Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2908/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. RUI BARREIROS
Descritores: ALIMENTOS A CARGO DO DONATÁRIO
Data do Acordão: 12/16/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Legislação Nacional: ART.º 516º C. C.
Sumário:
I - Uma doação de dinheiro é fonte da obrigação de prestar alimentos. Além da necessidade do credor e da possibilidade do devedor, é requisito da obrigação que, por um lado, o bem doado servisse para o sustento do doador, se lá estivesse (no património do doador), e, por outro lado, que tivesse gerado riqueza no património do donatário. A doação de bens deterioráveis ainda pode ser fonte da obrigação de alimentos.
Decisão Texto Integral:
Acordam, na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, no recurso de agravo nº 2908/03, vindo do 1º Juízo Cível do Tribunal da Comarca de Leiria (alimentos provisórios nº 4746/03.3):
I – Relatório.
1. Requerente: Teresa Maria Ferreira Pardal, divorciada, reformada, residente na Rua Álvaro Pires de Miranda, lote 42, 2º Esq. - B, em Leiria.
2. Requerida: Igreja Universal do Reino de Deus, contribuinte 502 526 408, com sede na Alameda D. Afonso Henriques, nº 35, em Lisboa.
3. Pedido: condenação da requerida a prestar mensalmente à requerente alimentos provisórios no montante de 400 euros mensais.
4. Causa de pedir: doação à requerida de dinheiro sendo que a requerente tem uma situação económica insuficiente para prover às suas necessidades.
5. A requerida contestou, impugnando os factos alegados pela requerente.
6. Foi produzida prova documental, inquiridas testemunhas e proferida decisão a julgar parcialmente procedente a pretensão da requerente, fixando-se em 376,27 euros a prestação de alimentos provisórios a pagar pela requerida à requerente, até ao dia 8 do mês a que disser respeito, até ao limite máximo de 19.669,10 euros, a partir de 1 de Dezembro de 2002.
7. A requerida interpôs recurso de agravo, que foi recebido.
Produziu alegações, com as seguintes conclusões:
...
7.9. Por último, deve fazer-se uma interpretação restritiva da norma prevista no artigo 2011° do C.C., no sentido de apenas se aplicar a doações de bens duradouros, não consumíveis, susceptíveis de gerarem rendimentos, sob pena de conduzir a situações aberrantes.
8. Nas suas alegações, a recorrida defende que ... . Relativamente à questão de direito, defende que o dinheiro é uma coisa fungível e não consumível, susceptível de gerar rendimento.
9. Correram os vistos e nada obsta ao conhecimento do recurso.
II – Fundamentação.
10. Os factos.
10.1. A Requerente está reformada por invalidez em virtude de ser portadora de leucemia granulocítica crónica.
10.2. Em 1994, foi diagnosticado à Requerente uma leucemia ganulocítica (Mielóide) crónica com cromossoma de Filadélfia positivo.
10.3. Iniciou então quimioterapia, pelo que o quadro hematológico regrediu.
10.4. Em 1994 a Requerente tinha mais de 10 mil contos depositados no Banco, vivendo dos juros do respectivo capital.
10.5. Em Outubro desse ano, a Requerente passou a frequentar a Requerida e no final de Setembro de 1996 tinha depositados no Banco Esc. 62.854$50.
10.6. Entre Outubro de 1994 e Setembro de 1996, a Requerente doou à Requerida cerca de Esc. 3.943.300$00, sendo Esc. 1.943.300$00 entregues por cheque e os restantes entregues em numerário.
10.7. A Requerente entregava à Requerida quase diariamente dinheiro ou cheques.
10.8. Os cheques referidos pertenciam à conta n.º 84667906 (de que a Requerente era a 1ª titular) e da conta n.° 9623953 (conta solidária com sua filha Carla Teresa mas cujo dinheiro apenas à Requerente pertencia).
