Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1882/11.6TJCBR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: INSOLVÊNCIA
AUDIÊNCIA
ADIAMENTO
Data do Acordão: 10/11/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.9, 17, 35 CIRE, 155 Nº5 E 651 Nº1 D) CPC
Sumário: Designada data para a realização da audiência em processo de insolvência, se, antes do seu início, um dos mandatários das partes, alegando impossibilidade de a ela comparecer, comunicar o facto, nos termos do nº5 do artigo 155º do Código de Processo Civil, e requerer o adiamento da diligência, esta deve ser adiada, em conformidade com o disposto no artigo 651º, nº1 d) do mesmo diploma legal, ex vi do artigo 17º do CIRE, a tal não obstando a natureza urgente do processo, fixada no artigo 9º, nº1 deste último diploma, que apenas deverá ser atendida na designação da nova data.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:


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I.RELATÓRIO

1. A (…), J (…), M (…), C(…) , J (…), A (…), E (…), F (…), , devidamente representado pelos seus pais (5 e 6º. Requerentes), M (…), L (…), devidamente representada pela sua mãe (9ª. requerente), M (…) P (…), P (…), devidamente representado pelos seus pais (11ª. e 12º. Requerentes), e M (…), também devidamente representada pelos seus pais (11ª. e 12º. Requerentes) vieram, ao abrigo dos artºs. 3º, 20º, 23º, 25º e 26º do C.I.R.E., requerer a declaração de insolvência de “M (…), Ldª.”, pessoa colectiva nº. 501.789.308 e com sede (…), em Coimbra.

            Alegam, em resumo, que a requerida se dedica à exploração de agências de viagens, tendo sido interposta contra esta pelos requerentes uma acção declarativa de condenação, que correu seus termos no 4º. Juízo Cível de Coimbra e que foi julgada procedente, tendo a sentença judicial fixado no valor global de € 22.250,00 euros a indemnização a pagar pela requerida aos requerentes.

            Para além desse débito, a requerida possui outras dívidas, nomeadamente, ao Estado.

            A requerida não possui qualquer património mobiliário ou imobiliário apto a satisfazer os seus débitos, possuindo um passivo superior ao seu activo (que é inexistente).

            Já depois da interposição da acção cível supra aludida, a requerida transmitiu o seu estabelecimento comercial para uma outra sociedade por quotas denominada C (…), Ldª.”, na sequência do que passou a funcionar, nesse mesmo espaço, uma outra agência de viagens sob o nome de estabelecimento “Holiday Travel”.

            A gerência, na transmitente e na adquirente, é a mesma, exercida por (…).

            Sustentam que a requerida se desfez do seu único património, nomeadamente, do seu estabelecimento comercial, que era o seu único bem, colocando-se propositadamente na situação de penúria descrita.

            Pugnam os requerentes que estão reunidos os pressupostos para ser decretada a insolvência culposa da requerida.

            Nos termos do artigo 52, nº. 2, do CIRE, os requerentes propõem para o cargo de Administrador a Srª. Drª. (…)

            Foram juntos documentos e arrolada prova testemunhal.

            Regularmente citada, a requerida deduziu oposição nos moldes consignados a fls. 93 e seguintes, alegando possuir vários créditos em cobrança de valor superior aos dois únicos débitos, garantindo que o trespasse ocorreu exclusivamente devido a razões comerciais.
            A final, pede a improcedência do pedido de insolvência, assim como a improcedência da solicitada resolução do contrato de trespasse.
            Juntou a relação dos seus cinco maiores credores e indicou prova testemunhal.           Foi, com o acordo dos mandatários, designado dia para audiência - 30 de Junho de 2011, pelas 9,30 horas-, de cujo despacho foram os mesmos notificados.
            No dia designado para a audiência, a Senhora Juíza da primeira instância, com fundamento no facto de estarem ausentes o gerente da requerida, (…) bem como o seu mandatário judicial com poderes especiais para transigir, cujo requerimento para adiamento do julgamento indeferiu no acto, julgou confessados os factos alegados na petição inicial, nos termos do artigo 35, nºs. 2 e 4, do CIRE.

