Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
75/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: JAIME FERREIRA
Descritores: VENDA JUDICIAL
IMÓVEL HIPOTECADO
CADUCIDADE
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
REGISTO DA HIPOTECA
Data do Acordão: 03/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COVILHÃ - 2 º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 819º E 824º, Nº 2, DO C. CIV.; E 907º DO CPC.
Sumário: I – Com a realização de uma penhora sobre um imóvel ficam transferidos para o tribunal os poderes de gozo que integram o direito do executado sobre esse bem, com a correspondente transferência de posse para o depositário e a ineficácia relativa dos actos dispositivos ou de oneração do direito subsequentes, os quais, a sucederem, são ineficazes em relação à execução .
II – Embora tais actos não sejam actos nulos, mas apenas relativamente ineficazes, eles conduzem à caducidade do direito do terceiro que tiver contratado com o executado, em caso de na execução ocorrer a transmissão do direito do executado, nos termos do artº 819º do C. Civ. .

III - O artº 819º do C. Civ., na redacção introduzida pelo D.L. nº 38/2003, de 8/3, veio tornar expressamente ineficazes em relação à execução não só os actos de disposição e de oneração, mas também os arrendamentos dos bens penhorados .

IV – O legislador, com esta referida alteração legislativa, mais não pretendeu do que consagrar na lei positiva a orientação jurisprudencial do STJ que já defendia que a venda judicial, em processo executivo, de fracção hipotecada, faz caducar o seu arrendamento posterior ao registo da hipoteca, por na expressão “direitos reais” mencionada no artº 824º, nº 2, do C. Civ., se dever incluir, por analogia, o arrendamento.

V – Devem ser considerados como caducados os contratos de arrendamento e de subarrendamento de imóvel que sejam contratados depois do registo de hipoteca sobre esse bem, em caso de venda judicial em acção executiva instaurada pelo titular desse tipo de garantia real .

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra :
I
No Tribunal Judicial da Comarca da Covilhã, a A..., com sede na Av. João XXI, nº 63, em Lisboa, instaurou contra a sociedade “B...”, com sede no sítio da Califórnia, km 175 da E.N. nº 230, Covilhã ; e contra C..., residente no Bairro da Biquinha, Covilhã, a presente acção declarativa, com processo ordinário, pedindo a condenação dos R.R. a reconhecer a A. como dona do imóvel identificado no artigo 1º da petição e bem assim a entregá-lo à A. livre e devoluto ; pedindo a condenação dos R.R. a pagar à A. a indemnização de Esc. 42.893.832$00, por danos causados até 30/06/2000 e, ainda, uma indemnização calculada a contar dessa data, na importância correspondente à remuneração do capital investido na aquisição do imóvel, às taxas praticadas pela autora nos empréstimos para habitação própria, até efectiva entrega do imóvel e a liquidar em execução de sentença, e à taxa de juro legal a contar da entrega do imóvel, sobre o montante indemnizatório fixado, até efectivo pagamento; ou ...
Para tanto e muito em resumo, alegou a A. que é dona do prédio urbano destinado à indústria têxtil, sito na Estrada Nacional nº 230, no lugar da Califórnia, freguesia de Conceição, concelho da Covilhã, descrito na Conservatória do Registo Predial da Covilhã sob o nº 34632, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo nº 1341 .
Que a A. adquiriu esse imóvel em arrematação em hasta pública havida em processo de execução fiscal, no dia 25/03/1992, por Esc. 40.500.000$00, no qual eram executados D... e mulher E... .
Que após essa aquisição a A. tentou entrar na posse do imóvel, mas não o conseguiu fazer por estar ocupado por F..., que se dizia arrendatário do prédio aos anteriores proprietários, conforme contrato de arrendamento de 25/02/1984, constante de documento particular, destinando-se o prédio a todos os ramos de negócio, designadamente a laboratórios de fotografia, discoteca, confecções e a oficinas de máquinas .
Que o referido F... não exerceu qualquer actividade no prédio nos anos de 1984 e 1985, mantendo-se este na posse de D..., sendo falso que tenham sido pagas rendas por esse dito arrendamento .
Que na data do referido contrato o valor de mercado para a renda mensal do prédio era, no mínimo, de Esc. 53.333$00 .
Que em 24/11/1986 os antigos proprietários e o referido F... celebraram um novo contrato de arrendamento, por escritura pública, relativamente ao referido prédio, pelo prazo de 5 anos, com início em 1/03/1984 e pela renda mensal de Esc. 20.000$00, tendo sida dada quitação das rendas até 20/02/1989, destinando-se o local arrendado a fins fabris, com possibilidade de sublocação .
Que por escritura pública de 21/01/1987, o referido F... subarrendou o R/C desse imóvel a G... e a H..., para fins fabris, sendo o valor da renda de Esc. 30.000$00/mês .
Que nunca antes fora referido qualquer arrendamento do imóvel à A., credora hipotecária do mesmo, e sobre o qual registou uma penhora .
Que por escritura de 24/01/1989, F... trespassou a G... o estabelecimento instalado no referido prédio, após o que este passou a ocupar todo o imóvel, mas sendo a 2ª cave ocupada pelo R. C..., por alegadamente lhe ter sido sublocada pelo F..., e pela renda mensal de Esc. 30.000$00 .
Que por escritura de 16/06/1999, o dito G... Alves trespassou à 1ª Ré o estabelecimento instalado no prédio .
