Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
731/07.4TBALB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: EXECUÇÃO ESPECÍFICA
CONSIGNAÇÃO EM DEPÓSITO
PRESTAÇÃO A CARGO DO AUTOR
FIXAÇÃO PELO TRIBUNAL
Data do Acordão: 12/17/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ALBERGARIA-A-VELHA – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Legislação Nacional: ARTºS 428º A 431º E 830º, Nº 5, DO C. CIV..
Sumário: I – Nos termos do nº 5 do artº 830º do C. Civ., no caso de contrato promessa em que o obrigado goze da excepção do não cumprimento do contrato, prevista e regulada nos artºs 428º a 431º do C. Civ., a acção de execução específica do contrato promessa improcede se o requerente não consignar em depósito a sua prestação no prazo que lhe for fixado pelo tribunal.

II – Embora a excepção do incumprimento do contrato não seja de conhecimento oficioso, não é necessário que a mesma tenha sido invocada para que, reunidos os demais requisitos, o tribunal fixe prazo para a consignação em depósito da prestação do demandante na acção de execução específica.

III – Para o efeito, a sentença a proferir na acção de execução específica deve fazer depender o reconhecimento do direito à execução específica da consignação em depósito da prestação devida pelo requerente, em prazo na sentença fixado (contado da data do respectivo trânsito).

IV – Nenhum impedimento de relevo obsta a que a fixação de prazo para a consignação em depósito prevista no nº 5 do artº 830º do CPC seja feita na sentença que reconheça o direito à execução específica, fazendo depender os efeitos desse reconhecimento à consignação em depósito, no prazo fixado, da prestação julgada devida.

Decisão Texto Integral:

         Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

         1. RELATÓRIO

         A… e esposa, B…, moradores na Rua Senhor dos Aflitos, Lote 7, fracção G, no lugar de Carregosa, freguesia de Alquerubim, concelho de Albergaria-a-Velha, intentaram acção declarativa, com processo comum e forma ordinária, contra “C…”, sociedade comercial por quotas com sede na Rua de França Júnior, nº 395, em Matosinhos e “D…”, sociedade comercial por quotas com sede na Rua do Pocinho, nº 2, rés-do-chão, na Praia da Barra, freguesia da Gafanha da Nazaré, concelho de Ílhavo, pedindo a procedência da acção e, por via disso:

         A – se proferindo douta Sentença que, substituindo a declaração negocial da 1ª Ré, declare vendido aos Autores, em execução específica, o imóvel constituído por moradia de r/c e 1.° andar, tipo T-três, a segunda a partir de norte, destinada a habitação, composta por hall de entrada, cozinha, marquise, despensa, três instalações sanitárias, três quartos, sala comum e espaços de circulação, com 155,45 m2, terraço, varandas e garagem, com a área de 19,45 m2, e logradouro na frente, com a área de 68,20 m2, descrita na Conservatória do Registo Predial de Albergaria-a-Velha sob o n.° 03635/020430-G, da freguesia de Alquerubim;

         B – se concedendo aos Autores, após prolação daquela douta Sentença, prazo não inferior a 3 meses para obtenção/renovação de empréstimo bancário com garantia de hipoteca para pagamento do preço ainda em dívida e da quantia inicialmente entregue a título de sinal e princípio de pagamento;

         C – se declarando a dedução no preço a pagar à 1ª Ré das quantias pagas pelos Autores para custear trabalhos, obras, equipamentos, serviços e licenças necessárias à conclusão da casa, em montante não inferior a 10.000,00 €, condenando-se a 1ª Ré no pagamento aos Autores desta quantia;

         D – condenando-se a 1ª Ré a expurgar todos os ónus e encargos, inscritos no Registo Predial, que oneram aquele imóvel, ou, quando não o faça oportunamente, em tempo de coincidir com a sua transmissão aos Autores, condenando-se a 1ª Ré a pagar a estes o respectivo valor, a apurar oportunamente, mas que se estima (considerando os valor referidos nas inscrições prediais) em quantia não inferior a 213.195,21 €;

         E – subsidiariamente, e para a hipótese de improcederem os pedidos precedentemente formulados em A, B e D, pedem seja a Ré condenada a devolver aos Autores, em dobro, a quantia do sinal entregue, ou seja, a quantia de 40.000,00 €, ou, quando assim não se entenda, e subsidiariamente, condenando-se a Ré a devolver aos Autores o sinal em singelo, acrescido dos juros legais desde a data da sua entrega à 1ª Ré;

