Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2206/04.4TBFIG-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: COMPENSAÇÃO DE DÍVIDA
CRÉDITO BANCÁRIO
DEPÓSITO BANCÁRIO
Data do Acordão: 01/22/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: 785.º, N.º 1 E 2;1142.º; 1205.5; 1206; 1144.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: O Banco credor, em função de contrato de mútuo bancário, pode declarar compensado o seu crédito com o correspondente crédito do titular da conta à data da operação, sem prejuízo dos juros vencidos, independentemente de quem e por que motivo fez depósitos nessa conta.
A norma do artigo 785.º do Código Civil pressupõe que o devedor manifeste a vontade de efectuar uma prestação em cumprimento da obrigação vencida.
Só o saldo final da conta-corrente bancária constitui a verdadeira dívida a considerar para efeito de cumprimento
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A… veio deduzir oposição à execução comum para pagamento de quantia certa que contra ele e B… instaurou o BANCO BPI SA com base numa escritura pública de mútuo com hipoteca em que o executado se obrigava ao pagamento em determinados termos da quantia mutuada, invocando falta de cumprimento dessas obrigações a partir de 25/12/2002.
Para tanto, alegou, em suma, que, sendo o pagamento das prestações do empréstimo efectuado através de débito em conta, durante o ano de 1996, o executado vendeu a C… o prédio sobre o qual incidia a hipoteca; em 25/11/2003, a referida C… decidiu liquidar na totalidade o empréstimo, depositando na referida conta as importâncias de € 26.300,00, 5.000,00 e 6.000,00; porém, cerca de um mês depois, o exequente, sem autorização do executado, retirou esses valores da conta e restituiu-os ao depositante. Pelo que, perante ele exequente, nada ficou em débito, devendo, em função disso, ser declarada extinta a instância executiva.
Contestou o exequente, dizendo ignorar os acordos celebrados entre o executado e C…, e sustentando que, efectivamente, procedeu ao estorno das quantias € 26.230 e de € 5.000 com base no facto de os depositantes terem alegado lapso nos referidos depósitos. Assim, foi em face da documentação apresentada pelos depositantes que o exequente procedeu à operação de estorno, a qual encontra cobertura legal.

Requereu o exequente que fosse admitida a ampliação do pedido - formulado na instância executiva - por forma a contemplar, ainda, a quantia de € 7.111.24, referente a bonificações auferidas, acrescidas da penalização de 20%, mas tal pretensão seria subsequentemente indeferida.

O processo seguiu a ritologia prevista na lei e, no final, foi a oposição julgada parcialmente procedente, aí se determinando que:
" (…) o banco exequente proceda à restituição ao executado da quantia de € 31.230, que ilegitimamente escriturou a débito deste;
b) Efectuando a compensação deste crédito do executado com o crédito do exequente, determinar a parcial extinção da execução, em conformidade, a qual prosseguirá, apenas, para pagamento da importância de € 2.549.38. a que acrescem juros vencidos e vincendos contados desde 26.01.2003".

Inconformado, recorreu o exequente Banco BPI SA, recurso admitido como apelação, com subida imediata nos próprios autos do apenso de oposição.

Colhidos os vistos cumpre decidir.

São os seguintes os factos dados como provados na 1ª instância:………..

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A apelação.

O apelante encerra as respectivas alegações com as seguintes conclusões delimitadoras do objecto do recurso Ex vi dos art.ºs 684, nº 3 e 690, nº 1 do CPC.:……

Não houve resposta do apelado.

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Podem enunciar-se desta forma as duas questões levantadas no recurso:

A – O crédito exequendo não podia considerar-se pago pela C… porquanto os depósitos efectuados em 25/11/2003 não foram por ela efectuados.
B - A imputação do valor "estornado" pelo Banco, ora apelante, deveria incidir em primeiro lugar sobre os juros, depois sobre o imposto de selo, e só em último lugar sobre o capital, pelo que a dívida do executado é de € 4.501, 27, acrescida ainda dos respectivos juros e imposto de selo.


Quanto à questão do pagamento do crédito exequendo.

