Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1481/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. JAIME FERREIRA
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL DOS TRIBUNAIS PORTUGUESES
Data do Acordão: 06/01/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ÁGUEDA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Legislação Nacional: ARTºS 65º, Nº 1, AL. C) ; 101º E 102º, Nº 1, TODOS DO CPC ; ARTºS 5º, 9º E 20º DA CONVENÇÃO DE BRUXELAS . ARTºS 9º E 10º DA CONVENÇÃO DE LUGANO . REGULAMENTO (CE) Nº 44/2001, DE 22/12/2000
Sumário:

I – A incompetência internacional dos tribunais portugueses ( absoluta ) é de conhecimento oficioso, em qualquer estado do processo, enquanto não houver sentença transitada em julgado, mormente se o demandado não carecer, apesar de regularmente citado .
II - Em acções relativas a responsabilidade extracontratual , com seguro de responsabilidade civil em vigor, é internacionalmente competente o foro do segurador e / ou segurado ( do domicílio do requerido ) e/ou o foro do lugar onde o facto danoso ocorreu , entendo-se este como o ligar do evento do qual resultaram os danos ou o lugar do sinistro causador de danos ao lesado .
III – Para apreciar e julgar um acidente com um veículo automóvel ocorrido em Andorra , em que o sinistrado é português, o segurado e a sua seguradora têm domicílio em França, tendo-se verificado danos para aquele em Portugal, devem declarar-se os tribunais portugueses incompetentes em razão da nacionalidade .
IV – A competência internacional designa a fracção do poder jurisdicional atribuída aos tribunais de um Estado no seu conjunto e face aos tribunais estrangeiros, para o julgamento de acções que tenham algum elemento de conexão entre a ordem jurídica nacional e uma ou mais ordens jurídicas estrangeiras a esse Estado.
Decisão Texto Integral:
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Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra :
I
No Tribunal Judicial da Comarca de Águeda, BB, residente no Edifício CC, em Águeda, instaurou contra “ DD. “ , com sede em Rue EE– França, a presente acção declarativa, com processo ordinário, pedindo a condenação da Ré no pagamento de € 156.641,69 , por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo A., acrescida de juros de mora desde a citação .
Muito em resumo, alegou que em Dezembro de 2000 demandou Andorra para praticar ski, mas que no dia 28 desse mês, sofreu um acidente numa pista de neve desse Principado, tendo sido colhido por um trenó, conduzido por FF, residente em França, acidente do qual lhe advieram graves lesões, que descreve, com os consequentes danos, cuja reparação pretende obter com a presente acção, dado que aquela condutora do trenó celebrou com a Ré um contrato de responsabilidade civil, pelo que é esta a responsável na satisfação dessa indemnização .
II
Foi a Ré citada e nenhuma oposição deduziu .
III
Foi então proferido o despacho de fls. 23, pelo qual foi decidido julgar o Tribunal absolutamente incompetente para conhecer do mérito da causa, por violação das regras de competência internacional , com a consequente absolvição da Ré da instância .
IV
Desse despacho interpôs recurso o A., recurso que foi admitido como agravo, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo .

Apresentadas as correspondentes alegações pelo Agravante, nelas formulou as seguintes conclusões :
1ª - O Agravante foi vítima de um acidente no Principado de Andorra, tendo sofrido, em consequência desse acidente, graves prejuízos de ordem patrimonial e moral.
2ª - A entidade responsável pelo ressarcimento dos danos provocados é a Companhia de Seguros Zurich, pois a Sr.ª FF , que chocou violentamente contra o Recorrente, tinha efectuado um seguro de responsabilidade civil através do qual transferiu para a seguradora a responsabilidade por acidentes como o dos autos .
3ª - A alegada incompetência internacional do tribunal português teria de ser invocada por uma das partes pois não é de conhecimento oficioso, já que não consta dos casos de competência exclusiva expressamente referidos no artigo 16º da Convenção de Bruxelas .
4ª - Não sendo, assim, um dos casos de competência exclusiva, de acordo com o preceituado no artigo 19º da Convenção de Bruxelas, interpretado a contrariu , o juiz de um estado contratante está impedido de apreciar oficiosamente a competência do tribunal quando não estejam em causa as competências exclusivas constantes do artigo 16º da referida convenção internacional .