Donde resultar que são actuais ocupantes do prédio os agora Réus, que dele se arrogam arrendatários e subarrendatários e se recusam a entregar o prédio à A. .
Que é nulo o primeiro contrato de arrendamento celebrado, por violação de forma legal e por ter havido simulação, além de ter existido abuso de direito .
Que o arrendamento celebrado em 24/11/1986 é ineficaz em relação à A., por ter sido celebrado após a data de registo de penhora a seu favor .
Que os R.R. estão obrigados a indemnizar a A. pelos danos causados pela ocupação indevida do imóvel .
Donde a demanda dos R.R. nos termos peticionados .
II
Contestaram ambos os R.R., separadamente, alegando ambos, muito em resumo, que são, respectivamente, legítimos arrendatário e subarrendatário do prédio em causa, de tal modo que logo após a celebração da escritura de trespasse a favor da 1ª Ré, foi a A. informada, por carta registada, da realização desse trespasse e das condições essenciais do contrato, designadamente da identificação do trespassante e da trespassária e do preço do trespasse, data a partir da qual a Ré passou a depositar mensalmente a renda na CGD, que até então era paga por G... .
Que no prédio em questão foram instalados estabelecimentos de fotografia, discoteca e de decoração, que aí têm desenvolvido a sua actividade desde há mais de 15 anos e até ao presente, quer com autorização do dono do imóvel quer mediante autorização municipal para o efeito .
Que no acto de arrematação do prédio, em 1992, a A. tinha conhecimento da existência de arrendatários e de subarrendatários no prédio, os quais foram notificados para exercerem o direito de preferência na aquisição do imóvel e até estiveram presentes na data e local da realização da hasta pública .
Que o referido D... não se manteve na posse do prédio após a sua cedência em arrendamento, relativamente ao que os valores acordados eram os considerados como normais, à data .
Que o 2º Réu tem exercido a qualidade de subarrendatário do prédio em questão de forma pacífica e pública, desde 1982, jamais tendo alguém colocado em causa essa sua qualidade na ocupação da 2ª cave do prédio, que utiliza como armazém , e relativamente ao que tem pago uma renda mensal .
Que nunca antes a A. colocou em causa essa qualidade do 2º Réu .
Que aquando da arrematação do prédio pela autora não foi o 2º Réu solicitado a entregar a parte do prédio que ocupa, nem tal podia suceder, tendo a A., nesse acto, reconhecido o 2º Réu como subarrendatário do prédio .
Terminaram ambos os R.R. pedindo a improcedência da causa, com as consequentes absolvições do pedido .
III
Terminados os articulados foi proferido despacho saneador, no qual foi reconhecida a regularidade adjectiva da causa, com selecção da matéria de facto alegada e tida como relevante para efeito de instrução e de discussão da dita .
Seguiu-se a realização de uma perícia sobre o valor de mercado para as rendas estimadas, posto que teve lugar a realização da audiência de discussão e julgamento, com gravação da prova produzida .

Findo o julgamento foi proferida decisão sobre a matéria de facto constante da base instrutória, com indicação da respectiva fundamentação .

Proferida sentença sobre o mérito da causa, nela foi decidido julgar a acção parcialmente procedente, com a condenação dos R.R. a reconhecer ser a A. a dona do prédio urbano em questão e bem assim a entregarem-lho livre e devoluto, na parte que cada um deles está a ocupar .
Quanto ao mais, foram os R.R. absolvidos .
III
Dessa sentença interpuseram recurso os Réus “B...“ e C..., recursos esses que foram admitidos como apelação e com efeito devolutivo .

Nas alegações que os Apelantes apresentaram, formularam as seguintes conclusões :
- a Apelante B... :
1ª - A aquisição pela credora hipotecária do direito de propriedade sobre o prédio hipotecado, por meio de arrematação em hasta pública, não importa, sem mais, a caducidade dos contratos de arrendamento que tinham sido celebrados validamente pelo anterior proprietário e estavam em vigor à data dessa hasta pública .
2ª - Embora os arrendamentos do prédio tenham sido celebrados posteriormente ao registo da hipoteca, não pode o credor hipotecário pretender a caducidade dos mesmos arrendamentos por estes contratos não revestirem a natureza de direito real, devendo, por isso, a petição inicial formulada nesse sentido ser liminarmente indeferida.
3ª - Ficando provado que à data da aquisição do direito de propriedade sobre o prédio a adquirente tem conhecimento da existência de contratos de arrendamento, que os arrendatários estão a ocupar o prédio, onde há pelo menos 15 anos exercem as respectivas actividades industriais e comerciais, aí depositando mercadorias, recebendo clientes e fornecedores, pagando renda e não tendo a A. deduzido qualquer oposição durante mais de oito anos, conclui-se que a mesma se conformou e reconheceu a validade, eficácia e subsistência dos arrendamentos .
4ª - Em todo o caso, constitui abuso de direito a pretensão deduzida pela A. em 2000, ... ,quando teve conhecimento da existência dos arrendamentos pelo menos em 1992, conformando-se com a prática dos actos dos arrendatários inerente à normal exploração dos estabelecimentos instalados no edifício .
5ª - A A. incorre em abuso de direito e é, portanto, ilegítimo o seu exercício ...
6ª - O princípio do dispositivo e os limites da condenação obstam a que o Tribunal conheça da eventual caducidade dos contratos de arrendamento decorrente da aquisição do direito de propriedade sobre o prédio pela credora hipotecária celebrados em data posterior ao registo da hipoteca e anterior à venda do prédio em hasta pública, quando esta, na qualidade de autora, não alega a caducidade dos contratos nem pede a condenação dos R.R. no reconhecimento da caducidade pelos indicados motivos .
