Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3553/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: MONTEIRO CASIMIRO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
RESPONSABILIDADE CIVIL
RELAÇÃO JURÍDICA-ADMINISTRATIVA
RELAÇÃO JURÍDICA-PRIVADA
Data do Acordão: 02/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 212º, Nº 3, DA CRP E ART.º 1º, Nº 1, DO ESTATUTO DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS (APROVADO PELA LEI Nº 13/2002, DE 19 DE FEVEREIRO)
Sumário: I - A responsabilidade civil extra-contratual emergente da construção de um lanço de auto-estrada por parte do Instituto de Estradas de Portugal, é regulada por normas de direito privado, que não por normas, princípios e critérios de direito público.
II - Por isso, porque não estamos perante um litígio emergente das relações jurídicas administrativas, a que aludem os artºs 212º, nº 3, da Constituição e 1º, nº 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro), competente para conhecer da acção é o tribunal comum e não o tribunal administrativo.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

A... e mulher, B..., propuseram, em 14/07/2003, pelo Tribunal Judicial de Leiria, acção de condenação com processo ordinário, contra:
1 - C...,
2 - D...,
3 - E...,
4 - F...,
5 - G...,
6 - H...,
7 - I...,
8 - J...,
9 - K...,
10 - L...,
11 - M...,
12 - N..., e
13 - O...,
alegando, em síntese, o seguinte:
Os autores são donos e legítimos possuidores de uma moradia sita na Urbanização de Aveias, Parceiros, Leiria.
As primeiras doze rés foram responsáveis pela construção da A8 – sub
lanço Marinha Grande-Leiria.

No final de 2000, as obras de construção daquele sublanço chegaram às proximidades da moradia dos autores, provocando-lhe diversos danos, que especificam, danos esses que tiveram origem nessas obras levadas a cabo pelas primeiras doze rés e da sua responsabilidade, nomeadamente: com explosivos, aterros e desaterros com profundidade abaixo das fundações da moradia, circulação continua de máquinas e veículos pesados e utilização de cilindros vibradores na compactação de terras.
Todos os danos sofridos pelos autores são da responsabilidade das rés: as três primeiras porque foram as directamente responsáveis pela construção do dito sublanço da A8 e, como tal, não tomaram os adequados cuidados para evitarem os danos; as 4ª à 12ª rés porque, integrando o A.C.E., respondem solidariamente com este pelos danos, nos termos do nº 1 da base II da Lei nº 4/73, de 4 de Junho; e a última porque para ela foi transferida, pela D...., a responsabilidade civil por danos resultantes da construção daquele troço da A8.
Terminam, pedindo que, na procedência da acção, sejam as rés, solidariamente, condenadas a pagar-lhes a importância de 101.488,95 €, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, incluindo o dano ambiental, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
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O C..., na sua contestação, invocou a excepção da incompetência em razão da matéria do Tribunal Judicial da comarca de Leiria, por competir aos Tribunais Administrativos de Círculo conhecer da presente acção.
Mais invocou a sua ilegitimidade, em virtude de a responsável pela obra ser a concessionária D....

Também as rés E..., G..., H..., e J..., invocaram a incompetência material do Tribunal.

Por sua vez, as rés I..., K...., M..., e O..., invocaram a sua ilegitimidade para estarem em juízo.
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No despacho saneador foram julgadas improcedentes todas as

excepções invocadas pelas rés.
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Interpuseram recursos – admitidos como de agravo, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo - do despacho saneador, na parte em que julgou improcedentes tais excepções, as rés I..., E..., G..., H..., J..., e C... (este restrito à excepção da incompetência do tribunal), rematando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
I...:
1º- O recorrente é um agrupamento complementar de empresas, constituído por escritura pública celebrada a 08/04/1999, no 19º Cartório Notarial de Lisboa, denominado I..., registado na Conservatória do Reg. Comercial de Lisboa, com a matrícula nº 00041/990526, sendo o seu objecto social a execução de forma integrada dos trabalhos da Empreitada de Construção da Linha Verde, entre Campo Grande e Telheiras, do Metropolitano de Lisboa;
2º- Os AA. Alegam ter sofrido danos decorrentes da execução dos trabalhos de “construção da A8 - sublanço Marinha Grande-Leiria”;
3º- Empreitada na qual o ora recorrente não teve qualquer intervenção, que lhe estava vedada pelo próprio objecto social;
4º- Não tendo, portanto, qualquer interesse directo em contradizer a pretensão dos AA.;
5º- Até porque não dispõe de elementos para o fazer;
6º- Por outro lado, o agrupamento de empresas ora recorrente tem personalidade jurídica própria que não se confunde com a das sociedades agrupadas;
7º- Personalidade jurídica essa que permite ao ora recorrente autonomizar-se a todos os níveis das sociedades que o compõem;
8º- Deste modo, não existem nos autos elementos suficientes para que se possa fazer qualquer tipo de ligação entre o recorrente e a empreitada em questão;
9º- Ao invés, foram carreados para os autos todos os elementos necessários para que se possa concluir pela ilegitimidade do recorrente, absolvendo-o da instância.


