demandados, das excepções oponíveis ao pedido civil.

Porém, tal omissão não significa que o meio de defesa por excepção possa ser invocado a todo o tempo, em especial no âmbito do recurso.

Com efeito, mesmo que se entenda que à acção cível tramitada em processo penal não se aplica o princípio da concentração da defesa do demandado a que alude o citado artigo 573º, do Código de Processo Civil, por não haver lugar a qualquer lacuna a preencher nos termos artigo 4º, do Código de Processo Penal, a invocação da prescrição do direito de indemnização deve, a nosso ver e salvo melhor opinião, ser invocada em primeira instância, antes do encerramento da discussão em audiência de julgamento.

Com efeito, o direito a invocar a prescrição está, como se viu, na disponibilidade do sujeito a quem aproveita, dependendo a produção dos seus efeitos da alegação pelo interessado no momento e local próprios.

Não podendo a prescrição ser conhecida ex officio pelo Tribunal este só estará habilitado a pronunciar-se sobre a mesma na sentença final, se o demandado exercer o direito potestativo de inovar a prescrição até ao encerramento da discussão da causa.

Neste sentido, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão de 22 de Fevereiro de 2007 no processo nº 4090/2006, in Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça ACSTJ.

«I - O pedido de indemnização fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo (art. 71.° do CPP), mantendo, para além da sua autonomia substancial relativamente à acusação penal, processualmente, a sua individualidade (arts. 71.° e ss.), com pedido e contestação distintos (arts. 77.° e 78.°).

II - Omissa a regulamentação específica acerca do momento próprio para a dedução, pelos demandados, das excepções oponíveis ao pedido, a integração das correspondentes lacunas deve ser encontrada nas «normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal» (art. 4.° do CPP).

III - Nos termos do art. 489.°, n.º 1, do CPC «toda a defesa deve ser deduzida na contestação», norma que se harmoniza com a autonomia substancial e a individualidade adjectiva da acção indemnizatória em processo penal, tanto mais que esta dispõe de contestação própria, cujo paralelismo com a contestação ordinária forçou o legislador a intervir – no n.º 3 do art. 78.° do CPP – para a especialidade de, na acção civil enxertada no processo penal, «a falta de contestação não implicar confissão dos factos».

IV - Constituindo a prescrição civil uma excepção «cuja invocação depende da vontade do interessado» (art. 303.° do CC) – e, por isso, uma «excepção peremptória» (arts. 493.°, n.º 3, e 496.º do CPC) – deverá ela, em processo penal, ser deduzida na contestação (art. 78.°).

V - Embora, considerando a dita omissão, se conceda que a sua invocação não poderá ir para além do encerramento da discussão em audiência de julgamento, em 1.ª instância, pois só assim o tribunal estará habilitado ao seu conhecimento».

No caso dos autos, estava vedado ao tribunal recorrido o conhecimento oficioso da prescrição do direito à indemnização da assistente, por não ter sido invocada pelo recorrente, razão pela qual não merece censura a não declaração da prescrição do direito à indemnização.

E, nem se diga, como parece sugerir o recorrente que a circunstância do tribunal recorrido declarar prescritos os factos ocorridos há mais de 15 anos, constitui uma circunstância superveniente, devendo, por isso, conhecê-la.

Desde logo, porque os factos que fundamentam a prescrição não sobrevieram à acusação deduzida e ao pedido cível formulado pela assistente.

Depois, porque o demandado conhecia aqueles factos, pelos menos desde o momento em que foi notificado da acusação e do pedido cível.

Acresce que, como a prescrição da do direito de indemnização não foi invocada pelo Recorrente na fase dos articulados ou em audiência de julgamento, estamos perante uma questão nova não submetida à apreciação na primeira instância.

Ora;

É sabido que o recurso se prefigura como um meio processual destinado a provocar a reapreciação da sentença por forma a corrigir certas imperfeições - Manuel Simas Santos e Manuel Lela Henriques, Recursos em Processo Penal, pág. 20 – visando, assim, o reexame da decisão proferida dentro dos mesmos pressupostos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento em que a proferiu e não meios para obter decisões novas.

Constitui jurisprudência uniforme dos tribunais superiores que os recursos são meios específicos de impugnação das decisões judiciais, através dos quais visam obter o reexame da matéria apreciada pela decisão recorrida, e não obter decisões - novas - sobre questões não suscitadas perante o tribunal recorrido.

Neste sentido, lê-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Março de 2010 – www.dgsi.pt -:

« (…) Os recursos despistam erros in judicando, ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente, com referência expressa e específica aos meios de prova que impõem decisão diferente, quanto aos pontos de facto concretamente indicados (quanto à questão de facto), ou com referência à regra de direito respeitante à prova, ou à questão controvertida (quanto à questão de direito) que teria sido violada, com indicação do sentido em que foi aplicada e qual o sentido com que devia ter sido aplicada. Assim, o julgamento do recurso não é o da causa, mas sim do concreto recurso e tão só quanto às questões concretamente suscitadas e não quanto a todo o objecto da causa. Não pode, pois, o Tribunal Superior conhecer de questões que não tenham sido colocadas ao Tribunal de que se recorre.»

Também o Tribunal da Relação de Évora de 21 de Abril de 2015, decidiu:

«I- Nos recursos de contra-ordenação, visando o Tribunal da Relação apenas a reapreciação de questões anteriormente colocadas ao Tribunal de primeira instância e não de outras novas, que ali não foram presentes, não pode tal Tribunal da Relação conhecer da questão da atenuação especial da coima, na medida em que a arguida nunca a submeteu à apreciação do Tribunal de primeira instância.

II - O Tribunal da Relação conhece de decisões proferidas em primeira instância e das questões que nela, por terem sido alegadas pelos sujeitos processuais, foram apreciadas (ou foi omitida pronúncia), sem prejuízo, naturalmente, do conhecimento daqueloutras cuja apreciação lhe incumbe ex officio, e não de questões trazidas ex novo no recurso interposto da decisão proferida em primeira instância.»

Não permite, pois, a lei, que nos recursos sejam discutidas questões novas que não foram suficientemente sujeitas ao escrutínio do tribunal de categoria inferior, evitando a surpresa das questões que não puderem ser convenientemente discutidas e apreciadas em momento oportuno.

Vale isto para dizer que, não tendo o Recorrente submetido à apreciação da primeira instância a questão da prescrição do direito à indemnização, como lhe competia, suscitando-a pela primeira vez em sede de recurso, introduz nos autos uma questão nova vedada ao conhecimento desta Relação nos termos sobreditos.

Esta interpretação não viola qualquer preceito constitucional, nomeadamente, os invocados pelo Recorrente.

Donde, também, por este motivo, improcederia este segmento de recurso.

Esta decisão prejudica o conhecimento da impugnação do montante indemnizatório, na medida em que dependia da declaração de prescrição dos factos sob os números 1 a 12.

V. DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido, A.

Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fica em 4UCS.

Coimbra, 10 de Outubro de 2018

Alcina da Costa Ribeiro (relatora)

Fernanda Ventura (adjunta)