No final, foi proferida sentença que declarou a insolvência da requerida M (…)Ldª.”, com sede (…) Coimbra, declarando aberto o incidente de qualificação de insolvência, com carácter pleno.

2. Por não se conformar com tal decisão, dela interpôs a insolvente recurso de apelação para esta Relação, formulando nas suas alegações as seguintes conclusões:

1º- A acta da audiência de discussão e julgamento enferma de desconformidade entre o seu teor e o ocorrido de facto que impõe rectificação nos termas do nº 3, do artigo. 159° do Cód. Proc. Civil.

2.º- Qual seja, a da referência no despacho inicial, de que o advogado (…) fez chegar aos autos, via Citius, à hora designada, 10H00 do dia 30 de Junho de 2011 um requerimento informando que doença súbita o impedia de estar presente.

3º- Ora, a verdade verdadeira é que o advogado (…) fez chegar tal requerimento aos autos, via Citius, na véspera dia 29 de Junho do 2011, pelas 18H00, 00 minutos e 24 segundos.

4° - Tal facto é relevantíssimo como infra se verá por comprovar que o advogado subscritor cumpriu escrupulosamente, religiosamente até!, o disposto no artº. 155°, nº 5 do Cód. Proc. Civil.

5º Ora, a verdade verdadeira é também que o advogado (…) não só requereu o adiamento daquela audiência - como se refere no despacho - mas também fundamentou tal pedido na aplicação analógica do regime dos procedimentos cautelares (também processos urgentes) explicitamente o disposto no art.º 386º, nº 2 do Cód. Proc. Civil - fundamento omitido no despacho!

6º- Não se pronunciando sobre esta questão que forçosamente teria de apreciar (a aplicação analógica do invocado art.º 386°, nº 2 do Cód. Proc. Civil ex vi artigo 17º do CIRE) resulta, forçosa e necessariamente também, a nulidade da sentença do artigo 668°, nº 1 d) do Cód. Proc. Civil que expressamente se invoca.

7º - Em qualquer caso sempre o julgamento dos autos teria de ser adiado, não operando a cominação dos nº.s 1 a 5 do artigo 35º do CIRE - confissão dos factos alegados na p.i. - pois que:

- Não houve qualquer comportamento omissivo do legal representante da Requerida que, ausente, se fez representar pessoalmente (no caso, também pelo advogado (…)), sendo que este, face a doença súbita, avisou o Tribunal na véspera, pelas 18H00 e 24 segundos, cumprindo o estatuído no artigo 155°, nº 5 do Cód. Proc. Civil.

- Não houve qualquer comportamento omissivo antes uma falta justificada que é causa de adiamento nos termos do disposto no artigo 651º, nº1 d) do Cód. Proc. Civil, ex vi artigo. 17° do CIRE, adiamento por uma única vez “devendo realizar-se num dos cinco dias subsequentes” (artigo  386°, nº 2 do Cód. Proc. Civil).

- É o artigo 17º do CIRE que impõe tal aplicação subsidiária do Cód. Proc. Civil “em tudo que não contrarie as disposições do presente código”.

- Tal natureza urgente apela à aplicação analógica do artigo 386º, nº 2 do Cód. Proc. Civil.

8º- Tudo impunha a decisão de adiamento da audiência de discussão e julgamento.

 Não o tendo feito, houve erro de julgamento no despacho prévio) que determina, em consequência, a nulidade do posteriormente processado, a sentença também aqui recorrida pois que o Juiz (já) não podia pronunciar-se sobre aquelas questões (art. 668°, nº 1 d), 2ª parte, do Cód. Proc. Civil. 

9º- Mesmo que assim se não entendesse e se valorasse a falta do gerente da Requerida e do seu representante pessoal, a verdade é que o I advogado (…) era também o mandatário judicial da Requerida e do Sr. (…)a e a falta dele, nesta dupla qualidade de advogado destas duas pessoas jurídicas, não teria o efeito cominatório do artigo 35º do CIRE, antes impunha o adiamento à luz dos normativos citados em 7° destas.

