Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
168/18.0GAACB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: NULIDADE DA ACUSAÇÃO
INTERROGATÓRIO DO ARGUIDO
DEVOLUÇÃO DO PROCESSO AO MINISTÉRIO PÚBLICO
Data do Acordão: 03/02/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE LEIRIA - J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 61.º, 120.º, N.ºS 2, AL. D), E 3, AL. C), 122, N.º 1, 141.º E 272.º, N.º 1, DO CPP; ART. 32.º, N.º 1, DA CRP
Sumário: I – Revelando-se, na decorrência da apensação de um inquérito a outro, novos factos indiciadores de crimes sobre os quais o arguido não foi confrontado, podendo sê-lo, as acusações subsequentes (pública e particular), englobando tais factos, são (parcialmente) nulas, por ter sido omitido acto legalmente obrigatório, qual seja, o interrogatório do arguido sobre a dita factualidade.

II – Considerado o princípio acusatório, o JIC não pode ordenar a prática do acto omitido em sede de instrução nem devolver o processo ao MP para repristinação do inquérito.
Decisão Texto Integral:






Acordam, em Conferência, os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

Por despacho de 08-12-2020, proferido nos autos de instrução com o número acima identificado, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo de Instrução Criminal de Leiria - Juiz 3, a Exma. Juiz julgou procedente a nulidade invocada prevista no art. 120º, nº2, al. d), do CPP e em consequência declarou a nulidade parcial da acusação pública por referência ao facto 3º e da acusação particular por referência aos factos 1º a 4º., e por isso, não pronunciou o arguido pela prática de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelo art.º 155.º, n.º 1, al. a) e 153.º, nº 1 do Código Penal e de um crime de injúria p. e p. pelo artigo 181º do Código Penal.

*

Inconformada, a assistente interpôs recurso, tendo concluído a motivação do seguinte modo:

1. A Douta Decisão Instrutória julgou verificada, como “questão prévia”, «a nulidade sanável prevista no artigo 120º, nº. 2, al. d) do CPP, decorrente da verificação da omissão apontada e em conformidade declara-se a nulidade parcial da acusação pública por referência ao facto 3º e da acusação particular por referência aos facos [sic] 1º a 4º.», por entender que as acusações continham factos que apenas chegaram ao processo após o interrogatório do arguido, sendo que este foi apenas ouvido pelos factos que constavam do processo aquando desse interrogatório.

2. As questões a apreciar são quatro, sendo identificadas autonomamente nos quatro pontos seguintes, relegando-se os argumentos para o corpo deste recurso.

3. A decisão carece de fundamentação de direito, pois apenas menciona o art. 120.º, n.º 2, al. d) do CPP, o qual pressupõe que haverá nulidade quando for violada uma norma jurídica, norma essa que o despacho não identifica, violando assim o art. 374.º, n.º 2 do CPP, ou, assim não se entendendo, o art. 615.º, n.º 1, al. b) do CPC (ex vi art.º 4.º do CPP).

4. Não deveria ter sido declarada a nulidade, pois o arguido foi ouvido em sede de inquérito quanto aos factos que constituíam objecto do processo nessa altura, sendo que o posterior acrescentar de novos factos ao objecto do processo não obriga a interrogatório complementar do arguido, uma vez que o art.º 272.º, n.º 1 do CPP estabelece a obrigação de interrogatório por referência ao inquérito e não por referência a factos ou crimes.

5. Ainda que existisse a nulidade, dela não resultaria a invalidade de qualquer acto, pois na instrução teve lugar a audição do arguido, tendo o arguido tido aí e no seu requerimento de abertura de instrução oportunidade para se pronunciar sobre os factos acrescentados.

6. Mesmo que assim não fosse, ainda assim deveria ter sido aplicada a 2.ª parte do artigo 122.º, n.º 2 do CPP, ordenando a Mm.ª JIC que fosse praticado o acto em sede de instrução (ou remetendo o processo para inquérito para haver lugar a essa prática).

