Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
716/03.0TAVIS.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: GABRIEL CATARINO
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
NOTIFICAÇÃO – ALÍNEA C) DO N.º 4 DO ARTIGO 105.º DO R.G.I.T.
COMPETÊNCIA
Data do Acordão: 11/11/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS ALÍNEA B) DO N.º 4 DO ARTIGO 105.º DO R.G.I.T.
Sumário: I. – Após o recebimento da acusação, é competente para ordenar a notificação a que alude a alínea b) do artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias o tribunal de julgamento.
Decisão Texto Integral: Em dissensão com o julgado exarado no despacho de fls. 628 em que, sob promoção do Exmo. Senhor Magistrado do Ministério Público junto do 2º Juízo criminal do Tribunal da comarca de Viseu, decidiu que (sic): “[…] Concordamos na integra com o teor da promoção que antecede [promoção de fls. 625 a 627, infra transcrita, na íntegra] .

De facto, o novo n.º4, alínea b) do artigo 105.º do RGIT, introduzido com a Lei n.º 53-A/2006 veio introduzir uma nova condição objectiva de punibilidade do crime e não qualquer novo elemento do tipo.

Logo, não se trata de uma questão de despenalização, mas de aplicação do regime mais favorável, ficando a questão ultrapassada com a notificação, agora, a que alude o já citado artigo 105.º.

Aliás, como bem refere o Sr. Procurador, a questão suscitada pelos arguidos já se encontra resolvida, pelo acórdão de fixação de jurisprudência de 9 de Abril de 2008, proferido no Processo n.º 07P4080.

 Pelo exposto, indefere-se o requerido.

Notifique

No mais, proceda-se nos termos promovidos”, recorre o arguido …, que remata a motivação com a síntese conclusiva que a seguir se deixa transcrita.     

“1. Vem o presente recurso interposto do despacho proferido pelo douto Tribunal Judicial da Comarca de Viseu que ordenou a notificação do ora recorrente nos 1ennos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na qualidade de arguido.

2. Ora, salvo o devido respeito por melhor opinião, a realização desta notificação constitui ónus do órgão tributário e depende de decisão da Administração Tributária, não cabendo ao julgador, por inexistir pressuposto legal que o legitime, operar tal notificação.

3. O despacho recorrido, ao proceder directamente à notificação do arguido para proceder ao pagamento da prestação tributária, acrescida dos respectivos juros e da coima aplicável, no prazo de 30 dias, constitui, desta forma, salvo o devido respeito por melhor opinião, uma clara ingerência do Poder Jurisdicional no poder da Administração Tributária.

4. Por outro lado, o tribunal “a quo” não dispõe de todas as informações indispensáveis para proceder à notificação, o que impede a fixação do valor da coima aplicável ao caso, dado o método fixado, para o seu cálculo, no n.º 1 do artigo 114.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, bem como a determinação dos juros moratórios eventualmente devidos pelo arguido.

5. Pelo que não é admissível que seja o tribunal “a quo” a ordenar aquele pagamento.

6. Sem prescindir, sempre se dirá que a notificação prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias nunca poderá ser dirigida ao arguido ora recorrente.

7. O pagamento das quantias em dívida só poderá ser exigido à sociedade arguida pois é sobre ela, e apenas sobre ela, que recai a obrigação de entregar as prestações tributárias deduzidas nos termos da lei.

8. Ao notificar o arguido ora recorrente está o Tribunal a violar a sua presunção de inocência (n.º 2 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa) e a imputar-lhe um dever que não tem.

9. Pior, ao fazê-lo de forma genérica, remetendo-o para os termos de disposições legais, sem explicitar qual a cominação para o não cumprimento da notificação, viola o princípio constitucional consagrado no artigo 205, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.

10. Acresce que, e salvo o devido respeito por melhor opinião, esta notificação é ainda manifestamente violadora do princípio constitucional vertido no artigo 32.º, n.º 5 Constituição da República Portuguesa, segundo o qual “O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório”.

11. Por outro lado, o douto Tribunal recorrido tem prova suficiente de que o arguido não foi notificado para pagar, nos termos do artigo 105.º, n.º 4, alínea b),

12. Logo, tem conhecimento de que o arguido não cometeu o crime de que vem acusado, nos termos da legislação actual,

13. E suspendeu o processo, sem determinar qualquer prazo para a suspensão, aguardando que o crime venha a ser cometido, ou não, para proferir decisão.

14. Por via disso, o arguido requereu que o tribunal proferisse decisão, por ter prova suficiente de que aquele não foi notificado e por o crime não ter sido cometido.

15. Porém, o requerimento foi indeferido.

16. Pelo que o douto Tribunal recorrido violou o princípio constitucional vertido no artigo 32.º, n.º2 Constituição da República Portuguesa.

17. Acresce que a discussão prevista nos artigo 360.º e 361.º do Código de Processo Penal já terminou, 

18. Não existindo qualquer impossibilidade de proferir sentença.

19. E o tribunal a quo não a profere, violando o disposto no n.º 1 do artigo 365.º do Código de Processo Penal.

20. Face ao exposto, deve o douto Tribunal da Relação de Coimbra revogar o despacho recorrido e proferir a decisão que o tribunal a quo se absteve de proferir, absolvendo o ora recorrente do crime de que vem acusado.

