Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3757/16.3T8LRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
INTERVENÇÃO ACESSÓRIA DESSE CONDUTOR
DIREITO DE REGRESSO
ALEGAÇÕES DESTE INTERVENIENTE
Data do Acordão: 07/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JC CÍVEL DE LEIRIA – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 27º DL Nº 291/2007, DE 21/08; ARTº 321º DO NCPC.
Sumário: 1 – Em ação em que é ré a seguradora de veículo conduzido por condutor com excesso de álcool no sangue, sendo nela autor o passageiro que seguia nesse veículo ao lado do condutor, tendo a seguradora provocado a intervenção acessória daquele condutor com base no direito de regresso que lhe advém do art 27º do DL 291/2007 de 21/8, não pode este, como parte acessória que passa a ser e, consequentemente, como mero auxiliar da defesa, fazer valer nos autos alegações suas que se mostrem contrárias às da ré/assistida.

2 - Por isso, não pode pretender que se discuta na ação que ele não teve culpa exclusiva na eclosão do acidente, quando a ré seguradora já aceitou essa sua culpa exclusiva.

3 - O objectivo do incidente de intervenção acessória é o do terceiro chamado colaborar com o réu na defesa, na certeza de que quanto melhor o réu se defenda, melhor será, subsequentemente, o seu prejuízo na ulterior demanda que o mesmo contra ele exerça.

4 - No entanto, a posição do chamado não deixa de estar salvaguardada, pois se ele vier a ser demandado pelo réu na ação anterior, não deixa de poder impugnar os factos e o direito no que concerne às questões implicadas na ação de regresso, desde que alegue e prove que a atitude do réu na ação anterior o impediu de fazer uso de alegações ou de meios de prova susceptíveis de influir na decisão final e que aquele não se socorreu deles intencionalmente ou por negligência grave.

5- Só este entendimento acautela o interesse do autor em não ver a lineariedade e celeridade da ação que intentou perturbada com a dedução de um incidente que não lhe aproveita, já que o chamado não é devedor no seu confronto, nunca podendo ser condenado, mesmo que a ação proceda.

Decisão Texto Integral:








I – H..., por si, e representado por seus pais, M... e M..., instaurou ação declarativa, com processo comum, contra Z..., pedindo a sua condenação a pagar-lhe várias indemnizações, cujo cômputo total, sendo que há ainda valores a liquidar no futuro, perfaz €938.222,14.

Está em causa um acidente de viação ocorrido entre um ligeiro de passageiros, no qual o A. era transportado (alegando este que o era no lugar do pendura e com cinto de segurança colocado), e um pesado de mercadorias com semi reboque, sendo que, na alegação do A., o acidente se ficou a dever à actuação do condutor do ligeiro, que seguia em estado de embriaguez e em elevada velocidade e que, tendo perdido o controlo da viatura, invadiu a faixa contrária na qual circulava o pesado, embatendo nele e sendo devolvido de novo para a hemi faixa direita da faixa de rodagem.

A R., para quem estava transferida a responsabilidade civil por danos causados a terceiros em função da circulação do ligeiro em referência, contestou, e deduziu incidente de intervenção acessória, impugnando a factualidade alegada, e alegando, expressamente, que no momento do acidente de viação o A. não levava colocado o cinto de segurança, mais referindo que o habitáculo do ligeiro ficou intacto após o acidente, que foi a frente esquerda do veículo que embateu no pesado, não tendo a frente lateral direita do ligeiro sofrido danos, e que o condutor deste veículo, que levava cinto de segurança, apenas sofreu ferimentos ligeiros, concluindo que as lesões sofridas pelo A. na zona da cabeça e da coluna cervical e dorsal só tiveram a gravidade que tiveram precisamente porque o corpo do mesmo embateu em várias partes duras do habitáculo, o que sucedeu porque não trazia cinto de segurança. Mais refere que o A. sabia que o condutor do ligeiro estava embriagado, porque tinham estado juntos a confraternizar e ingeriram bebidas alcoólicas, concluindo que o A. sofreu lesões corporais graves por causa da sua própria conduta, o que vale por dizer que foi um facto culposo do lesado que concorreu para o agravamento dos seus próprios danos, pelo que o montante da indemnização deve ser significativamente reduzido.