5ª - Do acidente resultaram inúmeros danos que ocorreram em Portugal, como, por exemplo, gastos com medicamentos, médicos, as dores resultantes dos tratamentos e reabilitação e de que padece diariamente, a incapacidade permanente parcial, as perdas salariais, e todo um conjunto de danos não patrimoniais .
6ª - A causa de pedir consiste no facto jurídico concreto de que procede o pedido formulado pelo Agravante, revestindo natureza complexa, dado que envolve não só os elementos ou factores que contribuíram para a eclosão em si, como também os prejuízos daí resultantes, nexo de causalidade, culpa ou risco, e demais factos jurídicos donde brota o dever de indemnizar .
7ª - Fica, assim, preenchido o critério solicitado pelo artº 65º, nº 1, al. c), do CPC, bem como o critério do artº 9º da Convenção de Bruxelas, pois é incontornável que foram praticados em território nacional alguns dos factos que servem de causa de pedir .
8ª - Neste sentido ...
9ª - Também o Regulamento CE nº 44/2001, relativo à competência judiciária ... dispõe, na al. b), do nº 1, do seu artº 9º, ex vi artº 11º, nº 2, que o segurador domiciliado num estado membro da União Europeia pode ser demandado no estado membro em que o requerente tem o seu domicílio .
10ª - Deste modo, foi violada a disposição do artº 65º, nº 1, al. c), do CPC, bem como os artºs 9º e 19º da Convenção de Bruxelas, e, por fim, o Reg. CE nº 44/2001, mais concretamente o seu artº 9º, nº 1, al. b) .
11ª - De todo o modo, mesmo que se entendesse que não estava vedado ao M.mº Juiz “ a quo “ apreciar a questão da competência, sempre entende o agravante que as normas consideradas para determinar a incompetência absoluta em razão da nacionalidade do Tribunal recorrido, deviam ter sido interpretadas no sentido contrário, ou seja, deveria ter-se considerado o sobredito tribunal competente para decidir do mérito da acção .
V
Foi proferido despacho de sustentação, com remissão para o despacho recorrido .
VI
Nesta Relação foi aceite o recurso tal como fora admitido, tendo-se procedido à recolha dos “ vistos “ inerentes ao seu processamento, pelo que nada obsta ao conhecimento do respectivo objecto, o qual se resume à apreciação das duas seguintes questões, face às conclusões formuladas em sede de alegações :
A – Podia ou não podia o Tribunal recorrido conhecer oficiosamente da questão da sua incompetência em razão da nacionalidade ?
B – Análise da decisão que julgou o Tribunal recorrido incompetente, em razão da nacionalidade, para o conhecimento do objecto da acção .

Para a análise dessas duas questões importa ter presente a matéria de facto alegada pelo Agravante em sede de petição inicial, como consta, resumidamente, do relatório inicial deste acórdão, e donde se retira , enquanto matéria alegada, que :
1 – Em Dezembro de 2000 o A. deslocou-se a Andorra para a prática de ski, onde, no dia 28, foi vítima de um acidente que consistiu em ter sido abalroado por um trenó, à saída de uma pista destinada aos praticantes desse desporto na neve .
2 – Esse trenó era, na ocasião, conduzido por FF, residente em França, a qual perdeu o controle do trenó, permitindo o seu despiste e o embate no autor.
3 – Em consequência desse embate o A. sofreu fracturas dos 3º, 4º e 5º metacárpios da mão direita e fez um golpe junto ao olho direito, tendo sido imediatamente assistido ainda em Andorra , no Centre Médic Soldeu – El Tarter .
4 – Dessas lesões resultou-lhe uma incapacidade temporária absoluta durante 30 dias, e uma incapacidade temporária parcial de 50 % durante 15 dias .
5 – Apesar da alta o A. sente dor à mobilização activa das zonas fracturadas, o que o impede de retomar a referida actividade desportiva, além de se encontrar afectado com uma incapacidade parcial permanente de 41,42 % .
6 – Também o autor deixou de auferir vencimento durante os referidos 45 dias, num total de € 436,02 , além de ter suportado despesas várias, que refere .