21. Ou, em alternativa, e se assim não for doutamente entendido, deve o Tribunal da Relação de Coimbra revogar o despacho recorrido e ordenar ao tribunal a quo que profira decisão.”

Na instância o Exmo. Procudor-Adjunto propugna pela manutenção do decidido – cfr. fls. 658 e 659 – e no douto parecer lavrado a fls. 666 o Exmo. Senhor Procurador-geral Adjunto coonesta o entendimento expresso na resposta supra mencionada.

Adquiriu estamento a ideia de que o tema decidendum do recurso ser delimitado pelas conclusões do recurso[1].

As conclusões extractadas permitem dessumir para disquisição os temas que a seguir se enunciam:

- Legitimidade processual do tribunal para ordenar (directamente) a notificação do recorrente para os efeitos do artigo 105.º, n.º 4, alínea b) do Regime Geral das Infracções Tributárias;

- Legitimidade do arguido para receber a notificação ordenada;

- Violação do Principio da presunção da inocência;

- Suspensão (sem prazo certo) do processo;

- Expansão do prazo para prolação da decisão. 

II. – Fundamentação.

II.A. – Elementos Pertinentes para a Decisão.

- Despacho de fls. 605 – (solicitação à Segurança Social qual o montante em divida e a coima devida;

- Informação da Segurança Social – cfr. fls. 607 – em que informa que a divida da empresa é no montante de quarenta e um mil, dezasseis euros e dezasseis cêntimos – € 41.016,16;

- Fls. 608 – ordenada a notificação do arguido para os efeitos da alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias

- Requerimento de fls. 612 a 620.

“[…]

17º. Antes existia – e ainda hoje se mantém – uma moratória de 90 dias para o agente regularizar a prestação em falta. Agora, para além dela, vem introduzir-se um outro prazo de 30 dias.

18º. É evidente que, com esta inovação, o campo de incriminação, se mostra reduzido. Tal faculdade agora concedida ao agente não se inscreve no ilícito como seu elemento objectivo incriminador ou como fundamento de imputação subjectiva. Logo, não é abarcável pelo dolo respectivo. Sendo exterior a tudo isso, inscreve-se no espaço da categoria sistemática da punibilidade, seja enquanto causa de exclusão ou isenção de pena.

19º. No entanto, é uma condição restritiva da punibilidade, espúria à incriminação e ao tipo-de-ilícito, mas fazendo parte, incontornavelmente, do tipo-garantia.

20º. Esta inovação legal consubstancia uma condição objectiva de punibilidade porque na redução da punibilidade existe um elemento novo especializador.

21º. O legislador caracteriza uma nova mora de 30 dias, para além da já existente de 90 dias, que não pode deixar de se inscrever no cerne da conduta proibida: “só são puníveis … “

22º, Aliás, a notificação do agente a que alude a alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias tem de forçosamente ser efectuada em fase anterior à dedução da acusação, já que só depois de se verificar que decorreram os 30 dias e não houve pagamento da dívida, juros e coima, é que poderá concluir-se pela existência de um facto punível, logo de um crime.

23º. Mais, tal facto tem de ser forçosamente mencionado na acusação, sem o que não poderá concluir-se pela punibilidade da conduta.

24º. Por outro lado, a notificação a que se refere esta norma nova trata-se de um acto que necessariamente competirá à administração fiscal/segurança social efectuar, que não já ao Tribunal em fase de julgamento (e muito menos depois do julgamento), já que também poderá envolver a determinação do valor da coima a aplicar, ou seja, é um procedimento prévio à instauração do procedimento criminal.

25º. Não existe uma sucessão de leis penais, nem a conversão de crime em contra ordenação.

26º. Se houvesse sucessão de leis penais, também não bastaria a notificação do agente para pagar a prestação, pois não se descortina qual o · montante da prestação a pagar, mais os juros e a coima, nem quem o determina ou quando; ou até se o agente poderia lançar mão da impugnação judicial para se defender do respectivo procedimento contra ordenacional, com todas as garantias previstas na Lei.

27º. Considerando que não existe nenhum diploma a estabelecer normas transitórias, não se entende que a nova lei tenha convertido o crime em contra ordenação.

28º. O que na verdade agora existe é a criminalização de uma nova mora qualificada, referencial a um determinado objecto criminal, o imposto ou a quotização retida, que deveria ser entregue ao fisco ou à segurança social pelo contribuinte.

29º. Estabeleceu-se, pois, um novo regime, específico, com a introdução de uma mora específica, fundamento da punibilidade da conduta, implicando a despenalização das condutas, logo a extinção do procedimento criminal: o facto até pode ser considerado ilícito, mas não é punível.

30º. Concluindo, os factos já julgados nos presentes autos deixaram, em face do novo regime legal, de ser criminalmente puníveis, o que implica que, tendo havido condenação (ainda que transitada em julgado) cessa a sua execução e os seus efeitos penais – cfr. artigo 2.º, nº 2, 2ª parte do Código Penal.

31 º. O despacho de que os arguidos foram alvo mostra-se assim, salvo sempre o devido respeito, irrelevante para os autos, pois os factos narrados na acusação, e pelos quais os arguidos foram julgados e condenados, já não consubstanciam factos puníveis, ficando igualmente prejudicado o PIC porque deduzido com base no ilícito criminal, devendo a respectiva instância cível ser declarada extinta.

