Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6753/09.3TBLRA
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO SANTOS
Descritores: JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
ACÇÃO DE APRECIAÇÃO NEGATIVA
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 07/11/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 4.º, N.º 2, D) DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL; ARTIGO 343.º, N.º 1 DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. Os pedidos de impugnação das declarações feitas em escritura de justificação notarial são próprios das acções de simples apreciação negativa, competindo ao réu a prova do direito que se arroga na escritura, ou seja, compete-lhe fazer a prova dos factos compreendidos nas declarações que prestou na escritura e que justificariam a aquisição do prédio por usucapião.
2. E compete-lhe fazer essa prova ainda de tenha registado a aquisição, por usucapião, com base na escritura de justificação notarial.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do tribunal da Relação de Coimbra

A...., viúva, residente na rua do Sol, n.º 41, Vale do Horto, Azóia, Leiria, propôs a presente acção declarativa com processo sumário contra B...., residente na rua do Sol, n.º 57, Vale do Horto, Azóia, Leiria, pedindo:
a) Se declarasse que o prédio identificado no artigo 1º da petição [casa de habitação, sita no lugar de Vale do Horto, freguesia de Azóia, concelho de Leiria, inscrita na matriz predial rústica sob o artigo 552º] pertencia à autora;
b) Se declarasse impugnado, para todos os efeitos legais, o facto justificado na escritura de 24 de Outubro de 2005, em virtude de o réu não ter adquirido o prédio nela identificado, correspondente ao artigo 1º da petição, por usucapião;
c) Se declarasse ineficaz e de nenhum efeito essa mesma escritura de justificação, de forma que o réu não pudesse, através dela, registar quaisquer direitos sobre o prédio nela identificada;
d) Se ordenasse o cancelamento de quaisquer registos operados com base na escritura.
Em abono destas pretensões, alegou, em síntese, que o réu outorgou, em 24 de Outubro de 2005, escritura de justificação notarial na qual declarou, além do mais, que adquiriu, por usucapião, o direito de propriedade sobre o prédio urbano constituído por casa de habitação, sito no lugar de Vale do Horto, freguesia de Azóia, concelho de Leiria; que eram falsas as declarações prestadas pelo réu na escritura de justificação; que é ela a proprietária do referido prédio por o ter construído e adquirido por usucapião.
O réu contestou. Na sua defesa começou por alegar que o direito invocado pela autora estava prescrito; seguidamente alegou, em síntese, que o imóvel chegou à sua posse, em 1983/1984, por sucessão, por morte do seu avô paterno [B....]; que a casa de habitação foi construída em terreno que foi atribuído ao réu e à sua irmã, no inventário instaurado por óbito do seu avô paterno; que a casa de habitação foi construída pela população a seu favor e com dinheiro das tornas que ele e a sua irmã receberam no inventário aberto por morte do seu avô paterno; que o réu tem possuído o prédio desde 1983/1984, de forma pública e pacífica; que a autora ocupa-o a título de comodato.
A autora respondeu à matéria da excepção.
Findos os articulados, o tribunal a quo proferiu despacho a convidar o réu a apresentar nova contestação, a fim de suprir as insuficiências da matéria de facto que havia alegada na contestação.
O réu apresentou novo articulado, onde alegou, em síntese, que o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 552º da freguesia de Azóia passou directamente do seu avô para si; que toda a população da Azóia ajudou na construção da casa na convicção de que estava a ajudar o réu; que o réu habitou a casa, como sendo sua, desde 1983 até 2003; que a partir desta última data quem ficou a viver nela foi a autora, a título de comodato; que o prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 149º e a casa de habitação, inscrita na matriz sob o artigo 552º são prédios distintos, situados em locais diferentes; que o artigo rústico 552º foi criado por seu pai na sequência de uma doação do seu avô.
A autora respondeu.
Na audiência preliminar, o réu esclareceu a alegação contida nos artigos 1º e 2º da segunda contestação, declarando que o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 552º foi-lhe doado verbalmente pelo seu avô B...., no ano de 1972.
No despacho saneador, o tribunal a quo julgou improcedente a excepção invocada pelo réu, excepção que qualificou de caducidade e não de prescrição.