10º- O que também impunha o adiamento do julgamento.

Não o tendo feito, houve erro de julgamento no despacho prévio que determinou, em consequência, a nulidade da sentença proferida de seguida pois que o Juiz não podia (já) não podia pronunciar-se sobre aquelas questões (artigo 668°, nº1, d), 2ª parte, do Cód. Proc. Civil).

11º - Sem prescindir do alegado supra, há também nulidade da sentença, da alín. c) do nº 1 do mesmo artigo 668º do Cód. Proc. Civil “fundamentos em oposição com a decisão”, pois que ao julgar pela prova por confissão dos factos da p.i. a M.Mª. Juíza “a quo” julgou em contradição com os documentos dos autos (não há dívidas ao Estado, fiscais e de segurança e de segurança social e decidiu-se em contrário!; a decoração, dísticos de interior e das montras são os da “Holiday Travel” e não os da “(…)” como se decidiu!).

12º- As testemunhas arroladas pela Ré em número de 5 eram duas a apresentar, sendo três a notificar. Estas não o foram como não foram as aditadas pelos Requerentes, o que, só por si, era causa de adiamento da audiência de discussão e julgamento.

13° - Por último desde 17 de Junho de 20H que o Sr. (…)a cedeu a sua quota na “M (…)Lda,” ao Sr. (…), na sequência de aturada negociação decorrente desde Dezembro 2010/Janeiro 2011.

E desde 27 de Julho de 2011 que não era gerente da “M (…) Lda.”  - cfr. doc. nº 1 destas.

14º - Daqui decorre:

- o efeito cominatório do artigo  35° do CIRE já não podia resultar  da sua falta, pois que era ex-gerente da Requerida “M (…) Ldª,”.

- A fixação de residência e demais obrigações através dela impostas à Requerida M (…) Ldª. não produzem qualquer efeito.

- Em definitivo, se assim se não entender, então a notificação da sentença para produzir efeitos em relação à Requerida terá de ser feita na pessoa do seu actual sócio.

15° - Nestes termos, deve:

a) Ordenar-se, nos termos do artigo 159°, nº 3 do Cód. Proc. Civil a rectificação referida nos nº.s 1 a 5 destas;

b) Julgar-se pela nulidade da sentença nos termos do disposto no artigo 668°, no 1 d) do Cód. Proc. Civil nos termos do no 6 destas.

c) Julgar-se que houve erro de julgamento no despacho prévio que não adiou a audiência de discussão e julgamento à luz do disposto nos artigos 155º, nº 5, 651º, nº 1 d) do Cód. Proc. Civil, ex vi artigo 17° do CIRE, com aplicação subsidiária do artigo 386°, nº 3 do Cód. Proc. Civil.

d) Julgando-se em consequência, pela nulidade da sentença já que a M.Mª. Juíza “a quo” se não podia pronunciar (já) sobre essas questões subsequentes (artigo 668º, nº1 d), 2ª parte do Cód. Proc. Civil.

e) Julgar-se pela nulidade da sentença por os fundamentos dela estarem em contradição com a decisão, artigo 668º, nº1 c) do Cód. Proc. Civil, conforme nº 11 desta.

- O que tudo determina a revogação do despacho e sentença recorridos, com as legais consequências, como é de Justiça!

16º- Se mesmo assim Vª.s Exª.s não sufragarem o alegado e requerido supra, sempre a sentença só pode produzir efeitos em relação à sociedade - face ao alegado em 13º desta - se feita na pessoa do seu actual sócio - o que se requer a Vª.s Exª.s seja ordenado”.

Os apelados contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso e confirmação da decisão recorrida, pedindo ainda a condenação da recorrente e do seu legal representante, (…), como litigantes de má fé em indemnização a favor dos mesmos no valor mínimo de € 10.000,00 “pelo despudor revelado com a sua alegação”. Pedem ainda que seja oficiado aos serviços do Ministério Público “para promoção competente procedimento criminal, por falsidade das declarações prestadas, contra os seus autores, (…) e (…)”.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO

Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras[1], importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito[2].

 Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar fundamentalmente:

- Rectificação da acta, nos termos do artigo 159º, nº3 do Código de Processo Civil;

- Nulidades da decisão recorrida:

- Admissibilidade do adiamento da audiência requerido pelo mandatário da requerida.

 

III. FUNDAMENTO DE FACTO

Para além dos factos descritos no relatório supra, com relevância para a apreciação do objecto do presente recurso mostra-se provado:

1. Consta da acta de audiência de julgamento realizado a 30 de Junho de 2011, designadamente: “Iniciada a audiência de julgamento, à hora designada, o Dr. (…) fez chegar aos autos, via Citius, um requerimento a informar que não poderia estar presente na audiência de julgamento, pelos motivos constantes do mesmo”.

2. Sobre tal questão foi proferido o seguinte despacho, objecto deste recurso: “Através de comunicação electrónica, hoje junta aos autos, o advogado constituído da requerida “M (…), Ldª” veio comunicar encontrar-se impossibilitado de comparecer por motivos de doença súbita, e pediu o adiamento da mesma, uma vez que representa pessoalmente o gerente (…), ausente de Coimbra e impossibilitado de comparecer, devendo ser designada ser designada nova data.

Juntou procuração emitida a seu favor pelo sócio gerente (…) com data de 20 de Junho de 2011.

Ouvidos os requerentes, devidamente representados pelos seus mandatários, com poderes especiais para transigir, vieram os mesmos manifestar a sua oposição ao adiamento da audiência, porquanto carece de fundamento legal tal pretensão, pois o presente processo, para além de especial, assume natureza urgente.

(…)

Quanto ao adiamento

Dada a natureza urgente do presente processo especial de insolvência e a redacção da norma do artº. 35, do CIRE, é possível adiar, com base nas normas do CPC, a presente audiência de discussão e julgamento?

Entendemos que não.

Consultada a anotação ao artº. 35, proferida por Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, in “CIRE Anotado”, Vol. I, Quid Júris 2006, p. 184, verifica-se que é defendido que na falta do devedor ou do seu mandatário (representação legítima da requerida), esse comportamento omissivo equivale a confissão do pedido, pressupondo que o adiamento do julgamento não é admissível.

Também a jurisprudência toma posição, invocando que, em processo especial de insolvência, a falta de comparência à audiência de discussão e julgamento do requerente ou de um seu representante com poderes especiais, ainda que este coincida com a pessoa do seu mandatário judicial, não determina o adiamento da audiência, por ser aplicável àquela falta de comparência o regime especial do artº. 35, nºs. 1 e 3, do CIRE, que se sobrepõe, em face da natureza urgente que o ditou, ao regime de adiamentos por falta dos mandatários judiciais do artigo 651, do CPC (v. Ac. do TRLisboa de 16.07.2009, tomado por unanimidade, publicado in WWW.dgsi.pt).

No mesmo sentido encontrámos ainda o Ac. do TRCoimbra de 07.06.2005, tomado por unanimidade, e publicado no mesmo sítio.

Nestes termos, pelos motivos supra expostos, decido:

- não proceder ao adiamento do julgamento, por carecer de fundamento legal;

- e, face à norma aplicável do artº. 35, nºs. 2 e 4, do CIRE, encontrando-se confessados os factos alegados na petição inicial...”.

           

            IV. FUNDAMENTOS DE DIREITO

            1. Procedimento a que alude o nº 3 do artigo 159º do Código de Processo Civil

            Pretende a recorrente a rectificação da acta, nos termos do nº 3 do artigo 159º do Código de Processo Civil, com fundamento no facto de existir desconformidade entre o que dela consta quanto ao envio do requerimento do seu mandatário a solicitar o adiamento da audiência (na véspera, pelas 18 horas, segundo alega, por via electrónica) e o que, a esse respeito, dela se fez constar.