         F – em qualquer caso se declarando a nulidade das vendas efectuadas pela 1ª Ré à 2ª Ré, designadamente, a nulidade da venda dos seguintes imóveis, todos sitos na freguesia de Alquerubim, concelho de Albergaria-a-Velha:

         a) moradia descrita na Conservatória do Registo Predial de Albergaria-a-Velha sob o número 03635/020430-A, da dita freguesia de Alquerubim;

         b) moradia descrita na mesma Conservatória sob o n.° 03635/020430-B, da mesma freguesia;

         c) terreno descrito na mesma Conservatória sob o n.° 03316/000114, da mesma freguesia;

         d) moradia descrita na mesma Conservatória sob o n.° 03316/20060519-A, da mesma freguesia;

         e) moradia descrita na mesma Conservatória sob o n.° 03316/20060519-B, da mesma freguesia;

         f) moradia descrita na mesma Conservatória sob o n.° 03316/20060519-C, da mesma freguesia;

         g) moradia descrita na mesma Conservatória sob o n.° 03316/20060519-D, da mesma freguesia;

         h) moradia descrita na mesma Conservatória sob o n.° 03316/20060519-E, da mesma freguesia;

         i) moradia descrita na mesma Conservatória sob o n.° 03316/20060519-F, da mesma freguesia;

         j) moradia descrita na mesma Conservatória sob o n.° 03316/20060519-G, da mesma freguesia;

         I) moradia descrita na mesma Conservatória sob o n.° 03316/20060519-H, da mesma freguesia;

         G) ou, quando se entenda que não deverá ser decretada a nulidade, subsidiariamente pedem seja a 2ª Ré condenada a que aqueles imóveis sejam executados, mesmo mantendo-se no seu património, para pagamento das quantias em que a 1ª Ré venha a ser condenada por força da presente acção.

         Alegaram, para tanto, em síntese, que celebraram, como promitentes-compradores, com a 1ª R., como promitente vendedora, um contrato-promessa de compra e venda de uma moradia, que identificam e descrevem, pelo preço de € 100.000,00, do qual já entregaram, a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de € 20.000,00; a parte restante do preço seria paga no acto de outorga da escritura pública de compra e venda, sendo obtida mediante empréstimo bancário, com garantia de hipoteca, o que desde início foi do conhecimento e mereceu o assentimento da 1ª R., tendo mesmo sido feitos os pertinentes registos provisórios; com o consentimento da 1ª R., entraram na posse material da moradia, nela tendo instalado e mantendo o seu domicílio; o imóvel encontrava-se onerado, já anteriormente à celebração do contrato-promessa, com hipotecas a favor do E…, para garantia de empréstimos concedidos à 1ª R.; o mesmo imóvel encontrava-se inacabado e, por isso, sem licença de utilização, tendo os AA. suportado o pagamento dos trabalhos e obras em falta e instalação de equipamentos e serviços indispensáveis à conclusão, bem como o pagamento de licenças, no que despenderam € 10.000,00; a 1ª R. entrou, em meados de 2006, em ruptura financeira, não tendo garantido o levantamento das hipotecas, nem se dispondo a compensar os AA. da quantia despendida, razões pelas quais estes apesar de terem comparecido, não aceitaram celebrar a escritura de compra e venda na data por aquela aprazada; a partir desse momento, a 1ª R. nada mais fez no sentido de cumprir o contrato promessa, dando mesmo mostras de não pretender cumpri-lo; além disso, simuladamente, para fugir aos credores, nomeadamente aos AA., declarou vender à 2ª R., que declarou comprá-lo, todo o seu património, que descrevem.

         As RR. foram regularmente citadas e não contestaram, razão pela qual foram, nos termos do artº 484º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, considerados confessados os factos articulados pelos AA.

         Cumpriu-se o disposto no artº 484º, nº 2, tendo os AA. alegado por escrito.

         Os AA., que já haviam junto, de acordo com determinação do tribunal, prova do registo da acção, juntaram ainda, cumprindo nova determinação, os documentos que constituem fls. 121 a 131 dos autos.

