Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
323/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: DIREITO DE REGRESSO
SEGURADORA
ABANDONO DE SINISTRADO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
Data do Acordão: 04/19/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TORRES NOVAS- 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 19º, AL. C), DO DL Nº 522/85, DE 31/12.
Sumário: I – O direito de regresso da seguradora em casos de abandono do sinistrado deve limitar-se à indemnização paga com base nos danos provocados pelo abandono ou no agravamento provocado por este nos danos resultantes do acidente .
II – Afigura-se que no momento em que o condutor voluntariamente decide omitir o auxílio à vitima e afastar-se sem a socorrer já os danos resultantes do acidente, cobertos pelo seguro, estão, efectiva ou potencialmente, provocados, existindo já, relativamente a eles ( ainda que futuros ), responsabilidade civil da seguradora .

III – Não se vê fundamento para a seguradora, relativamente a esses danos, beneficiar da censurável decisão do condutor de abandonar o sinistrado, adquirindo contra ele um direito de regresso que, não fora tal decisão, não teria .

Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:


1. RELATÓRIO
A..., com sede na Rua do Ferragial, 33-3º, 1200 Lisboa – desde início (artº 2º da p. i.) alegando que por escritura de 30 de Setembro de 1999, que teve lugar no 22º Cartório Notarial de Lisboa, se fundiu, por incorporação Com a inscrição da fusão no registo comercial se extinguindo, portanto, de acordo com o artº 112º, al. a) do Cód. Soc. Comerciais., na B... intentou acção declarativa, com processo comum e forma ordinária, contra C..., casado, pedreiro, residente em Vale Alto, Minde, 2380 Alcanena, pedindo a condenação do R. a pagar-lhe “a quantia já liquidada de Esc. 5.909.235$00, custas e procuradoria condigna, bem como os juros de mora a partir da citação, calculados à taxa legal sobre o montante do direito de reembolso em dívida, até integral pagamento”.
Para tanto, a A. alegou, em síntese, que no exercício da sua actividade, celebrou com D... um contrato de seguro do ramo automóvel, titulado pela apólice nº 90/062226, pelo qual assumiu a responsabilidade civil por danos causados a terceiros com a circulação do veículo misto particular, marca Mitsubishi, de matrícula 83-30-CO; que no dia 02/01/1996, pelas 15.00 horas, na E.N. nº 3, ao Km 72,200, no entroncamento que aquela via descreve com a Estrada da Barreira Alva – Zibreira, área da comarca de Torres Novas, ocorreu um acidente em que foram intervenientes o motociclo particular, marca Yamaha, modelo TDM 850, de matrícula LO-64-48, conduzido na altura por E..., seu proprietário e o veículo seguro, propriedade de D... e conduzido na altura por C..., ora Réu; que, devido ao acidente e com base no contrato de seguro, pagou de indemnizações ao lesado, de despesas de reboque, peritagem, reparação e parqueamento, de despesas hospitalares, de custas judiciais e de honorários a quantia global de esc. 5.909.235$00; que, porque o R., após o acidente, prosseguiu a sua marcha, abandonando o sinistrado, tem contra ele direito de regresso, nos termos do disposto na al. c) do artº 19º do Dec. Lei nº 522/85, de 31/12; e que, diversas vezes abordado para efectuar o pagamento, o R. nunca deu qualquer resposta.
O R. contestou pugnando pela improcedência da acção, para o que alegou que a A. não tem direito de regresso, já que os danos sofridos pelo lesado resultaram do acidente propriamente dito e não do abandono, o qual, para esse efeito, foi irrelevante.
Realizou-se uma audiência preliminar, no decurso da qual foi a A. convidada a aperfeiçoar a petição inicial, alegando factos relativos ao nexo de causalidade entre os danos e o abandono.
Junta a petição corrigida e apresentada pelo R. nova contestação em que conclui como na contestação “inicial”, teve lugar o saneamento, a condensação e a instrução da acção.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, em cujo âmbito foi proferido o despacho de fls. 169 e 170, respondendo aos quesitos da base instrutória e, desse modo, decidindo a matéria de facto, foi proferida a sentença de fls. 174 a 181, julgando a acção improcedente e absolvendo o R. do pedido.