Termina a contestação deduzindo incidente de intervenção acessória, nos termos do art 321º CPC, de S..., em função da circunstância de circular com uma taxa de álcool no sangue de 1,58 gr/l, e por isso conduzir sob a influência do álcool, pelo que, caso a R. venha a ser condenada a indemnizar o A. no âmbito dos presentes autos, tem, por força do disposto no art 27º/1, al c) do DL 291/2007 de 21/8, direito de regresso contra o chamado.

Admitida a requerida intervenção, veio o interveniente alegar com relevância para o presente recurso:

Sendo proprietário e condutor do veículo ligeiro não conduzia «a uma velocidade muito acima dos 60 km/hora permitidos para o local», referindo que pararam num posto de abastecimento em Pombal onde o A. comprou tabaco e o ora contestante abasteceu a viatura de combustível, o que sucedeu pelas 00h 00m 53s (como decorre do talão de abastecimento que junta), pelo que tendo o acidente ocorrido a cerca de 8 km de distância desse posto, pelas 00h 15m, a velocidade a que circulava, era, seguramente, inferior a 60km/hora, fazendo notar que, de qualquer maneira, a velocidade máxima permitida para os veículos automóveis no local onde o acidente ocorreu era de 80 km/hora, sendo que só cerca de 100 metros para norte do local do acidente é que se encontra o sinal com o limite de 60 km/hora; relativamente ao facto do veiculo ter invadido injustificadamente a faixa esquerda da estrada, atento o seu sentido de marcha, refere que quando se aproximava, com toda a normalidade, do local onde ocorreu o acidente, sem nada que o indiciasse, o veículo, inesperadamente, guinou para o lado esquerdo, atento o seu sentido de marcha, sem que para tal fosse impulsionado pelo contestante, num ângulo de quase 90 graus, não obedecendo à direcção, sendo que nenhuma culpa teve o A. no despiste e derrapagem do EC, na forma como sucedeu; nenhuma justificação existia para que o A. não trouxesse o cinto de segurança colocado no momento do acidente, sendo que se o levasse colocado não teria “voado” pela janela, “como voou” para fora do veículo, referindo ainda que isso não sucedeu a ele, condutor, que não sofreu outros danos corporais para além dum ligeiro corte na cabeça, sendo que após o acidente nenhuma deformação apresentava o veículo na zona do habitáculo, tanto do lado do condutor como na parte do “pendura”, concluindo que foi o facto do A. não levar colocado no momento de acidente o cinto de segurança que contribuiu, quase exclusivamente, para os danos por ele sofridos, pelo que tal facto não poderá deixar de ser levado em conta no cômputo dessa indemnização.

Terminou a contestação referindo dever a ação ser julgada conforme à prova que vier a ser produzida, indicando três testemunhas e aderindo ao pedido de exame médico requerido pela seguradora.

Teve lugar audiência prévia consoante consta da acta que lhe respeita, de que se transcreve a parte relevante para conhecimento do presente recurso:

«Chamado a intervir, a título acessório, a requerimento da ré, e por despacho judicial transitado, o interveniente fê-lo, nos termos que melhor constam do articulado que ofereceu. Disciplinando os termos desta intervenção, estatui o nº 2 do art.º 321º do código de processo civil que “a intervenção do chamado circunscreve-se à discussão das questões que tenham repercussão na acção de regresso invocada como fundamento do chamamento”. Porventura esclarecendo um pouco melhor, entendeu o nosso mais alto Tribunal que “o chamado em incidente de intervenção acessória provocada não é sujeito da relação jurídica material controvertida, não é parte principal na causa, já que não é contra ele, mas contra o réu, requerente do chamamento, que é formulado o pedido da ação, razão pela qual, a proceder, é o réu e não o chamado, que deve ser condenado, circunscrevendo-se a intervenção do chamado à discussão das questões com repercussão na ação de regresso invocada como fundamento do chamamento, com vista a ajudar a defender o réu e não a defender-se do réu” (Ac 12/7/2018 – Rel Helder Roque). Algo diferentemente, o terceiro interveniente contestou a ação em toda a sua plenitude, como se parte principal se tratasse, e culminou pedindo “que a ação deve ser julgada totalmente improcedente por via das excepções invocadas ou da impugnação deduzida, pelo menos em relação à ora contestante”, e indicou testemunhas, “cuja notificação se requer”.