         Foi, então, proferido o despacho de fls. 132 a 134 fixando aos AA. o prazo de 3 (três) meses para consignarem em depósito o preço remanescente ainda não pago à promitente vendedora.

         Indeferido o pedido de aclaração apresentado, os AA. agravaram do aludido despacho e, na alegação apresentada, formularam as conclusões seguintes:

         I – A excepção de não cumprimento do contrato não é de conhecimento oficioso –  assim não podendo ser considerada oficiosamente pelo Tribunal;

II – Quando não seja invocada pelo promitente-vendedor, não pode (nem faz sentido) o Tribunal fazer depender do prévio depósito do preço em falta a procedência do pedido de execução específica;

III – Não basta que em abstracto seja possível invocar a excepção de não cumprimento para que, previamente à apreciação do mérito da causa, seja exigida a consignação da parte do preço em falta;

IV – A consignação da parte do preço em falta não é requisito de procedência do pedido de execução específica;

V – Mesmo que invocada a excepção de não cumprimento por parte do promitente-vendedor no respeitante à falta de pagamento do preço em falta, cumpre averiguar se tal invocação e tal excepção são lícitas e se merecem provimento, o que no caso dos Autos não se verifica, pois

VI – Com o seu incumprimento, o promitente-vendedor impossibilitou os promitentes-compradores de cumprirem com o pagamento em falta, dada a não expurgação dos ónus incidentes sobre o imóvel,

VII – Tendo sido acordado que o pagamento da parte em falta do preço seria efectuado com recurso a financiamento bancário com garantia de hipoteca;

VIII – Sendo lícita a invocação, pelos promitentes-compradores, da excepção de compensação com créditos atendíveis (como é o caso) que detenham ou venham a deter sobre o promitente-vendedor;

IX – De qualquer modo, o prazo para a consignação da parte do preço em falta apenas deve contar do trânsito em julgado da Sentença que julgue procedente o pedido de execução específica, pois não faz sentido efectuar o pagamento sem prévia averiguação e ponderação dos fundamentos que determinem a obrigação de o efectuar.

X – Assim não se entendendo, e salvo sempre o devido respeito, no douto Despacho recorrido violou-se o disposto no n.° 5 do art.º 830.° do CPC.

Não foi apresentada resposta.

Foi proferido despacho de sustentação.

Colhidos os pertinentes vistos, cumpre apreciar e decidir.


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         Tendo em consideração que, de acordo com o disposto nos artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foi essencialmente colocada a questão da interpretação do nº 5 do artº 830º do Código Civil.


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         2. FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. De facto

         Os elementos e incidências processuais relevantes para a decisão do agravo são os que decorrem do relatório antecedente, aqui dado como reproduzido para todos os efeitos legais.


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         2.2. De direito

         O artº 830º do Cód. Civil, com a epígrafe «Contrato-promessa», insere-se numa subsecção subordinada à epígrafe «Execução específica».

         Na redacção vigente, conferida pelo Decreto-Lei nº 379/86, de 11/11, reza assim:

         1. Se alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato e não cumprir a promessa, pode a outra parte, na falta de convenção em contrário, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, sempre que a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida.

         2. Entende-se haver convenção em contrário, se existir sinal ou tiver sido fixada uma pena para o caso de não cumprimento da promessa.

         3. O direito à execução específica não pode ser afastado pelas partes nas promessas a que se refere o n.° 3 do artigo 410°; a requerimento do faltoso, porém, a sentença que produza os efeitos da sua declaração negocial pode ordenar a modificação do contrato nos termos do artigo 437.°, ainda que a alteração das circunstâncias seja posterior à mora.

         4. Tratando-se de promessa relativa à celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real sobre edifício, ou fracção autónoma dele, em que caiba ao adquirente, nos temos do artigo 721.°, a faculdade de expurgar hipoteca a que o mesmo se encontre sujeito, pode aquele, caso a extinção de tal garantia não preceda a mencionada transmissão ou constituição, ou não coincida com esta, requerer, para efeito da expurgação, que a sentença referida no n.° 1 condene também o promitente faltoso a entregar-lhe o montante do débito garantido, ou o valor nele correspondente à fracção do edifício ou do direito objecto do contrato e dos juros respectivos, vencidos e vincendos, até pagamento integral.

