Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
187/20.6GCACB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO NOVAIS
Descritores: CÔMPUTO DO PRAZO DA PENA ACESSÓRIA DE PROIBIÇÃO DE CONDUZIR VEÍCULOS COM MOTOR
Data do Acordão: 11/10/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE ALCOBAÇA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 479.º DO CPP
Sumário: O cômputo do prazo da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor deve ser feito de acordo com as regras estabelecidas para a pena de prisão, previstas no art. 479.º do CPP.
Decisão Texto Integral:







I -  Relatório
1.1.  O Ministério Público interpôs recurso do despacho judicial proferido pelo Juízo Local Criminal de Alcobaça, que fez coincidir o início da contagem da pena acessória de inibição de condução de veículos motorizados com o momento da entrega do respectivo título habilitante, por aplicação da art.º 479º, n.º 1 do CPP. 
1.2. No recurso em apreciação o Ministério Público apresentou as seguintes conclusões:
1. No caso concreto, o arguido foi condenado na pena acessória de quatro meses de proibição de conduzir veículos a motor e o mesmo entregou a carta de condução nos presentes autos em 25.11.2020 (cf. termo de entrega – ref. CITIUS 95355785).
2.. De acordo com a regra prevista na alínea b) do artigo 279.º do Código Civil, no cômputo do prazo da pena acessória não se inclui o dia em que ocorrer o evento a partir do qual o prazo começa a correr – ou seja, o dia em que o título de condução é entregue, apreendido ou remetido ao processo da condenação.
Assim, o primeiro dia do prazo da pena acessória corresponde ao dia 26.11.2020.
3. Segundo a regra prevista na alínea c) do artigo 279.º do Código Civil, o prazo fixado em meses termina às 24 horas do dia que corresponda, dentro do último mês, a essa data. Portanto, o último dia do prazo da pena acessória corresponde ao dia 26.03.2021, sexta-feira, vigorando a mesma durante todo esse último dia, desde as 00h01 até às 24h00, não sendo legítimo proceder à restituição do título de condução antes das 24h00 desse último dia.
4. A circunstância da carta de condução se encontrar apreendida junta aos presentes autos não impede o arguido de ter acesso ao respectivo título de condução logo nos primeiros minutos do dia 27.03.2021, sábado, bastando para tanto que o Tribunal remeta previamente a carta de condução ao posto policial da área de residência do arguido para que este possa ter pronto acesso à mesma logo que se inicie o dia 27.03.2021.
5. O despacho recorrido, ao decidir que a pena terminará no dia 25.03.2021, procedeu ao cômputo do prazo da pena acessória infringindo a regra prevista na alínea b) do artigo 279.º do Código Civil, aplicável por remissão do artigo 296.º do mesmo diploma, pelo que padece de ilegalidade.
6. Consequentemente, pugna-se pela revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que declare que o prazo de dez meses da pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor teve início no dia 26.11.2021 [artigo 279.º, alínea b) do Código Civil] e vigorará até às 24h00 do dia 26.03.2021, sexta-feira [artigo 279.º, alínea c) do Código Civil], determinando que o título de condução possa ser restituído ao arguido a partir das 00h01 do dia 27.03.2021, sábado.

 1.3. O tribunal a quo proferiu despacho de sustentação do recurso nos termos artigo 414.º, n.º 4 do Código de Processo Penal,  defendendo que “inexistindo disposição expressa quanto ao inicio da contagem da referida pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, parece-nos que o cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir se inicia, após o trânsito em julgado da decisão condenatória, no dia em que se verificou a entrega do título de condução, citando jurisprudência nesse sentido.

1.3. No parecer a que alude o art. 416º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Ministério Público junto ao Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido que (…)  

 Pese embora o esforço argumentativo do Magistrado do Ministério Público na primeira instância, sufragado, aliás, por recente Acórdão desta Relação de Coimbra de 10-03-2021, (…) não podemos acompanhar a sua pretensão.  Na verdade, parece-nos que é a partir do momento da entrega da carta de condução que deve ser contado o período de proibição de conduzir e não do dia seguinte, como defende o MP recorrente.

Assim, no topo da pirâmide legislativa encontra-se a Constituição da República que define os princípios básicos do Estado de direito, devendo toda a lei ordinária subordinar-se a tais princípios e merecer interpretação que se compagine com os mesmos.

Ora, o tratamento leal e a confiança na clareza dos procedimentos judiciais são a base para a possibilidade de um processo equitativo que admite derivações, entre as quais, o direito a um processo orientado para a justiça material “sem demasiadas peias formalísticas” (numa expressão de Gomes Canotilho) e com os princípios da segurança jurídica e da confiança, tal como fluem do artigo 2.º da CRP e tal como vêm sendo aplicados pela jurisprudência constitucional.