Inconformada, a A. recorreu e, na alegação apresentada, formulou as conclusões seguintes:
1) O fundamento do direito de regresso da seguradora, ora apelante, refere-se exclusivamente ao abandono do sinistrado, não permitindo, assim, como o faz a douta sentença recorrida, qualquer interpretação literal do disposto na alínea c) do art. 19° do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro que o restrinja aos danos causados pelo abandono;
2) O direito de regresso da seguradora fundado no abandono do sinistrado na sequência de acidente estradal, uma vez provados os seus pressupostos – ou seja, a culpa do segurado na produção do acidente que logo abandonou o local sem providenciar socorro à vítima – não deve ter limites a não ser o da própria indemnização;
3) Resultou inequivocamente da prova ter o acidente ocorrido por culpa exclusiva do Réu, uma vez ter este, ao conduzir o CO pela hemifaixa direita da EN nº 243, no sentido Zibreira – Torres Novas e ao avistar e entendido o significado do sinal gráfico vertical B2, que impunha a obrigação de parar e ceder passagem a todos os veículos que transitassem na E.N. nº 3 que intersectava a via de onde provinha, prosseguido a sua marcha mudando de direcção para a esquerda, sem acatar a obrigação imposta por aquele sinal, violando o disposto no art. 29º, nº 1 do CE de 1994 e, nessa medida, provocando o embate no LO-64-48, conduzido na altura pela vítima E...;
4) Tem a Autora, ora apelante, enquanto seguradora que pagou a respectiva indemnização, o direito de regresso sobre aquele, sem que tenha de alegar e provar que do simples facto do abandono tenha resultado qualquer dano ou o seu agravamento (vide, por todos, os recentes acórdãos do STJ de 24.05.2001, in CJ-STJ, II.º, 102-105 e de 03.07.2003 na Revista n.° 1272/03-2, inédito);
5) Deve, assim, ser o Réu condenado no pagamento à Autora da indemnização e em todas as despesas decorrentes do acidente objecto dos presentes autos e que se acham nos autos provadas ter esta pago;
6) A sentença recorrida, ao decidir de modo diverso, violou o disposto nos artigos 19º, alínea c) do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, e 9º, nº 2 do Código Civil.
O apelado respondeu defendendo a manutenção da sentença recorrida.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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2. QUESTÕES A SOLUCIONAR
Tendo em consideração que, de acordo com os artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foi colocada tão só a questão de saber se o direito de regresso da seguradora contra o condutor, quando haja abandono de sinistrado, previsto na al. c) do artº 19º do Dec. Lei nº 522/85, de 31/12, existe sempre e relativamente a toda a indemnização satisfeita ou apenas quando do abandono resultem danos específicos ou agravamento dos decorrentes do acidente e relativamente à indemnização correspondente a tais danos ou agravamento.
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\ 3. FUNDAMENTAÇÃO
3.1. De facto
Não tendo a decisão de facto sido objecto de impugnação, nem havendo fundamento para oficiosamente a alterar, considera-se definitivamente assente a factualidade dada como provada na 1ª instância e que é a seguinte:
I- Resultante da matéria assente logo após os articulados:
3.1.1. A A. é uma sociedade que exerce, devidamente autorizada, a indústria de seguros al. A).
3.1.2. Por escritura de 30 de Setembro de 1999 que teve lugar no 22° Cartório Notarial de Lisboa, a A..., fundiu-se, por incorporação, na B... al. B).
3.1.3. No exercício da sua actividade a A. celebrou com D..., um contrato de seguro do ramo automóvel, titulado pela apólice n° 90/062226, e nos termos e condições descritos nos documentos juntos a fls. 21 e 22, e que aqui se dão por reproduzidos, destinado a garantir a responsabilidade civil por danos causados a terceiros, emergente da condução do veículo automóvel misto particular, de marca Mitsubishi, e de matrícula 83-30-CO al. C).
3.1.4. Em 2 de Janeiro de 1996, pelas 15 horas, na E.N. nº 3, ao Km 72,200, no entroncamento que aquela via descreve com a Estrada da Barreira Alva, em Zibreira, desta comarca de Torres Novas, ocorreu um desastre que teve como intervenientes: o motociclo particular, marca Yamaha, modelo TDM 850, de matrícula LO-64-48, conduzido na altura por E..., seu proprietário; e o veículo referido em C), propriedade de D... e conduzido na altura pelo R. al. D).