            A existir tal desconformidade (e nem sequer é seguro que exista, pelo menos enquadrável no citado dispositivo legal) deveria a mesma ser suscitada em primeira instância, perante a Senhora Juiz que presidiu ao acto.

            Não está, naturalmente, no âmbito dos poderes desta Relação a apreciação dessa eventual irregularidade, sobre a qual nem sequer pode exercer a sua sindicância.

            2. Nulidades da sentença

            O nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil prevê os vários casos de nulidade que podem afectar a sentença, determinando que “é nula a sentença quando:

            a) Não contenha a assinatura do juiz;

            b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

            c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão;

            d) O juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

            e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido;

f) Seja omissa no que respeita à fixação da responsabilidade por custas, nos termos do nº 4 do artigo 659º”.

            O nº1 do artigo 668º do Código de Processo Civil contém uma enumeração taxativa das causas de nulidade da sentença[3], nelas não se inserindo o designado erro de julgamento, que apenas pode ser atacado por via de recurso, quando o mesmo for legalmente admissível[4].

            Na alínea c) do nº1 do artigo 668º do Código de Processo Civil enquadra-se o vício da sentença em que ocorra oposição entre os seus fundamentos e a decisão.

            E, também aqui importa realçar que o vício em causa se reporta à sentença e não à decisão sobre a matéria de facto, realidades naturalmente distintas, mas que, sobretudo em sede de alegações de recurso, tendem por vezes a ser confundidas. Não se cuida, no vício apontado pela alínea c) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil, de indagar se existe contradição/oposição entre a decisão que julga a matéria de facto e os fundamentos que a motivaram, como sucede na hipótese delineada pelo artigo 653º da lei adjectiva, mas antes de averiguar se essa oposição ocorre entre a decisão que aprecia a matéria controvertida e os fundamentos quer de facto, quer de direito que contribuíram para essa mesma decisão.

            Numa perspectiva silogística da sentença, a decisão nela contida deve estar numa relação lógica e coerente com as respectivas premissas, que a hão-de anteceder, sendo aquela o resultado natural decorrente das mesmas.

            Isto é, “a decisão tem como antecedentes lógicos os fundamentos de direito (premissa maior) e os fundamentos de factos (premissa menor), não podendo o sentido da decisão achar-se em contradição ou oposição com os fundamentos, o que sucede sempre que na construção da sentença os fundamentos expressos pelo juiz, necessariamente, haveriam de conduzir a uma solução de sentido antagónico: a proposição final (conclusão) revela-se incompatível com as proposições logicamente antecedentes (fundamentos), o que traduz um vício de raciocínio. A nulidade de oposição entre os fundamentos e a decisão não se confunde com o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, ou com a inidoneidade dos fundamentos para conduzir à decisão”[5].

            Configura-se a nulidade tipificada no citado preceito quando “o juiz escreveu o que queria escrever; o que sucede é que a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto”[6].

Ou seja: “…se os fundamentos invocados conduzem logicamente, não ao resultado expresso da decisão, mas a resultado oposto ou pelo menos diferente, em última análise a decisão carece de fundamento”[7].

A propósito do vício inserto na alínea d) do aludido normativo, escreveu Anselmo de Castro[8]: «O vício relaciona-se com o dispositivo do art.° 660.°, n.° 2.° e por ele se tem de integrar. A primeira modalidade tem a limitação aí constante quanto às decisões que devam considerar-se prejudicadas pela solução dada a outras; a segunda reporta-se àquelas questões de que o tribunal não pode conhecer oficiosamente e que não tenham sido suscitadas pelas partes, como nesse preceito se dispõe.

            A palavra questões deve ser tomada aqui em sentido amplo: envolverá tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das excepções e da causa de pedir (melhor, à fundabilidade ou infundabilidade dumas e doutras) e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem. Esta causa de nulidade completa e integra, assim, de certo modo, a da nulidade por falta de fundamentação. Não basta à regularidade da sentença a fundamentação própria que contiver; importa que trate e aprecie a “fundamentação jurídica dada pelas partes. Quer-se que o contraditório propiciado às partes sobre os aspectos jurídicos da causa não deixe de encontrar a devida expressão e resposta na decisão.