M face ao exposto, requer-se mais uma vez que:

a) se julgue extinto o procedimento criminal e contra ordenacional, por despenalização da conduta, conforme descrita na Acusação deduzida neste autos;

b) se declare extinta a instância cível;

c) se determine o oportuno arquivamento dos autos.”

- Promoção do Exmo. Senhor Magistrado do Ministério Público – cfr. fls. 625 a 626.

“Salvo o devido respeito por opinião contrária, não assiste razão ao arguido.

Com efeito, o artigo 2.º, n.º 2, do Código Penal, dispõe, além do mais, que «o facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infracções;».

Por sua vez, o n.º4 do citado artigo 2.º comanda, além do mais, que «quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente;».

Aos arguidos vem imputado o crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos arts. 107.º, n.º1, e 1 05.º, do Regime Geral das Infracções Tributárias. 

Aos arguidos vem imputado o crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos arts.107.º, n.º1, e 105,º, do Regime Geral das Infracções Tributárias.   

De acordo com o disposto pelo artigo 107.º, n.º1, do Regime Geral das Infracções Tributárias, «as entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social são punidas com as penas previstas nos n.º s 1 e 5 do artigo 105.º»).

A alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias agora aditada pela Lei n.º 53-A/2006 de 29/12, veio introduzir uma nova condição objectiva de punibilidade do crime e não alterar, de qualquer modo, a previsão legal que tipifica o comportamento criminoso. Tal é o que resulta ostensivamente do texto da lei, sendo certo que «na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presum1rá que o legislador (…) soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (artigo 9.º do Código Civil).

Na verdade, estamos perante um crime por omissão que se consuma com a não entrega pelas entidades empregadoras, no prazo legal, do montante das contribuições legalmente devidas à Segurança Social deduzido do valor das remunerações devidas aos trabalhadores e aos membros dos órgãos sociais. No momento em que deixa de cumprir tal obrigação, o agente comete o crime. A norma em apreço é clara e insusceptível de qualquer outra interpretação.

Acontece que, por razões politico-criminais, o legislador que já entendera só se justificar a punição penal de tal comportamento desde que tivessem decorrido 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação, veio agora consagrar na lei que, para além do decurso desse prazo, exige-se ainda para a punição do comportamento que o agente seja notificado para pagar a prestação acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias e que o não faça.

Trata-se de «pressupostos (adicionais) de punibilidade», «pressupostos que, se bem que se não liguem nem à ilicitude, nem à culpa, todavia decidem ainda da punibilidade do facto» (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, pág. 617).

Como refere o Ilustre Professor na obra referida, páginas 621/622, «O facto ilícito – típico e culposo é também, em regra, facto digno de pena. Mas pode suceder excepcionalmente que o não seja, se nele se não verificarem ainda pressupostos de punibilidade; pressupostos que têm que ver «directamente com a dignidade penal do facto, com exigências de prevenção, geral e especial, que nele radicam mas não esgotam o seu significado no tipo de ilícito ou no tipo de culpa. Por outras palavras, ainda: o facto em que se verifica o tipo de ilícito e o tipo de culpa é em princípio também um facto digno de pena; mas pode acontecer que excepcionalmente o não seja se, por falta de uma condição de punibilidade, se revela que o facto como um todo, na sua unidade, na sua imagem global, não atinge os limiares mínimos da exigência preventiva de punibilidade, em suma, da sua dignidade penal. Nesta acepção pode dizer-se que a categoria da punibilidade deve ser tomada, no sentido de um funcionalismo normativo, como o elemento de ligação por excelência entre a dogmática do facto e a política criminal».

Ora, o que acontece in casu é precisamente isto: com a não entrega do montante da contribuição legalmente devida e deduzida, consuma-se o crime de abuso de confiança contra a segurança social; porém, entende o legislador que só se justifica a punição de tal comportamento quando a apropriação daquele valor se mantiver durante um período superior a 90 dias e ainda (condição que veio agora a ser acrescentada) quando, depois de notificado para proceder ao pagamento da prestação devida, juros respectivos e coima aplicável, não proceder a tal pagamento.

Ou seja, no caso em apreço, entendeu o legislador que se justifica que lhe seja dada a possibilidade de proceder ao seu pagamento (acrescido dos juros e coima correspondente à falta de entrega atempada da prestação, nos casos em que há lugar à aplicação de coima) e que, procedendo ele a tal pagamento, não seja criminalmente punido, não porque não tenha cometido o crime, mas porque, nas palavras de Figueiredo Dias, se verifica carência de punição.

Não ocorre, pois, qualquer situação de descriminalização da conduta que ao arguido vem imputada, mas apenas e tão só uma situação de ocorrência de lei mais favorável na medida em que se admite agora que, verificado o pagamento de determinadas importâncias após notificação para o efeito, os autos sejam arquivados não havendo lugar à aplicação de qualquer pena ao agente.

É, pois, uma questão que deve ser resolvida por recurso ao disposto no n.º 4 do artigo 2.º do Código Penal e não por recurso ao disposto no n.º 2 do mesmo normativo.

E, como é óbvio, a resolução de tal questão passará por dar ao agente a possibilidade de beneficiar do arquivamento dos autos por falta da condição objectiva de punibilidade prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, agora aditada pela referida Lei n.º 53-A/2006, exigindo-se, portanto, que se proceda à sua notificação para efectuar, querendo, no prazo fixado de 30 dias, o pagamento dos montantes descriminados no normativo em análise – No mesmo sentido, veja-se, entre outros, Jorge Manuel Monteiro da Costa «Despenalização da não entrega da prestação tributária?».