7ª - Para que o Tribunal possa conhecer do mérito da causa e condenar os R.R. na desocupação do prédio e consequente entrega do mesmo à A., quando está reconhecida a existência e validade de contratos de arrendamento sobre o prédio e a qualidade de arrendatários dos R.R. à data da respectiva venda por arrematação em hasta pública, é necessário que a A. alegue, prove e peça o reconhecimento da caducidade dos contratos .
8ª - É nula a sentença na parte em que condena os R.R. a verem reconhecida a caducidade dos contratos de arrendamento e, por via disso, na desocupação e entrega do prédio à A., quando esta não alegou nem pediu a condenação dos R.R. no reconhecimento da caducidade dos contratos .
9ª - Não obstante a caducidade do arrendamento, se o locatário se mantiver no gozo da coisa pelo lapso de um ano sem oposição do locador, o contrato considera-se renovado nas condições do artº 1054º do C. Civ., pelo que, in casu, ainda que resistisse a tese da caducidade, ficou provado que os R.R. se mantiveram no gozo do locado, não tendo a A. alegado nem provado que deduziu oposição aos contratos no ano subsequente à verificação da causa da eventual caducidade, pelo que se consideram renovados os contratos .
10ª - Decidindo-se como se decidiu, fez-se errada interpretação e aplicação da lei, com violação do disposto nos artºs 8º, 9º, 334º, 824º, nº 2, 1022º, 1023º, 1051º, 1054º e 1056º do C. Civ.; 264º, 265º, 268º, 467º, nº 1, al. d) e e), 660º, 661º e 668º do CPC, devendo ser dado provimento ao recurso e ser revogada a sentença recorrida, com a consequente absolvição da Ré do pedido .

- o Apelante C... :
1ª - Atenta a causa de pedir e aos pedidos formulados pela autora, certo resulta que não podia o Ex.mº Juiz “a quo” ter condenado o Apelante a entregar o pavimento que ocupa, por força de um contrato de subarrendamento, que inclusive foi considerado válido, com base na sua caducidade por força da venda do prédio no âmbito de um processo executivo relacionado com uma hipoteca sobre o mesmo constituída pela Apelada, já que tal condenação extravasa de forma manifesta os pedidos por esta solicitados nos autos, existindo uma clara violação do princípio dispositivo e da estabilidade da instância inserto nos artºs 264º, 268º e 467º do CPC, sendo, assim, a sentença nula, nos termos do dispositivo no artº 668º, nº1, al. e), do CPC .
2ª - A Apelada é proprietária do prédio urbano constituído por casa de alvenaria e betão armado, ... , sito na Estrada Nacional nº 230, no lugar da Califórnia, freguesia da Conceição, concelho da Covilhã, inscrito na matriz sob o artigo 1341, face a aquisição por si efectuada em arrematação em hasta pública no dia 25/03/1992, no âmbito de um processo de execução fiscal ... , sobre o qual tinha uma garantia de hipoteca a seu favor .
3ª - Aquando da realização da mencionada hipoteca não foi vedado aos anteriores proprietários a realização de qualquer contrato de arrendamento relativo ao mencionado prédio .
4ª - O aludido imóvel foi então dado de arrendamento através de escritura pública realizada no Cartório Notarial de Almeida e com efeitos a partir de 1 de Março de 1984, pelos anteriores proprietários a F..., tendo sido autorizada a sublocação total ou parcial do prédio, por valores superiores aos da renda .
5ª - Por contrato verbal, o anterior arrendatário do prédio subarrendou, em 1987, o 3º pavimento, correspondente à cave, ao ora apelante, produzindo tal contrato efeitos em 2/05/87 e para o exercício de armazém, tendo com efeitos de tal data o apelante aí recebido clientes e fornecedores, à vista de toda a gente, e pago renda .
6ª - Aquando da aquisição do prédio por parte da Apelada foi o Apelante, tal como os demais inquilinos do prédio, notificado para o exercício do direito de preferência, os quais estiveram presentes aquando da venda em hasta pública .
7ª - Após a aquisição do prédio, o Apelante continuou a depositar as rendas em conta bancária da Apelada, não tendo esta deduzido qualquer oposição .
8ª - Assim e aquando da aquisição do prédio por parte da Apelada estava vigente o contrato de arrendamento e o contrato de subarrendamento celebrado com a Apelante .
9ª - Desta forma e contrariamente ao indicado na sentença em apreço, tal contrato não caducou com a venda do prédio .
10ª - Já que o contrato de arrendamento é de utilização obrigacional ou creditória e não real, não caducando nos termos do artº 824º, nº 2, do C, Civ., sendo certo que a caducidade do contrato de arrendamento apenas se verifica nos casos em que a própria lei o prevê .
11ª - Desta forma, a Apelada adquiriu o prédio e sucedeu nos direitos e obrigações do então locador, antigo proprietário, direitos e obrigações estas que inclusive eram do seu conhecimento, pelo que não existe qualquer frustração de expectativas .
12ª - Por outro lado, face ao disposto no artº 824º, nº 2, do CPC, não se prevê a caducidade do arrendamento, pelo simples motivo que o artº 1057º C. Civ. estabelece o regime da transmissão, não existindo qualquer lacuna em tal preceito .
13ª - Resulta, assim, que o contrato de arrendamento relativo ao prédio e o subsequente contrato de subarrendamento subsistiu após a venda do prédio, estando actualmente em vigor .