7- O autor sofreu dores até ter ficado curado, e sofre de desgosto por se sentir limitado na sua actividade pessoal .
8 – A referida condutora do trenó havia celebrado com a Ré um seguro de responsabilidade civil, titulado pela apólice nº 70630300 QP 112212Z .
***
Começando a apreciação do objecto do agravo interposto pela primeira das questões anteriormente sumariadas, importa dizer-se que uma infracção ( processual ) às regras próprias da competência internacional ( salvo caso de mera violação de um pacto privativo de jurisdição ) determina a incompetência absoluta do tribunal, vício este que é de conhecimento oficioso, em qualquer estado do processo, enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa, como bem resulta dos artºs 101º e 102º, nº 1, do CPC .
Daqui que se afigure inexacta a tese defendida pelo Agravante sobre a impossibilidade de conhecimento oficioso desta questão, para o que se fundamenta na Convenção de Bruxelas – seu artº 19º, à contràrio .
É que pela dita Convenção ( Convenção relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, assinada em Bruxelas em 27/09/1968 ) – publicada entre nós no D.R., 1ª série, de 30/10/1991 – visou-se tão só assegurar a simplificação das formalidades a que se encontram subordinados o reconhecimento e a execução recíprocos das decisões judiciais, para garantir-se a execução das decisões nacionais nos demais estados contratantes .
Daí que logo no seu artº 2º, sobre “ competência “, se haja disposto que “ as pessoas domiciliadas no território de um Estado contratante devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado “ .
Dispõe, ainda, o artº 3º que “ as pessoas domiciliadas no território de um Estado contratante só podem ser demandadas perante os tribunais de um outro Estado contratante, por força das regras enunciadas nas secções II a VI do Título II da referida Convenção “ .
Ora, analisando essas secções ( artºs 5º a 18º ), e no que ao presente caso interessa, os artº 5º, nº 3, 8º e 9º dispõem que “ o requerido com domicílio no território de um Estado contratante pode ser demandado num outro Estado contratante em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu o facto danoso. O segurador domiciliado no território de um Estado contratante pode ser demandado, quer perante os tribunais desse Estado, quer noutro Estado contratante, perante o tribunal do lugar em que o tomador de seguro tiver o seu domicílio ... O segurador pode também ser demandado perante o tribunal do lugar onde o facto danoso ocorreu quando se trate de um seguro de responsabilidade civil ... “ .
E como norma supletiva mais abrangente, dispõe o artº 18º dessa dita Convenção que “ para além dos casos em que a competência resulte de outras disposições da presente Convenção, é competente o tribunal de um Estado contratante perante o qual o requerido compareça ... “
Perante as citadas regras sobre competência judiciária, dispõe ainda o artº 20º dessa Convenção que “ quando o requerido domiciliado no território de um Estado contratante for demandado perante um tribunal de outro Estado contratante e não compareça , o juiz declarar-se á oficiosamente incompetente se a sua competência não resultar das disposições da presente Convenção “ .
Daqui resulta que tendo a seguradora demandada e a sua segurada domicílios em França, e tendo sido em Andorra que o acidente em causa ocorreu, e uma vez que a demandada não compareceu à presente demanda, pois nem sequer deduziu oposição, cabia ao juiz do tribunal recorrido conhecer oficiosamente da incompetência em razão da nacionalidade, como sucede, pois que a competência internacional do tribunal em que foi proposta a presente acção não resulta minimamente das citadas disposições, ou outras, da Convenção de Bruxelas .
Donde que não tenha razão o Agravante na invocação que faz do artº 19º da dita Convenção , para sustentar que o conhecimento do apontado vício processual não é de conhecimento oficioso.

Também pela Convenção de Lugano, celebrada em 16/09/1988 ( Convenção relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial ) e publicada entre nós no mesmo D.R. – de 30/10/1991 - , aponta no mesmo sentido, conforme seus artºs 2º ; 3º ; 5º, nº 3; 8º, nºs 1 e 2; 9º ; e 20º, § 1º, cujas redacções são idênticas às citadas da Convenção de Bruxelas .
***
Passando à segunda das questões sumariadas, foi decidido pelo Tribunal recorrido que é incompetente, em razão da nacionalidade, para tramitar e decidir a presente acção, em consequência do que decidiu absolver a Ré da instância .