E..., G..., H..., J...:
A- A competência dos Tribunais em razão da matéria é fixada de acordo com a relação jurídica material em debate e ao pedido dela emergente, segundo a versão apresentada em juízo pelos demandantes;
B- Os autores fundamentam a sua acção e os prejuízos que reclamam, na construção incorrecta e defeituosa da auto-estrada A8, mandada efectuar pelo C... e cuja execução foi executada pelas demais rés, com excepção da seguradora.
C- A competência dos tribunais Administrativos encontra-se expressamente definida quer na lei Constitucional quer na lei ordinária;
D- A legislação aplicável estabelece que para apreciação da responsabilidade civil do Estado (e demais entes públicos e titulares dos seus órgãos e agentes) por prejuízos provenientes de actos de gestão pública, são competentes os tribunais administrativos;
E- O C... é um ente público, a saber um instituto público, ao qual cabe a prossecução de um interesse público;
F- O conceito de gestão pública está amplamente discutido na nossa jurisprudência, motivo pelo qual se reveste de contornos definidos.
G- A construção de uma auto-estrada é um acto de gestão pública;
H- O acto gerador dos danos alegadamente causados aos autores resultaram de uma actividade qualificável como gestão pública;
I- Pelo que é competente a instância administrativa para o conhecimento da matéria dos autos, sendo a decisão da absolvição da instância a correcta, sob o ponto de vista jurídico;
J- A conclusão referida no ponto anterior não se altera pelo facto de existir uma pluralidade passiva composta por entidades não públicas.

C...:
I- Veio o Tribunal a quo considerar-se competente, em razão da matéria, para julgar a presente causa, por entender aplicar-se ao caso sub judice o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante ETAF), aprovado pela Lei não 13/2002, de 19 de Fevereiro.
II- Ora, dispõe o artº 9º da Lei nº 13/2002 que “A presente lei entra em vigor em 1 de Janeiro de 2004, com excepção do artº 7º, que entra em vigor no dia seguinte ao da sua

publicação”,
III- pelo que o Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril, que regula o anterior ETAF, foi, apenas, revogado no dia 1 de Janeiro de 2004 [cfr. al. c) do artº 8º e artº 9º da Lei nº 13/2002].
IV- Por outro lado, estipula o nº 1 do artº 2º daquele diploma legal que “As disposições do Estatuto dos tribunais Administrativos e Fiscais não se aplicam aos processos que se encontrem pendentes à data da sua entrada em vigor”.
V- Na verdade, a presente acção foi proposta a 14 de Julho de 2003 (cfr. artº 267º, nº 1 do C.P.C.).
VI- Sendo que, pela aplicação das citadas disposições legais, será à luz do anterior ETAF, regulado pelo Decreto-Lei nº 129/84, que o presente pelito deverá ser julgado.
VII- Entendeu, igualmente, o Tribunal a quo que a causa de pedir da acção – a construção de uma auto-estrada, no caso em apreço, do sublanço da A8 – se subsume no conceito de “acto de gestão privada”.
VIII- Ora, salvo o devido respeito por opinião diversa, também, quanto à questão da natureza jurídica do acto em causa, a recorrente discorda do entendimento perfilhado pelo Tribunal recorrido.
IX- Na verdade, constitui entendimento pacífico na Jurisprudência e na Doutrina, que a construção e a manutenção das vias rodoviárias constitui matéria que se inscreve nas finalidades públicas da Administração, maxime na satisfação do interesse público e das necessidades colectivas (cfr. Ac. do Tribunal de Conflitos de 23/01/00, in Ac. Doutrinais do STA, nº 472, ano XL, pág. 588),
X- subsumindo-se, tal actividade, no conceito legal de “acto de gestão pública” (vide, por todos, Ac. do Tribunal de Conflitos de 12/05/99, in Ac. Doutrinais do STA nº 455, ano XXXVIII, pág. 1459).
XI- Pelo exposto, compete à jurisdição administrativa, por disposição expressa da lei [51º, nº 1, al. h) do ETAF], conhecer das acções sobre responsabilidade civil do Estado, dos demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública,
XII- Pelo que o tribunal recorrido é absolutamente incompetente para julgar o pedido.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O Sr. Juiz a quo sustentou, tabelarmente, a decisão recorrida.
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Colhidos os legais vistos, cumpre apreciar e decidir.
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Vamos apreciar os recursos pela ordem da sua interposição, começando, portanto, pelo da ré I..., que tem por objecto a sua ilegitimidade para ser demandada na presente acção.
Diz-nos o artº 26º do Código de Processo Civil, na última parte do seu nº 1, que o réu é parte legítima quando tem interesse em contradizer.
Tal interesse exprime-se pelo prejuízo que da procedência da acção lhe advenha – última parte do nº 2 do citado preceito.
O seu nº 3 acrescenta que, na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.
Tomou aqui o legislador, a propósito deste pressuposto processual, tal como é adiantado no relatório do Decreto-Lei nº 329º-A/95, de 12 de Dezembro, que procedeu à última reforma do processo civil, expressa posição sobre a vexata questio do estabelecimento do critério para aferir da legitimidade das partes, partindo de uma formulação assente na titularidade da relação material controvertida tal como a configura o autor, próxima da posição defendida por Barbosa de Magalhães, e que já vinha sendo seguida pela generalidade da nossa jurisprudência.
A legitimidade tem de ser apreciada e determinada pela utilidade (ou prejuízo) que da procedência (ou improcedência) da acção possa advir para as partes, face aos termos em que o autor configura o direito invocado e a posição que as partes, perante o pedido formulado e a causa de pedir, têm na relação jurídica material controvertida, tal como a apresenta o autor (cfr. Teixeira de Sousa, A Legitimidade Singular em Processo Declarativo, Bol. 292, pág. 53 e ss.).