Foi também nesse sentido que o Supremo Tribunal de Justiça solucionou a questão com o Acórdão de Fixação de Jurisprudência de 09.Abri1.2008, proferido no Processo no 07P4080.

Nesta conformidade, e tendo em conta que, antes de ter sido dado cumprimento ao disposto pela alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (redacção da Lei n.º 53-A/2006, de 29/12), aplicável no caso em apreço por força do que preceitua o artigo 107.º, n.º 2, do mesmo diploma legal, não foi apreciado o requerimento de fls.584 a 586, como determinou o Tribunal da Relação de Coimbra a fls.597, promovo que se ordene de novo o cumprimento do disposto pelo aludido artigo 105.º, n.º4, alínea b), notificando-se o arguido Fernando Pedro Gomes da Cruz nessa qualidade e na qualidade de legal representante da sociedade arguida, nos termos e para os efeitos da citada disposição legal.”

II.B. – De Direito.

II.B.1. – Legitimidade processual do tribunal para ordenar (directamente) a notificação do recorrente para os efeitos do artigo 105.º, n.º 4, alínea b) do Regime Geral das Infracções Tributárias.

 A primeva divergência oposta ao despacho sob impugnação prende-se com o facto de o recorrente entender que o tribunal não possui competência funcional para ordenar – em substituição do órgão da administração tributária – a notificação do recorrente para proceder ao pagamento das prestações em dívida, acrescida da coima e juros de mora respectivos. Para o recorrente o tribunal não dispõe de informação necessária para calcular o montante da coima a aplicar.

Sobre esta questão já teve o Tribunal Constitucional azo para se pronunciar no aresto n.º 409/2008, de 31 de Julho de 2008, publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Setembro e mais recentemente no aresto n.º 506/2008, de 25 de Outubro, este disponível em www.tribunalconstituicional.pt.