14ª - Sendo certo que foi a própria Apelada a reconhecer o Apelante como seu inquilino, em virtude de receber as rendas em depósitos bancários efectuados na sua agência da Covilhã, depósitos estes que jamais foram por si impugnados, tendo passados 8 anos intentado a presente acção, apesar de e durante tal período de tempo o Apelante continuar a exercer no locado a sua actividade comercial .
15ª - Por outro lado, ..., resulta que a pretensão da Apelante é manifestamente abusiva, pois pretende reivindicar o prédio passados mais de 8 anos após o ter adquirido e com a agravante de ser do seu conhecimento a existência de inquilinos no prédio quer antes quer depois da aquisição, nomeadamente o Apelante, ... , razão pela qual a Apelada excedeu os limites decorrentes dos seus direitos, nos termos do artº 334º do C. Civ. .
16ª - Termos em que existiu uma errada aplicação da lei substantiva, designadamente dos artºs 324º, 695º, 1049º e 1057º do C. Civ., e 1º do RAU, face ao que deve ser revogada a sentença na parte em que condena o Apelante a entregar o pavimento que ocupa à Apelada .
IV
Contra-alegou a Recorrida, sustentando, muito em resumo, que é pacífico que qualquer contrato de arrendamento ou de subarrendamento celebrado após a constituição do direito real de hipoteca é inoponível quer ao credor exequente quer ao adquirente em venda executiva, caducando nos termos do nº 2 do artº 824º do C. Civ., pelo que quer o contrato de arrendamento a que referem os autos quer o subarrendamento celebrado pelo Réu C..., ambos ocorridos após a constituição de hipoteca e respectivo registo a favor da autora não são oponíveis a esta, atendo o disposto no supra referido precito legal .
Terminou pedindo a improcedência das apelações deduzidas .
V
Neste Tribunal da Relação foram aceites ambos os recursos interpostos e tal como foram admitidos em 1ª instância, tendo-se procedido à recolha dos necessários “vistos” legais, sem qualquer observação, pelo que nada obsta ao conhecimento dos seus objectos .
E porque o objecto de qualquer dos recursos interpostos é idêntico, proceder-se-á à sua apreciação conjunta, relativamente ao que importa equacionar as questões que deles resultam e que são as seguintes, face às conclusões apresentadas pelos Apelantes nas respectivas alegações de recurso :
A – Nulidade da sentença, nos termos do artº 668º, nº 1, al. d), do CPC .
B – Reapreciação da questão da eventual caducidade dos contratos de arrendamento e de subarrendamento celebrados pelos Recorrentes .
C – Eventual reconhecimento dos Apelantes como inquilinos do prédio em causa nos autos por partes da Apelada .
D – Apreciação de eventual cometimento de abuso de direito por parte da Apelada ao instaurar a presente acção contra os Apelantes .

Antes de iniciarmos a apreciação dessas referidas questões, importa que aqui se dêem como reproduzidos os factos considerados como assentes pela 1ª instância, uma vez que relativamente aos mesmos não foi apresentada qualquer impugnação pelos Recorrentes, nem se vêem razões para a sua eventual modificação oficiosa, o que se decide nos termos do artº 713º, nº 6, do CPC .
E procurando sintetizar esses factos relativamente às questões que importa apreciar, resultou como provado o seguinte, conforme resulta da sentença recorrida :
1 - A A. é proprietária do prédio urbano constituído por uma casa de alvenaria e betão armado, composta de rés-do-chão, primeiro e segundo andares, e com logradouro, sito na Estrada Nacional nº 230, no lugar da Califórnia, freguesia da Conceição, cidade da Covilhã, descrito na Conservatória do Registo Predial da Covilhã sob o nº 34632, a fls. 88 do Livro H-91, e inscrito na matriz predial urbana respectiva sob o artigo nº 1341.
3 - Tal prédio foi adquirido pela A. em arrematação em hasta pública, por Esc. 40.500.000$00, no dia 25 de Março de 1992, no âmbito da Carta Precatória nº 35/91 expedida para a Repartição de Finanças da Covilhã, extraída do processo de execução fiscal nº 4897/83, do antigo 7º Juízo do Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa, em que foi exequente a aqui autora e executados D... e mulher .
4 - Para garantia de um empréstimo de Esc. 6.800.000$00, respectivos juros e despesas, os antigos proprietários desse imóvel constituíram sobre o mesmo uma hipoteca a favor da aqui autora, registada pela inscrição 10.041, do Livro C-17 .
6, 7 e 8- A Repartição de Finanças da Covilhã procedeu à penhora do dito imóvel em 20/03/1984, penhora essa que foi registada na Conservatória do Registo Predial da Covilhã em 26 de Março de 1984, através da inscrição nº 17.346 do Livro F-21 .
9 e 10 - Os antigos proprietários do prédio e F... assinaram um documento particular, intitulado de “contrato de arrendamento comercial”, datado de 25/02/1984, no qual ficou consignado, além do mais, o arrendamento do referido prédio por 5 anos, com início em 1/03/1984 e renovável por iguais períodos, mediante a renda mensal de Esc. 20.000$00, ficando o arrendatário autorizado a sublocar a totalidade ou parte do edifício, com aviso prévio aos senhorios, destinando-se o local arrendado a todos os ramos de negócio, designadamente a laboratórios de fotografia, discoteca-pub, confecções e oficinas de máquinas, à excepção de agências funerárias .