Importa considerar que ou a peça processual em causa excede, consideravelmente, os limites de uma intervenção acessória – no caso restrita à verificação do invocado direito de regresso – ou a mesma, atendendo ao teor da peça processual que ofereceu, deve passar a ser considerada como interveniente a título principal, seja para ser absolvida, como pretende, seja para ser condenada, em caso de procedência da ação».

Pelo mandatário do interveniente foi dito pretender manter a sua intervenção como acessória, não aceitando que a mesma intervenção se limitaria à questão do direito de regresso.

 Determinou, então, o Sr. Juiz, que da peça processual apresentada pelo interveniente seriam unicamente aproveitados os pontos que se referissem à relação entre ele, interveniente, e a ré seguradora, para efeito de direito de regresso.

 Dada a palavra aos mandatários para se pronunciarem relativamente à adequação formal e simplificação ou agilização processual, nada foi requerido a tal propósito.

De seguida foi proferido o seguinte despacho:

 «De harmonia com o estabelecido nos artigos 591º, 547º e 6º, nº 1 do código de processo civil afigura-se que o processo comum de declaração se revela apto à obtenção de um processo célere e equitativo. Consequentemente, será essa a tramitação seguida».

Após, procedeu-se ao debate que teve por finalidade a identificação do objecto do litígio e a enunciação dos temas de prova, nos seguintes termos:

«Objecto do litígio: indemnização devida ao autor enquanto vítima de acidente de viação que se ficou a dever a culpa do condutor interveniente, segurado da ré».

Pelo mandatário do interveniente foi dito que não aceitava que a questão da culpa no acidente ficasse decidida no despacho saneador, e que iria ponderar a atitude a tomar.

Por se referirem a matéria que no atual estado dos autos se encontra controvertida, enunciam-se os seguintes temas de prova:

            1 – apuramento dos danos sofridos pelo autor;

2 – contribuição do autor, por falta do uso de cinto de segurança, para a extensão dos danos sofridos;

 3 – valor da indemnização a atribuir.

Do despacho que antecede foi emitido pronunciamento pelo interveniente, sustentando que se trataria de uma nulidade a afirmação da culpa no acidente ao segurado da ré, sem participação deste, nulidade que o Sr. juiz indeferiu, considerando tratar-se, unicamente – e na hipótese de assistir razão ao reclamante – de um erro de interpretação de normas processuais e probatórias, nunca uma nulidade».

Prosseguiu a audiência, sem que se mostre relevante para o recurso em apreço a sua sequência.

II – Veio o interveniente apelar do despacho acima referido, tendo concluído as respectivas alegações, nos seguintes termos:

a) – O MMº Juiz “a quo” considerou que da peça processual apresentada pelo ora recorrente, como chamado, seriam unicamente aproveitados os pontos que se referissem à relação entre o interveniente e a Ré seguradora, para efeito de regresso, sem concretizar que pontos seriam esses.

b) – E expurgando assim a contestação do chamado de todos os factos alegados em sede de culpa na ocorrência do acidente, não enunciou a culpa do acidente nos termos de prova, considerando sem mais, no objecto do litígio, que o “acidente de viação se ficou a dever a culpa do condutor interveniente, segurado da Ré”

c) – Ora o interveniente invocou logo a nulidade duma tal decisão, sem a participação dele, i. é, sem ter levado em conta os factos que nessa sede haviam sido alegados por ele na sua contestação.

d) – Respondendo, afirmou o MMº Juiz que mesmo admitindo por hipótese que assistia razão ao reclamante, tal não era uma nulidade, mas um simples erro de interpretação de normas processuais e probatórias.

 e) – Ora o MMº Juiz “a quo”, na forma como no Despacho Saneador decidiu a culpabilidade do interveniente no acidente, violou o disposto nos artºs 3º, nº 3, 328º, nº 2 e 607º, nº 4 todos do C.P.C. sendo que tal decisão irá influenciar a decisão a proferir nestes autos e, como tal deve declarar-se nula e de nenhum efeito, com todas as consequências legais.