Seguindo a esteira deste último aresto, e por elucidativo, opta-se por dar a palavra ao primeiro dos arestos citados onde de forma taxativa se escreveu.
“Na definição (inalterada) do n.º 1 do artigo 105.º do RGIT, comete o crime de abuso de confiança fiscal quem não entrega à Administração Tributária, total ou parcial­mente, prestação tributária (com a extensão que a este conceito é dada nos subsequentes n.ºs 2 e 3) deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar. Na redacção ori­ginária do n.º 4 deste preceito, os factos descritos nos números anterio­res só eram puníveis se tivessem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação. O artigo 95.º da Lei n.º 53‑A/2006, de 29 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2007), alte­rou a redacção desse n.º 4 do artigo 105.º da RGIT, convertendo a con­dição que constava do corpo desse número em alínea a), e inserindo uma nova alínea b), nos termos da qual os refe­ridos factos também só seriam puníveis se “a prestação comunicada à administração tributá­ria através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito”.
A introdução desta nova “condição” suscitou divergências doutrinais e jurispru­denciais, tendo, na sequência destas últimas, sido interposto recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, que veio a ser decidido pelo Acórdão do Supremo Tri­bunal de Justiça n.º 6/2008, de 9 de Abril de 2008 (Diário da República, I Série, n.º 94, de 15 de Maio de 2008, p. 2672), que fixou a jurisprudência nos seguintes termos:
A exigência prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção introduzida pela Lei n.º 53‑A/2006, configura uma nova condição objectiva de punibilidade que, por aplicação do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em con­sequência, e tendo sido cumprida a respectiva obrigação de declaração, deve o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo (alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT).”
Esse acórdão de uniformização de jurisprudência começa por assinalar que, na sequência da apontada alteração de redacção do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, surgiram fun­damentalmente duas linhas de orientação relativamente à sua interpretação: para uns a inova­ção consistiu na criação de uma nova condição de punibilidade; para outros, ela acarretou uma despenalização. A primeira orientação – uniformemente adoptada, desde o início, pelo STJ – considera que à anterior condição de punibilidade, agora plasmada na alínea a), foi aditada, na alínea b), uma nova condição, mas com a manutenção do recorte do tipo legal de crime: não obstante a alteração do regime punitivo, o crime de abuso de confiança fiscal consuma‑se com a omissão de entrega, no vencimento do prazo legal, da prestação tributária, nada tendo sido alterado em sede de tipicidade; porém, há que ressalvar a aplicabilidade do disposto no artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, uma vez que o regime actualmente em vigor é mais favorável para o agente, quer sob o prisma da extinção da puni­bilidade pelo pagamento, quer na óptica da punibilidade da conduta (como categoria que acresce à tipicidade, à ilicitude e à culpabili­dade). Diversamente, a segunda orientação – defendida por aqueles para quem, no regime anteriormente vigente, o tipo de ilícito se recon­duzia a uma mora qualificada no tempo (90 dias), sendo a mora simples punida como con­tra‑ordenação, ilícito de menor gravidade – entende que o legislador aditou agora, com a refe­rida alteração legal, uma circunstância que, por referir‑se ao agente e não constituindo assim um aliud na punibilidade, se encontra no cerne da conduta proibida: existe algo de novo no recorte operativo do comportamento proi­bido violador do bem jurídico património fiscal e que se traduz precisamente no facto de a Administração Fiscal entrar em directo confronto com o eventual agente do crime, pelo que, enquanto anteriormente o legislador criminalizava uma mora qualificada relativamente a um objecto material do crime, o imposto, atendendo aos fins deste, agora pretendeu estabelecer como crime uma mora específica e num contexto relacional qualificado – concluindo, conse­quentemente, pela despenalização.
O citado acórdão uniformizador de jurisprudência consagrou aquela primeira linha de orientação, que, aliás, já fora a adoptada no acórdão ora recorrido. E em ambos se invoca o Relatório do Orçamento Geral de Estado para 2007, no qual o legislador justifica a introdução de distinção entre, por um lado, os casos em que a falta de entrega da prestação tributária está associada ao incumprimento da obrigação de apresentar a declaração de liqui­dação ou pagamento do imposto e, por outro lado, os casos de não entrega do imposto que foi tempestivamente declarado, entendendo o legislador que no primeiro grupo há uma maior gravidade decorrente da “intenção de ocultação dos factos tributários à Administração Fis­cal”, postura esta que já não se verificaria nas situações em que a “dívida” é participada à Administração Fiscal, isto é, nas situações em que há o reconhe­cimento da dívida tributária, ainda que não acompanhado do necessário paga­mento. Estando em causa condutas diferentes, portadoras de distintos desvalo­res de acção e a projectar‑se sobre o património do Fisco com assimétrica danosidade social, elas merecerão, de acordo com o citado Relatório, “ser valo­radas criminalmente de forma diferente”. E acrescenta‑se: “neste sentido, não deve ser crimi­nalizada a conduta dos sujeitos passivos que, tendo cumprido as suas obrigações declarati­vas, regularizem a situação tributária em prazo a con­ceder, evitando‑se a «proliferação» de inquéritos por crime de abuso de con­fiança fiscal que, actualmente, acabam por ser arquiva­dos por decisão do Ministério Público na sequência do pagamento do imposto”.
A consideração destes elementos teleológico e histórico conduziram a que no citado acórdão uniformizador de jurisprudência se concluísse que – perante uma vontade do legislador que, claramente, assume o propósito de manutenção do recorte do ilícito típico, mas o conjuga com a possibili­dade de o agente, nos casos em que tenha havido declaração da prestação não acompanhada do pagamento, se eximir da punição pela efectivação do paga­mento no novo prazo concedido – nem a letra nem o espírito da lei permitiam a afirmação de que a conduta, que se traduz numa omissão pura, se encontrava descriminalizada. A alteração legal produzida, repercutindo‑se na punibilidade da omis­são, é, todavia, algo que é exógeno ao tipo de ilícito, devendo ser qualificada como condição objectiva de punibilidade, que deve ser equacionada na medida em que configure um regime concretamente mais favorável para o agente. Constata, assim, o referido acórdão uniformizador de jurisprudência, que, tendo sido “intenção publi­citada do legislador, expressa de forma inequívoca na letra da lei, o objectivo de conceder uma última possibilidade de o agente evitar a punição da sua conduta omissiva”, “a nova lei é mais favorável para o agente pois que lhe proporciona a possibilidade de, por acto dependente exclusivamente da sua vontade, preencher uma condição que provoca o afastamento da punição por desnecessidade de aplicação de uma pena”, pelo que “a conclu­são da aplicação da lei nova é iniludível face ao artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal”.
[…]
Constitui, assim, objecto do presente recurso, a questão da inconstitucionali­dade, por violação dos princípios da legalidade e da separação de poderes, consagrados nos artigos 202.º e 219.º da CRP, da interpretação do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção dada pelo artigo 95.º da Lei n.º 53‑A/2006, no sentido de que pode o tribunal de julgamento determinar a notificação aí prevista.
Os invocados artigos 202.º e 219.º da CRP respeitam, respectivamente, à defini­ção da função jurisdicional e das funções e estatuto do Ministério Público. O primeiro pre­ceito define os tribunais como os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, incumbindo‑lhes, nessa função, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados. O segundo comete ao Ministério Público a representação do Estado e a defesa dos interesses que a lei determinar, bem como a participação na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, o exercício da acção penal orientada pelo princípio da legalidade e a defesa da legalidade democrática.
O critério adoptado no acórdão recorrido de que competente para determinar a notificação prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT é a entidade titular do pro­cedimento ou do processo (Administração, Ministério Público, tribunal de instrução criminal ou tribunal do julgamento), consoante a fase em que ele se encontre quando surge a necessi­dade de proceder a essa notificação, em nada colide com os preceitos constitucionais citados, nem mesmo com o princípio da separação de poderes, na perspectiva da constituição de uma reserva da Administração.
Quando o Ministério Público, na fase do inquérito, determina essa notificação, ele visa, não a prossecução da tarefa de cobrança de receitas típica da Administração Tributá­ria, mas o apuramento, que lhe incumbe enquanto titular da acção penal, da verificação dos requisitos que o habilitem a tomar uma decisão de acusação ou de não acusação. Similar­mente, quando o juiz de instrução ou o juiz do julgamento determina idêntica notificação, ambos se limitam a praticar um acto instrumental necessário à comprovação da existência, ou não, de uma condição de punibilidade, que determinará a opção entre pronúncia ou não pro­núncia e entre condenação ou absolvição (ou arquivamento). Isto é: em todas essas hipóteses, a determinação da notificação pelo Ministério Público ou por magistrados judiciais insere‑se perfeitamente dentro das atribuições constitucionais dessas magistraturas (exercício da acção penal e administração da justiça, respectivamente), sem qualquer invasão da reserva da Administração, nem, consequentemente, com violação do princípio da separação de poderes, invocado pelo recorrente (quanto à alegada violação do “princípio da legalidade”, torna‑se impossível proceder à sua apreciação, dada a absoluta falta de substanciação das razões por que o recorrente entende ocorrer tal violação, sendo, aliás, incerto o sentido que ele pretende atribuir a tal princípio, neste contexto)”, rematando com a declaração de constitucionalidade exarada no dispositivo que a seguir queda transcrita: a) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, na redacção dada pelo artigo 95.º da Lei n.º 53‑A/2006, de 29 de Dezembro, interpretado no sentido de que pode o tribunal de julgamento determinar a notificação aí prevista”.
O troço de aresto transcrito dilucida de forma concludente a aporia oposta pelo recorrente ao despacho sob impugnação pelo que pouco mais haverá a acrescentar ao tema da primeira questão que foi proposta para apreciação da presente decisão, a não ser que o tribunal pode e deve, se o processo se encontrar na fase de julgamento, ordenar a notificação do acusado para, querendo, e achando que o deve fazer, pagar as prestações em divida á administração fiscal.
Porque haverá oportunidade de abordar as demais questões suscitadas pelo recorrente no apartados sequentes quedamo-nos com a asserção acabada de exarar para remate do tema da legitimidade do órgão jurisdicional para ordenar, na fase de julgamento, ou, de qualquer maneira, já após a prolação da acusação do Ministério Público, isto é quando o processo já se encontra involucrado na fase judicial ou da competência e responsabilidade de um juiz, a notificação do arguido para, querendo, proceder ao pagamento das prestações de que lhe imputam a dívida à administração tributária.
Uma derradeira questão para desfeitear e explicitar a ideia contida no item 4. – não possuir o tribunal elementos suficientes para proceder á liquidação da coima e dos eventuais juros de mora.
A notificação efectuada ao recorrente tem um objectivo que parece ter-lhe escapado. O sentido da notificação e a ordem que lhe é endereçada comporta o sequente sentido: o recorrente tem de, no prazo que lhe foi fixado pelo tribunal fazer prova no processo de que junto da administração tributária procedeu ao pagamento das prestações em dívida, bem assim da coima e dos juros liquidados. Não será, pois o tribunal a receber as prestações devidas, nem a proceder à cobrança da coima devida nem, por fim, proceder à liquidação dos juros de mora. O recorrente, se quiser cumprir, integralmente, a ordem contida na notificação dimanada do órgão jurisdicional terá que se dirigir ao órgão da administração tributária e solicitar que lhe seja passas guias para pagamento das prestações em dívida, que lhe seja passada a coima e liquidados os juros. Desde que assim proceda o órgão da administração tributária emitirá uma declaração para que seja junta ao processo de forma a ficar, processualmente, documentada o cumprimento da obrigação tributária e poder usufruir da condição de exclusão de punibilidade em que foi transformada a condição objectiva de punibilidade aposta pelo legislador com a introdução da alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias.
Se com o que ficou dito, ainda assim, o recorrente quiser dar cabal cumprimento á notificação que lha foi endereçada pelo tribunal poder-se-á dirigir ao órgão jurisdicional que qualquer funcionário lhe explicará como proceder e quais os passos que deve desenvolver para dar execução à ordem contida na notificação.      