11 - Em 24 de Novembro de 1986, os referidos antigos proprietários do imóvel e F... celebraram um novo contrato de arrendamento, por escritura pública, no Cartório Notarial de Almeida, relativo ao referido prédio, no qual se convencionou, além do mais, que o prazo desse arrendamento era de 5 anos, com início em 1 de Março de 1984, supondo-se sucessivamente renovado por iguais períodos, mediante a renda mensal de Esc. 20.000$00, relativamente ao que foi dada logo quitação das rendas até 20 de Fevereiro de 1989, tendo sido autorizado o arrendatário a sublocar total ou parcialmente o imóvel e a cobrar valores superiores ao da renda, destinando-se o locado a fins fabris .
12 - Por escritura outorgada no dia 21 de Janeiro de 1987, F...
sublocou a G... e a H... o 3º pavimento desse imóvel, correspondente ao rés-do-chão, para fins fabris, mediante a renda mensal de Esc. 30.000$00, com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 1987 .
13 - Nesta mesma escritura ficou consignado que a renda passaria para Esc. 100.000$00 logo que o espaço sublocado fosse trespassado .
14 - Por escritura outorgada em 24 de Janeiro de 1989, F... trespassou a G..., pelo valor de Esc. 3.000.000$00, o estabelecimento de laboratório de fotografia instalado no referido prédio .
15 e 16 - Após este trespasse o referido G... passou a ocupar todo o prédio, com excepção da 2ª cave, a qual era ocupada pelo Réu C..., por sublocação efectuada a F..., reconhecida em transacção judicial ... , relativamente ao que aquele pagava a renda mensal de Esc. 30.000$00 .
17 - Por escritura de 16/06/1999, o referido G... Alves trespassou à 1ª Ré o estabelecimento constituído por laboratório de fotografia, instalado no referido prédio, tendo a dita Ré aí sido representada pelo antigo proprietário do imóvel, D... .
18 - São actualmente ocupantes do aludido prédio os R.R., facto esse que a autora conhecia na data da arrematação em hasta pública.
19 - Os R.R. foram notificados pela Repartição de Finanças da Covilhã para o exercício do direito de preferência aquando da venda por meio de propostas em carta fechada, na qual estiveram presentes .
23 - Por contrato verbal de 1982, o antigo proprietário (D...) e o R. C... celebraram um subarrendamento do 2º pavimento do prédio, correspondente à 1ª cave, para o exercício da actividade de armazém .
24 - F... e o Réu C... celebraram, em 1987, um contrato de subarrendamento relativo ao 3º pavimento do prédio, correspondente à 2ª cave, para o exercício da actividade de armazém, produzindo efeitos em 2/05/1987 e por um prazo de um ano, renovável por iguais períodos .
25 - Tendo ainda sido acordado que o R. C... ocuparia uma pequena parte do 2º pavimento do prédio, correspondente à 1ª cave, e pelo período de 6 meses .
26 e 27 - O anterior proprietário autorizou o exercício de outros ramos de actividade no prédio, no qual foram instalados estabelecimentos de fotografia, laboratório, discoteca e decoração, que aí têm desenvolvido a sua actividade desde há mais de 15 anos e até ao presente .
30 e 31 – O R. C... vem pagando rendas pelo facto de estar a ocupar o pavimento 3º do prédio, correspondente à 2ª cave, na qualidade de subarrendatário, rendas essas que estão a ser depositadas na agência da Covilhã da C.G.D. .

Nos termos do artigo 659º, nº 3, do CPC, será ainda tomado em consideração o seguinte facto, provado pelo documento de fls. 38 :
32 - No registo da hipoteca constituída a favor da autora e sobre o prédio supra referido consta como data da sua conversão em definitiva a data de 1 de Agosto de 1980 .

É, pois, com base nos supra referidos factos que importa que passemos à apreciação das questões supra equacionadas, o que se segue :
Assim, começamos a nossa apreciação pela questão da invocada nulidade da sentença, nulidade essa que, segundo os Apelantes, resulta de “ na sentença terem sido condenados os Apelantes num pedido que não foi deduzido pela Apelada, existindo uma clara e manifesta violação do princípio do dispositivo e da estabilidade da instância, tendo sido decidido sobre um pedido que não foi suscitado pela Apelada, ... , porquanto a A. não pediu a condenação dos Réus no reconhecimento da nulidade, da ineficácia, da caducidade ou da insubsistência dos títulos com base nos quais estes se encontram no gozo do prédio, e podendo, porém, conhecer oficiosamente dessa nulidade, a verdade é que nem a A. pediu tal reconhecimento, nem o Tribunal a quo sobre ela se pronunciou ... “ .
Tal nulidade resultaria, assim, no entender dos Apelantes, de na sentença recorrida se ter conhecido de uma questão de que não se podia tomar conhecimento, nos termos do artº 668º, nº 1, al. d), do CPC .
Porém, afigura-se que os Apelantes carecem de razão nesta sua argumentação .
Com efeito, resulta da petição inicial que a A. alegou que os R.R. são actualmente ocupantes do prédio que pertence à A. e que dele se arrogam de arrendatário e subarrendatário, recusando-se a entregar o prédio à A., apesar de o deterem ilegitimamente, contra a vontade da A., causando-lhe avultados prejuízos – artigos 37º, 38º e 39º da petição -, ... , sendo que o arrendamento comercial celebrado no dia 24/11/1986 é ineficaz em relação à A., já que foi celebrado após a data de registo da penhora a seu favor – artigo 57º da petição - , e sendo esse contrato inoponível à A., inoponíveis são os restantes contratos celebrados com base nele, onde se incluem os feitos aos R.R. na presente acção – artigo 65º da petição .