O A. apresentou contra alegações, que concluiu do seguinte modo:

1-O sentido do douto despacho recorrido – que, em súmula, indeferiu a pretensão do ora Recorrente a discutir nos presentes autos a questão da culpa pela produção do acidente – não merece qualquer reparo ou censura e por conseguinte deverá manter-se in totum com todas as legais consequências.

2- E que assumido o ora recorrente no presente processo a mera posição de interveniente acessório, e portanto, porque não é sujeito da relação jurídica material controvertida, o mesmo nos termos legais (art 321º/2 CPC) apenas poderá discutir nos presentes autos «…as questões que tenham repercussão na acção de regresso invocada como fundamento do chamamento».

3- Ou, como de forma impressiva é referido no douto Despacho recorrido (em citação do STJ) o mesmo apenas poderá intervir «…com vista a ajudar a defender o réu  e não a defender-se do réu».

4- Ora, no caso em apreço, a parte principal na causa (na circunstância a R/contestante Z...) não veio discutir nos autos a questão da culpa pela produção do acidente, que aceitou e reconheceu caber em exclusivo ao seu segurado e ora Recorrente  S...

5- A única coisa que veio discutir - que é coisa bem diferente da questão da culpa pela produção do sinistro - foi, outrossim, a concorrência do sinistrado (e ora Recorrido) para a extensão dos danos por este sofridos.

6- E sendo assim não restam dúvidas que ao pretender o ora Recorrente manter a sua intervenção nos autos como mero interveniente acessório  - por forma a assim se furtar a uma eventual condenação -  bem andou o douto tribunal recorrido  ao indeferir a sua pretensão de ver discutida nos presentes autos a questão da culpa  pela produção do acidente, que a R. contestante reconhece caber em exclusivo ao seu segurado.

7- E, por conseguinte, ao fazer verter para os temas da prova apenas e tão só a  questão da «contribuição do autor, por falta de uso de cinto de segurança para a extensão dos danos sofridos» que, como resulta da contestação apresentada pela R/contestante  foi a única questão que esta veio ai levantar e querer discutir.

III – Os factos a ter em consideração para a apreciação do presente recurso emergem do acima relatado.

IV – Operando o confronto entre as conclusões das alegações e o despacho recorrido, importa decidir se, ao contrário do que foi entendido pelo Exmo Juiz a quo, devia o mesmo ter incluído nos temas de prova a questão da culpa na eclosão do acidente, fazendo-o em função dos factos invocados a esse respeito pelo apelante no respectivo requerimento de intervenção, em vez de ter considerado no objecto do litígio que o «acidente de viação se ficou a dever a culpa do condutor interveniente, segurado da Ré».

Dispõe o art 321º do CPC a respeito do “Campo de aplicação” da intervenção acessória, que «o réu que tenha acção de regresso contra terceiro para ser indemnizado do prejuízo que lhe cause a perda da demanda pode chama-lo a intervir como auxiliar na defesa, sempre que o terceiro careça de legitimidade para intervir como parte principal»; e o respectivo nº 2 explicita: «A intervenção do chamado circunscreve-se à discussão das questões que tenham repercussão na acção de regresso invocada como fundamento da intervenção». Dispõe depois o nº 1 do art 323º que «o chamado é citado, correndo novamente a seu favor o prazo para contestar e passando a beneficiar do estatuto de assistente, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos arts 328º e seguintes». Refere o nº 4 dessa norma que «a sentença proferida constitui caso julgado quanto ao chamado, nos termos previstos no art 332º, relativamente às questões de que dependa o direito de regresso do autor do chamamento, por este invocável em ulterior acção de indemnização».

Trata-se a intervenção acessória provocada - também dita e, de forma expressiva, subordinada - uma sub-espécie do incidente de intervenção principal.