II.B.2. – Legitimidade do arguido para receber a notificação ordenada.

A segunda questão que nos propusemos abordar para dar cabal resposta ao rosário de queixas contidas nas conclusões prende-se com a legitimidade do recorrente para receber a notificação para os efeitos da alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias – cfr. itens 6 a 9 das conclusões.

O arguido encontra-se acusado, e foi condenado, juntamente com a firma “…, Lda.” de um crime de abuso de confiança fiscal previsto e punido pelo artigo 105.º, n.º 1 do Regime Geral das Infracções Tributárias.

Na sequência da douta promoção de fls. 625 a 627 – sobre que recaiu o despacho em impugnação – o arguido foi notificado, na sua pessoa e enquanto legal representante da firma acusada pata os efeitos da alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias.

Não se descortina onde o recorrente descobre a disparidade apontada nos itens supra referidos. A notificação das pessoas colectivas segue os termos prescritos no artigo 231.º do Código Processo Civil, ou seja a notificação é efectuada na pessoa que estatutariamente tem o poder designado no pacto social acordado para obrigar e vincular a pessoa colectiva. Sendo o arguido o legal representante da firma acusado (e condenada) não se descortina a quem o arguido escogita dever ser efectuada a notificação. À entidade colectiva, tout court? A outro responsável da gestão da pessoa colectiva, que não ele? Mas se estatutariamente o arguido é o representante da pessoa colectiva a quem dirigir a notificação, a quem?

A notificação da pessoa colectiva foi endereçada a quem tem a obrigação legal de a representar e consequentemente de receber as comunicações e notificações que lhe sejam dirigidas para cumprimento de obrigações que lhe estejam cominadas legalmente. Os actos jurisdicionais ordenados foram-no no cumprimento das disposições legais que regem para as notificações das pessoas colectivas pelo que nada há a objectar ao ordenado. Enquanto legal representante o arguido deve dar execução às obrigações da pessoa colectiva para com as entidades públicas e privadas que com ela contratam ou estabelecem relações comerciais ou de direito público sendo que haverá de ser através da sua representação que a mesma se obriga e do mesmo passo se desonera dos respectivos direitos e obrigações.