3.1.5. Nesse dia e hora, o R. conduzia o veículo automóvel de matrícula 83-30-CO pela hemifaixa direita da Estrada Nacional n° 243, no sentido Zibreira – Torres Novas al. E).
3.1.6. À entrada da intersecção entre essa via e a E.N. nº 3, atento aquele sentido de marcha, existe um sinal vertical B2, que impõe a obrigação de parar e ceder passagem a todos os veículos que transitem na E.N. n° 3 al. F).
3.1.7. O R. conduzia o mencionado veículo sem atenção al. G).
3.1.8. Não obstante ter avistado aquele sinal e de ter entendido o seu significado, o R. prosseguiu a sua marcha, para o que teve de voltar à sua esquerda, passando a circular na E.N. n° 3, sempre no sentido de Torres Novas, sem que acatasse a obrigação imposta naquele sinal referida em F) al. H).
3.1.9. Nas descritas circunstâncias de tempo e lugar, E..., conduzia o seu motociclo, de matrícula LO-64-48, pela hemifaixa direita da E.N. nº 3, mas no sentido Torres Novas – Liteiros al. I).
3.1.10. Ao avistar o veículo tripulado pelo R. que, na ocasião, interceptava o seu sentido de marcha, o referido André Redol, a fim de evitar a colisão entre ambas as viaturas, que se avizinhava, inflectiu para a sua esquerda a trajectória que, então, até ali, vinha imprimindo ao veículo que conduzia al. J).
3.1.11. Devido à manobra referida em J), o veículo conduzido pelo mencionado André Redol acabou por embater numa parede existente junto à berma da E.N. n° 3, no sentido Torres Novas – Liteiros, parede essa que delimita as instalações da Fábrica “Amavidal”, após o veículo que conduzia ter deixado no local, um rasto de travagem com a extensão de 16,90 metros al. L).
3.1.12. O referido embate ocorreu ao Km 72,700, da E.N. nº 3, nesta comarca de Torres Novas, num local onde a faixa de rodagem respectiva apresenta a largura de 6,60 metros, configurando aquela E.N. n° 3 uma estrada rectilínea, sendo possível avistar a faixa de rodagem em toda a sua extensão a uma distância superior a 50 metros al. M).
3.1.13. Em consequência do embate resultaram para o referido André Redol traumatismo craniano, traumatismo torácico, fractura no pé direito e fractura na perna esquerda que lhe determinaram um período de 260 dias de doença, sendo os primeiros 230 com incapacidade para o trabalho al. N).
3.1.14. Resultaram ainda para aquele André Redol, como sequelas definitivas, a deformação na articulação do 2°, 3° e 4° metatarsos direitos e limitação da mobilização da articulação tíbio társica esquerda al. O).
3.1.15. Após o embate, e apesar de o R. ter tido perfeito conhecimento de que ele tinha ocorrido também contra André Redol, o qual, dada a violência da colisão, logo admitiu encontrar-se fisicamente maltratado, o mesmo, agindo determinado por vontade livre e consciente e com intenção de se afastar do local e de não ser identificado, prosseguiu a sua marcha, desinteressando-se das consequências de tal acto, bem sabendo que, no entanto, estava obrigado a parar e a prestar a ajuda que o referido André Redol necessitasse al. P).
3.1.16. No dia seguinte à ocorrência do embate e na sequência de diligências levadas a cabo por pessoas que o haviam presenciado, é que o R. reconheceu a sua intervenção no descrito embate, perante elementos da G.N.R de Alcanena al. Q).
3.1.17. Em 14-12-1997, a A. foi notificada, como demandada civil, para contestar o pedido de indemnização cível deduzido por E..., nos autos do Processo Comum Singular n° 16/97, e em que era arguido o ora R. C..., e cujo pedido ascendia a Esc. 9.631.450$00 al. R).
3.1.18. No processo referido em R), em 25-2-1998, a A., com o acordo do arguido, ora R., veio a transigir com o demandante André Redol relativamente à parte cível desses autos al. S).