         5. No caso de contrato em que ao obrigado seja lícito invocar a excepção de não cumprimento, a acção improcede, se o requerente não consignar em depósito a sua prestação no prazo que lhe for fixado pelo tribunal. 

         A excepção do não cumprimento do contrato encontra-se prevista e regulada nos artºs 428º a 431º do Cód. Civil e pode definir-se como a faculdade que, nos contratos bilaterais em que não haja prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo (artº 431º, nº 1).

         A faculdade referida integra, processualmente, uma excepção dilatória de direito material[1], que depende de invocação, pois não é de conhecimento oficioso[2].

         Ora, nos termos do nº 5 do artº 830º, no caso de contrato promessa em que o obrigado goze dessa faculdade, a acção de execução específica do contrato-promessa improcede se o requerente não consignar em depósito a sua prestação no prazo que lhe for fixado pelo tribunal.

         Segundo Pires de Lima e Antunes Varela[3], o nº 5 do artº 830º, correspondente ao nº 3 da versão anterior ao Decreto-Lei nº 379/86, procura evitar que uma das partes fique impossibilitada de invocar a excepção de não cumprimento. E exemplificam: “Se se trata, por exemplo, duma promessa de compra e venda, o tribunal não pode lavrar sentença da venda sem que o promitente-comprador deposite o preço no prazo que lhe for fixado, para não acontecer que o promitente-vendedor fique despojado da coisa sem o recebimento simultâneo do preço”.

         A mesma ideia é transmitida no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01/03/2007[4], onde se escreveu que “o escopo finalístico do mencionado normativo, considerando que por via da sentença declarativa constitutiva de execução específica o beneficiário fica desde logo investido na titularidade do direito a que se reporta o contrato definitivo, é o de obstar a que, nos contratos sinalagmáticos, uma das partes seja colocada em situação de não poder invocar a excepção de não cumprimento”[5].

         Uma primeira observação se impõe. É ela a de que, embora a excepção do incumprimento do contrato não seja de conhecimento oficioso, não é necessário que a mesma tenha sido invocada para que, reunidos os demais requisitos, o tribunal fixe prazo para a consignação em depósito da prestação do demandante na acção de execução específica. É o que decorre da letra (e do espírito) da lei, onde se exige que ao obrigado seja lícito invocar – e não que tenha invocado – a excepção de não cumprimento[6].

        

         Mas a grande questão que se coloca na interpretação da norma do nº 5 do artº 830º – e foi colocada pelos agravantes – é a de saber em que altura deve o tribunal fixar ao requerente prazo para, sob pena de improcedência da acção, consignar em depósito a sua prestação. E, consequentemente, em que altura tem o requerente de proceder a tal consignação em depósito.

         Uma primeira corrente doutrinal e jurisprudencial, seguida na decisão sob recurso, entende que aquelas fixação de prazo e consignação em depósito devem ocorrer antes da emissão da sentença que conheça da existência ou inexistência do direito à execução específica.

         Atende tal corrente, essencialmente, à letra da lei, considerando que a fixação de prazo e a subsequente consignação em depósito constituem um pressuposto, um requisito de procedência da acção de execução específica – ainda que não signifiquem um pré-julgamento favorável ao requerente e deixem ao julgador inteira liberdade de decisão no que tange ao mérito da causa. Como tal, a fixação do prazo e a consignação em depósito teriam logicamente de preceder a sentença, pois a improcedência da acção que a falta da consignação em depósito acarreta seria inconciliável com uma sentença condicional, que deixe a procedência da acção dependente da satisfação da prestação em falta.

         Perfilham este entendimento, na doutrina, entre outros, P. Lima – A. Varela[7], I. Galvão Telles[8], Brandão Proença[9] e Menezes Cordeiro[10] e na jurisprudência, por exemplo, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21/09/89[11], 02/12/92[12], 08/07/2003[13], 01/03/2007[14].

         Uma segunda corrente doutrinária e jurisprudencial vem, contudo, defendendo posição diferente, admitindo que a sentença a proferir na acção de execução específica, reconhecendo o direito a esta, o faça depender da consignação em depósito da prestação devida pelo requerente, em prazo na sentença fixado, contado da data do respectivo trânsito.

         Fazem tal julgamento, na doutrina, Almeida Costa[15] e, se bem o interpretámos, Calvão da Silva[16] e, na jurisprudência, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01/07/2004[17].

