Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
10/06.4TXCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO VENTURA
Descritores: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
COMPETÊNCIA PARA A EMISSÃO
Data do Acordão: 12/17/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DA PENAS DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 71º DO DECRETO-LEI 783/76, Nº1 DO ARTº 337º, ALÍNEA B) DO ARTº 470º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL; NºS 1 E 2, AL. G) DO ARTIGO 91º E 92.º DA LEI 3/99; ARTIGO 36.º DA LEI N.º 65/2003, DE 23.08
Sumário: I. – É competente para emissão de mandado de detenção europeu (MDE) – cfr artigo 36.º da Lei n.º 65/2003, de 23/08 e 71.º do Decreto-Lei 783/76, de 29.10 – em processo para revogação de saída precária e de condenado declarado contumaz, ao abrigo do disposto no artigo 476.º do Código de Processo Penal, o Tribunal de Execução de Penas.
Decisão Texto Integral: I.- Relatório
Nos presentes autos com o NUIPC 10/06.4TXCBR do Tribunal de Execução das Penas (TEP) de Coimbra, foi concedida ao recluso … uma saída precária prolongada por três dias, decorrendo entre 22 e 25 de Dezembro de 2005, data em que não regressou ao EP.
Iniciado processo de revogação de saída precária prolongada, foram sucessivamente emitidos mandados de detenção, sempre certificados negativamente. Paralelamente, foi o declarado contumaz, em aplicação do disposto no artº 476º do CPP.
Em 12/05/2008 foi lavrada informação da Directoria de Coimbra, nos termos da qual vem indicado que o condenado havia sido detectado a residir em Badajoz, Espanha.
Na sequência dessa informação, o Ministério Público promoveu que fosse emitido mandado de detenção europeu.
Em apreciação do requerido, foi proferido o seguinte despacho:

Conforme vimos referindo em vários processos, não cabe nas competências do TEP, a promovida emissão de M.D.E. – artºs. 467º, 469º, 470º, 474º, 475º e 476º, todos do CPP e 22º do D.L. 783/76, de 29/10 “a contrario” e 91º nºs 1 e 2 al. g) da Lei 3/99 de 13/1.

Assim nada a decidir.
Inconformado com esse despacho, veio a magistrada do Ministério Público junto do Tribunal a quo interpor recurso para esta Relação, deixando a seguinte síntese conclusiva:

O Tribunal de Execução de Penas é competente para decidir a revogação de saídas precárias prolongadas.

É igualmente, este, o tribunal competente para emitir mandados de detenção no decurso do processo, sendo estes obrigatórios sempre que o fundamento da proposta de revogação seja o não regresso do recluso dentro do prazo determinado.

Após a decisão de revogar a saída precária prolongada é que o tribunal da condenação poderá emitir mandados de detenção.

Foram violadas as normas do artigo 71º do Decreto-Lei 783/76, do nº1 do artº 337º, da alínea b) do artº 476º do CPP e dos nºs 1 e 2 al. g) do artigo 91º da Lei 3/99.