Nestes termos e nos melhores de Direito, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser alterada a decisão no sentido de declarar não verificada a nulidade declarada no douto despacho, e, decorrentemente, extirpar o douto despacho da decisão de não pronúncia, para, em consequência, ser proferido despacho de pronúncia do arguido pela prática do crime de ameaça agravada e do crime de injúria relativamente aos quais foi proferido despacho de não pronúncia assente em fundamento incorrecto.

Assim se fazendo JUSTIÇA.”


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O MP respondeu ao recurso, concluindo:

“1º - Em 08.12.2020 a Juiz de Instrução Criminal exarou decisão instrutória, no âmbito da qual decidiu não pronunciar o arguido B. pelos factos que se encontram identificados na acusação pública e na acusação particular por referência ao dia 22 de dezembro de 2918, subsumíveis a um crime de injúria e a um crime de ameaça agravada, declarando verificada a nulidade sanável prevista no artigo 120°, n°. 2, al. d) do CPP.

É sobre esta decisão instrutória que recai o presente recurso.

2º - Defende a assistente que não deveria ter sido declarada a nulidade pois o arguido foi ouvido em sede de inquérito quanto aos factos que constituíam objeto do processo nessa altura. Assim, tendo sido acrescentados novos factos ao objeto do processo não havia a obrigatoriedade de realizar interrogatório complementar do arguido, em virtude do art.º 272.º, n.º 1 do CPP estabelecer a obrigação de interrogatório por referência ao inquérito e não por referência a factos ou crimes. Afirma ainda que se existisse a nulidade, dela não resultaria a invalidade de qualquer ato pois verificou-se a audição do arguido na fase da instrução, tendo aí sido dada oportunidade aquele para se pronunciar sobre os factos acrescentados.

3º - Analisando o presente caso cabe referir que, em 26.06.2019, o arguido foi sujeito a interrogatório na fase de inquérito, tendo nesse ato sido confrontado com os factos de 6 de julho de 2018 e 15 de março de 2019. Mais resulta que não foi, no entanto, confrontado com a facticidade ocorrida no dia 22 de dezembro de 2018 e que se verificava essa possibilidade em momento anterior à dedução da acusação.

4º - Ora, em conformidade com o preceituado nos artigos 118°, 120° e 122º, todos do CPP, verificou-se o cumprimento das normas legais quando a Juiz de Instrução Criminal considerou ser obrigatória a constituição de arguido e o interrogatório como arguido da pessoa contra a qual corre inquérito, não podendo haver a dedução da acusação sem que tal ato tivesse lugar. E idêntico raciocínio se fará quando se entendeu que a violação do disposto nas normas supracitadas constitui a nulidade sanável prevista no art.º 120º, nº. 2, al. d) do CPP, a qual terá como efeitos os previstos no artigo 122º do CPP.

5º - Assim sendo e porque a nulidade referida foi invocada por quem tinha legitimidade para tal e a mesma foi arguida em tempo (art.º 120º, nº. 1 e 3º, al. c) do CPP), bem andou a Juiz de Instrução Criminal ao declarar verificada a nulidade sanável prevista no artigo 120º, nº. 2, al. d) do CPP, decorrente da verificação da omissão apontada e, em conformidade, declarada a nulidade parcial da acusação pública por referência ao facto 3º e da acusação particular por referência aos facos 1º a 4º.

6º - No caso em apreço a Juiz de Instrução Criminal explanou todo este raciocínio aqui exposto em síntese, fundamentando devidamente a sua convicção e, em consequência, o teor da sua decisão.

7º - Deste modo, dadas as considerações que aqui se deixaram tecidas e aderindo na íntegra à argumentação plasmada na decisão ora posta em crise, entendemos que a mesma se mostra em conformidade com a lei, não se verificando a violação de quaisquer princípios ou preceitos legais, designadamente os mencionados pela recorrente.

