Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2447/08.5TBAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: ACÇÃO DE DESPEJO
REOCUPAÇÃO DO LOCADO
RECONSTRUÇÃO DO PRÉDIO DEMOLIDO
DIREITO DE ACÇÃO
Data do Acordão: 04/28/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 7.º &1.º DA LEI N.º 2088, DE 03/07/1957; ARTIGOS 802.º, N.º 2; 1038.º DO CC E 64.º, Nº 1, AL.ª A) DO RAU
Sumário: 1. Na reocupação do locado após reconstrução do prédio demolido, o inquilino deve pagar a renda conforme o previsto no artigo 7.º &1.º da Lei n.º 2088, de 03/07/1957, observando-se a progressividade aí referida, se for caso disso.

2. Limitando-se o inquilino a oferecer (e a depositar) o mesmo valor que pagava pelo arrendamento do espaço demolido, incorre em incumprimento da sua obrigação de pagar a renda devida ou efectuar depósito liberatório, nos termos dos artigos 1038.º do CC e 64.º, nº 1, al.ª a) do RAU.

3. O exercício do direito do senhorio à resolução do contrato e consequente despejo não está dependente do montante das rendas em dívida.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A..., intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro uma acção declarativa sob a forma de processo sumário - entretanto transitada para o Juízo de Média e Pequena Instância Cível da Comarca do Baixo Vouga – contra B.... alegando, no essencial:

Que, por pretender demolir determinado edifício de que era proprietário, para no mesmo local construir um outro, com maior número de locais arrendáveis, intentou acção de despejo nos termos da Lei nº 2088 de 3 de Junho de 1957 contra a Ré, então arrendatária habitacional do respectivo rés do chão; que tendo obtido sentença de despejo transitada em julgado, veio a erguer o novo edifício, enquanto alojava a Ré noutro prédio e suportava a despesa correspondente; que concluídas as obras, a Ré recebeu as chaves e, a partir de Junho de 2007, passou a habitar um apartamento tipo T1 sito no segundo andar direito do novo edifício; fê-lo, porém, mediante o depósito mensal de apenas € 8,48 mensais, quando a renda respectiva já havia sido fixada pela Comissão Permanente de Avaliação em € 300,00 mensais, nos termos expressamente constantes da sentença de despejo; a Ré encontra-se em mora em relação à diferença entre o depositado e o correspondente às rendas compreendidas entre Agosto de 2007 e Julho de 2008 - que somam o montante de € 3.600,00 - o que é motivo de resolução do contrato.

Remata pedindo que a Ré seja condenada a ver declarada a resolução do contrato de arrendamento, e a ser imediatamente despejada do arrendado e, bem assim, a pagar as rendas em dívida, no montante de € 3.600,00, além das que se vencerem até efectivo pagamento.

Contestando, a Ré defendeu-se dizendo que a A. só podia exigir da Ré a renda mensal vigente à data do despejo, acrescida de um máximo de 50%, e que nunca a notificou para pagar tal valor; que atenta a sua debilidade económica, não tem possibilidade de satisfazer a renda mensal de € 300,00; que a A. tem o único intuito de prejudicar a Ré, litigando de má fé. Termina com a improcedência da acção e o pedido de condenação da A., pela litigância de má fé, em multa e indemnização.          

A A. respondeu, sem alterar a causa de pedir e o pedido iniciais.

No saneador-sentença foi a acção julgada procedente e, em função disso, decretada a resolução do contrato de arrendamento e o despejo imediato da Ré, condenando-se esta a pagar € 2.872,77 de rendas vencidas e vincendas até efectivo despejo à razão de € 242,544 por mês até 31/01/2010 e de € 300,00 a partir de 1/02/2010.

Irresignada, deste veredicto interpôs a Ré recurso, admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

São os seguintes os factos que foram dados como provados na 1ª instância são os seguintes:

1 - A A. é uma sociedade por quotas que se dedica à construção e venda de imóveis.

2 - A A. é dona e legítima proprietária do prédio urbano sito na ...., inscrito actualmente na matriz respectiva sob o artigo nº ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob o nº..., e anteriormente inscrito na matriz sob o artigo ...da mesma freguesia.

3 - A A. procedeu à demolição e posterior construção de um novo edifício no local antes ocupado pelo identificado no número anterior.