10.9. Em 1996, o estado de saúde da Requerente agravou-se.
10.10. A Requerente recebe uma reforma, que em 2002 ascendia ao quantitativo mensal de 213,73 euros.
10.11. A Requerente não tem outros bens ou rendimentos.
10.12. A Requerente necessita de medicação diariamente.
10.13. A Requerente apresenta-se deprimida psicologicamente, não recebendo tratamento para esse problema por falta de recursos económicos.
10.14. Dada a sua doença, a Requerente necessita de uma alimentação cuidada.
10.15. Até Dezembro de 2002, a Requerente viveu num quarto em casa da filha Carla.
10.16. Presentemente a Carla vive em união de facto com um indivíduo, de quem tem uma filha.
10.17. Tal casa tem apenas dois quartos, tendo sido dito à Requerente que o quarto é necessário para a neta.
10.18. Até Dezembro de 2002, a Requerente não arrendada uma casa por falta de meios.
10.19. A Requerente pretendia fazê-lo, sendo certo no mercado de arrendamento de Leiria, a renda mensal ronda pelo menos a quantia de 250,00 euros.
10.20. Para se vestir, alimentar, calçar e para outras despesas quotidianas, a Requerente gasta quantia mensal não apurada.
10.21. Em consultas médicas e medicamentos, a Requerente gasta quantia mensal não apurada.
10.22. Em água e electricidade, a Requerente gasta quantia mensal não apurada.
10.23. A Requerida utiliza vários imóveis no País, e explora frequências de rádio.
10.24. A Requerida recebe diariamente dinheiro dos seus fiéis.
10.25. Cerca do fim do ano de 1996, a Requerente deixou de frequentar a Requerida.
10.26. Durante algum tempo, no período que a Requerente frequentou Requerida, a mãe da Requerente permaneceu em casa da Requerente.
10.27. A Requerente não exercia, enquanto frequentou a Requerida, nem exerce actualmente, trabalho remunerado.
10.28. Normalmente, a Requerente apresenta-se bem vestida.
10.29. A Requerente frequenta cafés.
10.30. Depois do seu divórcio, a filha da Requerente viveu com a Requerente.
10.31. A Requerente, depois de deixar de frequentar a Requerida, passou a frequentar outra Igreja (Assembleia de Deus).
11. O Direito.
A recorrente põe em causa matéria de facto dada como provada e a aplicação que foi feita da norma constante do artigo 2.011º do Código Civil diploma a que pertencem os restantes artigos sem referência..
...
11.2. Passemos à segunda questão, a da recorrente se insurgir contra a interpretação feita da norma constante do artigo 2011º: deveria restringir-se a sua aplicação à doação de bens duradouros, não consumíveis, susceptíveis de gerarem rendimentos, sob pena de se poder chegar a situações aberrantes.
11.2.1. A recorrente começa por chamar a atenção para o facto da obrigação de alimentos a cargo do donatário ser acidental. É uma afirmação que não interfere com a questão colocada: aplicação feita pela MMª Juíza, de acordo com a letra da lei, ou uma interpretação restringindo o que lá está escrito. A afirmação acabada de referir natureza acidental da obrigação de alimentos por parte do donatário. consta de anotação ao artigo 2011º, da autoria dos Senhores Professores Pires de Lima e Antunes Varela Código Civil Anotado, Coimbra Editora, 1995, vol. V, pág. 598, anotação ao artigo 2011º., por se tratar de uma obrigação que não assenta nos vínculos de solidariedade familiar. Portanto, tal como dizem os referidos Autores, e a recorrente relembra, a obrigação só existe quando o necessitado tiver disposto de bens por doação - o que foi o caso - e quando esses bens teriam podido assegurar ao doador meios de subsistência - o que também é o caso, visto que até iniciar as doações, a recorrida vivia dos juros do dinheiro que tinha depositado: «em 1994 a Requerente tinha mais de 10 mil contos depositados no Banco, vivendo dos juros do respectivo capital» nº 4 dos factos provados. -. Também não há dúvidas de que o obrigado só responde dentro dos limites dos bens doados fls. 270..