Como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 345/99, publicado em www.tribunalconstitucional.pt qualquer processo e mormente processo de natureza sancionatória (não esqueçamos que a pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor embora não sendo, obviamente, uma pena privativa da liberdade inibe o exercício de um direito) está sujeito à exigência constitucional (artigo 20º, nº 4) do processo equitativo o que supõe, para além do mais, que todos os intervenientes do processo, incluindo o tribunal, se movam dentro dos valores da lealdade e da confiança. E não basta que estas existam é ainda necessário que transpareçam do processo no seu todo.

Pelo que consideramos que o princípio da proteção da confiança em que deve assentar a relação de todos os cidadãos com o Estado e com as instituições que o integram, conjugado com os princípios da proporcionalidade e da igualdade, aplicáveis ao processo penal por força do artigo 4º do CPP, impõem que não seja  defraudada a legitima expectativa do arguido no sentido de que é a partir do dia que entrega a carta de condução que se inicia o cumprimento da proibição de conduzir e não do dia seguinte.

Nestes termos, emitimos parecer no sentido da improcedência do recurso interposto.

II - Fundamentação de Facto

É o seguinte o teor do despacho sob recurso (transcrição)

Pena acessória de inibição de conduzir veículos com motor (pena de quatro meses):

Data do início: 25.11.2020 - data da entrega do titulo.

Data do término: 25.03.2021 (sem prejuízo de alteração da data caso se apure que o arguido é titular de outro documento válido que lhe permita conduzir veículos com motor/verificação do previsto no art. 69.º, n.º 6, do CP – outras privações de liberdade).

(…).

       III – Fundamentação de Direito

       Apreciando e decidindo

       a) O objecto do recurso encontra-se limitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo da necessidade de conhecer oficiosamente a eventual ocorrência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410º do Código de Processo Penal (jurisprudência fixada pelo Acórdão do STJ n.º 7/95, publicado no DR, I Série-A, de 28.12.1995.

       b) A única questão a apreciar nesta instância de recurso, prende-se em saber se, o cômputo do prazo da pena acessória de conduzir veículos com motor deve ser feito com recurso aos arts 296º e 279º do Cód. Civil, como defende o recorrente Ministério Público junto ao tribunal a quo, ou se deve ser aplicado para o efeito o artigo 479º do C.P.P., como decidiu o despacho recorrido, o qual merece ainda a concordância do Procurador do Ministério Público junto a este tribunal a Relação.

       

           c) Apreciando, diga-se que as duas posições têm encontrado eco na nossa jurisprudência, inclusive dentro deste tribunal da Relação de Coimbra, sendo divergência que clama pela clarificação de um acórdão de fixação de jurisprudência.

           A posição defendida pelo recorrente, é a acolhida por exemplo no acórdão desta Relação de 10-3-2021, processo n.º 6/20.9PAACB-A.C1

           A argumentação deste aresto, socorre-se da letra do artigo 69.º, n.º 6, do Código Penal, que estatui que “Não conta para o prazo da proibição o tempo em que o agente estiver privado da liberdade por força de medida de coação processual, pena ou medida de segurança.” (sublinhado nosso), assim se concluindo que o tempo de proibição configura um prazo, distinguindo a pena, enquanto consequência jurídica da prática do crime, com a duração dessa mesma pena, correspondente ao lapso de tempo durante o qual a pena produz os seus efeitos.

             Sustenta-se ainda na constatação de resultar dos trabalhos preparatórios do Código Civil, que foi intenção do legislador firmar no nosso ordenamento jurídico regras unitárias sobre a contagem dos prazos, pelo que o artigo 296.º e as normas do artigo 279.º se aplicam tanto no campo do direito privado como no direito público.

           d) A posição contrária, encontra acolhimento, por exemplo, no também recente acórdão desta Relação de Coimbra de 9-6-2021, proferido no processo n.º 54/18.3GCACB-A.C1, defendendo a aplicação do artigo 479º do C.P.P., com argumentos que se retiram:

           - Da natureza de pena (ainda que acessória) da proibição de conduzir veículos motorizados, porque ligada à culpa do agente, e justificada pelas exigências de prevenção; 

           - Do teor do  artigo 500º, nºs 2, 3 e 4 do Código de Processo Penal  do qual resulta que é com a entrega voluntária da licença de condução ou com a sua apreensão, que se efectiva a inibição de conduzir, pelo que o momento em que o condenado fica desapossado da sua licença de condução tem que corresponder ao início da  execução da pena acessória, citando-se  jurisprudência em conformidade,  como Ac. da RE de 4.2.2010, o Ac. da RG de 23.11.2020e o Ac. da RG de 8.7.2002,  ou Ac. da RE de 29.3.2005 o Ac. da RP de 19.6.2006, in www.jusnet.pt, o Ac. da Relação do Porto  de 7.12.2005, disponíveis em www.dgsi.pt.;