Diz o apelante no núcleo da sua proposição que "a ilação de que o crédito do Banco se encontra pago por C…" se acha "desprovida de fundamento".
Impõe-se liminarmente advertir que o apelante labora num equívoco que, levado à letra, comprometeria irremediavelmente o êxito da questão. É que em parte alguma da sentença impugnada se assevera que o crédito do apelante sobre o apelado A…, crédito que justificou a instauração da execução, tenha sido objecto de pagamento, pela dita C…. ou por qualquer outra pessoa.
É verdade que a dado passo ali se aduz que "aqueles depósitos foram efectuados para pagamento do empréstimo contraído pelo executado junto do exequente. E isto precisamente em razão do acordo preliminar alcançado entre C… e o executado".
Uma coisa porém é o fim tido em vista pelo terceiro com o depósito das importâncias mencionadas na conta aberta em nome do executado e ora apelado. Outra, bem distinta, é a conclusão de que esse fim foi efectivamente atingido, e que só pode resultar do modus operandi do aplicador do direito, ao sancionar esse acto como verdadeiro pagamento, ou seja, como cumprimento válido e eficaz Visto o cumprimento ser apenas um dos modos de extinção das obrigações, tendo em mente as demais causas reguladas no C. Civil. , idóneo a pôr termo à obrigação do mutuário, ora executado, de restituir ao mutuante "outro tanto do mesmo género e qualidade" (na expressão do art.º 1142 do CC).
Ora o desenvolvimento do discurso judicativo sempre se afastou da ideia de que o banco exequente deu o seu consentimento Sem dúvida exigível e necessário para a modificação intersubjectiva na relação contratual que se gerara- cfr. o princípio plasmado no art.º 424, nº 1 do CC. à transferência da responsabilidade contratual, do mutuário original, isto é, do ora executado, para aquela C… (diga-se, aliás, que em perfeita simetria com a matéria alegada e apurada). E, por isso, sempre insistiu na ineficácia externa dos acordos entre esta e o executado, tomando-os como res inter alia perante o banco mutuante.
Atente-se, para a ilustração deste aspecto, no segmento da fundamentação do aresto recorrido que agora se reproduz:
" Na sequência dessa aquisição, C… acordou com o executado – porque havia nisso vantagem para ambos (designadamente as resultantes de estar já concedido o crédito e, ademais, sob o regime bonificado) – que procederia ao pagamento das prestações bancárias referentes ao empréstimo contraído pelo executado junto do exequente. Como é bom de ver, o banco exequente é de todo alheio a este acordo alcançado entre o executado e C…".
E mais adiante:
" No caso em apreço, no dia 25 de Novembro de 2003, C… depositou na conta de depósito à ordem de que o executado era titular junto do banco exequente as quantias de € 26 230,00, € 5 000.00 e € 6 000.00 (Alínea G) da matéria de facto provada). Ora, a despeito de não se tratar de transferências bancárias, mas de depósitos (de valores ou de numerário) na conta à ordem do executado, afigura-se-nos, ainda assim, bem evidente que estas operações eram, na perspectiva do banco exequente, abstractas. Ou seja, sem que relevasse a sua causa.
Ademais, em regra, através desses depósitos sempre há a intenção, por parte do terceiro depositante, de transferir a propriedade dos montantes que entrega para o titular da respectiva conta (ainda que o titular da conta, por força do contrato de depósito bancário, transfira, igualmente, a propriedade dessa quantia para o banco, ficando, em contrapartida, com o direito à restituição de igual valor). A causa desses depósitos efectuados na conta do executado era, pois, alheia ao banco exequente".

O caminho trilhado pela decisão posta em crise na apelação foi, portanto, bem diverso.
Foi o de propender para que o banco exequente, ao ter operado o estorno dos montantes depositados em 25/11/2003 na conta do executado-mutuário, o fez indevida ou infundadamente e, por essa via, havia que declarar compensado o correspondente crédito do titular da conta com o crédito exequente à data da operação, sem prejuízo dos juros vencidos desde a data peticionada no requerimento executivo (26/01/2003).
Admite-se, todavia, que o apelante, com a questão agora em apreço, tenha visado objectar genericamente contra a existência de fundamento para que a sentença determinasse a redução quase por inteiro do seu crédito.
Vejamos.
Inserindo-se as quantias depositadas, de harmonia com o convencionado, na conta bancária atinente ao mútuo, diante do sistema de conta-corrente de lançamentos a débito e a crédito em tal conta poder-se-ia efectivamente questionar se o banco exequente deveria ver o seu crédito – correspectivo do saldo devedor imputado ao mutuário - atingido pela compensação da mesma importância, reportada à data, ou simplesmente corrigido pela exacta dedução dos valores não relevados a crédito do titular da conta na oportunidade em que nesta ingressaram.
Numa ou noutra perspectiva, o efeito prático sobre o saldo favorável ao credor seria o mesmo.
Importa referir que a compensação, em sentido próprio, isto é como meio de extinção de uma obrigação, tem com pressuposto irrecusável a coexistência de dois créditos num relação de reciprocidade Cfr. o nº 1 do art. 847 do CC.: o crédito activo ou compensante versus o crédito passivo ou compensado.
Se o crédito supostamente compensado já estiver reduzido de algum modo do crédito hipotéticamente compensante, o fenómeno da compensação de créditos nunca poderá verificar-se porquanto este último nem sequer chegou a formar-se como crédito autónomo.