         Tendemos a aderir à segunda das correntes indicadas.

         Em primeiro lugar, não se vê por que razão o requerente, cuja prestação deveria ser feita simultaneamente com a emissão da declaração negocial do faltoso, há-de ser obrigado – sem quaisquer garantias de que a sentença venha a suprir aquela declaração negocial, isto é, que lhe venha a ser favorável – a antecipar, por período mais ou menos longo, a prestação a seu cargo.

         Depois, a prévia consignação em depósito da prestação do contraente cumpridor é dificilmente conciliável com a possibilidade conferida pela 2ª parte do nº 2 do artº 830º, ao faltoso, de requerer que a sentença que produza os efeitos da sua declaração negocial ordene a modificação do contrato nos termos do artº 437º[18].

         Da mesma forma, nos casos enquadráveis na previsão do nº 4 do artº 830º, requerendo o adquirente que a sentença condene também o promitente faltoso a entregar-lhe o montante em débito garantido, ou o valor nele correspondente à fracção do edifício ou do direito objecto do contrato e dos juros respectivos, vencidos e vincendos, até pagamento integral, mostra-se pouco razoável exigir-lhe a prévia consignação em depósito da sua prestação, impedindo-o de beneficiar da repercussão/compensação no montante do depósito, a operar na sentença, da quantia a receber.

        

Calvão da Silva, na obra já acima referida, aponta vários fundamentos no sentido de a sentença da acção de execução específica poder ser complexa, constitutiva numa parte e condenatória noutra, admitindo, por um lado, a execução específica e reduzindo, por outro, o preço convencionado, nos casos em que apesar de o promitente comprador continuar a querer adquirir a coisa, esta seja defeituosa[19].

         Em síntese nossa, os fundamentos enunciados pelo autor referido são os seguintes: (1) a não ser assim, estaria a empurrar-se o promitente-comprador para a resolução do contrato; (2) a alternativa positiva à resolução não é a aceitação pura e simples da coisa defeituosa, mas antes a eventual redução do preço (quanti minoris); (3) a possibilidade de cumular, numa acção de execução específica, o pedido de redução do preço com o de suprimento do contrato é a que melhor se coaduna com a sinalagmaticidade das prestações; (4) a solução defendida não é mais do que a aplicação das regras gerais do cumprimento das obrigações; (5) a admissibilidade da cumulação dos pedidos – execução específica mais a redução do preço ou a eliminação dos defeitos da coisa – é a solução mais condizente com o princípio da economia processual.

        

         Aconselha também maior flexibilidade e, portanto, a aceitação de que se deixe para a sentença que julgue existente o direito à execução específica a determinação da prestação a depositar pelo requerente e a fixação do prazo para o depósito, a circunstância de, sobretudo nas promessas relativas à celebração de contratos onerosos de transmissão ou constituição de direito real sobre edifício ou fracção autónoma dele, ser habitual o promitente comprador recorrer a empréstimo bancário. Com efeito, é sabido que, regra geral, as entidades bancárias só disponibilizam o empréstimo mediante constituição a seu favor de hipoteca sobre o bem adquirido, não o disponibilizando, pois, no caso de acção de execução específica, antes de haver decisão que viabilize e garanta a transmissão da propriedade.

         Ora a exigência da prévia consignação em depósito da sua prestação iria impedir os promitentes compradores que deles necessitassem de aceder aos empréstimos, negando-lhes assim, na prática, o direito de execução específica que a lei, reunidos os requisitos previstos, lhes reconhece.

         Afigura-se-nos, pois, que nenhum impedimento de relevo obsta a que a fixação de prazo para a consignação em depósito prevista no nº 5 do artº 830º seja feita na sentença que reconheça o direito à execução específica. Sempre na sentença se fazendo depender, bem entendido, os efeitos do reconhecimento da existência do direito de execução específica à consignação em depósito, no prazo fixado[20], da prestação julgada devida.

         No caso dos autos os AA. cumulam o pedido de execução específica do contrato-promessa que celebraram com a 1ª R., além do mais, com os pedidos de redução do preço e de condenação da 1ª R. a expurgar todos os ónus e encargos inscritos no Registo Predial que oneram o imóvel transaccionado ou, quando o não faça oportunamente, em tempo de coincidir com a sua transmissão aos AA., a pagar a estes o respectivo valor, estimado em quantia não inferior a € 213.195,21.