Escuda-se o Agravante, na sua alegação de recurso e nas conclusões que formulou, para defender a revogação dessa decisão, na alegação de que “ ocorreram inúmeros danos já em Portugal, como , por exemplo, gastos com medicamentos, médicos, as dores resultantes dos tratamentos e reabilitação e de que padece diariamente, a incapacidade permanente parcial, as perdas salariais, e todo um conjunto de danos não patrimoniais “ , com o que, segundo defende, fica preenchido o critério do artº 65º, nº 1, al. c), do CPC, bem como o critério do artº 9º da Convenção de Bruxelas...
Apreciando esta argumentação, afigura-se que o citado artº 9º ( bem como o artº 9º da Convenção de Lugano ) em nada favorece(m) a tese do Agravante, porquanto aí apenas se dispõe que “ o segurador pode também ser demandado perante o tribunal do lugar onde o facto danoso ocorreu, quando se trate de um seguro de responsabilidade civil ... “, tendo de se entender por “ facto danoso “ o evento do qual resultaram os danos ( o facto que causou os danos ) que conduzem á responsabilidade civil em causa, isto é, o lugar do sinistro causador de danos ao lesado .
Como o sinistro em causa ocorreu em Andorra, é manifesto que a seguradora-ré também pode ser demandada em Andorra, mas não em Portugal .
Mas já a Convenção de Lugano, no seu artº 10º, admite que “ em matéria de seguros de responsabilidade civil, o segurador pode também ser chamado perante a tribunal onde for proposta a acção do lesado contra o segurado, desde que a lei desse tribunal assim o permita, aplicando-se também o disposto nos artºs 7º, 8º e 9º no caso de acção intentada pelo lesado directamente contra o segurador, sempre que tal acção directa seja possível ".
Afigura-se, porém, que este regime não tem aplicação ao presente caso, apesar de o aqui Agravante poder demandar directamente a seguradora da pessoa causadora do sinistro, já que estamos perante uma situação de seguro de responsabilidade civil automóvel obrigatório, caso em que a lei do Estado Português permite a demanda apenas do segurador – artº 29º, nº 1, al. a), do DL 522/85, de 31/12 , diploma que instituiu a obrigação de segurar para todas as pessoas civilmente responsáveis pela reparação de danos decorrentes de lesões causadas a terceiros por um veículo terrestre a motor ( e um trenó é um veículo terrestre a motor ), para que esses veículos possam circular .
É que no caso presente a Ré não podia ser demandada em Portugal ao abrigo dos artºs 7º, 8º e 9º da citada Convenção de Lugano, como resulta dessas mesmas disposições, uma vez que a Ré e a sua segurada têm os seus domicílios em França e o acidente ocorreu em Andorra .
Logo, por força das referidas Convenções não é competente internacionalmente o Tribunal recorrido para apreciar esta acção .

Mas se recorrermos ao disposto no Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho, de 22/12/2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, somos levados ás mesmas conclusões .
Com efeito, visando-se combater, com esse regulamento, certas disparidades das regras nacionais em matéria de competência judicial e de reconhecimento de decisões judiciais, e tendo-se já em conta as citadas Convenções, por forma a conseguirem-se regras comuns nessa matéria, sempre que o requerido esteja domiciliado num dos Estados-Membros, criaram-se regras de competência de elevado grau de certeza jurídica para se facilitar o reconhecimento e a execução de decisões judiciais proferidas em outro Estado-Membro vinculado por esse dito regulamento.
Mas tais regras foram articuladas em torno do princípio de que em geral a conpetência tem por base o domicílio do requerido e que tal competência deve estar sempre disponível, excepto em casos bem determinados em que a matéria em litígio assim o justifique .
Mas analisando essas regras, elas em pouco diferem das das citadas Convenções.
É o que bem resulta do disposto nos seus artºs 2º ; 3º, nº 1; 5º ; 6º; 9º ; 10º e 11º .