11.2.2. Já não se está de acordo é com a afirmação seguinte: «o bem doado … é dinheiro. Para apreciar dos pressupostos da obrigação alimentícia há, por isso, que confrontar o montante doado com a situação actual de carência em que se encontra a recorrida e concluir se esses bens eram suficientes para prover ao seu sustento». Daqui, a recorrente afirma que os 3.943.300$00 doados não eram suficientes, 10 anos passados, para prover ao sustento da recorrida: «essa hipótese só poderia ser equacionada se partíssemos do pressuposto que o dinheiro estaria depositado numa conta bancária durante estes 10 anos, a render juros e que não se consumiria de imediato» fls. 271..
Mas, estamos de acordo com a afirmação de que, se esse dinheiro estivesse depositado, a doadora poderia usufruir dos respectivos juros. Para além de poder viver do próprio capital, consumindo-o a par-e-passo.
Ou seja, aceitamos esse pressuposto, que também foi aceite pela MMª Juíza: «atendendo ao tipo de bens doados - dinheiro - conclui-se que os mesmos podem assegurar ao doador meios de subsistência: imediatamente, enquanto meio de aquisição de bens necessários ao sustento; e mediatamente, enquanto capital gerador de rendimentos (juros)» fls. 246, § 5º; o itálico é nosso.. O fundamento desta obrigação reside no dever especial de gratidão imposto ao beneficiário da liberalidade e assenta na circunstância dele ter enriquecido gratuitamente o seu património à custa de quem, entretanto, caiu em desgraça ou miséria económica Professores Pires de Lima e Antunes Varela, obra e volume citados, pág. 599..
11.2.3. A alegação seguinte da recorrente - e é a que consta das conclusões -, tem a ver com este último aspecto focado. A recorrente, partindo da afirmação de que o dinheiro doado não permitia que a recorrida dele se servisse hoje, passados dez anos, porque se teria gasto, conclui que a norma só é aplicável à doação de bens duradouros, que ainda existam ou pudessem existir à data em que sobrevem a carência. Então, afirma que o dinheiro é um bem consumível, não podendo ser fonte da obrigação em questão.
11.2.3.1. A qualificação de bem consumível obedece a um critério jurídico e não físico, naturalístico, «pelo que as mesmas coisas podem ser consumíveis ou não consumíveis consoante os casos» Autores e obra citada na nota anterior, vol. I, pág. 187, anot. ao artigo 208º.. Não obstante a qualificação obedecer a um critério objectivo, por força da expressão uso regular «são consumíveis as coisas cujo uso regular importa a sua destruição ou alienação» (artigo 208º)., mesmo assim, sempre haverá uma margem sujeita ao que determinar o proprietário da coisa Tratado de Direito Civil Português, Professor Menezes Cordeiro, Almedina, 2000, I - Parte Geral, Tomo II - Coisas, pág. 156.. O dinheiro tem um preço, compra-se e vende-se, segundo um valor dado pelos juros (para além de se poder gastar). Isto mostra que determinado capital pode render, por sua vez, dinheiro, mantendo-se intacto aquele, o que foi salientado na sentença sob censura.
11.2.3.2. Mas, para além disto, o que interessa, para o credor da obrigação, é que os bens doados pudessem garantir meios de subsistência, «pudessem, se lá estivessem, no património do beneficiário» e não se os puderem assegurar Professores Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, vol. V, pág. 599, anot. 4 ao artigo 2011. Logo, a recorrente não pode dizer que, passados dez anos, já a recorrida não tinha nada no banco, porque tudo se passa como se ela tivesse lá o dinheiro e, depois, resta verificar se, com ele, ela sobreviveria; com o dinheiro, para já não falar dos juros, o que já foi deixado para trás. Portanto, não é correcta a afirmação de que teria de ficar «provado que o dinheiro estaria depositado, gerando os respectivos juros» fls. 272, 1ª linha., porque o que interessa é a capacidade objectiva do dinheiro para prover às necessidades da doadora, do dinheiro que se vai consumindo ou dos juros do dinheiro que não se vai consumindo. Pelo que a agravante diz, parece que a credora teria de fazer prova do trajecto que daria ao dinheiro caso o não tivesse doado. Mas, tal não é exigível e seria algo de totalmente aleatório; podemos até admitir que a doadora poderia não conseguir conservar o dinheiro no banco, pelo elevado nível das suas necessidades quotidianas, diminuindo os juros do dinheiro e depois o próprio capital; mas, neste caso, não padecia de limitações, ia-se sustentando, que é o que a recorrida quer agora. Repare-se até que a sentença lhe arbitrou uma quantia que corresponde ao capital, deixando de lado os juros que ele teria rendido estes anos todos. O que interessa para a lei é a capacidade, em abstracto, do dinheiro doado para prover às necessidades da doadora, independentemente das vicissitudes que aconteceriam se o dinheiro não tivesse sido doado.