3.1.19. Consta da parte da acta da audiência de julgamento do processo mencionado em R), quanto à transacção referida em S), o seguinte:
“De seguida, pelos ilustres mandatários da partes foi dito que estavam de acordo quanto à parte cível dos presentes autos, pretendendo transaccionar a mesma nos seguintes termos:
1- O demandante civil reduz o seu pedido para a quantia de Esc. 3.750.000$00;
2- A demandada civil aceita a referida redução do pedido e compromete-se a pagar ao demandante civil aquela quantia no prazo de 15 dias através de cheque a enviar para o escritório do ilustre mandatário daquele, contra recibo, com recebimento do montante constante do nº 1;
3- O demandante civil considera-se indemnizado de todos os danos patrimoniais e não patrimoniais provenientes do acidente;
4- Custas em partes iguais com dispensa de custas de parte e procuradoria na parte disponível.
De seguida foi dada a palavra ao arguido, tendo pelo mesmo sido dito que para os devidos efeitos considera o valor agora transaccionado como justo” al. T).
3.1.20. A parte criminal do processo referido em R) foi decidida por sentença de 4-3-1998, a qual considerou provados os factos expostos no documento junto de fls. 34 a 43 dos presentes autos, e que aqui se dá como reproduzido para todos os efeitos, designadamente os descritos nas alíneas D) a Q) do presente despacho al. U).
3.1.21. Na sentença referida em U) foi decidido:
“A) Condenar o arguido C..., como autor material, de uma contra-ordenação prevista e punida pelo artigo 29°, nºs 1 e 3, do D/L n° 114/94, de 3-5, na coima de Esc. 20.000$00, e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de três meses.
B) Condenar o arguido C..., como autor material, de um crime de ofensas corporais por negligência, previsto e punido pelo artigo 148°, nº 1, do Código Penal, com referência ao artigo 144°, alínea b), do Código Penal, na pena de 6 meses de prisão.
C) Condenar o arguido C..., como autor material, de um crime de omissão de auxílio, previsto e punido pelo artigo 200°, nºs l e 2, do Código Penal, na pena de 6 meses de prisão.
D) Em cúmulo jurídico, vai C... condenado na pena única de 9 meses de prisão.
Nos termos do artigo 50°, do Código Penal, decide-se suspender a execução desta pena pelo período de 2 anos” al. V).
3.1.22. No processo n° 16/97, referido em R), o aí demandante civil, André Redol, apresentou o requerimento referente ao pedido de indemnização civil que se encontra junto de fls. 86 a 94,, constando do mesmo, designadamente no artigo 25°: “Logo após o acidente o requerente foi transportado para o Hospital Distrital de Torres Novas, onde permaneceu internado até obter alta” al. X).
3.1.23. No processo n° 16/97, referido em R), a aí demandada civil e agora A., Oceânica, apresentou a contestação ao requerimento referente ao pedido de indemnização civil, referido em X), que se encontra junta de fls. 95 a 104, e que aqui se dá por reproduzida para todos os efeitos al. Z).
II- Resultante das respostas dadas aos quesitos da Base Instrutória:
3.1.24. Em 29-3-1998, a A. pagou a André Miguel Alves Redol a quantia a que se obrigou, ou seja, Esc. 3.750.000$00 Resposta ao quesito 1º.
3.1.25. Pagou à Viricauto, Lda, a quantia de Esc. 34.351 $00, para despesas de reboque Resposta ao quesito 2º.
3.1.26. E ainda para despesas de reparação e parqueamento a quantia de Esc. 147.420$00 a R.H.C. Motos, Lda Resposta ao quesito 3º.
3.1.27. A título de danos patrimoniais, pagou a E... a quantia de Esc. 850.000$00 Resposta ao quesito 4º.
3.1.28. Despendeu ainda o valor de Esc. 28.673$00 + 8.170$00 + 14.048$00 com despesas de arbitragem Resposta ao quesito 5º.
3.1.29. No tocante a despesas hospitalares de E..., a A. pagou os valores de Esc. 395.367$00 ao Hospital Distrital de Torres Novas; o valor de Esc. 13.500$00 + 294.601 $00 + 18.000$00 à Clínica de Todos os Santos; o valor de Esc. 40.500$00 a Anescir – Serviços de Cirurgia; o valor de Esc. 14.850$00 para cuidados de enfermagem a cargo de Ana Isabel Dias; o valor de Esc. 10.000$00 + 148.500$00 + 10.000$00 a Gouveia Pereira, Clínica Ortopédica, Lda; e o valor dD.550$00 ao Dr. Dionísio Borges Respostas aos quesitos 6º a 11º.