Com essas regras em nada ficam afectadas as citadas Convenções, pelo que se mantém tudo quanto já se expôs sobre o caso em apreço, como bem resulta dos citados artºs 2º e 5º, nº 3, o que em nada é afectado pelo disposto no artº 9º desse regulamento, preceito que na sua al. a) mantém vigorante o princípio do domicílio do segurador como factor determinante da competência dos tribunais dos Estados-Membros, salvo no que respeita às acções intentadas pelo tomador de seguro, segurado ou beneficiários, casos em que já se aceita a competência internacional dos tribunais do lugar em que o requerente tiver o seu domicílio ( o que não é o caso presente ) .
Como excepção a tal princípio e no que ao caso importa, mantém-se apenas o artº 10º - o segurador pode também ser demandado perante o tribunal do lugar onde o facto danoso ocorreu quando se trate de um seguro de responsabilidade civil ou de um seguro que tenha por objecto bens imóveis .

E dispondo o artº 61º do C.P.C. que “ os tribunais portugueses têm competência internacional quando se verifique alguma das circunstâncias mencionadas no artº 65º “, serão tais disposições bastantes para atribuir a citada competência a um qualquer tribunal nacional para apreciar questões de âmbito internacional ?
Atente-se, desde logo, que haverá sempre de se atender ao que está estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais antes de atender ao disposto na lei ordinária nacional , conforme resulta da hierarquia no sistema de fontes de direito - as normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português, assim como as normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte vigoram directamente na ordem interna, desde que tal se encontre estabelecido nos respectivos tratados constitutivos ( artº 8º, nºs 2 e 3, da Constituição da Republica Portuguesa ) , já que se trata de normas infra-constitucionais mas supra-ordinárias , relativamente às quais o direito ordinário interno não poderá contrariar o DIP vigente no ordem interna - veja-se a hierarquia relativa à publicidade dos actos legislativos, constante do artº 119º da Constituição da República Portuguesa .
Daí a recente alteração introduzida na redacção do nº 1 do artº 65º do CPC, segundo a qual “ sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais, a competência internacional dos tribunais portugueses depende da verificação de alguma das seguintes circunstâncias : ... “ .
De entre essas circunstâncias e apenas com relevo para a apreciação em curso, dispõe a alínea c) desse nº 1 do artº 65º, que “ ( a competência internacional dos tribunais portugueses depende da verificação de) ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção, ou algum dos factos que a integram “ .
E é precisamente a este preceito que o Agravante alude para fundamentar o seu pedido de revogação da decisão recorrida, justificando tal pretensão com a alegação e conclusão de que “ ocorreram inúmeros danos já em Portugal, como , por exemplo, gastos com medicamentos, médicos, as dores resultantes dos tratamentos e reabilitação e de que padece diariamente, a incapacidade permanente parcial, as perdas salariais, e todo um conjunto de danos não patrimoniais “ , com o que, segundo defende, fica preenchido o critério do artº 65º, nº 1, al. c), do CPC ...
E cita alguma jurisprudência em abono da sua tese, sobre a qual também não pode deixar-se de reflectir, como se impõe que se faça, dada a manifesta complexidade do assunto e a notória dificuldade de interpretação desse dispositivo .
Já fizemos referência a que as convenções citadas ( de Bruxelas e de Lugano ) visaram, além do mais, determinar a competência dos tribunais dos Estados contratantes na ordem internacional, com vista a facilitar o reconhecimento e instituir um processo rápido que garanta a execução das decisões ... judiciais, para, desse modo, se fortalecer a protecção jurídica das pessoas neles residentes .
Também as normas de direito interno nacional relativas à competência internacional dos tribunais portugueses não podem deixar de ter em conta o seu efeito prático internacional, sob pena de se tornarem inócuas ou irrelevantes internacionalmente .
Daí que tais normas tenham necessariamente de respeitar o constante das citadas Convenções, sob pena, se assim não acontecer, de as decisões dos tribunais nacionais não serem reconhecidas internacionalmente e não lograrem tornar-se exequíveis externamente , se assim for necessário .
Ora, ponderando tudo quanto de acaba de expor, afigura-se que a interpretação a dar à citada al. c) do nº 1 do artº 65º do CPC não pode deixar de ter em conta o citado direito internacional e a finalidade do mesmo, tendo de o acatar e de se conformar ao dito .
Daí que se afigure abusiva a interpretação que o Agravante faz dessa norma, embora alicerçada em alguma jurisprudência, que cita e a que nos referiremos mais adiante .