Relativamente à falta de fundamentação com que acoima o despacho – cfr. item 9. – dir-se-á que o despacho que ordena a realização de um acto processual não necessita de outra fundamentação que não a que se consubstancia na ordem ou no conteúdo da ordem que lhe está inerida. O despacho sob impugnação, como expressamente refere, adere à posição do distinto magistrado do Ministério Público onde se explicita a razão por que deve ser ordenada a notificação do arguido para os termos e efeitos da alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias. E a menos que o arguido pretendesse que lhe fossem indicados os passos concretos que deveria executar para dar cumprimento à ordem contida na notificação não se descortina qual a fundamentação que deveria conter a ordem. A menos que o arguido pretendesse que o tribunal procedesse à transcrição dos artigos a que deveria dar cumprimento. Mas ainda assim a ordem não deixaria ser genérica – cfr. item 9. – dado que a lei, como o recorrente deverá saber deve assumir um carácter geral e abstracto. Diz o brocardo que “tudo o que demais é moléstia” e pior ainda nada pior que fazer do nada um tudo inócuo.

II.B.3. – Violação do Principio da presunção da inocência.

Na fronda que desencadeou contra o despacho impugnando não cansa o recorrente de o alancear de violador estrénuo da lei fundamental. (Sujeita a tratos de polé a lei fundamental tornar-se-á, não longe, auguramos, um pasto de execrações que a República não estimará).

A alegação do recorrente, neste particular, não anda longe do que desfiou ao longo de uma motivação errática e pouco consistente.

 O princípio da presunção da inocência é para Cavaleiro Ferreira equivalente ao princípio in dubio pro reo [[2]], traduzindo-se tais princípios na opção de absolver um condenado e não condenar um inocente quando subsistam dúvidas quanto à prática dos factos pelos quais o arguido se encontra acusado (pronunciado), vigorando sempre a presunção de inocência, independentemente da natureza dos factos probandos a que se refira a falta ou insuficiência de prova. Aplica-se pois, aos factos constitutivos, extintivos, modificativos e impeditivos, vigorando, em qualquer caso, a necessidade de prova plena em desfavor do arguido.

Já o Prof. Castanheira Neves distingue o princípio da presunção da inocência do princípio in dubio pro reo [[3]], ao apontar ao princípio in dubio pro reo o objectivo de responder à questão de saber qual a decisão a tomar quando o tribunal, uma vez chegado ao momento de se pronunciar, seja em que situação for, não adquira a certeza sobre os factos que constituem a acusação (pronúncia) e em relação aos quais não adquira o convencimento real e efectivo de que o arguido é responsável, concluindo que o princípio em causa proíbe a condenação penal baseada na dúvida.

O princípio da presunção de inocência cria a favor do arguido acusado um verdadeiro direito subjectivo, justamente o direito de ser considerado inocente até que se produza prova do contrário, enquanto o in dubio se afirma como princípio geral de direito, como um quid de interpretação que se dirige ao juiz quando, pese embora se ter realizado uma actividade probatória mínima, essa prova não é suficiente para dissipar o estado de dúvida em que o Tribunal se encontra quanto à culpabilidade do acusado.

Se houvesse que estabelecer uma tese quanto ao princípio da presunção de inocência dir-se-ia que não existindo no processo penal um ónus de prova formal, na medida em que todo o dever probatório recai sobre a acusação e, por virtude do principio da investigação (oficiosa), sobre o tribunal, o imputado da prática de um crime beneficia de uma presunção de não culpa até que transite em julgado uma decisão de um órgão jurisdicional. 

Esta o paradigma dogmático-conceptual e constitucional.

No caso que nos ocupa – bem mais comezinho e linear – o arguido não pode ver numa notificação – a que pode ou não dar cumprimento, segundo a sua convicção quanto aos factos que o tribunal já estimou terem sido adquiridos pela prova produzida em audiência – uma violação de um princípio constitucional axial do ordenamento jurídico. È que a notificação ordenada não tem outra virtualidade de permitir ao arguido, se assim o entender, de se desonerar de uma obrigação que a administração fiscal estima que contraiu perante ela. Não está envolvido no conteúdo da notificação e no objectivo a que ela se propõe nenhum juízo de culpabilidade ou de verificação dos pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança. O tribunal, através da notificação, limita-se a dar cumprimento a um desiderato da lei substantiva, qual seja a de permitir que, com a entrada de uma lei mais favorável, o arguido se desonere, querendo e se achar que está nas condições que a lei estabelece, exculpar-se da acusação (neste caso da condenação) que um órgão jurisdicional ditou.  Questão da presunção da inocência é exterior e alheia a este procedimento e ao fazer apelo a esta figura o recorrente, manifestamente, não entendeu o sentido e alcance do acto judicial que lhe foi endereçado.

Não ocorre, patentemente, qualquer violação do princípio aventado.