O processo prosseguiu os seus termos e a final foi proferida sentença com a seguinte parte dispositiva:
a) Declarou impugnada a escritura de justificação notarial outorgada pelo réu no cartório notarial de Ansião em 24 de Outubro de 2005, referida no ponto 1) dos factos provados;
b) Declarou ineficaz e de nenhum efeito essa mesma escritura;
c) Determinou o cancelamento de todos os registos feitos com base nessa escritura;
d) Declarou que a casa de habitação com a superfície coberta de 80 m2 e o logradouro com 30 m2, sita no lugar do Vale do Horto, freguesia de Azóia, concelho de Leiria, implantados no prédio urbano descrito na matriz predial urbana dessa freguesia pertenciam à autora;
e) Absolveu o réu da parte restante do pedido.
Para assim decidir a sentença entendeu, em síntese, o seguinte:
1. Que o réu exerceu poderes de facto sobre a casa e os anexos que construiu ao lado da casa, mas não logrou demonstrar o animus possidendi;
2. Que cabia ao réu o ónus da prova de que praticou os actos na convicção de exercer o direito próprio correspondente ao direito de propriedade;
3. Que o réu não demonstrou a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre a casa de habitação e que, por isso, não correspondiam à realidade as declarações prestadas pelo réu na escritura pública de 24 de Outubro de 2005;
4. Que a autora havia provado a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre a casa de habitação.
O réu não se conformou com a decisão e interpôs contra ela o presente recurso de apelação, pedindo se revogasse a sentença por ser – e passamos a citar – “totalmente nula”.
Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. A sentença fundamenta-se em factos que claramente não estão provados, como se pode verificar pelo depoimento de algumas das testemunhas cujas declarações foram referidas.
2. No que respeita à usucapião, ainda que se admita que o réu não logrou provar o “corpus” e o “animus”, o certo é que a referida casa já era sua por força da partilha realizada por morte da sua avó e depois do seu avô, documentos do inventário obrigatório que se encontram juntos aos autos.
3. Assim, o réu sempre foi proprietário da casa sub judice, até porque como ficou amplamente demonstrado foi a população de Vale do Horto e outros amigos do seu falecido pai que construíram a casa.
4. Ainda que assim se não entendesse e tendo por base apenas e só a matéria dada como provada, sempre o recorrente teria que ser, no mínimo, comproprietário da casa aqui discutida.
5. Certo é que a sentença proferida não pode sequer ser cumprida, porquanto os anexos atribuídos ao recorrente são efectivamente acrescentos da casa que fazem desde 1984 parte integrante da mesma.
A autora respondeu, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
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As questões que os fundamentos do recurso suscitam são as seguintes:
1. Saber se a sentença teve em conta, na fundamentação, factos que não estão provados;
2. Saber se, mesmo sem a prova da aquisição, pelo réu, do direito de propriedade, por usucapião, sobre a casa de habitação, seria de reconhecer ao réu a propriedade sobre a casa ou, no mínimo, a compropriedade;
3. Saber se a sentença não pode ser cumprida.
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Não tendo a decisão de facto sido impugnada nos termos prescritos no artigo 685º-B, n.º 1, do Código de Processo Civil, e não havendo razões para alterar oficiosamente a matéria assente, consideram-se provados os seguintes factos discriminados na sentença:
1. Por escritura celebrada no dia 24 de Outubro de 2005, no Cartório Notarial de Ansião, o réu declarou que era dono e legítimo possuidor há mais de 20 anos, com exclusão de outrem, do seguinte imóvel: prédio urbano composto por casa de habitação, com a superfície coberta de 80 m2, dependências cobertas com 30 m2 e logradouro com 30 m2, sito no lugar de Vale do Horto, freguesia de Azóia, concelho de Leiria, a confrontar do norte com António Marques, do sul com ribeiro, do nascente com (….) e do poente com (…..), inscrito na respectiva matriz predial em nome da cabeça-de-casal da herança aberta por óbito do antepossuidor C...., sob o art. 552, omisso na Conservatória do Registo Predial; que o mencionado imóvel tinha vindo à sua posse por lhe ter sido doado no ano de 1973, ainda no estado de casado com D.... sob o regime da comunhão de adquiridos, da qual se encontrava actualmente divorciado, por seus pais, aquele antepossuidor B….. e mulher A....(… ) acto este que nunca chegou a ser formalizado; que desde aquela data, porém, tem possuído o mencionado imóvel em nome próprio e sobre ele tem exercido todos os actos materiais que caracterizam a posse, nomeadamente a defesa e a conservação da propriedade, habitando-o, nele dormindo e nele cozinhando as suas refeições, beneficiando-o, nele praticando obras de conservação, substituindo as telhas e os vidros partidos, limpando as caleiras, dele retirando todos os rendimentos inerentes à sua natureza e pagando pontualmente as contribuições e impostos por ele devidos, sempre à vista e com o conhecimento de toda a gente, de uma forma contínua, pacífica, pública e de boa fé sem oposição de quem quer que seja.