Substituiu o antigo incidente de chamamento à autoria e por isso abrange as situações que justificavam esse incidente. Os incidentes de intervenção de terceiros foram reformulados com o DL 329-A-95, de 12/12 – de forma «a racionalizar as diversas formas de intervenção de terceiros em processo pendente e evitar a parcial sobreposição dos campos de aplicação de vários incidentes», de que, como se diz no preâmbulo daquele DL, «resultavam verdadeiros concursos de normas processuais, geradores de dúvidas e incertezas sérias na exacta delimitação do âmbito a cada um deles reservado, com inconvenientes no que respeita à certeza e segurança na aplicação do direito processual». Nesta linha, e continuando a citar-se o referido preâmbulo, «partiu-se da análise dos vários tipos de interesses em intervir (ou ser chamado a intervir) e das ligações que devem ocorrer entre tal interesse, invocado como fundamento da legitimidade do interveniente, concluindo-se pela possibilidade de reconduzir logicamente a três, as formas ou tipos de intervenção», assim se distinguindo a intervenção principal, «caracterizada pela igualdade ou paralelismo do interesse do interveniente com o da parte a que se associa», a intervenção acessória e a figura da oposição, «em que o terceiro faz valer no processo uma pretensão própria, no confronto de ambas as partes primitivas, afirmando um direito próprio e juridicamente incompatível, no todo ou em parte, com a pretensão do autor ou reconvinte».

Aqui apenas nos interessa a intervenção acessória, relativamente a cujo campo de aplicação, refere ainda o citado preâmbulo, relativamente à espontânea: «(…) situações em que o interveniente, invocando um interesse ou relação conexa ou dependente da controvertida, se apresta a auxiliar uma das partes primitivas, procurando com isso evitar o prejuízo que indirectamente lhe decorreria da decisão proferida no confronto das partes principais, exercendo uma actividade processual subordinada à da parte que pretende coadjuvar».

E mais adiante refere que, o que «caracteriza as situações tipificadas no art 330º CPC (que regia a respeito da intervenção acessória) é a circunstância de, existindo pluralidade de devedores ou garantes da obrigação, ter o condevedor ou garante demandado a possibilidade de repercutir sobre o chamado, no todo ou em parte, o sacrifício patrimonial resultante do cumprimento da obrigação que lhe é exigida, através das figuras da sub-rogação ou do direito de regresso (…) A existência de tal “acção de regresso” vai implicar, deste modo, que se possa enxertar no processo, para além do básico conflito de interesses entre credor e devedor, outro conflito entre o devedor e o chamado, incidindo precisamente sobre o direito de regresso e respectivos pressupostos».

Explica-se ainda aí o âmbito de intervenção que se admite ao interveniente acessório: «Considera-se que a posição processual que deve corresponder ao titular da acção de regresso, meramente conexa com a controvertida - invocada pelo réu como causa do chamamento – é a de mero auxiliar na defesa, tendo em vista o seu interesse indirecto ou reflexo na improcedência da pretensão do autor, pondo-se, consequentemente, a coberto de ulterior e eventual efectivação de acção de regresso  pelo réu de demanda ulterior, e não a de parte principal: mal se compreende, na verdade que quem não é reconhecidamente titular ou contitular da relação material controvertida  (mas tão somente  sujeito passivo de uma eventual acção de regresso ou indemnização configurada pelo chamante) e que em nenhuma circunstância poderá ser condenado caso a acção proceda (ficando tão somente vinculado, em termos reflexos, pelo caso julgado, relativamente a certos pressupostos daquela acção de regresso, a efectivar em  demanda ulterior) deva ser tratado como “parte principal”».

E conclui-se - «a fisionomia atribuída a este incidente traduz-se, nesta perspectiva, numa intervenção acessória ou subordinada, suscitada pelo réu, na altura em que deduz a sua defesa, visando colocar o terceiro em condições de o auxiliar na defesa, relativamente às questões  que possam ter repercussão na acção de regresso ou indemnização invocada como fundamento do chamamento».

Feitas estas referências, vejamos a situação dos autos.