Nos presentes autos as prestações inerentes ao mútuo estavam conexionadas com a abertura de uma conta no banco exequente em nome do executado-mutuário e com depósitos a realizar nessa mesma conta V. o facto provado em F..
Ora, o depósito bancário, seja ele encarado como depósito irregular, como tem sido a orientação de uma forte corrente jurisprudencial Cfr. entre outros o Ac. do STJ de 9/02/95, in CJ, Supremo, 1995, T. I, p. 75-77., ou como contrato sui generis, próximo do depósito irregular, consistindo apenas num simples "acto de execução integrado no contrato mais vasto que é a abertura de conta" Conforme o posicionamento de A. Menezes Cordeiro, in Da Compensação no Direito Civil e no Direito Bancário, Almedina, 2003, p. 227. , implica, em qualquer caso, a transferência da propriedade e titularidade do dinheiro para o banco, sendo o cliente e depositante um simples credor, com permanente disponibilidade do saldo porventura existente (mesmo nos chamados depósitos a prazo, que também admitem o resgate ou mobilização antecipada do depositante, ainda que sob penalização do cliente nos juros contratados). É a consequência da fungibilidade da coisa depositada, intrínseca ao depósito irregular e ao mútuo, por força do disposto nos art.ºs 1205, 1206 e 1144 do CC.
A abertura de uma conta num banco constitui, com efeito, na prática, a génese e a sede de uma série de actos bancários subsequentes, tendo a sua estruturação os elementos próprios da conta-corrente.
A conta-corrente bancária, inspirando-se tendencialmente na conta-corrente comercial do art.º 344 do Código Comercial, integra-se, pois, no contrato mais vasto da abertura de conta, celebrado entre o banqueiro e o seu cliente, contrato essencial para o prosseguimento da relação bancária.
Ora o elemento natural da conta-corrente é o fluxo contínuo de compensações que leva à formação sucessiva de saldos: a lógica da conta-corrente implica que o banqueiro ignore a relação subjacente aos depósitos de terceiros, desenrolando-se os encontros dos lançamentos a débito e a crédito sem o apuramento da natureza ou proveniência dos valores creditados. Neste sentido, A. Menezes Cordeiro, ob. cit., p.244-245.
Neste mecanismo o banqueiro não deixa de adquirir de imediato a propriedade de todos os valores e dinheiro que entrem na conta, transferidos ou depositados por quem quer que seja. Com essa aquisição, o saldo - e, por conseguinte, o crédito, se este for favorável ao banco – também se modifica de imediato e em conformidade.
Daí que, ao invés do que sustenta o apelante, seja espúria para a solução final a indagação da origem dos montantes depositados em Novembro de 2003.
Nesta acepção de acerto de saldo – de compensação em conta-corrente - a tese da sentença de que haveria de efectuar a compensação dos € 31.320 no saldo apurado não é passível de qualquer crítica.
É certo que no requerimento executivo o capital em dívida é fixado em € 33.779,38, reportado a 26 de Janeiro de 2003.
Porém a execução é instaurada em 21 de Setembro de 2004, sem que o exequente tenha mencionado a data efectiva para a consolidação da dívida de capital ou, ao menos, do encerramento da conta-corrente concernente ao mútuo.
Pelo que improcedem as conclusões respeitantes à questão em jogo.


A questão da imputação dos montantes depositados.