2. O réu nasceu em 11 de Julho de 1966 e casou com D.... Joaquim em 4 de Novembro de 1984.
3. E é filho de C.... e de A.....
4. C.... faleceu em 11 de Janeiro de 1972.
5. O avô do réu, B...., faleceu no dia 28 de Abril de 1984; a avó, E...., faleceu no dia 22 de Novembro de 1970.
6. C.... requereu, em 11 de Novembro de 1971, na Câmara Municipal de Leiria a licença para a construção da casa de habitação referida em 1).
7. Os avós do réu doaram verbalmente ao seu filho C.... o local onde foi construída a casa referida em 1).
8. Para aí construir a sua casa de habitação.
9. A casa referida em 1) foi construída pela autora após a morte de C.....
10. A autora vive na casa referida em 1) desde a sua conclusão, em finais de 1972.
11. A autora há mais de 30 anos que vem usufruindo da casa e do logradouro referido em 1),
12. Suportando os respectivos encargos,
13. À vista de todos, incluindo do réu.
14. E sem oposição,
15. E de forma continuada,
16. Na convicção de exercer um direito próprio.
17. Em data não concretamente apurada, a autora construiu um poço e, em 1976, um muro de vedação no prédio referido em 1).
18. O réu, em data não concretamente apurada, mas antes de 2003, substituiu algumas telhas da casa referida em 1) e, em data não concretamente apurada, mas posteriormente a 2003, substituiu o telhado da casa referida em 1) e pintou-a.
19. O réu adquiriu os materiais.
20. O réu construiu anexos para a autora criar animais.
21. O réu construiu uns anexos ao lado da casa referida em 1) e, pelo menos a partir de 1984, habitou-os.
22. O réu morou com a sua esposa desde 1984 a 2003 nos anexos referidos em 21), aí comendo e dormindo.
23. A partir de 2003 foi viver para a outra casa.
24. Depois de construir a casa onde actualmente reside, o réu englobou a casa, os anexos e o logradouro referidos em 1) com os muros da sua propriedade e colocou portões.
25. Os actos referidos em 18) e 20), 21) e 22) foram exercidos sem oposição de quem quer que seja, incluindo a sua mãe e à vista de toda agente.
26. A aquisição do prédio aludido em A), encontra-se inscrita na 1ª Conservatória do Registo Predial de Leiria pela Ap. 32 de 2006/01/05 a favor do réu, por usucapião.
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Discriminados os factos relevantes para a decisão, entremos na apreciação dos fundamentos do recurso.
O primeiro fundamento é constituído pela alegação de que a sentença fundamentou-se em factos que não estão provados, como se podia verificar pelo depoimento de algumas das testemunhas.
Como se procurará demonstrar, esta alegação está votada ao fracasso.
É incontroverso, perante o disposto no n.º 2 do artigo 659º do CPC - segundo o qual o juiz deve discriminar na sentença os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes - que é apenas aos factos considerados provados que a sentença deve aplicar o direito. Deste modo, uma decisão que se apoie em factos não provados é uma decisão que aplica o direito sem ter base de facto para tanto, violando o n.º 2 do artigo 659º, do CPC.
Cabe precisar, no entanto, que, para efeitos desta norma, factos provados não são os que a parte/recorrente, em divergência com o que figura na sentença, entende que estão provados. Para estes efeitos, factos provados são apenas os que a própria sentença considerou provados.
Segue-se do exposto que a sentença recorrida teria incorrido no vício que o recorrente lhe aponta se tivesse tomado em conta factos que não figuravam entre os que ela considerou provados.
É patente, no entanto, que a sentença não incorreu neste vício, pois todos os factos a que aplicou o direito eram factos que previamente haviam sido descritos como provados. De resto, o recorrente não apontou um único facto que tenha servido de apoio à sentença que não figurasse no rol dos que foram por ela considerados provados.
Procurando relacionar a 1ª conclusão com o corpo das alegações, vê-se que o recorrente, ao alegar que a sentença fundamentou-se em factos que não estavam provados, quis exprimir a sua divergência relativamente a alguns dos factos considerados provados pela decisão recorrida.
Assim, o recorrente não concorda que se tenha julgado provado que os avós do réu doaram verbalmente ao seu filho C.... [pai do recorrente] o local onde foi construída a casa referida em 1), como não concorda que se tenha dado como provado que a casa referida em 1) tenha sido construída pela autora após a morte de C.... [marido da autora].