11.2.3.3. E o que interessa, para o devedor da obrigação, é que ele tenha enriquecido com a doação, do que não haverá dúvidas que aconteceu. É que a natureza consumptiva do dinheiro advém, exclusivamente, da prática de actos jurídicos ou consumo civil; cf. Roberto de Ruggiero, Institutiones de Derecho Civil, Editorial Reus, Madrid, 1979, tradução da 4ª edição italiana, Tomo I, págs. 487 e 488. Cf. Prof. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Almedina, 1964, vol. I, pág. 255: «O consumo civil tem lugar maxime - se não exclusivamente - quanto ao dinheiro». e não de actos materiais, o que significa que, ao consumir-se para a doadora, se transferiu para o património da donatária, aí podendo manter-se e reproduzir-se.
11.2.4. Assim, não aceitando a posição da recorrente quando limita a obrigação de alimentos aos donatários de coisas com carácter duradouro, aceitamos parte das suas afirmações: a norma do artigo 2011º está pensada para doações de coisas … geradoras de rendimento e, sobretudo, aquela em que ela inclui os bens que permitem ao donatário, mais tarde, pagar a pensão alimentícia através dos seus frutos ou do produto da sua alienação fls. 271, 2º §.. Sabido que a obrigação existe mesmo que o bem doado já não se encontre no património do donatário Professores Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, vol. V, pág. 598, anotação 4 ao artigo 2011º., o dinheiro dado pela recorrida gerou rendimento à donatária, permitindo-lhe mais tarde, pagar a pensão alimentícia através dos seus frutos (juros) ou do produto da sua alienação (aquisição de bens, com valor determinado ou, até, com valor variável - acções, imóveis -).
11.2.5. Não seria isto que a recorrente queria ter dito. Mas, se olharmos ao queria dizer, não estaríamos de acordo. Ficou claro qual é o fundamento e os requisitos da obrigação alimentícia para o donatário. Não se restringem aos bens duradouros, abrangendo também bens consumíveis e até deterioráveis cf. artigo 1452º. O que importa é que, por um lado, servissem para o sustento da doadora, se lá estivessem (no seu património - no Banco ou debaixo do colchão), e, por outro lado, que tivessem gerado riqueza no património do donatário, o que pode acontecer com bens deterioráveis que, entretanto, ainda geram rendimento, e com bens consumíveis, maxime com os que se consomem civilmente.
11.2.5.1. Pode parecer difícil que a doação de bens deterioráveis ainda seja fonte da obrigação de alimentos. Mas, pense-se que um empresário de roupa doa determinada quantidade dos seus produtos: aumentou o património do donatário, diminuindo o seu, o que poderá vir a mostrar-se necessário para o seu sustento, em determinada altura. E, apesar de não interessar a quantidade doada, porque o quantum da obrigação também está por ela limitado, pense-se que esse empresário doe periodicamente produtos do seu comércio, duas vezes por ano, por exemplo, ao longo de vários anos.
11.2.6. Assim, uma doação de dinheiro, que o donatário reteve no banco, gerando juros, ou que gastou na compra de bens, que têm de se inscrever no seu activo, imobiliário ou mobiliário, é fonte da obrigação de prestar alimentos para este em favor do doador, quer por obedecer aos requisitos estabelecidos na lei, quer porque a lei não faz distinções.
III – Decisão.
Nestes termos, acordam em negar provimento ao agravo.
Custas pela recorrente.