Afigura-se-nos que a citada alínea embora tenha aplicação nos casos de “ causa de pedir complexa “, constituída por uma pluralidade de actos ou factos jurídicos, como sucede nas acções emergentes de acidentes de viação e nas acções em que se abordem questões de responsabilidade civil extracontratual, não pode deixar de ser entendida nos termos em que o faz o Prof. Anselmo de Castro ( in Direito Processual Civil Declaratório, vol. II, pg. 26 a 29 ), isto é, “ a finalidade da lei é impedir a denegação da competência dos nossos tribunais sempre que um só dos factos, por mínimo que seja, tenha ocorrido em território estrangeiro, nos casos de o réu não ter domicílio ou residência no nosso país “ . É o chamado princípio da causalidade .
Por outras palavras, a circunstância de ter sido praticado fora de território português algum dos factos que integram uma causa de pedir complexa, como pode suceder nos casos de acidentes de viação ( por exemplo a concretização dos danos no lesado ) , não é, por si só, motivo suficiente para que os tribunais nacionais deixem de ter competência internacional para apreciar uma dada questão com ligação à ordem jurídica interna .
Mas esta circunstância não pode ser entendida fora das normas de direito internacional citadas, designadamente os artºs 2º; 5º, nº 3; 8º e 9º da Convenção de Bruxelas e artºs 2º ; 3º ; 5º, nº 3; 8º, nºs 1 e 2; 9º ; e 20º, § 1º, da Convenção de Lugano .
E já vimos que tais normas apontam apenas para os critérios do domicílio dos demandados e do lugar em que ocorreu o facto danoso ( este na interpretação que deixámos exposta ) , no que ao caso interessa .
O mesmo é dizer que não basta alegar-se um qualquer facto, por mais simples que seja , ocorrido em território português, como causa de pedir, para, sem mais, se poder atribuir competência internacional aos tribunais portugueses na apreciação e julgamento de uma dada causa .
Não nos podemos esquecer que a competência internacional designa a fracção do poder jurisdicional atribuída aos tribunais de um dado Estado no seu conjunto, em face dos tribunais estrangeiros, para o julgamento de acções que tenham algum elemento de conexão entre a ordem jurídica nacional e uma ou mais ordem(ens) jurídica(s) estrangeira(s) a esse Estado .
Ou, por outras palavras, “ trata-se, no fundo, de definir a jurisdição dos diferentes núcleos de tribunais dentro dos limites territoriais de cada Estado “ – vejam-se A. Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in “ Manual de Processo Civil “ pg. 188 .
Pense-se, por exemplo, em acidentes ocorrido na Índia ( onde o trânsito é feito pela esquerda ), no Cazaquistão, no Lesoto, no Brasil ... , com um cidadão português, onde alugou uma viatura sem condutor, e no qual foi também interveniente um cidadão desses países ou mesmo de um outro estado estrangeiro, com veículo seguro em companhia local ou estrangeira relativamente ao Estado Português.
O cidadão português regressou ao seu país e é aqui que acaba os tratamentos e lhe advêm danos emergentes das lesões e incapacidades provocadas no acidente .
Será que se pode pensar na competência internacional dos tribunais portugueses para decidir uma acção dessa natureza a propor contra tais cidadãos ou respectivas seguradoras ?
E, já agora, que leis se aplicariam à resolução da contenda ?
Mas mesmo ficando por mais perto, entre os Estados contratantes das referidas convenções ( países da Comunidade Europeia e Estados da EFTA ), como tornar exequível uma decisão dos tribunais nacionais que não respeite as citadas regras de competência internacional, como sucederia no caso presente, pois que a demanda da Ré nos tribunais portugueses viola essas apontadas regras ?
Afigura-se, pois, que é evidente a incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecer da presente causa, apesar de parte dos danos advindos para o A. se haverem registado em Portugal, devendo a Ré ser demandada em Andorra ou em França , a tal nada obstando o antes exposto .
Mas já seriam internacionalmente competentes os tribunais nacionais para um acidente ocorrido em Portugal ou em que a Ré aqui estivesse domiciliada, mesmo que algum dos factos que integram a causa de pedir ( os danos emergentes ) tivesse ocorrido fora do país .