No entender do recorrente, o que resulta dos testemunhos de F....e G....é o seguinte:
1. Que o seu avô [B....] autorizou apenas o seu pai [o pai do recorrente] a construir uma pequena casa numa parcela do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 149;
2. Que foi a população da aldeia de Vale do Horto que, por solidariedade, edificou a casa.
Sucede que, querendo o recorrente impugnar a decisão de facto, estava obrigado a cumprir, antes de mais, os ónus impostos pelas alienas a) e b) do n.º 1, do artigo 685º-B, do CPC, ou seja, especificar os concretos pontos de facto que considerava incorrectamente julgados [alínea a)] e especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da decisão recorrida [b)].
E estava obrigado a fazer esta especificação nas conclusões, pois são elas que delimitam, de modo definitivo o objecto do recurso, como resulta do disposto no n.º 3 do artigo 684º, do CPC [a favor deste entendimento cita-se António Santos Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, Almedina, páginas 141 e 146].
Sucede que o recorrente não especificou, nas conclusões, os pontos de facto que considerava incorrectamente julgados. O incumprimento deste ónus implica, nos termos do n.º 1 do artigo 685º-A, do CPC, a rejeição do recurso que verse sobre a decisão de facto. Assim sendo, está vedado a este tribunal proceder à modificação da decisão de facto e proceder ao julgamento da causa com base nos factos que o recorrente entende que estão provados.
O segundo fundamento do recurso é constituído pela alegação de que, ainda que se admitisse que o recorrente não havia provado a aquisição, por usucapião, do prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 552º da freguesia de Azóia, concelho de Leiria, o referido prédio seria seu, por força da partilha realizada por morte da sua avó e depois do seu avô, até porque havia ficado amplamente demonstrado que foi a população do Vale do Horto e outros amigos do seu falecido pai que construíram a casa.
Este fundamento do recurso também está votado ao fracasso.
Contra ele depõe, em primeiro lugar, a circunstância de assentar em premissas de facto que não estão demonstradas. Com efeito, nem está demonstrado que a casa de habitação fazia parte da herança aberta por óbito dos avós do réu e que, na partilha dessas heranças, a casa de habitação foi atribuída ao réu, nem está demonstrado que foi a população do Vale do Horto e outros amigos do seu falecido pai que construíram a casa de habitação.
No que diz respeito à alegação de que “a casa já era sua por força da partilha realizada por morte da sua avó e depois do seu avô”, conforme “documentos do inventário que se encontravam juntos aos autos”, a mesma não tem o mais leve apoio nestes documentos, pois nenhum deles [documentos de fls. 67 a 81 e fls. 147 a 153] faz menção à casa de habitação em causa nos presentes autos.
Mas além de não ter fundamento, não se vê como pode o recorrente sustentar que a casa já era sua por força da partilha realizada por morte da sua avó [E....], quando, por um lado, está provado que a avó do recorrente faleceu em 22 de Novembro de 1970 e, por outro, que a casa começou a ser construída em 1972.
Deve dizer-se que mal se compreende, à luz do dever de boa fé processual, afirmado no artigo 266º-A, do CPC, a alegação do recorrente de que a casa já era sua por força da partilha realizada por morte da sua avó e do seu avô, quando na audiência preliminar declarou que o prédio urbano lhe foi doado verbalmente pelo seu avô B.... no ano de 1972.
A propósito da alegação de que foi a população do Vale do Horto que construiu a casa de habitação, importa recordar que ela figurava na base instrutória sob o número 13º, mas que o tribunal a quo julgou-a não provada.
Contra o fundamento do recurso ora em apreciação depõe ainda o seguinte.
Sendo incontroverso que, com os pedidos formulados na petição sob as alíneas b) e c), a autora visava impugnar as declarações feitas pelo réu na escritura de justificação notarial celebrada em 24 de Outubro de 2005, segundo as quais havia adquirido, por usucapião, o direito de propriedade sobre o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 552º da freguesia de Azóia, concelho de Leiria, e que estes pedidos são próprios das acções de simples apreciação negativa [artigo 4º, n.º 2, alínea a), do CPC], seguia-se daqui, por força do disposto no artigo 343º, n.º 1, do Código Civil, que competia ao réu a prova do direito que se arrogava na escritura, ou seja, competia-lhe fazer a prova dos factos compreendidos nas declarações que ele prestou na escritura e que justificavam a aquisição do prédio por usucapião.