Porém, decidindo, V.Exª farão a costumada JUSTIÇA.”


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Nesta Relação, o Exmo. Procurador Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer:

“(…)

2. Consideramos assistir razão à recorrente quando alega não se verificar a nulidade prevista no art. 122º, nº 2, al. d), do C. P. Penal, pois que o arguido foi interrogado durante o inquérito, ainda que não tenha sido confrontado com todos os factos que vieram depois a constar da narrativa das acusações (pública e particular) contra ele deduzidas. Na verdade, o arguido foi constituído arguido e foi interrogado, e apesar de não o ter sido sobre determinados factos que posteriormente lhe vieram a ser imputados, tal circunstância não constitui insuficiência de inquérito. 

Como se refere no Ac. Rel. Coimbra de 23/05/2007, citado no recurso interposto, nenhuma norma legal “…obriga a que o arguido seja interrogado sobre toda a matéria. É um facto que o Ac do STJ nº 1/2006, de 23/11/2005 firmou doutrina obrigatória no sentido de que “A falta de interrogatório como arguido, no inquérito, de pessoa determinada contra quem o mesmo corre, sendo possível a notificação, constitui nulidade prevista no art 120, nº 2, al d) do CPP”. Este acórdão tem como pressuposto a não constituição de arguido e absoluta falta de interrogatório do mesmo para o processo. Já não se aplica para interrogatórios complementares para apuramento de factos que, entretanto, se vão apurando conforme vai decorrendo a investigação”. Além de que o arguido “…teve sempre oportunidade para se pronunciar uma vez que houve instrução e debate instrutório. Portanto, o arguido teve oportunidade de se pronunciar sobre os factos que lhe são imputados”.

Para além disso, há que ter presente o Ac. Tribunal Constitucional nº 72/2912, DR, II Série de 12-03-2012, que não julgou inconstitucionais as normas constantes dos artigos 272.º, n.º 1, 120.º, n.º 2, alínea d), 141.º, n.º 4, alínea c), e 144.º, todos do Código de Processo Penal, quando interpretadas no sentido de que não constitui nulidade, por insuficiência de inquérito, o não confronto do arguido, em interrogatório, com todos os factos concretos que venham a ser inseridos na acusação contra ele deduzida. Deste modo, a circunstância de terem sido incluídos na acusação deduzida contra o arguido factos com os quais não chegou a ser confrontado no interrogatório realizado durante o inquérito não constitui qualquer nulidade, designadamente a prevista no art. 122º, nº 1, al. d), do C. P. Penal.

 3. Somos pois de parecer que o recurso interposto pela assistente merece provimento, pelo que deve ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que pronuncie o arguido por todos os factos que lhe eram imputados tanto na acusação do Ministério Público como na acusação particular.”


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Observado o disposto no art. 417º nº 2 do CPPenal, o arguido não respondeu.

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Procedeu-se ao exame preliminar.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


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II - Fundamentação

O âmbito do recurso é definido pelas conclusões formuladas pela recorrente na motivação -  artºs 403º, nº 1 e 412º nº 1 do CPP.

Consequentemente são apenas as questões referidas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar.

Assim sendo, as questões a decidir são:

- Nulidade por insuficiência do inquérito - por falta de interrogatório de arguido sobre factos denunciados no processo apenso aos presentes autos;

- Sanação da nulidade na instrução;

- Aplicação da 2.ª parte do artigo 122.º, n.º 2 do CPP, ordenando a Mm.ª JIC que fosse praticado o acto em sede de instrução (ou remetendo o processo para inquérito para haver lugar a essa prática).