Quanto à eventual inconstitucionalidade do despacho remetemos o recorrente para o teor do acórdão do Tribunal Constitucional supra indicado onde se referem os requisitos para que o tribunal possa conhecer da constitucionalidade de uma norma. Vale por dizer que não basta dizer-se que foi violada a norma tal ou tal. Importa, para além da indicação normativa proceder à contraposição interpretativa (constitucionalmente arrimada) que no entender do recorrente deveria ter sido adoptada na aplicação de uma determinada norma jurídica. Não basta dizer que a norma tal é inconstitucional, importa antes alegar e demonstrar que o tribunal aplicou determinada norma, e num determinado sentido, e que essa aplicação ofende o sentido constitucionalmente correcto da norma e, last but not least, que no entender do recorrente o sentido interpretativo constitucionalmente arrimado é aquele que indica.

O recorrente limita-se a formular um juízo genérico – tal como ele acoimou o tribunal de ter feito – de inconstitucionalidade o que o impedirá de um recurso procedente.   

II.B.4. – Suspensão (sem prazo certo) do processo.

Na insana zanzarilha para desfeitear o decidido no despacho impugnando, o recorrente chama a colação um instituto que manifestamente o tribunal a quo não utilizou. A realização de um acto processual não importa a suspensão do procedimento criminal pendente.

A suspensão do processo pode ocorrer em qualquer das situações previstas no artigo 7.º do Código de Processo Penal, ou seja quando para conhecer da existência de um crime for necessário julgar qualquer questão não penal que não possa ser convenientemente resolvida no processo penal. Manifestamente não se descortina qual a questão de natureza não penal que deva ser conhecida pelo tribunal recorrido que não possa ser conhecida por ele. Uma notificação habilitante, se o arguido assim o entender, da exclusão da responsabilidade penal pela prática do crime pelo qual se encontra acusado constitui-se como causa não penal justificativa da suspensão? Não constitui seguramente.

O recorrente já foi condenado pelo crime de abuso de confiança fiscal e foi notificado para fazer prova de que procedeu ao pagamento das prestações em dívida de modo a poder beneficiar da prerrogativa (condição objectiva de punibilidade, no entender da jurisprudência assente) de extinção do procedimento criminal. Não está em causa qualquer juízo de culpabilidade mas tão só uma condição preclusiva da responsabilização criminal (objectiva) determinada pela adjunção à lei de uma condição habilitante de fazer cessar a responsabilidade já verificada do imputado. O arguido não pode pedir um novo julgamento quanto à verificação da facticidade que ditou a sua condenação, mas tão só prevalecer-se da prerrogativa que a nova lei (mais favorável) lhe possibilita.

Não ocorreu uma suspensão do processo mas, outrossim, a efectivação de um acto processualmente adequado a ocorrer a uma situação decorrente da circunstância da entrada em vigor de uma lei mais favorável e que por poder beneficiar o arguido o tribunal estava compelido a ordenar.

Falece mais este fundamento.

II.B.5. – Expansão do prazo para prolação da decisão.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                    

Na decorrência do exposto no apartado antecedente reafirma-se – só para que o recorrente não venha a acoimar esta decisão de omissão (expressa e explicita) de pronúncia (já se notou que o recorrente tem que ter tudo muito bem explicado) – que o tribunal não tinha o dever de proferir outra decisão que não fosse a que resultava da promoção do distinto magistrado do Ministério Público, isto é, notificar o arguido para, querendo, proceder ao pagamento das prestações em dívida à administração tributária e fazer prova desse pagamento se quisesse beneficiar da condição de exclusão de punibilidade aposta na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias.

Todos os requerimentos do recorrente iam no sentido da despenalização e o tribunal ao aderir à douta promoção do distinto magistrado do Ministério Público afastou essa possibilidade de harmonia com o doutrinado no acórdão uniformizador da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2008, de 9 de Abril de 2008 (Diário da República, Iª Série, n.º 94, de 15 de Maio de 2008.

A adesão á doutrina expressa no acórdão supra mencionado – como resulta da expressa adesão operada no despacho sob impugnação à tese alentada na promoção do Ministério Público - ilaqueia a possibilidade de o tribunal proferir uma decisão concordante com a tese propugnada no requerimento do arguido, ou seja de que o tribunal tem todos os elementos para decidir, porque existe prova de que o arguido não pagou. Não tendo pago - o que equivalerá a dizer que o arguido e a pessoa colectiva por ele representada não se prevaleceram do privilégio legal de exclusão de responsabilização criminal possibilitada pela introdução da alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias – fica de pé a condenação já operada e o processo voltará ao Tribunal Constitucional para decisão do recurso interposto pelo arguido.

É este o passo sequente que haverá que tramitar. O processo só está neste tribunal para operacionalização do despacho proferido no Tribunal Constitucional e porque o arguido não se quis prevalecer da prerrogativa de pagamento (para extinção da responsabilidade criminal) que a lei lhe conferia o processo haverá que ser remetido para o Tribunal Constitucional para aí ser conhecido o recurso interposto pelo arguido.

Falece, como se procurou demonstrar, este fundamento de recurso.

III. – Decisão.

Na defluência do exposto decidem os juízes que constituem este colectivo, na secção criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra, em:

- Negar provimento ao recurso e, consequentemente, manter na íntegra a decisão sob impugnação.

- Custas pelo recorrente fixando-se a taxa de justiça e nove (9) UC’s.

[1] Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; WWW.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).

[2] In Curso de processo penal, vol. I, Lisboa, Editorial Danúbio, Ld.ª, 1986, pág. 216 e seg. 
[3] In Sumários de Processo Penal, Coimbra, 1967-1968, pág. 56.