4 - A R., por contrato de arrendamento celebrado com o anterior proprietário do prédio descrito em 2, desde Dezembro de 1973 que habitava o rés-do-chão para sua habitação, mediante a renda mensal de € (500$00=) 2,49.

5 – Como a A. pretendia demolir o prédio para construir um outro com maior número de locais arrendáveis, foi necessário intentar uma acção contra a ora R..

6 – Esta acção deu entrada em juízo a 8 de Março de 2004 e correu termos pelo 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial da comarca de Aveiro com o nº 1137/04.2TBAVR.

7 – À data da propositura desta Acção, a R. pagava a renda de € 8,48.

8 – Na contestação da Acção nº 1137/04.TBAVR, a ali (e ora R.) escolheu, nos termos e para os efeitos do art. 5.º, nº 1, da Lei nº 2088, de 3 de Julho de 1957, reocupar no novo edifício, o local equivalente ao que actualmente habita - fls. 26.

9 – A Acção Sumária (de despejo) nº 1137/04.2TBAVR foi julgada procedente, por douta sentença de 1 de Outubro de 2004 (constante de fls. 28/34), transitada em julgado, que terminou com a decisão cujos termos se passam a transcrever (ao que agora interessa):

“Face ao exposto julgo a acção procedente e

a) - reconheço a autora “A...”, o direito de demolir o prédio actualmente habitado em parte pela ré e a implantar e construir novo edifício com maior número de locais para arrendar;

b) - condeno a ré B... a despejar o local arrendado no prédio a partir da próxima renovação do contrato (1/12/2004);

c) - o contrato de arrendamento suspende-se enquanto as obras estiverem a ser efectuadas.

Condeno a Autora:

a) - a pagar à ré uma indemnização no valor de € 407,04;

b) - a reconhecer o direito de a ré reocupar, no novo prédio a construir, um apartamento tipo T1, no 1.º andar, com uma área de 88,50 m2.

10 – A Comissão Permanente de Avaliação fixou, nos termos e para os efeitos do art. 7.º da Lei nº 2088, de 3/07/1957, para o apartamento tipo T1 – 1.º andar esquerdo, o valor locativo mensal a pagar pela ré em € 300,00, a que corresponde o valor locativo anual de € 3.600,00 – fls. 33 e 95.

11 – Como não era possível a permanência da R. no locado enquanto se edificava o novo prédio, esta, durante a execução das obras, foi alojada, a partir de 01/12/2004, a expensas da ora A., no apartamento T1, denominado fracção I, correspondente ao 3.º andar direito, do prédio urbano sito na ... fls. 38/41.

12 – A 18/06/2007, a ora A. denunciou o contrato deste arrendamento com efeitos a partir de 1 de Agosto de 2007, tendo dado conhecimento desse facto à ora R., por carta registada de 25/06/2007 – fls. 42.

13 – Nessa carta de 25/06/2007 (referida no número anterior), a ora A. informou a R. de que o apartamento T1, correspondente ao 1.º andar direito, do prédio urbano, sito na ..., se encontrava em situação de ser habitado.

14 – Na mesma carta, a ora A. informava a R. de que, “nos termos da sentença proferida no processo nº 1137/04.2TBAVR, que correu termos pelo 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Aveiro, a Sr.ª pode ocupar aquele apartamento a partir de 1 de Agosto de 2007, com a renda mensal de € 300,00 (trezentos euros), valor fixado pela Comissão Permanente de Avaliação.

15 – Entregues, a 1 de Agosto de 2007, à R., as chaves do apartamento tipo T1 da ... a partir dessa data ela passou a dormir, confeccionar as suas refeições e a receber os seus amigos neste apartamento.

16 – A R., até à presente data, tem vindo a depositar € 8,48, a título de renda, sendo este o valor que ela pagava, a esse título, antes da propositura da Acção Sumária nº 1137/04.TBAVR.

17 – A ora A. impugnou os depósitos desta renda por cartas de 14 de Setembro de 2007 e de 18 de Setembro de 2007 – fls. 56 e 57.

18 – A Ré B... nasceu a 25 de Outubro de 1937 e é divorciada, tendo sido o divórcio decretado por sentença transitada a 22/06/1994 – fls. 71 e 71 v..

18 – Recebe uma pensão mensal de € 263,76 – fls. 72.

                                                                            *

A apelação.