1. O teor do despacho recorrido, proferido em 08-12-2020, é o seguinte:

I – Relatório:

 O Digno Magistrado do Mº Pº deduziu acusação contra o arguido B., imputando ao mesmo, a prática, em autoria material, concurso real e sob a forma consumada:

- dois (02) crimes de ameaça agravada, previstos e punidos pelo art.º 155.º, n.º 1, al. a) e 153.º, nº 1 do Código Penal;

- um (01) crime de detenção de arma proibida, p. e p., no presente e à data dos factos, pelo artigo 86.º, n.º 1, alíneas c) e d), da Lei n.º 5/2006, no que diz respeito às armas de fogo longas, sendo uma modificada por referência, às alíneas s), ar), e ae), n.º 1, art.º 2.º, e ainda, al. v), s), ar), e aj) do n.º 1 do art.º 2.º e art.º 3.º, n.º 6, todos da Lei n.º 5/2006 e suas alterações; no que diz respeito às munições por referência aos artigos 2.º, n.º 3, alínea a), 34.º, n.º 2, todos da Lei n.º 5/2006 e suas alterações.

A assistente M. deduziu acusação particular contra o arguido imputando ao mesmo a prática de um crime de injúria p. e p. pelo artigo 181º do Código Penal.

O Ministério Público acompanhou a acusação particular deduzida pela assistente.


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O arguido não concordando com o despacho de acusação veio requerer a abertura de instrução.

Alega o mesmo que da prova existente no inquérito não resultam indícios suficientes da prática dos crimes que lhe são imputados, referindo que relativamente aos factos identificados por referência ao dia 22 de dezembro de 2018 o arguido não foi confrontado com os mesmos quando foi sujeito a interrogatório judicial, razão pela qual a acusação nesta parte está ferida de nulidade.

O arguido veio ainda requerer a aplicação da suspensão provisória do processo por referência ao crime de detenção de arma proibida.


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Os actos de Instrução:

Foi declarada aberta instrução.

Procedeu-se ao interrogatório do arguido.

Realizou-se o debate instrutório em conformidade com o disposto no artigo 297º do Código de Processo Penal.


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II – Saneamento:

O Tribunal é competente em razão da matéria e hierarquia.


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Questão prévia.

Da nulidade.

O arguido veio invocar que na ocasião em que foi sujeito a interrogatório não foi confrontado com os factos que se encontram identificados na acusação pública e na acusação particular por referência ao dia 22 de dezembro de 2918. O arguido alega que a falta de interrogatório constitui a nulidade prevista no artigo 120º, nº, 2, al. d) do Código de Processo Penal, sendo nula a acusação deduzida pelo MP no que concerne à imputação ao arguido de um crime de ameaça agravada (factos 3º a 6º da acusação pública), sendo também nula a acusação particular quanto ao crime de injúria (factos 1 a 5 da acusação particular).

Impõe-se apreciar e decidir:

Determina o artigo 118º, nº 1 e 2 do Código de Processo Penal que:

“1- A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na Lei.

2- Nos casos em que a Lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular”.

Nos termos do disposto no artigo 120º do CPP:

 “Nulidades dependentes de arguição

“1 - Qualquer nulidade diversa das referidas no artigo anterior deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina prevista neste artigo e no artigo seguinte.

2 - Constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais:

a) O emprego de uma forma de processo quando a lei determinar a utilização de outra, sem prejuízo do disposto na alínea f) do artigo anterior;

b) A ausência, por falta de notificação, do assistente e das partes civis, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência;

c) A falta de nomeação de intérprete, nos casos em que a lei a considerar obrigatória;

d) A insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade.

3 - As nulidades referidas nos números anteriores devem ser arguidas:

a) Tratando-se de nulidade de acto a que o interessado assista, antes que o acto esteja terminado;

b) Tratando-se da nulidade referida na alínea b) do número anterior, até cinco dias após a notificação do despacho que designar dia para a audiência;

c) Tratando-se de nulidade respeitante ao inquérito ou à instrução, até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito;

d) Logo no início da audiência nas formas de processo especiais.”