         São, pois, aplicáveis todas as considerações acima feitas no sentido de não ser exigível a prévia consignação em depósito da prestação dos AA., não havendo, consequentemente, por ora, justificação para a fixação de prazo para esse efeito.

         Logram êxito, portanto, as conclusões da alegação dos recorrentes, o que conduz ao provimento do agravo e à revogação do despacho recorrido.


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         3. DECISÃO

         Pelo exposto, acorda-se em conceder provimento ao agravo e, consequentemente, em revogar o despacho recorrido.

         Sem custas [artº 2º, al. g) do Cód. Custas Judiciais].


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                                                        Coimbra,


[1] Ac STJ de 15/10/80, in BMJ, nº 300, pág. 364. José João Abrantes, A Excepção de Não Cumprimento do Contrato, págs. 141 e seguintes.
[2] Prof. Almeida Costa, Contrato-Promessa, Uma Síntese do Regime Vigente, 6ª edição revista e actualizada, Almedina, Coimbra, 1999, pág. 56.
[3] Código Civil Anotado, II Vol., 2ª edição, pág. 93.
[4] Processo 07B477, relatado pelo Cons. Salvador da Costa, in www.dgsi.pt/jstj.
[5] Cfr. também o Ac. STJ de 2/12/92, in BMJ, nº 422, pág. 335.
[6] Acs. STJ de 16/01/2003 (Proc. 02B4023, relatado pelo Cons. Joaquim de Matos) e de 01/03/2007 (Proc. 07B477, relatado pelo Cons. Salvador da Costa), in www.dgsi.pt/jstj. No texto deste último Acórdão afirma-se: “Não resulta da letra nem do escopo finalístico do normativo do nº 5 do artº 830º do Código Civil que ele só funciona quando a parte interessada deduza a mencionada excepção dilatória de direito material, certo que apenas alude aos contratos em que ao obrigado seja lícito invocar a excepção em causa”.
[7] CCA, Vol. II, pág. 78.
[8] Direito das Obrigações, 7ª edição, pág. 137.
[9] Do Incumprimento do Contrato Promessa Bilateral, 1987, pág. 38.
[10] Obrigações, I, 1986, págs. 471 e seguintes.
[11] BMJ, nº 384, pág.607.
[12] BMJ, nº 422, pág. 335.
[13] Proc. 03B1186, relatado pelo Cons. Luís Fonseca, in www.dgsi.pt/jstj.
[14] Proc. 07B477, relatado pelo Cons. Salvador da Costa, in www.dgsi.pt/jstj.
[15] Contrato Promessa, Uma Síntese do Regime Vigente, 6ª edição revista e actualizada, Almedina, Coimbra, 1999, pág. 56, onde afirma expressamente que “não se afigura aceitável, na verdade, entender que o legislador tenha pretendido transformar a consignação em depósito num pressuposto de apreciação do mérito do pedido de execução específica. A seguir a opinião contrária, correr-se-ia o risco de o tribunal ordenar a consignação em depósito, por admitir que se estava perante um contrato que permitia invocar a excepção de não cumprimento, e o autor ver a acção julgada improcedente pela simples falta dessa consignação, sem que fossem apreciados os fundamentos da execução específica”.
[16] Sinal e Contrato-Promessa, 1987, págs. 105/109.
[17] Proc. 04B1774, relatado pelo Cons. Ferreira de Almeida, in www.dgsi.pt/jstj. Diz-se, no respectivo sumário, que “não é aceitável transformar-se a consignação em depósito num pressuposto de apreciação do mérito do pedido de execução específica, uma vez que tal prazo é meramente acessório da pretensão de execução específica”.
[18] Aliás, à semelhança do que a lei prevê para o faltoso, também o não faltoso poderá, certamente, havendo fundamento para tanto, requerer que a sentença ordene a modificação do contrato. O que colocará em dúvida o montante da sua prestação e desaconselhará a prévia consignação em depósito da mesma.
[19] Posição que, se bem vemos, contende com a obrigatoriedade de prévia consignação em depósito da prestação devida pelo requerente.
[20] Prazo esse que é improrrogável (Ac. STJ de 21/02/89, in BMJ, nº 384, pág. 607).