            Seria erro, porém, inferir-se que a sentença haja de examinar toda a matéria controvertida, se o exame de uma só parte impuser necessariamente a decisão da causa, favorável ou desfavorável. Neste sentido haverá que compreender-se a fórmula da lei “exceptuadas aquelas questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”».

            Através do despacho recursivamente impugnado a Srª Juiz da primeira instância, tomando posição sobre o requerimento formulado pelo mandatário da requerida, limitou-se a indeferir o adiamento da audiência, por entender que a natureza urgente do processo não comportava a admissibilidade desse adiamento e, considerando, nessa perspectiva, não se encontrar presente a requerida, nem o seu mandatário, a quem conferiu poderes especiais para a representar no acto, aplicando a cominação prevista no nº 2 do artigo 35º do CIRE, julgou confessados os factos articulados na petição inicial.

Tal decisão, de cujo mérito se cuidará de apreciar de seguida, não enferma de qualquer dos vícios apontados pela recorrente.

3. Do mérito do decidido

3.1. Adiamento da audiência

Tendo sido deduzida oposição pela requerida ao pedido de declaração de insolvência da mesma, e havendo sido designada data para a realização da audiência, antecipou-se ao seu início o mandatário da requerida, dotado de poderes especiais para a representar no acto, invocando doença súbita, pedindo o adiamento da audiência.

Entendeu a Srª Juiz dever indeferir o requerido, com fundamento no facto de o processo de insolvência, dada a sua natureza urgente, não admitir tal adiamento.

Sem razão, porém, desde já se adianta.

Não se contesta a natureza urgente do processo de insolvência, a qual, de resto, se encontra expressamente assinalada no nº 1 do artigo 9º do CIRE.

Mas tal circunstância, por si só, não constitui razão para afastar a admissibilidade do adiamento da audiência.

Nenhuma das normas do CIRE afasta expressamente essa possibilidade, dispondo o seu artigo 17º que “o processo de insolvência rege-se pelo Código de Processo Civil em tudo o que não contrarie as disposições do presente Código”.

Estabelece o nº 5 do artigo 155º do Código de Processo Civil que “os mandatários judiciais devem comunicar prontamente ao tribunal quaisquer circunstâncias impeditivas da sua presença e que determinem o adiamento de diligência marcada”.

De acordo com o artigo 651º, nº1, d) do mesmo diploma legal, constitui causa de adiamento da audiência a falta de “…algum dos advogados que tenha comunicado a impossibilidade da sua comparência, nos termos do nº5 do artigo 155º”.

Essa impossibilidade foi, como se disse, comunicada pelo mandatário da requerida, ora apelante.

A natureza urgente do processo de insolvência não arreda a admissibilidade do adiamento da audiência. Também as providências cautelares se revestem de idêntica natureza e ela não afasta a possibilidade do adiamento por falta do mandatário de uma das partes, prevendo-a, pelo contrário, expressamente o nº 2 do artigo 386º do Código de Processo Civil.

A admissibilidade do adiamento da audiência em processo de insolvência em que o mandatário haja procedido à comunicação a que alude o artigo 155º, nº5 do Código de Processo Civil é defendida, entre outros, pelo Acórdão da Relação do Porto de 26.01.2009[9] e pelo Acórdão da Relação de Guimarães de 14.01.2008[10].

Este entendimento não pode ser afastado pelo efeito cominatório especial previsto nos nºs 2 e 3 do artigo 35º do Código de Processo Civil. Tal efeito cominatório apenas opera na falta dos mandatários que nada comuniquem quanto à razão de ser dessa ausência, revelando desinteresse com essa atitude omissiva.

Como se afirma no citado acórdão da Relação do Porto de 26.01.2009, “o preceituado no art. 35º do CIRE aplica-se sem prejuízo do disposto nos artigos 651º e 155 do CPC que é de aplicação subsidiária às situações especialmente reguladas naquele, por força do art. 17º do mesmo”.