Por último nos termos do disposto no artigo 122º do CPP:

“Efeitos da declaração de nulidade

1 - As nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar.

2 - A declaração de nulidade determina quais os actos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição, pondo as despesas respectivas a cargo do arguido, do assistente ou das partes civis que tenham dado causa, culposamente, à nulidade.

3 - Ao declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os actos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela.”

Ora, no caso concreto, o arguido foi sujeito a interrogatório em 26.06.2019 e nessa ocasião o mesmo apenas foi confrontado com os factos de 6 de julho de 2018 e 15 de março de 2019, na sequência do despacho proferido pelo MP – fls. 170, 179 e 180.

Ou seja, o arguido não foi sujeito a interrogatório relativamente a todos os factos denunciados, sendo tal interrogatório obrigatório, no caso de correr inquérito contra pessoa determinada e em relação à qual haja suspeita fundada de crime.

O Acórdão do STJ 1/2006 de 23.11.05 – DR 1 Série I-A, de 2.01.2006-, fixou jurisprudência no sentido de que: “A falta de interrogatório como arguido, no inquérito, de pessoa determinada contra quem o mesmo corre, sendo possível a notificação, constitui a nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal”.

“O que este acórdão do STJ afirmou foi só a necessidade de serem observadas as garantias de defesa (todas as garantias de defesa) que a Constituição da República proclama que o processo criminal deve assegurar – artigo 32º, nº. 1. Ninguém deve ser surpreendido por uma acusação sem que antes lhe seja concedido tomar posição, defendendo-se, se e como entender, dos factos imputados” (Ac. Do Tribunal da Relação de Guimarães de 12.01.2009, proferido no processo nº. 2648/08-2, Relator Fernando Monterroso, disponível em www.dgsi.pt).

Voltando ao caso concreto verifica-se que o arguido em momento anterior à dedução da acusação pública e particular foi interrogado. No entanto o mesmo não foi confrontado com os factos ocorridos no dia 22 de dezembro de 2018, quando o poderia ter sido. No que concerne a esses factos verifica-se que os mesmos se encontravam em investigação no inquérito nº.34/19.1 PECSC, cuja apensação ao inquérito nº.168/18.0GAACB foi determinada por despacho de 12.02.2019.

Quando o arguido foi sujeito a interrogatório já era do conhecimento do MP a existência do inquérito nº. 34/19.1 PECSC, cuja apensação já havia sido determinada.

Não obstante o arguido não foi confrontado com essa factualidade.

O arguido poderia ter sido interrogado sobre esses factos em momento anterior à dedução da acusação.

Sendo obrigatória constituição de arguido e o interrogatório como arguido da pessoa contra a qual corre inquérito, a dedução da acusação não pode ocorrer sem que tal acto tenha lugar.

Ora a violação do disposto nas normas supra citadas, constitui a nulidade sanável prevista no art. 120º, nº. 2, al. d) do CPP, a qual terá como efeitos os previstos no artigo 122º do CPP.

A nulidade referida foi invocada por quem tinha legitimidade para tal e a mesma foi arguida em tempo – art. 120º, nº. 1 e 3º, al. c) do CPP.

Pelo exposto, declara-se verificada a nulidade sanável prevista no artigo 120º, nº. 2, al. d) do CPP, decorrente da verificação da omissão apontada e em conformidade declara-se a nulidade parcial da acusação pública por referência ao facto 3º e da acusação particular por referência aos factos 1º a 4º.


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Não existem outras questões prévias de que cumpre conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.

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III – Fundamentação:

 A) Considerações Gerais sobre a instrução.

Dispõe o artº 286º nº 1 do Código de Processo Penal que «A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento».

De acordo com o disposto no artigo 287º, nº. 1 al. a) do Código de Processo Penal a instrução pode ser requerida pelo arguido, relativamente aos factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação.

Determina o artº 283º nº 1 do mesmo diploma que «Se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público deduz acusação contra ele».