E como sequência ou corolário dessa argumentação pediu a A. a condenação dos R.R. na entrega do imóvel, completamente livre e devoluto .
Donde que não se entenda a argumentação dos Apelantes sobre a arguida nulidade, pois que também é com base na arguida inoponibilidade dos contratos de arrendamento e de subarrendamento à A. que foi proposta a presente acção, tese que foi a acolhida na sentença recorrida .
Depois, não nos podemos esquecer de que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, embora apenas se podendo restringir aos factos articulados, como resulta do artº 664º do CPC, sendo manifesto que nem sequer os Recorrentes põem em causa o estrito respeito pelos factos alegados e que resultaram da discussão da causa como provados .
Logo, não faz qualquer sentido esgrimir com a tese da nulidade da sentença, pretendendo-se que a condenação dos R.R. se reporta a um pedido que não foi deduzido pela A., o que não corresponde ao presente processado .
Falece, pois, a questão da arguida nulidade da sentença .
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Passando à questão da reapreciação da eventual caducidade dos contratos de arrendamento e de subarrendamento celebrados pelos Apelantes, tese que foi a acolhida na sentença recorrida, afigura-se que se pode considerar como duvidosa a conclusão tomada, como defendem os Apelantes .
Com efeito, resulta dos factos dados como assentes que a aqui A. e Apelada concedeu um empréstimo bancário de Esc. 6.800.000$00 aos antigos donos do prédio em questão – D... e mulher – para garantia do qual estes constituíram uma hipoteca sobre o prédio urbano sito na Estrada Nacional nº 230, no lugar da Califórnia, freguesia da Conceição, cidade da Covilhã, descrito na respectiva Conservatória sob o nº 34632, hipoteca essa que foi registada, com carácter definitivo, em 1 de Agosto de 1980, pela inscrição 10.041 do Livro C-17, acontecendo que sobre esse mesmo prédio veio a incidir uma penhora, requerida pela também aqui autora, penhora essa ocorrida em 20/03/1984 e registada na Conservatória do Registo Predial em 26/03/1984 .
Na sequência dessa penhora e venda em hasta pública, ocorrida em 25/03/1992, no processo de execução fiscal nº 4897/83, do antigo 7º Juízo do Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa, a aqui A. veio a adquirir esse dito prédio por compra, razão pela qual é sua proprietária e reconhecida como tal pelos Apelantes .
Sucede que, entretanto, os referidos antigos proprietários do imóvel e F..., em 25/02/1984, assinaram um documento particular que intitularam de “contrato de arrendamento comercial”, no qual convencionaram, além do mais, o arrendamento desse prédio por 5 anos, com início em 1 de Março de 1984, mediante a renda mensal de 20.000$00, ficando o arrendatário autorizado a sublocar o prédio e destinando-se este a todos os ramos do negócio, contrato esse que por não ter obedecido a escritura pública, conforme, à data, era exigido pelo artº 1029º, nº 1, al. b) do C. Civ., veio a ser substituído por segundo contrato outorgado pelos mesmos interessados, em 24/11/1986, já por escritura pública, com início do mesmo reportado a 1 de Março de 1984 e pela renda mensal de 20.000$00, tendo igualmente sido autorizado o arrendatário a sublocar o prédio, que ficou destinado a fins fabris .
E é na sequência deste arrendamento que surgiram posteriores sublocações do prédio, designadamente do R/C em 21/01/1987 a favor de G...; da 2ª cave ao R. C..., o que se verifica desde 2/05/1987, e para o exercício da actividade de armazém; e de um estabelecimento de laboratório de fotografia que passou a ser ocupado pela 1ª Ré e aqui Apelante, na sequência de uma escritura de trespasse a ser favor, datada de 16/6/1999 .
Ambos os R.R. são os únicos actuais ocupantes do imóvel, pagando rendas, sendo que o R. C... deposita o respectivo valor na agência da Covilhã da C. G. D..
Do que resulta que sobre o prédio em questão foi registada uma hipoteca a favor da Apelada desde pelo menos 1/08/1980, a favor da qual também ocorreu uma penhora em 20/03/1984, registada em 26/03/1984, após o que ocorreu o primeiro contrato de arrendamento comercial, por escritura pública, relativo ao referido prédio, embora reportado a 1/03/1984, data que já antes – em 25/02/84 - tinha sido acordada pelos anteriores proprietários do imóvel como da sua dação em arrendamento, para fins comerciais ou industriais .
E a questão que se coloca é, pois, a de se saber se com a venda do prédio, em hasta pública, na sequência de execução instaurada pelo credor hipotecário e penhorante do imóvel, o que ocorreu em 25/03/1992, embora em processo de execução instaurado em 1983, se deve considerar ou não que o prédio foi transferido para a aqui autora, exequente nesse processo, livre do referido encargo do arrendamento e posteriores subarrendamentos entretanto ocorridos, nos termos do artº 824º, nº 2, do C.Civ., por caducidade destes, decorrente do disposto no artº 907º do CPC, na sua redacção vigente à data da venda e que foi mantida, com ligeiras alterações, no artº 888º do CPC, na redacção decorrente do D.L. nº 329-A/95, de 12/12 .