Termos em que, com os do douto suprimento de V.Exas., deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, substituindo-se por outra que determine a emissão de mandado de detenção europeu pois assim é de Direito e só assim se fará Justiça.
Respondeu o arguido, posicionando-se pela improcedência do recurso.
Neste Tribunal, a Srª Procuradora-Geral adjunta emitiu parecer, no sentido da procedência do recurso.
[…]
Fundamentação
Âmbito do recurso
É pacífica a doutrina e jurisprudência[i] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso. Perante a forma como foi conformado, o recurso circunscreve-se a determinar qual o tribunal competente para a emissão de mandados de detenção europeus (MDE) no decurso de processo de revogação de saída precária prolongada pendente no TEP.
Apreciação
Numa primeira aproximação à questão que constitui objecto do presente processo importa ponderar o sentido do despacho recorrido. Com efeito, para além de reduzir a fundamentação à simples indicação de um conjunto de preceitos, sem o cuidado de esclarecer quais os argumentos que deles retira, o despacho recorrido termina por referir que nada havia a decidir. Porém, apesar dessa indicação, mostra-se indiscutível que aquela decisão constitui em substância declaração de incompetência do TEP para a emissão de mandados de detenção europeus e que, na verdade, algo foi decidido.
Como se referiu, a decisão recorrida motiva a afirmação de incompetência num conjunto de normativos, esclarecendo apenas que são interpretados a contrario. Ou seja, afigura-se-nos que o despacho recorrido trilha o caminho que vem expresso pelo arguido, ou seja, porque dos referidos normativos não consta expressamente indicação da emissão de mandados de detenção europeus, essa competência encontra-se excluída.
Efectivamente, nenhuma das normas referidas - artºs. 467º, 469º, 470º, 474º, 475º e 476º, todos do CPP e 22º do D.L. 783/76, de 29/10 e 91º nºs 1 e 2 al. g) da Lei 3/99, de 13/1- alude expressamente à emissão de mandados de detenção europeus pelo TEP mas tais normas não podem ser desligadas do diploma específico que rege esse tipo de mandados.
 O D.L. 65/2003, de 23/8, constitui o diploma interno de transposição da Decisão-Quadro que 13/06/2002 da União Europeia (UE), enquanto primeira concretização da afirmação do princípio do reconhecimento mútuo como «pedra angular» da cooperação judiciária em matéria penal. Trata-se de instaurar um espaço de Liberdade, de Segurança e de Justiça comum, começando pela substituição do regime da extradição por um novo regime simplificado de entrega de pessoas condenadas ou suspeitas para efeitos de execução de sentença ou de procedimento penal [[ii]]. Como se refere em recente aresto do STJ, «moldadas na finalidade do instrumento específico de cooperação e nos pressupostos essenciais que lhe estão subjacentes (mútuo reconhecimento; substituição da extradição), as normas aplicáveis a cada situação têm de ser interpretadas no contexto dos referidos âmbitos e finalidades, e na conjugação ainda entre as exigências decorrentes do reconhecimento mútuo e os deveres assumidos e a permanência de alguns espaços de soberania estadual em matéria penal» [[iii]].
Ora, no artº 36º da Lei nº 65/2003, de 23/8, o legislador veio estabelecer, com mediana clareza, que a competência para a emissão de MDE cabe à mesma autoridade judiciária competente para ordenar a detenção ou a prisão de pessoa procurada em Portugal, o que, aliás, corresponde inteiramente ao princípio norteador desse novo instrumento. Enquanto concretização do princípio do reconhecimento mútuo e do espaço comunitário em matéria de Liberdade, Segurança e Justiça, trata-se de assegurar que os procedimentos internos são reconhecidos como válidos e exequíveis em todo esse espaço. E, do mesmo jeito, verifica-se que o legislador quis expressamente afastar a possibilidade de duas autoridades judiciárias distintas concorrerem na emissão da ordem de privação da liberdade do mesmo indivíduo, uma para a detenção no espaço nacional e outra no espaço europeu. Assim, a resposta à questão colocada no recurso relativamente saber a que tribunal cabe a emissão de mandados de detenção europeu será a mesma da conferida à determinação da competência para ordenar a detenção em geral.
Decorre do disposto no artº 470º do CPP o princípio geral de que o tribunal da condenação mantém-se competente para a execução dessa decisão mas essa regra sofre excepções, em função das questões atribuídas por Lei ao Tribunal de Execução das Penas. Essas excepções decorrem dos arts. 91º e 92º da Lei 3/99 e do D.L. 783/76, de 29/10, mormente dos seus artºs. 22º e 23º.
Por outro lado, dispõem os artºs. 92º da Lei 3/99, de 13/1 e 23º, 4º do D.L. 783/76, de 29/10, que compete ao juiz conceder e revogar saídas precárias prolongadas. Por seu turno, e relativamente ao processo de revogação de saída precária prolongada, dispõe o artº 71º que No despacho preliminar que não ponha termo ao processo é ordenada a passagem de mandados de captura sempre que o fundamento da proposta seja o não regresso do recluso dentro do prazo determinado. Por fim, como flui do disposto nos artºs 73º e 68º do D.L. 783/76, de 29/10, o processo culmina com a decisão de revogação, ou não, da saída precária prolongada.
Face a esse regime, cumpre concluir que a Lei impõe a emissão de mandados de detenção logo no momento inicial do processo dedicado a apreciar a eventual revogação de saída precária prolongada e que confere para tanto competência ao Juiz do TEP [[iv]]. Então, uma vez afirmada tal competência no âmbito do ordenamento nacional, não existem restrições à difusão dessa ordem de captura fora do território português, mormente através de mandado de detenção europeu, face ao disposto no referido artº 36º da Lei nº 65/2003, de 23/8.
Por outro lado, e ao invés do que já foi entendido nesta Relação [[v]], consideramos que a referida emissão de mandados de detenção não configura o esgotamento das atribuições legais do TEP. Como decorre do disposto no artº 476º al. b) do CPP, o legislador configura duas situações alternativas de competência para a contumácia de condenado: aquela em que o condenado exime-se de todo ao cumprimento da pena, caso em que a declaração de contumácia compete ao tribunal da condenação; e aquela em que o cumprimento é interrompido dolosamente pelo recluso, cabendo, por força do disposto no artº 91º, nº2, al. g) da Lei 3/99, de 13/1, ao TEP tal declaração.
No caso em apreço, dúvidas não há que a contumácia deve, como foi, ser declarada pelo TEP, com a consequência lógica de que os seus efeitos processuais projectam-se em primeira linha no próprio procedimento de revogação da saída precária prolongada, o qual fica suspenso, de acordo com o nº3 do artº 335º do CPP. Então, só após a apresentação ou detenção do condenado e consequente cessação da contumácia, apreciada pelo Tribunal que a declarou, poderá prosseguir o processo contemplado nos artºs 70º e segs. do D.L. 783/76, de 29/10, e culminar com decisão final. Nessa medida, e com todo o respeito por opinião diversa, pensamos que a interpretação que faça “esgotar” a esfera de competência do TEP com a declaração de contumácia não encontra arrimo na letra nem na teleologia do ordenamento processual vigente.
Em suma, e enquanto permanecer a situação que conduziu à primeira e subsequentes emissões de mandados de detenção, independentemente da declaração de contumácia, permanece a competência do TEP para continuar a diligenciar pela captura, decorrente do artº 71º do D.L. 783/76, de 29/10 e, repete-se, por força do artº 36º da Lei nº 65/2003, de 23/8, para a emissão de mandado de detenção europeu, sempre que existam fundadas razões para crer que a pessoa procurada se encontra no espaço de aplicação desse instrumento, como é manifestamente o caso dos presentes autos.
Aqui chegados, cumpre concluir pela competência do TEP para a emissão de mandados de detenção europeus e pela procedência do recurso.