Sobre o que sejam de considerar indícios suficientes, o artº 283º nº 2 do Código de Processo Penal esclarece que «Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, uma pena ou uma medida de segurança».

Veio assim o legislador consagrar o entendimento que já se encontrava jurisprudencialmente sedimentado, de que é paradigma o Ac. da RL de 4 de Novembro de 1981, Col. Jurisp. T. V, p. 184 e ss, ao referir que são indícios suficientes, «...os factos ou conjunto de factos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, e fazem nascer a convicção de que, a manterem-se a julgamento, virá aquele a ser condenado pelo crime que lhe é imputado, importando ter-se em mente, na avaliação em cada caso, dessa suficiência, que não deve o julgador sujeitar o arguido a vexames e despesas inúteis».

Quer-se com isto dizer que, enquanto a condenação, em sede de julgamento, apenas se basta com um juízo de certeza, para efeitos de acusação ou de pronúncia basta um juízo de razoabilidade de ter sido cometido um facto tipicamente ilícito e de determinado agente ter sido o seu autor.

Como refere Germano Marques da Silva (in «Curso de Processo Penal», vol. III, pág. 182-183), «...nas fases preliminares do processo não se visa alcançar a demonstração da realidade dos factos, antes e só, indícios, sinais de que o crime foi eventualmente cometido por determinado arguido».

As provas recolhidas nas fases preliminares do processo não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas sim mera decisão processual quanto à prossecução do processo até à fase de julgamento.

De tudo o exposto resulta que para a pronúncia, tal como para a acusação, a lei não exige a prova no sentido de certeza moral da existência do crime, bastando-se com a existência de indícios, de sinais da ocorrência do crime, dos quais se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que o crime foi praticado pelo arguido.

Assim, de acordo com o art. 308º do C.P.P. se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, haverá decisão de pronúncia pelos respectivos factos, no caso contrário, haverá despacho de não pronúncia.


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 B) Factos indiciados.

(…).


**

C) Motivação:

(…).


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IV- Da Qualificação Jurídica dos factos.

(…).


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V - Decisão:

Face ao exposto decide-se:

I – Proferir despacho de pronúncia do arguido B. e pela prática de:

- um (01) crime de ameaça agravada, previstos e punidos pelo art.º 155.º, n.º 1, al. a) e 153.º,

nº 1 do Código Penal;

- um (01) crime de detenção de arma proibida, p. e p., no presente e à data dos factos, pelo artigo 86.º, n.º 1, alíneas c) e d), da Lei n.º 5/2006, no que diz respeito às armas de fogo longas, sendo uma modificada por referência, às alíneas s), ar), e ae), n.º 1, art.º 2.º, e ainda, al. v), s), ar), e aj) do n.º 1 do art.º 2.º e art.º 3.º, n.º 6, todos da Lei n.º 5/2006 e suas alterações; no que diz respeito às munições por referência aos artigos 2.º, n.º 3, alínea a), 34.º, n.º 2, todos da Lei n.º 5/2006 e suas alterações.

II – Declarar verificada a nulidade prevista no artigo 120º, nº. 2, al. d) do CPP, a qual terá como efeitos os previstos no artigo 122º do CPP e em consequência proferir despacho de não pronúncia do arguido pela prática de:

- um (01) crime de ameaça agravada, previstos e punidos pelo art.º 155.º, n.º 1, al. a) e 153.º, nº 1 do Código Penal;

- um (01) crime de injuria p. e p. pelo artigo 181º do Código Penal.


**

Face ao exposto, pronuncio, para julgamento, em processo comum e perante tribunal singular (art 16º, nº. 3 do CPP), o arguido:

B., (,,,)

Porquanto:

(…).