Como já escrevemos, não é líquida a solução para tal questão, verificando-se que na sentença recorrida foi acolhida a tese ou solução de que assim deve acontecer, isto é, de que se deve considerar como caducados tais arrendamento e subarrendamentos, por estes terem ocorrido posteriormente ao registo em definitivo da hipoteca a favor da Apelada .
Porém e embora com naturais dúvidas, afigura-se que, no presente caso, não podemos deixar de concordar com essa solução jurídica, dado que além da hipoteca registada sobre o prédio também o mesmo foi objecto de uma penhora, ocorrida em 20/03/1984 e devidamente registada em 26/03/1984, posto que teve lugar o primeiro contrato de arrendamento por escritura pública – em 24/11/1986 , embora reportando o seu início a 1/03/84 -, altura em que, por efeito da referida penhora, o prédio já se considerava como entregue a um depositário judicial, com efeitos em relação a terceiros, como bem resulta do artº 838º, nºs 2 e 3, do CPC, na redacção vigente à data – veja-se o auto de penhora de fls. 44 .
Donde que, com essa penhora, ficaram transferidos para o tribunal os poderes de gozo que integravam o direito do executado, com a correspondente transferência de posse para o depositário, e a ineficácia relativa dos actos dispositivos do direito subsequentes, pois, apesar daquela perda, sempre pode o executado dispor do bem, mediante actos de disposição ou de oneração, aos quais, no entanto, não pode deixar de ser estranha a penhora já havida, tornando aqueles actos ineficazes em relação á execução, conforme bem escreve José Lebre de Freitas, in “A acção Executiva à luz do código revisto- 2ª ed.”, pgs. 213 a 218 .
Donde que embora não se trate de actos nulos, mas apenas relativamente ineficazes, eles conduzam à caducidade do direito do terceiro que tiver contratado com o executado, em caso de na execução ocorrer a transmissão do direito do executado, nos termos do artº 819º do C. Civ., disposição esta que na sua redacção introduzida pelo D.L. nº 38/2003, de 8/3, veio tornar expressamente ineficazes em relação à execução não só os actos de disposição e de oneração, mas também os arrendamentos dos bens penhorados .
Daqui que se nos afigure que o legislador, com esta referida alteração legislativa, mais não pretendeu do que consagrar na lei positiva a orientação jurisprudencial do STJ que já defendia que a venda judicial, em processo executivo, de fracção hipotecada, faz caducar o seu arrendamento posterior ao registo da hipoteca, por na expressão “direitos reais” mencionada no artº 824º, nº 2, do C. Civ., se dever incluir, por analogia, o arrendamento – ver, neste sentido, os Acs. STJ de 3/12/98 e de 6/07/2000, in, respectivamente, BMJ 482, pg. 219, e C.J.STJ, ano VIII, tomo II, pg. 150 ( ou BMJ 499, pg. 317), onde se escreve : « apesar de manifesto intuito de proteger o bem da estabilidade da habitação, não pode entender-se que o legislador houvesse querido deixar sem protecção os direitos dos credores titulares de garantias reais registadas com anterioridade relativamente à celebração da relação locatícia, pelo que os bens arrematados em hasta pública por credor com garantia real anterior se transmitirão para o adquirente novo proprietário livres e desembaraçados do ónus locatício, nos termos e para os efeitos do nº 2 do artº 824º do C. Civ. vigente, ... , isto porque a locação, acarretando uma desvalorização para o bem, implica a sua oneração, quer sob o ponto de vista económico, quer jurídico. A oneração, traduzida em arrendamento de bem hipotecado, é válida. Só que semelhante desvalorização do prédio, em fase executiva, atenta a sua finalidade, vai frustrar a posição do credor hipotecário e a essência de garantia hipotecária desvanece-se, ... , não podendo o sistema permitir tal, ... , pelo que a venda judicial, em processo executivo, de fracção hipotecada, faz caducar o seu arendamento, não registado, quando posteriormente celebrado à constituição e registo da hipoteca, por na expressão direitos reais mencionada no artº 824º, nº 2, do C. Civ., se incluir, por analogia, o arrendamento
E com esta interpretação jurisprudencial do artº 824º, nº 2, do C. Civ, deixa de ter relevância a tão discutida questão sobre a natureza do contrato de arrendamento – se tem natureza real ou simplesmente obrigacional - , pelo que não importa abordar tal problemática, para a qual, aliás, á conhecida a divergência entre os autores e na jurisprudência – apenas a título de exemplo, refira-se o Ac. R. Co. de 23/10/1979, in C.J. ano IV, tomo 4, pg. 1116.
Porém, conforme defende o Prof. Manuel Henriques Mesquita, in “Obrigações Reais e Ónus Reais “, pg. 183 a 186, “ o caminho metodologicamente correcto para esclarecer dúvidas interpretativas ou resolver problemas de regulamentação será o do recurso, nuns casos, aos princípios que disciplinam os direitos reais e, noutros, aos princípios que regem as obrigações, consoante os interesses em jogo, apreciados e valorados à luz das soluções ditadas pelo legislador para os problemas de que directa e expressamente se ocupa “, o que , na apreciação em questão, se coaduna com a natureza real ou os efeitos reais do contrato de arrendamento, com expressamente o veio a reconhecer o legislador na actual redacção dada ao artº 819º do C. Civ., conjugado com o artº 824º, nº 2, do C. Civ.,e com o artº 888º do CPC .
No mesmo sentido pode-se ver-se J. Oliveira Ascensão, in ROA 45º, pg. 365; e o mesmo autor in “ Direito Civil – Reais” 5ª edição (reimpressão), pg. 536 a 538 ; Ac. Rel. Co. de 30/3/93, in BMJ425, 634 .