Propugna o apelante pela alteração do decidido, em razão do funcionamento das regras substantivas relativa à imputação do cumprimento, as quais imporiam que os montantes depositados fossem, em primeiro lugar, levados à conta dos juros (remuneratórios e moratórios) da dívida e só, em último, do capital.
Que dizer?
No art.º 785, nº 1 do CC - pertencente à Subsecção V do Capítulo VII, respeitando à Imputação do cumprimento - estatui-se, com efeito, que:
"Quando, além do capital, o devedor estiver obrigado a pagar despesas ou juros, ou a indemnizar o credor em consequência da mora, a prestação que não chegue para cobrir tudo o que é devido presume-se feita por conta, sucessivamente, das despesas, da indemnização, dos juros e do capital".
O nº 2 do referido preceito, no entanto, torna imperativo que a imputação por conta do capital se faça em último lugar.
Só que estes normativos não se coadunam ao caso.

A norma referenciada – do art.º 785 do CC – pressupõe que o devedor manifeste a vontade de efectuar uma prestação em cumprimento da obrigação vencida.
No caso vertente, do que se trata é de um conjunto de depósitos levados a cabo por terceiros na conta do executado, os quais, como acima se deixou consignado, não revestirão, por si sós, a natureza de actos intencionais do devedor dirigidos à efectivação de uma prestação (com vista ao cumprimento da respectiva obrigação).
Por conseguinte, perante estes contornos legais, estaria posta de lado a adequação da situação descrita nos autos à previsão normativa.
Configuremos, ainda assim, a possibilidade de se entenderem os depósitos, não enquanto actos de um terceiro (na óptica da relação mutuante-mutuário) mas como objectivo modo de o beneficiário (titular da respectiva conta) disponibilizar o seu montante ao mutuante, como expressão da vontade presumida do mutuário de assim facultar ao banco credor a satisfação da obrigação.
É insofismável que ao tomar-se por prestação do devedor na acepção do art.º 785 do CC - os valores que foram depositados e creditados em 25/11/03 na conta do executado afecta ao mútuo, os mesmos não eram na altura suficientes para perfazer a totalidade da dívida, dado que já em 26/01/2003 ela orçava em € 33.779,38.
Na verdade, os elementos carreados para os autos são apenas os que estão inculcados no requerimento executivo, do qual emerge que em 26/01/03 foi contabilizada a dívida de capital, dívida que então se cifrava em € 33.779,38, e que os respectivos juros remuneratórios e moratórios foram calculados, a partir dessa data, à taxa global de 6, 693%. Exequente e executado nem sequer aduziram, pois, qualquer facto tendente a evidenciar que a dívida de capital em 26/11/2003 - data do estorno - fosse diversa da que se verificaria em 26/01/2003.
Oportunamente já se deixou sublinhado o princípio de que a abertura de conta bancária desencadeia uma forma específica de conta-corrente com os movimentos nela subsequentemente processados. Na qual, considerada a particular natureza do encontro dos débitos e créditos, "só o saldo final constitui a verdadeira dívida a considerar para efeito de cumprimento" Para esta especificidade de imputação chama justamente a atenção A. Varela, Das Obrigações em Geral, 2ª Ed., Vol. II, p. 57..
Isto é, a dívida de capital a atender coincidirá obrigatóriamente com a importância do saldo final da conta em causa, daí decorrendo que os juros, indemnização e despesas a imputar no cumprimento, nos termos do art.º 785 do CC, só poderão ser os que se constituírem sobre esse saldo. Não relevam, pois, para este efeito, os juros e despesas compreendidos num momento intercalar da conta.
Ignora-se quando foi obtido o saldo final correspondente ao momento do encerramento da conta. Uma vez que os juros moratórios e remuneratórios a que se reporta o apelante e exequente, para reclamar a imputação prévia do cumprimento, se mostram contados por ele próprio a partir de data anterior (26/01/2003) àquela em que se efectuaram os depósitos de € 26.230,00, 5.000,00 e 6.000,00 (25/11/2003), só podia concluir-se que, mesmo nesta última (a dos depósitos), não só a conta não estava seguramente encerrada (e o saldo dela derivado tecnicamente consolidado) como o próprio mútuo continuava a ser retribuído. Donde que não restasse outra alternativa que não fosse a de tomar a quantia inscrita como dívida para instauração da execução como o único saldo a que, globalmente, havia que deduzir as verbas em apreço.
Pelo que, não são de acolher as conclusões do apelante sobre a questão.


Pelo exposto, julgando a apelação improcedente, confirmam a sentença.
Custas pelo apelante.