São as seguintes as questões levantadas pela apelante:

1º - A que se prende com o saber se a Ré não estava obrigada a pagar a nova renda à A. enquanto essa comunicação lhe não fosse feita;

2º - Assim não se entendendo, se a A. não podia pedir a resolução do contrato com base no facto de ser irrisória a quantia devida;

3º - Se a A. litiga de má fé, devendo ser condenada em multa e indemnização.

Quanto à questão da notificação do novo valor da renda.

Pugna a Ré, ora recorrente, pela tese segundo a qual deveria ter sido notificada do valor correcto da nova renda, correspondente ao espaço que lhe foi destinado novo edifício.

Só que – salvo o respeito sempre devido - tal tese carece de fundamento.

Na verdade, deflui do acervo dos factos provados que na acção instaurada pela A., ao abrigo do art.º 1º, al.ª c) da Lei nº 2088 de 3 de Julho de 1957, para demolição do prédio em que se integrava o arrendamento da Ré, a ali (e também aqui) Ré escolheu reocupar no novo edifício local equivalente ao que habitava.

A Ré exerceu a opção que lhe era permitida pela 1ª parte do nº 1º art.º 5º-A da Lei 2088, ou seja, a de reocupar no edifício novo um local que satisfizesse as necessidades do inquilino e da família [...], tendo como limite a mesma tipologia, ficando a pagar a renda condicionada, fixada antecipadamente pela Comissão Permanente de Avaliação [...].

Ora, na sentença proferida na mesma acção - da qual a Ré foi notificada - deixou-se consignado que o valor locativo mensal a pagar pela Ré pelo espaço a ocupar no novo edifício, de acordo com a fixação da Comissão Permanente de Avaliação, era de € 300,00 mensais, equivalendo à renda anual de € 3.600,00.

Não se vê assim com que base a Ré pode afirmar que ignorava o montante da renda que deveria entregar à A. pelo arrendamento da nova habitação.

É certo que na carta que enviou à Ré em 25/06/2007 a A. indicava, pelo arrendamento do apartamento correspondente ao 1º andar direito do novo edifício, o valor de renda de € 300,00 mensais – cfr. os factos provados em 13 e 14.

Mas, se a Ré discordava desse valor (e não lhe faltava motivo para tanto), tinha igualmente à mão a possibilidade de oferecer à A. o valor adequado; vendo recusado pela A. o recebimento deste montante, nada impedia a Ré de proceder à sua consignação em depósito – art.º 22 a 24 do RAU aprovado pelo DL 321-B/90 de 15/10.

O que não lhe era permitido era o depósito de valor inferior ao devido.

E qual era esse valor ?

Tal como ficou explicitado na sentença, esse valor é o que se acha previsto no § 1 do art.º 7º da Lei nº 2088: "o antigo inquilino que vier a ocupar o edifício alterado ou construído de novo não poderá ser compelido a satisfazer, de começo, renda superior à vigente à data do despejo, acrescida, no máximo, de 50%. A eventual diferença entre a renda assim acrescida e a fixada pela Comissão Permanente de Avaliação será paga por sucessivos aumentos de 20 por cento dessa diferença em cada um dos semestres seguintes".

Isto significa – como, de resto, na decisão recorrida claramente ficou demonstrado – que a renda inicial seria € 12,72 (€ 8,48 + € 4,24), e que essa mesma poderia ser elevada, entre o segundo e o quinto semestre, de € 70,176 para os € 300,00 da avaliação, em função da progressividade regulada no citado normativo legal. Ora a Ré limitou-se a oferecer (e a depositar) o mesmo valor que pagava pelo arrendamento do espaço demolido - de € 8,48 mensais - o que não podia deixar de lhe acarretar o incumprimento da sua obrigação (de pagar a renda devida ou efectuar depósito liberatório – art.ºs 1038 do CC e 64, nº 1, al.ª a) do RAU, vigente à data dos factos).

Insiste a Ré que, apesar do que dito fica, a A. deveria tê-la notificado do valor correcto e exacto da nova renda.

Da lei não resulta essa obrigação.

Aliás, nem isso seria necessário.