O A. na ação é o passageiro transportado no veículo ligeiro. Demanda a seguradora desse veículo, que é quem tem legitimidade passiva para o efeito, vista a norma do art 64º/1, al a) do DL 291/2007, de 21/8. Esta aceita que a culpa na eclosão do acidente se ficou a dever em exclusivo ao condutor do veículo seguro, que conduzia embriagado – cfr art 99º da respectiva contestação. E, por isso, porque tem direito de regresso contra o mesmo, como resulta do art 27º/1, c) do citado diploma legal [1], chama-o a intervir nos autos como auxiliar na defesa, perspectivando o exercício do seu direito de regresso se vier a ser condenado na ação. Defende-se, essencialmente, procurando mostrar que o lamentável acidente se ficou a dever também a factos culposos do lesado – por um lado circulava no veículo sem cinto de segurança, por outro decidiu fazer a viagem ao lado de um condutor embriagado.

Dúvidas não há em como a pretensão de regresso da seguradora R. contra o chamado condutor se apoia no prejuízo da possível perda da demanda.

Refere Salvador da Costa [2] que «o chamado não influencia  a relação jurídica processual desenvolvida entre o autor e o chamante, certo que, deferido o chamamento e citado o chamado, fica este automaticamente constituído parte acessória». 

O objectivo do incidente em apreço é o do terceiro chamado auxiliar a defesa do réu. A ideia é a do chamado colaborar com o réu na defesa, na certeza de que, quanto melhor o réu se defenda, menor será subsequentemente o seu prejuízo na ulterior demanda que o mesmo contra ele exerça.

Remetendo o nº 1 do art 323º para o disposto nos arts 328 º e seguintes,  o chamado (como interveniente acessório), que conteste, passa a beneficiar do estatuto do assistente.

 Ora, dispõe o nº 1 do art 328º que «os assistentes têm no processo a posição de auxiliares de uma das partes principais», explicitando o nº 2 dessa norma que «os assistentes gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres que a parte assistida, mas a sua actividade está subordinada à da parte principal, não podendo praticar actos que esta tenha perdido o direito de praticar nem assumir atitude que esteja em oposição com a do assistido», esclarecendo ainda esse nº 2, que «havendo divergência insanável entre a parte principal e o assistente, prevalece a vontade daquela».

Não se vê que dúvidas possa ter o aqui apelante relativamente à correcção do procedimento do Exmo Juiz a quo.

Tendo a R. explicitamente aceitado – cfr o já referido art 99º da sua contestação – que “o acidente de viação sub juditio ocorreu por culpa exclusiva do condutor do veículo ...-EC, seguro na R.”, bem andou o tribunal a quo em definir o objecto do litigio como correspondendo à “indemnização devida ao autor enquanto vitima de acidente de viação que se ficou a dever a culpa do condutor interveniente, segurado da R.”. E bem andou em incluir nos temas de prova – tema 2 – a “contribuição do autor, por falta do uso de cinto de segurança, para a extensão dos danos sofridos”.

È obviamente no âmbito deste tema de prova que o chamado pode desenvolver com a seguradora uma defesa conjunta e não, naturalmente, quando persiste em querer demonstrar que não teve culpa na eclosão do acidente.

Repare-se nos efeitos da sentença proferida em relação aos chamados, a que se refere o nº 4 do art 323º - «a sentença proferida constitui caso julgado quanto ao chamado, nos termos previstos no art 332º, relativamente às questões de que dependa o direito de regresso do autor do chamamento, por este invocável em ulterior acção de indemnização». E este art 332º dispõe a respeito do valor da sentença quanto ao assistente, referindo que, «a sentença proferida na causa constitui caso julgado em relação ao assistente, que é obrigado a aceitar, em qualquer causa posterior, os factos e o direito que a decisão judicial tenha estabelecido, excepto: a) Se alegar e provar, na causa posterior, que o estado do processo no momento da sua intervenção ou a atitude da parte principal o impediram de fazer uso de alegações ou meios de prova que poderiam influir na decisão final; b) Se mostrar que desconhecia a existência de alegações ou meios de prova susceptíveis de influir na decisão final e que o assistido se não socorreu deles intencionalmente ou por negligência grave».

Como refere Salvador da Costa[3] «no fundo, o caso julgado torna indiscutíveis, no confronto do chamado, os pressupostos de direito de indemnização a exercer posteriormente concernentes à existência e ao conteúdo do direito do autor. Assim, em regra, na nova acção de indemnização em que figure como réu o chamado à intervenção, ele fica vinculado a aceitar a sentença respectiva como prova plena dos factos nela estabelecidos relativamente ao direito definido e no que concerne às questões de que a acção de regresso dependa».