No presente caso, os autores configuram o seu direito ao pagamento de uma indemnização por parte das rés, pelos danos por eles sofridos na sua moradia, decorrente da responsabilidade das primeiras doze rés pela construção da A8 – sublanço Marinha Grande-Leiria.


Assim sendo, tem a ré I... interesse em contradizer, sendo, por via disso, parte legítima na acção, na qual, a final e em sede de discussão do mérito, se irá discutir se teve intervenção na execução da aludida auto-estrada, sendo, por isso, responsável pelas suas consequências, como sustentam os autores, ou se, pelo contrário, não teve qualquer intervenção, como afirma essa mesma ré.
Então, se prevalecer a tese dos autores, face à prova produzida a tal respeito, será a ré responsável pelos danos por eles sofridos, procedendo, nessa medida, a acção.
Mas, por agora, e em sede de saneador, não haverá que discutir o mérito da causa para se chegar à conclusão se a ré é, na acção, parte legítima ou ilegítima.
Improcede, assim, a pretensão da recorrente, com a consequente manutenção do despacho saneador na parte em que a julgou parte legítima.
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Os restantes dois recursos serão apreciados conjuntamente, por versarem a mesma questão: incompetência material do Tribunal Judicial de Leiria.
Antes de mais, convém começar por dizer que não está em discussão, nem em dúvida, que o C... é uma pessoa colectiva de direito público – Cfr. D.L. 237/99, de 25 de Junho, e 227/02, de 30 de Outubro.
O artº 212º, nº 3, da Constituição dispõe que “compete aos tribunais administrativos (e fiscais) o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas (e fiscais)”.
Este critério constitucional encontra-se reproduzido no artº 1º, nº 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, aplicável à presente acção por se encontrar em vigor desde 19 de Fevereiro de 2003 – um ano após a data da sua publicação, de acordo com o seu artº 9º), segundo o qual “os tribunais de jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas (e fiscais)”.
A aferição da competência material dos tribunais administrativos deixou, assim, de incidir essencialmente sobre a dicotomia actos de gestão pública - actos de gestão privada, para passar a incidir sobretudo sobre o aludido critério

constitucional.
Como se diz no Ac. do S.T.J. de 07/10/2004 (CJ, T3º-47), que aqui, com a devida vénia, transcrevemos, não se trata, nesta sede, de responsabilizar o empreiteiro, adjudicatário da empreitada, por violação dos seus deveres contratuais para com o órgão público adjudicante. Não se cura de analisar as relações contratuais (execução da empreitada versus a observância das respectivas cláusulas) entre a entidade pública adjudicante e a entidade privada adjudicatária.
Do que se trata é de uma actividade, acto, comportamento ou conduta, vista da perspectiva de um lesado (terceiro) particular, cuja avaliação, para efeitos do apuramento da respectiva responsabilidade civil é regulada por normas de direito privado, que não por normas, princípios e critérios de direito público.
Ora, a uma tal apreciação/avaliação não subjaz qualquer relação jurídico-administrativa, uma relação jurídica regulada pelo direito público, mas uma mera relação jurídico-privada, como tal regulada pelo direito privado.
Rege, neste domínio, o princípio de que os tribunais de jurisdição ordinária são os tribunais-regra por força da delimitação negativa dos artºs 18º, nº 1, da LOFTJ, aprovada pela Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro, e 66º do Código de Processo Civil.
Trata-se, no fundo, da apreciação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual vazados no artº 483º e ss. do Código Civil.
Reconduz-se, pois, a questão dirimenda a uma relação jurídica de direito privado, como tal regulada pelas normas e princípios do direito civil comum.

Conclui-se, assim, pela competência do Tribunal a quo para, em razão da matéria, conhecer da presente acção, sendo, portanto, de manter o despacho recorrido, com a consequente improcedência dos recursos.
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Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em negar provimento a todos os recursos, confirmando o despacho recorrido.
Custas pelos recorrentes., com excepção do C..., por delas estar isento.