3.1.30. Despendeu ainda o valor de Esc. 63.400$00 com as custas judiciais dos autos do processo n° 16/97, referido em R) Resposta ao quesito 12º.
3.1.31. Despendeu ainda as quantias de Esc. 409$00 + 14.632$00 + 2.479$00 + 285$00 com despesas judiciais e honorários referentes ao Processo n° 16/97 Resposta ao quesito 13º.
3.1.32. Após o embate referido em L), as pessoas que se encontravam junto ao local chamaram, via 115, a ambulância, tendo a vítima, André Redol, sido socorrida imediatamente Resposta ao quesito 14º.
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3.2. De direito
Estabelece o artº 19º, al. c) do Dec. Lei nº 522/85, de 31/12, que “satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso ... contra o condutor, se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência do álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandonado o sinistrado(sublinhado nosso).
Face à matéria de facto provada, designadamente à constante dos pontos 3.1.20. e 3.1.21., supra, é inquestionável que o apelado C..., condutor do veículo automóvel de matrícula 83-30-CO, seguro na apelante, para além de ser culpado pela ocorrência do acidente, abandonou o sinistrado André Redol.
Estaria, pois, aparentemente, preenchida a previsão da al. c) do artº 19º do DL nº 522/85 e, consequentemente, reunidos todos os pressupostos para a procedência da acção.
Contudo, como manda o artº 9º, nº 1 do Cód. Civil, “a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”.
Ora, como dos autos resulta claramente, confrontam-se na jurisprudência, no que tange à interpretação do mencionado segmento da al. c) do artº 19º do DL nº 522/85, duas correntes opostas, uma sustentada pela A./apelante e outra pelo R./apelado, tendo o tribunal “a quo” acolhido esta última.

De acordo com a primeira dessas correntes, defendida pela apelante, provado o acidente, a responsabilidade civil do condutor do veículo segurado e o abandono, por parte deste, do sinistrado, a seguradora teria sempre direito de regresso contra ele relativamente à indemnização satisfeita.
No texto do Ac. do STJ de 4/4/95 BMJ, nº 446, pág. 239 e CJ (STJ), III, I, 151 (nesta publicação parece ter havido lapso no sumário, o qual, tudo o indica, se referirá a outra decisão)., aludindo-se à norma legal em apreciação e citando-se o Ac. da Rel. do Porto de 1/6/93, in CJ, XVIII, 3, 223, afirma-se que se trata “de norma moralizadora que é, a um tempo, dissuasora e repressiva, punindo civilmente, sem daí se afectarem os lesados, os que deixaram de merecer a protecção concedida pelo seguro”. E, elencando argumentos, acrescenta-se: “O caso de o condutor ter abandonado o sinistrado, previsto na alínea c), só pode justificar-se por razões de ordem moral e não se afigura haver fundamento para que o direito de regresso apenas se reporte aos “danos acrescidos” ou directamente resultantes desse abandono: a prática do crime de abandono de sinistrado não depende de agravamento dos resultados, o qual só influi na medida da pena ( artigo 60º, nº 1 do Cod. Est. de 1954); para a sanção civil em causa, pela sua razão de ser, basta a prática dessa infracção; de outro modo, seria nos acidentes mais graves, com morte imediata, que o condutor ficaria liberto dessa sanção; só no caso da alínea f) (falta de apresentação do veículo a inspecção periódica) se prevê a exclusão do direito de regresso se o responsável por essa apresentação provar que o sinistro não foi provocado ou agravado pelo mau funcionamento do veículo; a solução das instâncias implicaria a interpretação restritiva da alínea c), o que se não justificaria também pelo confronto com aquela; essa interpretação não seria ainda válida para as outras hipóteses da mesma alínea c), designadamente a de falta de habilitação legal para a condução.
No mesmo sentido, ou seja, de que o abandono voluntário do sinistrado confere direito de regresso à seguradora independentemente de ter provocado danos específicos ou agravado os resultantes do acidente, foi decidido nos Ac. do STJ de 29/04/99 BMJ, nº 486, pág. 307. e de 3/7/2002 www.dgsi.pt/jstj - (Relator: Cons. Moitinho de Almeida).. Invocaram-se, essencialmente, a letra da lei, razões de justiça e de prevenção, bem como a falta de fundamento para uma interpretação restritiva.