Mas, «ele pode, porém, na nova acção, impugnar os referidos factos e o direito se alegar e provar que a atitude do autor, isto é, o réu na acção anterior, o impediu de fazer uso de alegações ou de meios de prova susceptíveis de influir na decisão final, ou que desconhecia a existência de alegações ou meios de prova susceptíveis de influir naquela decisão e que o assistido se não socorreu deles intencionalmente ou por negligência grave».  

Como se vê, está absolutamente salvaguardado o chamado, não se lhe retirando quaisquer direitos de defesa, mas apenas, naturalmente, na ação em que ele seja réu.

Repare-se que o autor da ação em que se verifica a intervenção acessória nada tem a ver com a ação de regresso – como se refere no preâmbulo do DL 325-A, de 12/12, «normalmente não terá qualquer vantagem em ver a lineariedade e celeridade da acção que intentou perturbada com a dedução de um incidente que não lhe aproveita, já que o chamado não é devedor no seu confronto, nunca podendo ser condenado mesmo que a acção proceda».

Poderá, pois, o aqui apelante, se vier a ser demandado pela seguradora, fazer valer as suas alegações contrárias às da aqui R. na ação, no sentido de não circular com velocidade excessiva, e de que a perda do controle do veículo não se ficou a dever a acto seu, e que aqui não pode fazer valer porque não pode assumir atitude oposta à dele.

V – Pelo exposto, acorda este Tribunal em julgar improcedente a apelação e confirmar o despacho recorrido.

Custas pelo apelante.   

            Coimbra, 10 de Julho de 2019

(Maria Teresa Albuquerque)

(Manuel Capelo)

(Falcão de Magalhães)

            Sumário:

I – Em ação em que é ré a seguradora de veículo conduzido por condutor com excesso de álcool no sangue, sendo nela autor o passageiro que seguia nesse veículo ao lado do condutor, tendo a seguradora provocado a intervenção acessória daquele condutor com base no direito de regresso que lhe advém do art 27º do DL 291/2007, de 21/8, não pode este, como parte acessória que passa a ser e, consequentemente, como mero auxiliar da defesa, fazer valer nos autos alegações suas que se mostrem contrárias às da ré/assistida.

2 - Por isso, não pode pretender que se discuta na ação que ele não teve culpa exclusiva na eclosão do acidente, quando a ré seguradora já aceitou essa sua culpa exclusiva.

3 - O objectivo do incidente de intervenção acessória é o do terceiro chamado colaborar com o réu na defesa, na certeza de que quanto melhor o réu se defenda, melhor será, subsequentemente, o seu prejuízo na ulterior demanda que o mesmo contra ele exerça. 

4 - No entanto, a posição do chamado não deixa de estar salvaguardada, pois se ele vier a ser demandado pelo réu na ação anterior, não deixa de poder impugnar os factos e o direito no que concerne às questões implicadas na ação de regresso, desde que alegue e prove que a atitude do réu na ação anterior o impediu de fazer uso de alegações ou de meios de prova susceptíveis de influir na decisão final e que aquele não se socorreu deles intencionalmente ou por negligência grave. 

5 - Só este entendimento acautela o interesse do autor em não ver a lineariedade e celeridade da ação que intentou perturbada com a dedução de um incidente que não lhe aproveita, já que o chamado não é devedor no seu confronto, nunca podendo ser condenado, mesmo que a ação proceda.


***

[1] - Norma que tem por epígrafe “Direito de regresso da empresa de seguros” e dispõe:

«1 - Satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso: a) Contra o causador do acidente que o tenha provocado dolosamente; b) Contra os autores e cúmplices de roubo, furto ou furto de uso do veículo causador do acidente, bem como, subsidiariamente, o condutor do veículo objecto de tais crimes que os devesse conhecer e causador do acidente; c) Contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de álcool»
[2]-  «Os Incidentes da Instância» 3ª ed, p 128
[3] - Obra referida p 139