Retira-se, por sua vez, do Acórdão da Relação do Porto de 29.01.2008[11]: “faltando o requerente à audiência, a interpretação que se tem por mais consentânea com o supra expendido, passa por uma de duas situações:

1ª- Ou a falta é concomitantemente acompanhada por outros factos ou elementos que indiciem, com toda a probabilidade, que o requerente se desinteressou da sua pretensão e, então, sim, deve ser proferida decisão homologatória da desistência do pedido, fundamentada nos referidos elementos que clamem tal conclusão,

2ª- Ou não é acompanhada por tais factos ou elementos e, então, deve o juiz produzir a prova carreada, com gravação da mesma nos termos do nº5 do artº 651º do CPC, sustando, todavia, na decisão, e aguardando que o requerente justifique a falta ou diga o que se lhe oferecer, no prazo de cinco dias nos termos do nº6 do dito preceito.

E, neste caso, cumpre ainda distinguir:

-Se a falta for justificada ou o motivo invocado atendido, deverá o processo seguir os seus termos, porventura com prolacção imediata de sentença em função da prova já produzida.

-Se pelo requente nada for dito ou a falta não for considerada justificada então sim, tem de concluir-se que o mesmo desistiu do pedido, havendo nesse momento, mas só aqui e não antes, que proferir decisão homologatória de tal desistência”.

Efectuada a comunicação a que se reporta o nº5 do artigo 155º do Código de Processo Civil e requerido o adiamento da audiência, antes do seu início, deveria este ter sido determinado, ao abrigo da alínea d) do nº 1 do artigo 651º do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 17º do CIRE.

Ao proceder-se à realização da audiência, nestas circunstâncias, sem a presença do mandatário e representante da requerida, sem assegurar o direito ao contraditório e fazendo operar, nessa ausência, o efeito cominatório do nº2 do artigo 35º do CIRE, foi praticado acto que a lei não permite, e que influiu na decisão da causa, correspondendo-lhe, assim, a nulidade mencionada no artigo 201º do Código de Processo Civil, vício que implica a anulação dos actos subsequentes, incluindo a sentença proferida.

Síntese conclusiva:

- Designada data para a realização da audiência em processo de insolvência, se, antes do seu início, um dos mandatários das partes, alegando impossibilidade de a ela comparecer, comunicar o facto, nos termos do nº5 do artigo 155º do Código de Processo Civil, e requerer o adiamento da diligência, esta deve ser adiada, em conformidade com o disposto no artigo 651º, nº1 d) do mesmo diploma legal, ex vi do artigo 17º do CIRE, a tal não obstando a natureza urgente do processo, fixada no artigo 9º, nº1 deste último diploma, que apenas deverá ser atendida na designação da nova data.


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Pelo exposto, julgando procedente a apelação, decide-se revogar a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra em que, após tomada de posição acerca da factualidade vertida no ponto 13º das conclusões das alegações da recorrente e do documento com elas junto pela mesma, designe nova data para a audiência.

Custas: pelos apelados.



Judite Pires ( Relatora )

Carlos Gil

Fonte Ramos


[1] Artigos 684º, nº 3 e 685-A, nº 1 do C.P.C., na redacção conferida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto.
[2] Artigo 664º do mesmo diploma legal.
[3] Cf. Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil anotado”, vol. V, pág. 137.
[4] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., pág. 686.
[5] Acórdão do STJ, 07.05.2008, processo nº 3380/07, www.dgsi.pt.
[6] Alberto dos Reis, ob. cit., vol. V, pág. 141; cf. Antunes Varela, Miguel Bezerra, ob. cit., pág. 690.
[7] Anselmo de Castro, ob. cit., pág. 142.
[8] “Direito Processual Civil Declaratório”, vol. III, pág. 142.
[9] Processo nº 0858056, www.dgsi.pt.
[10] Processo nº 2378/07-2, www.dgsi.pt.
[11] Processo nº 0726020, www.dgsi.pt.