Passemos, agora, à análise da jurisprudência conhecida sobre esta matéria :
Começando pelo Assento nº 6/94, de 17/02/94, afigura-se que em nada colidimos com o dito, já que nele se tem em conta a celebração de um contrato de seguro celebrado em Portugal, no âmbito de uma causa de pedir complexa, para se concluir pela competência internacional do foro português, o que em nada prejudica o que deixámos exposto .
Mas não se deixa de “ respigar “ uma passagem desse aresto, da qual consta que “ o direito não deve ser visto ou pensado abstractamente... O direito não é campo de diletantismo ou de análises puramente abstractas, ... , tem de ser, no âmbito jurisprudencial, pensamento ao serviço da vida, o que vale por dizer que, na sua aplicação prática, não pode deixar de atender às situações reais, concretas, perante as quais o tribunal se encontra “ .

Daqui resulta a nossa discordância em relação a vários acórdãos conhecidos e que aparentemente defenderam tese oposta à que se deixa exposta, por, no nosso muito modesto entendimento, não se dever seguir essa corrente jurisprudencial .
É, por exemplo, o que sucede com o Ac. Rel. Co. de 23/10/90, in C. J. ano XV, tomo IV, pg. 83, embora neste caso se aceite a tese aí defendida uma vez que o segurado-demandado também residia em Portugal ; com o Ac. Rel. Co. de 20/04/93, in C. J. ano XVIII, tomo II, pg. 48 , embora neste caso também se aceite a solução defendida, dado que a seguradora-demandada tinha a sua sede em Portugal e o contrato de seguro aqui fora acordado ; com o Ac. STJ de 23/09/97, in C.J. STJ ano V, tomo III, pg. 28; com o Ac. da R.P. de 28/9/1998, C.J. ano XXIII, tomo IV, pg. 194 .

Em abono da nossa tese citamos, afigura-se-nos não abusivamente, Miguel Teixeira de Sousa, in “ A Competência Declarativa dos Tribunais Comuns “, ed. LEX 1994, pg. 45 e segs. , onde refere : « Para que haja necessidade de aferir a competência internacional dos tribunais de um certo Estado é indispensável que se verifique um de dois factores : - que a conexão com a ordem jurídica nacional seja estabelecida através de um elemento que não é considerado relevante por nenhuma das normas da competência territorial e que, portanto, não possa ser atribuída competência aos tribunais de um certo Estado utilizando exclusivamente as regras sobre a competência territorial dos seus tribunais ; ou que o Estado do foro esteja vinculado, por convenção internacional, a certas regras de competência internacional não coincidentes com as que definem a competência territorial dos seus tribunais . Isto é, só importa aferir a competência internacional dos tribunais portugueses quando da aplicação das regras da competência interna não resulta a atribuição de competência a um tribunal português ou quando o Estado português está obrigado, por instrumento internacional, a não aplicar o regime sobre a competência internacional fixado pelo direito nacional“.
A pg. 67 da mesma obra, refere-se que “ no seu específico âmbito de aplicação, a Convenção de Bruxelas é uma lei especial perante as normas reguladoras da competência internacional previstas nos artºs 65º ; 65º-A ; 899º e 1094º a 1102º ( do CPC ) . Assim, sempre que o caso concreto cabe no âmbito de aplicação da Convenção de Bruxelas, as normas desta Convenção prevalecem sobre aquela regulamentação geral “ .
Ainda a pg. 70 : “ A Convenção de Bruxelas só é aplicável a questões internacionais que devam ser resolvidas nos tribunais de um dos Estados comunitários. Todavia, o carácter internacional do litígio depende, para essa finalidade, de vários factores, nomeadamente dos seguintes : - quando, ... , são competentes os tribunais do domicílio do réu, a questão é internacional quando as partes são domiciliadas em diferentes Estados comunitários ; - se o elemento de conexão determinativo da competência não é o domicílio do demandado ( artºs 5º a 18º) , a questão é internacional quando o elemento de conexão estabelece a competência dos tribunais de um Estado que não é o do domicílio do demandado ... Se o réu tem domicílio num Estado comunitário, deve ser demandado, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais do Estado do seu domicílio ( artº 2º C Brux. ) , só podendo ser demandado noutros tribunais nos casos em que a Convenção de Bruxelas aceita outros elementos de conexão como determinativos da competência – princípio actor sequitur forum rei “.