**

Pelo exposto, cometeu o arguido, B., em autoria material, concurso real e sob a forma consumada:

- um (01) crime de ameaça agravada, previstos e punidos pelo art.º 155.º, n.º 1, al. a) e 153.º,

nº 1 do Código Penal;

- um (01) crime de detenção de arma proibida, p. e p., no presente e à data dos factos, pelo

artigo 86.º, n.º 1, alíneas c) e d), da Lei n.º 5/2006, no que diz respeito às armas de fogo longas, sendo uma modificada por referência, às alíneas s), ar), e ae), n.º 1, art.º 2.º, e ainda, al. v), s), ar), e aj) do n.º 1 do art.º 2.º e art.º 3.º, n.º 6, todos da Lei n.º 5/2006 e suas alterações; no que diz respeito às munições por referência aos artigos 2.º, n.º 3, alínea a), 34.º, n.º 2, todos da Lei n.º 5/2006 e suas alterações.


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PROVA:

(…).


*

ESTATUTO COATIVO

(…).


*

Oportunamente remeta os autos à distribuição para julgamento.

(…)”

III – Apreciação do recurso

O arguido foi sujeito a (1º) interrogatório em 26.06.2019 e nessa ocasião apenas foi confrontado com os factos ocorridos a 6 de julho de 2018 e a 15 de março de 2019, na sequência do despacho proferido pelo MP – fls. 20, 21 e 22 dos presentes autos.

Foram-lhe então comunicados os factos constantes da acusação pública, salvo os factos sob o nº 3º.

Estes últimos factos - ocorridos a 22-12-2018 - deram origem à abertura do inquérito 34/19.1PECSC, que por despacho de 12-02-2019 - cfr fls 65 - foram apensados aos presentes autos 168/18.0GAACB, portanto em momento posterior à realização de 1º interrogatório judicial, pelo que obviamente não podia ter sido ouvido sobre estes factos à data do primeiro interrogatório.

Certo é que posteriormente também não foi confrontado em inquérito com os mencionados factos constantes do art. 3º da acusação pública e sob os nºs 1 a 4 da acusação particular.

Posto isto.

Não se detectou nos autos qualquer obstáculo que impossibilitasse o interrogatório do arguido sobre os factos constantes do art. 3º da acusação pública e dos nºs 1 a 4 da acusação particular.

Foi, pois, o arguido surpreendido com a inclusão na acusação do MP de tais factos e respectiva incriminação, sem que antes pudesse ter exercido plenamente o seu direito de defesa - arts 141º e 61 do CPP.

É obrigatório o interrogatório do arguido, afim de que seja confrontado com os factos e com os elementos recolhidos na investigação, desta forma se observando todas as garantias de defesa consagradas na Constituição - art. 32º nº 1.

Ora, tal como assinala o Ac da RÉvora de 10 de Outubro de 2017, “O exercício da garantia de defesa – no caso o interrogatório- não exige uma comunicação exaustiva de todos os factos que constituem o pedaço de vida em causa, mas impõe que se comuniquem ao arguido os factos concretamente imputados, as circunstâncias de tempo e lugar e modo se forem conhecidas e os elementos do processo que sustentam a imputação, caso não existam razões para vedar o conhecimento de algum meio de prova. E, haverá uma violação da garantia de defesa do arguido nos casos em que são aditados outros factos na acusação susceptíveis de integrarem outros crimes, sejam ou não da mesma natureza, em relação aos quais ele não foi confrontado, uma vez que ninguém deve ser surpreendido com uma acusação, sem que antes lhe seja dada possibilidades de se defender da mesma.”

Posição que se harmoniza com o acórdão do Tribunal Constitucional nº 72/2012, quando alerta que “a Constituição não exige que o arguido tenha conhecimento em momento anterior à acusação de todos os factos que venham a constar desta, “mas no pleno respeito das garantias de defesa consagradas na Constituição, tal conhecimento não poderá nunca ficar aquém dos factos essenciais a verter ou vertidos (…) na acusação” sob pena de violação das garantias de defesa.