E competia-lhe fazer a prova apesar de ter registado a aquisição, por usucapião, com base na escritura de justificação notarial.
Com efeito, nos termos do acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 1/2008, de 4.12.2007, publicado no DR em 31-03-2008, “na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos artigos 116º, n.º 1, do Código de Registo Predial e 101º do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura incumbe-lhe a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7º do Código de Registo Predial”.
Do exposto segue-se o seguinte. Tendo o réu declarado na escritura de justificação notarial que o imóvel em questão nos presentes autos veio à sua posse por lhe ter sido doado no ano de 1973, ainda no estado de casado com D.... sob o regime da comunhão de adquiridos, da qual se encontra actualmente divorciado, por seus pais, aquele antepossuidor B…. e mulher A....(… ) acto este que nunca chegou a ser formalizado; que desde aquela data, porém, tem possuído o mencionado imóvel em nome próprio e sobre ele tem exercido todos os actos materiais que caracterizam a posse, nomeadamente a defesa e a conservação da propriedade, habitando-o, nele dormindo e nele cozinhando as suas refeições, beneficiando-o, nele praticando obras de conservação, substituindo as telhas e os vidros partidos, limpando as caleiras, dele retirando todos os rendimentos inerentes à sua natureza e pagando pontualmente as contribuições e impostos por ele devidos, sempre à vista e com o conhecimento de toda a gente, de uma forma contínua, pacífica, pública e de boa fé sem oposição de quem quer que seja, competia-lhe provar os factos compreendidos nesta declaração, sob pena de, não o fazendo, ser julgada procedente a impugnação da escritura de justificação notarial.
O confronto entre o que foi declarado pelo réu na escritura e o que se acha provado mostra, sem sombra de dúvida, que o réu não provou o que declarou perante o notário com o fim de obter um título que lhe permitisse o registo da aquisição, a seu favor, do prédio.
De resto, a alegação do réu nas contestações e na audiência preliminar era suficiente só por si para julgar procedente a impugnação logo no despacho saneador, pois contrariava as declarações feitas na escritura de justificação notarial. Vejamos.
Enquanto na escritura declarou que o prédio veio à sua posse em 1973 por lhe ter sido doado pelos seus pais, na contestação que apresentou em primeiro lugar, o réu alegou que entrou na posse da casa em 1983/1984 [a divergência com o que foi declarado na escritura foi considerada um “lapso”], e que tal imóvel chegou à sua posse por sucessão por morte de seu avô B.....
Na contestação que apresentou na sequência do convite que lhe foi feito pelo tribunal a quo, o réu alegou factos contraditórios com os que havia alegado na primitiva contestação, dizendo que a casa de habitação não tinha relação com o prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 149º [recorde-se que na primitiva contestação alegara que a casa de habitação havia sido construído num prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 149º] e que o artigo urbano 552º [casa de habitação] foi “criado em primeiro registo por seu pai na sequência de uma doação de seu avô”.
Mas a inconstância do réu quanto a esta questão não se ficou por aqui, pois na audiência preliminar mudou de versão, declarando que o prédio lhe foi doado verbalmente pelo seu avô em 1972.
Face ao exposto, a única decisão que tinha amparo na lei era a que foi proferida, ou seja, julgar procedente a impugnação da escritura de justificação.
O terceiro fundamento do recurso é constituído pela alegação de que, ainda que se entendesse que a casa de habitação não era do réu por força da partilha realizada por morte da sua avó e depois de seu avô, tendo por base a matéria dada como provada, sempre o réu teria que ser declarado comproprietário da casa em discussão nos autos.
O recorrente sustenta esta pretensão com base na prova de que construiu anexos à casa e aí viveu de 1984 a 2003, e com base no entendimento de que os anexos não são mais do que alargamentos da casa original, sendo até por eles que, desde 1984, se faz o único acesso de entrada em toda a casa. Ainda segundo o recorrente, a matéria que se acabada de destacar é suficiente para se concluir que ele adquiriu, por usucapião, a compropriedade sobre a casa de habitação.
Este fundamento do recurso também está votado ao fracasso.
A usucapião é, na terminologia do artigo 1316º do Código Civil, modo de aquisição do direito de propriedade.
Consiste, segundo o artigo 1287º do mesmo diploma, na posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certa lapso de tempo.