Donde, prossegue o autor citado, a pg. 72, que “ quanto às acções relativas a matéria extracontratual, a parte pode ser demandada perante o tribunal do lugar onde ocorreu o facto danoso ( artº 5º, nº 3, C. Brux. ).
E acrescenta o autor que “se o lugar desse facto não coincidir com o do dano, a acção pode ser instaurada no tribunal deste último “, mas sem indicar qual o apoio legal para tal afirmação, o qual não resulta da citada Convenção, pelo que não se pode aceitar tal conclusão, afigura-se-nos .
No mesmo local e pg. 72/73, o citado autor continua : “ o segurador domiciliado num Estado contratante pode ser demandado nos tribunais do Estado do seu domícilio, no tribunal do lugar em que o tomador do seguro tiver o seu domicílio ou, tratando-se de um co-segurador, perante o tribunal do Estado onde tiver sido instaurada a acção contra o principal segurador ( artº 8º, §1º, C. Brux. ); o segurador pode ser demandado perante o tribunal do lugar onde ocorreu o facto danoso., se o seguro for de responsabilidade civil ou respeitar a um imóvel ( artº 9º C. Brux. ) “ – afirmação esta última que contradiz claramente aquela anterior de que se o lugar do facto danoso não coincidir com o do dano, a acção pode ser instaurada no tribunal deste último, ou, pelo menos, a impor sérias cautelas na aplicação deste citado critério, que não pode ir contra aqueles anteriores critérios convencionais internacionais respeitantes à demanda do segurador .

Ainda em apoio da tese por nós defendida pode ver-se o Ac. da Rel. Co. de 19/12/2000, proferido no Rec. Agravo nº 2747/00, no qual também se defende que sobre as regras de competência internacional constantes do CPC prevalecem as normas constantes das convenções internacionais regularmente ratificadas e publicadas no jornal oficial, como sucede com as Convenções de Bruxelas e de Lugano ( a vigorarem na nossa ordem interna desde 1/07/92 e que se orientam pela protecção dos interesses do demandado ... ) .
Donde, escreve-se nesse acórdão, que “ o âmbito de aplicação das regras sobre a competência internacional constantes do nosso CPC está negativamente delimitado por tais convenções “ .
O que melhor se pode entender face à alteração legislativa efectuada no artº 65º do CPC, pelo DL nº 38/2003, de 8/3, da qual resulta muito claramente o reconhecimento da prevalência do disposto em tratados, convenções e regulamentos comunitários sobre o disposto nesse mesmo preceito .
E escreve-se ainda neste último acórdão, a propósito da interpretação a ser dada ao artº 5º, nº 3, da C. Brux.. (segundo o qual o demandado com domicílio no território de um dos Estados contratantes pode ser demandado no tribunal doutro Estado contratante no qual se situa o lugar onde ocorreu o facto danoso em matéria extracontratual ) que “ facto danoso deverá ser interpretado no sentido do facto também pressuposto da responsabilidade civil extracontratual, aliás o seu primeiro pressuposto, entendido este como o elemento básico da responsabilidade delitual, como o facto voluntário, ou seja, o facto dominável ou controlável pela vontade humana, a conduta do agente causadora do dano “ , sendo este mesmo facto também o determinante da competência territorial na ordem interna nacional , relativamente a acções destinadas a efectivar a responsabilidade civil baseada em facto ilícito ( o chamado forum delicti comissi ) – conforme artº 74º, nº 2, do CPC .
Donde se impor, no caso presente, a conclusão de ser correcta a decisão recorrida, sendo de manter a declaração oficiosa de incompetência internacional dos tribunais portugueses para o conhecimento da presente acção, assim se entendendo e decidindo pelo não provimento do agravo deduzido .
VII
Decisão :
Face ao exposto, acorda-se em negar provimento ao agravo interposto, confirmando-se a decisão recorrida, a declarar a incompetência absoluta dos tribunais portugueses, por razões de ordem internacional, para conhecerem do objecto da causa .

Custas pelo Agravante .
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Tribunal da Relação de Coimbra, em / /