Daí que se discorde do entendimento que após o primeiro interrogatório judicial cessa a aplicabilidade do disposto no art. 272º nº 1 do CPPenal e que não é obrigatório a realização de interrogatórios complementares, pois como adverte o aresto citado, “uma vez que se assim é em relação aos casos, em que os novos factos dizem respeito ao crime sobre o qual já foi ouvido, tal já não acontece se tais factos dizem respeito a outro crime.”

O que ilustra com o seguinte exemplo: “… ocorreria a violação da garantia de defesa, por ex., se o arguido fosse interrogado apenas pela prática de um crime de homicídio (do tal Sr. X) e, não obstante, fosse narrado na acusação, além desse crime, também factualidade para o crime de burla informática, e ambos em concurso real ali lhe fossem imputados. Assim, a garantia de defesa é violada quando, no decurso do inquérito o objecto do processo se alarga mediante a adição de outros pedaços de vida material e radicalmente diversos …  sem que, podendo tal suceder, se haja diligenciado pela audição do arguido em torno destes novos factos.”

Em suma, a omissão da audição (ou interrogatório) do arguido quanto aos factos vertidos no art 3 da acusação pública e 1 a 4 da acusação particular consubstancia a omissão de acto legalmente obrigatório, porque imposto pelo artigo 272.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e dá causa à nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2, al. d), a qual foi tempestivamente arguida, cf. artigo 120.º, n.º 3, al. c), do Código de Processo Penal.

Nulidade que acarreta a invalidade parcial do despacho de acusação no que respeita à aludida factualidade, com o consequente despacho de não pronúncia nos termos conjugados dos artigos 120.º, n.º 2, al. d), 122.º, n.º 1 e 308.º, n.º 3, todos do Código de Processo Penal, tal como decidiu o tribunal recorrido.

O que se compatibiliza com o Acórdão do STJ 1/2006 de 23.11.05 – DR 1 Série I-A, de 2.01.2006-, que fixou jurisprudência no sentido de que: “A falta de interrogatório como arguido, no inquérito, de pessoa determinada contra quem o mesmo corre, sendo possível a notificação, constitui a nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal”.

Com efeito, “O que este acórdão do STJ afirmou foi só a necessidade de serem observadas as garantias de defesa (todas as garantias de defesa) que a Constituição da República proclama que o processo criminal deve assegurar – artigo 32º, nº. 1. Ninguém deve ser surpreendido por uma acusação sem que antes lhe seja concedido tomar posição, defendendo-se, se e como entender, dos factos imputados” (Ac. Do Tribunal da Relação de Guimarães de 12.01.2009, proferido no processo nº. 2648/08-2, Relator Fernando Monterroso, disponível em www.dgsi.pt).

A pretendida sanação da nulidade na instrução exorbita os fins assinalados no art 286º nº 1 do CPP.

E atento o princípio acusatório do processo penal, inviável se torna a pretensão de que por força da 2.ª parte do artigo 122.º, n.º 2 do CPP, a Mm.ª JIC ordene a prática do acto em sede de instrução ou que para o efeito devolva o processo ao MP para repristinar o inquérito.

De todo o modo, como lhe competia, o tribunal recorrido determinou que após trânsito fosse extraída “certidão da presente decisão e de fls.170, 179, 180, 192, 206, 207, 222 a 230, 245 a 251, 252, 259 a 263” e remetida ao DIAP competente, para os fins tidos por convenientes, acompanhada do inquérito apenso 34/19.1 PECSC.

Assim sendo, impõe-se manter o despacho recorrido.


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IV - Dispositivo

Termos em que se nega provimento ao recurso interposto pela assistente, mantendo-se o despacho recorrido.

Custas pela Recorrente - art 515º, nº 1, al. b) do CPP.


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Coimbra, 2 de Março de 2022

(Certifica-se que o acórdão foi elaborado e revisto pela relatora)

 

Isabel Valongo (relatora)

Jorge França (adjunto)