Dispositivo
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em:
Conceder provimento ao recurso;
Revogar o despacho recorrido e determinar a sua substituição por outro que ordene a emissão de mandado de detenção europeu relativamente a A….

Por decair em recurso a que deduziu opo

[i] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2ª ed., Ed. Verbo, pág. 335 e Ac. do STJ de 99/03/24, in CJ (STJ), ano VII, tº 1, pág. 247.
[ii] Cfr. Anabela Miranda Rodrigues, O mandado de detenção europeu – Na via da construção de um sistema penal europeu: um passo ou um salto, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 13º, nº1, Janeiro-Março, 2003, págs. 27 e segs.
[iii] Ac. do STJ de 12/11/2008, Pº 08P3709, relator Cons. Henriques Gaspar, www.dgsi.pt.
[iv] Importa notar que essa imposição, dependente apenas de pressupostos formais, justifica-se materialmente com o carácter precário da saída e o índice objectivo de incumprimento decorrente de existir um prazo determinado para o retorno, com máximo legal (8 dias). Diferentemente, na revogação da liberdade condicional, a ordem de detenção carece da apreciação fundamentada de pressupostos materiais - urgência e reconhecido interesse público, como salienta o Ac. do STJ de  29/10/2008, Pº08P3556, www.dgsi.pt
[v] Ac. da Relação de Coimbra de 03/10/2007, Proc. 183/99.0TBVGS-A.C1, relator Des. Carlos Barreira, www.dgsi.pt