Tal como se escreveu no Ac. do STJ de 3 de Março de 2005 in CJ, Acórdãos do STJ, Ano XIII, tomo I, p. 99-102, ainda que a propósito de uma hipótese paralela[1], tratam-se de coeficientes determinados pela lei, pelo que "não podia o senhorio alterá-los nem o inquilino ignorá-los [...] Era uma questão de contas - a da boa fé (se se quiser, em palavras 'laicas', dando um sinal positivo de cooperação e não de 'atrapalhar' a vida do negócio arrendatício, de cuja 'atrapalhação' retirava benefício".

Não havia pois lugar à necessidade de notificação da arrendatária do valor exacto da renda a satisfazer. 

Daí que se mostrem inteiramente preenchidos os requisitos de que depende a resolução do arrendamento pelo senhorio, que é o objecto da vertente acção. 

        

Quanto à aplicabilidade do disposto no art.º 802, nº 2 do CC.

De seguida, adversa a apelante que, face à pequena importância em dívida, estaria vedado o direito de resolução da A. e apelada, por força do disposto no art.º 802, nº 2 do CC.

Vejamos.

Prescreve o n.º 2 do art.º 802 do CC:

"O credor não pode, todavia, resolver o negócio, se o não cumprimento parcial, atendendo ao seu interesse, tiver escassa importância".

Comentando esta disposição, P. de Lima e A. Varela (C.C. Anotado, 1968, Vol. II, p. 48) acentuam que ela se reporta aos casos em que, atendendo ao interesse do credor, o não cumprimento parcial tiver escassa importância; e que a mesma deve ser conexionada com o dever das partes de proceder de boa fé, tanto no cumprimento da obrigação como no exercício do direito correspondente (art.º 762 do CC).

Nas obrigações pecuniárias, em que a correspondência de obrigações está por natureza identificada com uma quantia exacta, é, pelo menos, muito duvidoso que aquela disposição possa ser invocada.

Seja como for, o montante efectivamente em dívida pela Ré à data da propositura da acção ascendia, no caso vertente, a € 2.872,638, o que, a todas as luzes, de modo algum se pode considerar como insignificante ou até escassa importância (desde logo, se tivermos em conta o estatuto económico das partes e objecto do negócio).   

Pelo que esta questão não tem qualquer relevo.

Sobre a litigancia de má fé da Autora e apelada.

Por fim advoga a recorrente a condenação da A. como litigante de má fé, por saber não ter fundamento legal para pedir o pagamento de € 3.600,00 e também por "ter a obrigação de saber que a Ré, para evitar o despejo, teria que depositar € 5.400,00, não tendo condições financeiras para o efeito". Visa invocar a al.ª a) do nº 2 do art.º 456 do CPC.

A recorrente parte, porém, de um errado pressuposto.

É que a Comissão de Avaliação fixou sem controvérsia o valor devido a título de renda em € 300,00 mensais. Foi este o valor da renda determinado pela reocupação do novo prédio.

A A. dispunha assim de fundamento legal para peticionar a condenação da Ré nas rendas vencidas com esse valor mensal. O § 1 do art.º 7 da Lei 2088 apenas estabelece que o antigo inquilino não poderá ser compelido a satisfazer (de início) renda superior à vigente à data do despejo acrescida de 50%. Por conseguinte, não está o senhorio proibido de peticionar a totalidade do valor, embora caiba ao inquilino opor-se de harmonia com o preceituado naquele art.º 7.

E, por outro lado, também não se podia impor à A. que apreciasse previamente as condições económicas da Ré para depositar as rendas em dívida. Tais condições são matéria que diz naturalmente respeito aos meios de defesa da própria Ré. Essas condições até podiam ter sofrido modificação entre o momento do despejo para a demolição do antigo edifício e a propositura da presente acção.

Donde que seja totalmente desajustado falar em dedução de pretensão com falta de fundamento que não podia ser ignorada, nos termos do art.º 456, nº 2 al. a) do CPC. Não se verifica, pois, o circunstancialismo apropriado à condenação da A. e apelada como litigante de má fé, sendo de rejeitar a questão em apreço.

Pelo exposto, na cabal improcedência da apelação, confirmam o saneador sentença.

Custas pela apelante, sem prejuízo do apoio judiciário.


Freitas Neto (Relator)
Carlos Barreira
Barateiro Martins


[1]              Em causa estava, aí, também, a elevação da renda por força de uma avaliação fiscal extraordinária do locado, bem como o funcionamento do mecanismo de graduação dessa elevação, definido no art.º 1º do DL 392/82 de 18/09.