Sabendo-se que a posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real [artigo 1251º, do Código Civil], a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade pressupõe que a relação do possuidor com a coisa se manifeste através do exercício de poderes de facto sobre ela correspondentes aos que são exercidos por quem é proprietário.
Por seu turno, a aquisição, por usucapião, da compropriedade pressupõe que duas ou mais pessoas exerçam, em comum, a posse sobre essa coisa, por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, pois nos termos do n.º 1, do artigo 1403º, do Código Civil, existe propriedade em comum, ou compropriedade, quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares de propriedade sobre a mesma coisa.
Segue-se do exposto que o recorrente estaria em condições de invocar a aquisição, por usucapião, da compropriedade sobre a casa de habitação se estivesse provado que possuiu em comum com a autora a referida casa de habitação, como se ambos fossem proprietários da mesma.
Sucede que esta condição não está verificada. Os factos provados apontam no sentido de a autora ser a possuidora exclusiva da casa de habitação. Com efeito, apurou-se que foi ela quem a construiu, que é ela quem vive na casa desde a sua conclusão, em finais de 1972, à vista de todos, sem oposição, de forma continuada e na convicção de exercer um direito próprio. O réu, ora recorrente, não conseguiu provar que habitou na casa desde 1984 até 2003.
É certo que o réu não é um estranho em relação à casa de habitação, pois provou-se que construiu uns anexos à casa e aí viveu de 1984 a 2003. Mas se isto é certo, também temos como certo que o facto de o réu ter construído os anexos e o facto de o réu ter residido neles durante cerca de 20 anos não o tornam compossuidor da casa de habitação, tanto mais que nem sequer se provou que o réu tenha habitado nos anexos com a convicção de exercer um direito próprio (resposta negativa ao ponto n.º 25 da base instrutória).
Deste modo, é patente que não tem cobertura na lei a pretensão do recorrente no sentido de lhe ser reconhecida a compropriedade sobre o prédio em questão nos autos.
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O último fundamento do recurso é constituído pela alegação de que a sentença não pode ser cumprida porquanto a casa com 80 m2 e os logradouros com 30 m2 não existem. E não existem porque no logradouro de 30 m2 estão os anexos para animais que foram construídos pelo réu e porque para entrar na casa tem que se entrar pelos anexos que pertencem ao réu e que não são autonomizáveis, razão pela qual a autora nunca poderá utilizar a casa que lhe foi atribuída.
Este fundamento também está votado ao fracasso.
Como é bom de ver, o cumprimento ou a execução das decisões judiciais só se coloca em relação ao que nelas foi decidido. Logo, o cumprimento da presente decisão só é de colocar em relação ao que consta da parte dispositiva da sentença, ou seja:
a) À declaração de procedência da impugnação da escritura;
b) À declaração de ineficácia dessa mesma escritura;
c) À decisão que ordenou o cancelamento dos registos feitos com base na escritura;
d) À declaração de que a casa de habitação, descrita na parte decisória, pertence à autora.
A única decisão que requer uma actividade destinada a cumpri-la ou a executá-la é a enunciada sob a alínea c). Não vemos qualquer impossibilidade de lhe dar cumprimento, sabendo-se que o cancelamento dos registos com base em decisões judiciais está previsto na lei [artigo 13º do Código de Registo Predial] e que as decisões dos tribunais judiciais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades [n.º 1 do artigo 8º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais [Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro].
As restantes decisões porque são meramente declarativas não demandam qualquer actividade destinada a cumpri-las.
Daí que, olhando exclusivamente para o que foi decidido, careça de sentido a alegação de que a sentença não pode ser cumprida.
Ao alegar que a sentença não pode ser cumprida com os fundamentos acima expostos, o recorrente dá a entender que o segmento da decisão que declarou que a casa de habitação pertence à autora é inconsequente, pois a autora nunca poderá usá-la. E nunca poderá usá-la uma vez que para entrar na casa terá de o fazer pelos anexos e o réu não o permitirá, pois os anexos, segundo alega, pertencem-lhe.
Não cabe ao tribunal pronunciar-se sobre o conflito que aparece esboçado nesta alegação, pois ele está fora do objecto do recurso. Dir-se-á apenas que, interpretando os factos provados, eles não consentem nem a conclusão de que os anexos pertencem ao réu, nem a afirmação de que lhe assiste o direito de impedir a autora de ter acesso à casa de habitação cuja propriedade lhe foi reconhecida pelo tribunal.
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Decisão:
Julga-se improcedente o recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.
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As custas serão suportadas pelo recorrente.
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Coimbra, 11-07-212