Donde a nossa conclusão de que bem se decidiu na sentença recorrida ao considerar como caducados os contratos de arrendamento e de subarrendamento de que são titulares os Apelantes, por terem sido contratados depois do registo da hipoteca a favor da Apelada, face à venda do imóvel no processo executivo instaurado em 1983, onde a aqui A. foi exequente e arrematou o bem .
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Entremos, agora, na questão do eventual reconhecimento dos Apelantes como inquilinos de direito, por parte da Apelada .
Pretendem os Apelantes que assim sucedeu, ao abrigo dos artºs 1056º do C. Civ. (disposição que prevê a renovação dos contratos de arrendamento quando se dê a caducidade do arrendamento e o locatário se mantenha no gozo do imóvel pelo lapso de um ano, sem oposição do locador) e 1057º do C. Civ. ( disposição esta segundo a qual o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato - de arrendamento - sucede nos direitos e obrigações do locador), e para assim defenderem que uma vez realizado o contrato de arrendamento pelos anteriores proprietários do imóvel, cabe à Apelada, enquanto adquirente deste, respeitar o contratado, designadamente as posições contratuais dos Apelantes, tanto mais que entre a data da venda em hasta pública- em 25/3/92 – e a data da propositura da presente acção mediaram cerca de 8 anos, período durante o qual sempre foram pagas as rendas anteriormente fixadas .
Mas só assim sucederia se não houvesse a caducidade desses mesmos contratos, como antes se decidiu, pelo que uma vez verificada essa caducidade não pode falar-se de transmissão da posição do locador, pois deixou de haver locador e locatário com essa declaração de caducidade .
E no que respeita à renovação do contrato, prevista no artº 1056º do C. civ., tal renovação apenas poderia ocorrer em casos de caducidade do arrendamento previstos no artº 1051º, do C. Civ. , como bem resulta do artº 66º do RAU, onde expressamente se consagra a regra da caducidade dos contratos de arrendamento aos casos fixados pelo artº 1051º do C. Civ. .
Além de que, como resulta do Ac. STJ de 11/4/91, in AJ, 18º, pg. 14, um dos requisitos para a renovação do contrato de arrendamento, nos termos do artº 1056º do C.Civ., é precisamente a dita “não oposição do locador”, o que não acontece no caso presente, uma vez que a Apelada não foi nem é locadora do imóvel, dado não ter sucedido nessa posição contratual aos anteriores proprietários do prédios, estes sim seus locadores, pois a apenas adquiriu o prédio por força da referida arrematação em hasta pública, face ao que caducaram os contratos de arrendamento e de subarrendamento existentes, como antes se deixou referido .
Falecem, pois, os argumentos dos Apelantes, no sentido invocado .
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Mas pode perguntar-se se a Autora-Apelada não estará a agir com abuso de direito, ao ter permitido que a referida situação se tenha prolongado por tal lapso de tempo, sem agir, instaurando a presente acção já decorridos cerca de 8 anos após a aquisição do prédio, período de tempo durante o qual continuaram a ser pagas rendas, como sucede com o R. C..., que até as depositou na agência da Covilhã da C.G.D. .
Diga-se, antes de mais, que este depósito, por si só, não significa a sua aceitação pela A. como senhoria, significando, tão só, que essas rendas estão depositadas .
Mas, para que houvesse o apontado abuso de direito necessário era que a A. tivesse excedido manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito exercido, o que se afigura não acontecer no caso presente .
Com efeito, afigura-se que o mero decurso desse lapso de tempo sem a tomada de uma atitude de firmeza por parte da A. em ver os R.R. fora do seu prédio não pode configurar uma situação de impossibilidade de exercer o seu direito a que assim suceda, pois então teríamos de admitir que por ter ocorrido esse lapso de tempo como que se deu a caducidade do direito da A , quando a lei não fixa qualquer prazo para o efeito – ver artºs 296º; 298º, nº2; e 332º, nº1, todos do C. Civ. .
Depois, porque estamos, neste aspecto, no domínio da disponibilidade das partes, mesmo a poder verificar-se essa referida caducidade, ela teria de ser alegada pelos R.R., nos termos dos artººs 303º e 333º, nº 2, do C. Civ., o que não aconteceu, como bem resulta das contestações apresentadas, onde nem sequer a questão do agora invocado “abuso de direito” foi manifestada .
Donde que a A. estava e está em tempo ao propor a presente acção, não ocorrendo a caducidade do seu direito a assim agir, nem daí se podendo retirar que está a agir com abuso do seu direito, pois apenas está a exercer esse mesmo direito, sem exceder clamorosamente os limites decorrentes da boa fé, dos bons costumes ou sequer do fim social e económico desse mesmo direito .
Falece, assim, a tese dos Apelantes sobre esta questão, a qual, aliás, como não foi suscitada pelos R.R. nos respectivos articulados, pelo que também não foi objecto de apreciação na sentença recorrida, não podia ter sido sequer objecto de recurso, nos termos dos artºs 660º, nº 2, e 713º, nº 2, ambos do CPC .
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Concluindo, entendemos improcederem ambas as apelações interpostas, havendo que confirmar a sentença recorrida, o que se decide .
VI
Decisão :
Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedentes ambos os recursos apresentados, confirmando-se a sentença recorrida .

Custas pelos Apelantes .
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Tribunal da Relação de Coimbra, em / /