De acordo com a segunda das correntes, acolhida na sentença recorrida e defendida pelo apelado, a seguradora só teria direito de regresso contra o condutor, em caso de abandono de sinistrado, se de tal abandono tivessem resultado danos específicos ou o agravamento dos decorrentes do acidente e relativamente à indemnização dos mesmos.
Rebatendo a argumentação da corrente adversa, escreveu-se no Ac. do STJ de 28/02/2002 www.dgsi.pt/jstj - (Relator: Cons. Afonso de Melo).: “Não tem sido este O defendido pela corrente oposta. o entendimento maioritário deste Supremo, que rejeita que a reprovação ética do abandono do sinistrado justifique a isenção da seguradora da responsabilidade assumida no contrato de seguro quanto aos danos que nada têm a ver com o mesmo abandono. Isenção só e na medida em que a seguradora não se confrontar com um devedor insolvente na acção de regresso.
Sustenta-se aqui que a razão de ser do direito de regresso é a não responsabilização da seguradora pelos danos do abandono ilícito do sinistrado, posterior ao acidente, não abrangidos no contrato de seguro, impedindo-se deste modo o enriquecimento injusto à sua custa.
Sendo assim, a seguradora pode obter pela via do regresso apenas o que satisfez quanto aos danos consequentes do abandono do sinistrado Ac.s de 27/01/1993 B.M.J. 423 p. 560 e C.J. 1, 1. p. 104, 7/12/1994, B.M.J. 442 p. 155, 5/03/1996, B.M.J. 455 p. 513, 14/01/1997, B.M.J. 463 p. 562 e C.J. V, 1. p.57, e 11/03/1999, (inédito).

Com inteira consciência de que se trata de questão melindrosa – basta atentar na quantidade e qualidade de arestos num e noutro sentido – inclinamo-nos para a segunda solução enunciada, isto é, para a que entende que o direito de regresso da seguradora se limita à indemnização paga com base nos danos provocados pelo abandono ou no agravamento provocado por este nos danos resultantes do acidente.
Afigura-se-nos que no momento em que o condutor voluntariamente decide omitir o auxílio à vítima e afastar-se sem a socorrer já os danos resultantes do acidente, cobertos pelo seguro, estão, efectiva ou potencialmente, provocados, existindo já, relativamente a eles (ainda que futuros), responsabilidade civil da seguradora.
Não se vê fundamento para a seguradora, relativamente a esses danos, beneficiar da censurável decisão do condutor de abandonar o sinistrado, adquirindo contra ele um direito de regresso que, não fora tal decisão, não teria.
O mesmo se não poderá dizer dos danos, ou do respectivo agravamento, causalmente conexionados com o abandono, já que os mesmos não estão abrangidos pelo contrato de seguro. O que a seguradora não podia, face ao artº 14º do DL nº 522/85, opor ao lesado.

Reconhecendo que se trata de situações diferentes, refere-se aqui o Acórdão nº 6/2002 de 28/05/2002, do STJ, de Uniformização de Jurisprudência D. R., I Série – A, nº 164, de 18/07/2002., pelo qual, pondo fim a uma controvérsia jurisprudencial com algumas semelhanças com a atrás descrita, foi decidido que «A alínea c) do artigo 19.° do Decreto-Lei n.° 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.»
Não nos parece abusivo vislumbrar nesta decisão do plenário das secções cíveis do Supremo Tribunal de Justiça mais um argumento a favor da tese a que atrás se aderiu.

No caso dos autos, não só não foram provados danos resultantes do abandono, como até se provou que, após o embate, as pessoas que se encontravam junto ao local chamaram, via 115, a ambulância, tendo a vítima, André Redol, sido socorrida imediatamente.
O que permite concluir, como se fez na sentença recorrida, que o abandono do R. em nada contribuiu para o agravamento dos danos ocorridos com o acidente e, consequentemente, pagos pela A..
Por isso, face à interpretação feita da norma da al. c) do artº 19º do DL nº 522/85, resta afirmar que soçobram as conclusões da alegação da apelante, o que conduz à improcedência da apelação e à manutenção da sentença recorrida.
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4. DECISÃO
Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, em consequência, em manter a sentença recorrida.
As custas são a cargo da apelante.
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Coimbra,