           - A palavra “prazo” incluída no artigo 69.º, n.º 6, do Código Penal assume apenas o significado de “período”, “duração”, não atribuindo outra natureza ao período de cumprimento da pena acessória; a contagem da pena acessória não é um prazo, mas sim uma pena que se quer executar;

             - As normas de contagem de prazos não se adequam à execução de penas, dando como exemplo a alínea e) do artigo 279º do CC, o qual transfere o prazo que termine em domingo ou dia feriado para o primeiro dia útil;

             - O entendimento que defende a aplicação das normas civis, resulta em prejuízo para o arguido, uma vez que com a entrega ou apreensão fica desapossado da dita licença, proibido de conduzir, mas esse dia não entra no cômputo da pena acessória;

             - A necessidade de manter a unidade do sistema jurídico, sendo pouco compreensível que, não havendo norma expressa para a contagem da pena acessória de inibição de conduzir, se utilizassem critérios distintos na liquidação das penas principais e nas penas acessórias;

             - Do artigo 182º, nº 3, alínea a), do Código da Estrada, relativo ao cumprimento da sanção acessória de inibição de conduzir, resulta que o mesmo tem o seu início com a entrega do título de condução à entidade competente, não sendo facilmente compreensível que a contagem da a sanção acessória fosse diferente da contagem da pena acessória prevista no artigo 69º do Código Penal.

            e) No caso, ponderados os argumentos deduzidos pelas duas orientações, que acima se tentaram sintetizar, parece-nos que inexistindo norma diretamente aplicável ao caso,  a específica natureza de pena (ainda que acessória), da proibição de condução de veículos com motor prevista no art 69º do Cód. Penal,  implica que a contagem do seu cômputo se faça  de acordo com as regras estabelecidas para a pena de prisão previstas no art 479º do C.P.P., como defendido pelo despacho sob recurso.           

               A argumentação desta posição parece-nos mais sólida e coerente, enquanto retirada do ordenamento jurídico no seu todo, e não apenas da interpretação literal da palavra “prazo” prevista no art 69º n.º 6 do Cód. Penal, e da intenção do legislador do Cód. Civil, no sentido de aplicar as disposições desse diploma a outros ordenamentos que não apenas o civil.

             Significativo é ainda que a aplicação das normas civis se mostra desadequadas, não só porque visa realidades distintas, como ainda porque, por exemplo a aplicação do artigo 279º al. e) do Cód. Civil, implicaria que o prazo de uma pena acessória de proibição e condução que terminasse a um domingo ou feriado, seria transferido para o dia útil seguinte, o que oneraria o condenado com o cumprimento de uma pena superior àquela em que foi condenado.

             Ainda que a privação da liberdade resultante da aplicação de uma pena de prisão constitua uma restrição de  um direito  fundamental muito mais grave do que a  originada pela aplicação da proibição de conduzir um veículo com motor, esta última não deixa de constituir uma limitação ao exercício de um direito, não se vendo razão para que ao condenado nesta pena acessória, seja  aplicado um regime decalcado do direito civil (que se mostra até desadequado, como no caso a aplicação do artigo 279º al. e) do Cód. Civil), e não o regime de contagem estabelecido para uma pena de prisão, com o qual manifestamente apresenta maiores afinidades.

           Parece-nos ainda pertinente a argumentação deduzida pelo Ex.º Procurador do Ministério Público junto deste Tribunal da Relação, no sentido de qualquer processo, em especial de natureza sancionatória, estar sujeito à exigência constitucional (artigo 20º, nº 4 da CRP) do processo equitativo o que supõe, para além do mais, que todos os intervenientes do processo, incluindo o tribunal, se movam dentro dos valores da lealdade e da confiança;  a aplicação do regime civil à contagem da pena acessória de proibição de condução defraudaria a normal expectativa do arguido, no sentido de que é a partir do dia que entrega a carta de condução que se inicia o cumprimento da proibição de conduzir e não do dia seguinte, sendo essa a solução que contribui para uma relação simples, transparente entre o tribunal e o cidadão, e para a expressão de   um processo orientado para a justiça material, e não excessivamente técnico ou formalista.


 IV – Dispositivo
Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar improcedente o recurso interposto.   

       Sem custas.

Coimbra, 10 de Novembro de 2021

João Novais (relator)


                         

Elisa Sales (Adjunta)