Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1265/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: FACTURAÇÃO DETALHADA
TELECOMUNICAÇÕES
COMPETÊNCIA
Data do Acordão: 05/17/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº.S 187º, 190º, 269º DO C. P. PENAL E ARTº. 2º DA LEI 41/2004, DE 18/08
Sumário: Na fase de inquérito, é da competência do juiz de instrução, e não do Ministério Público, ordenar a uma operadora telefónica a remessa de listagem detalhada das chamadas e mensagens escritas recebidas por determinado telefone.
Decisão Texto Integral: Acordam , em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

Relatório

Nos autos de inquérito n.º 59/06.7GCAVR , que correm termos na 2ª Secção de processos do Ministério Público de Aveiro , em que é queixosa A..., a Ex.ma Juíza de Instrução Criminal , por despacho de 7 de Fevereiro de 2006 , indeferiu a promoção do Ministério Público em que este requeria que fosse autorizado que a "B..." remetesse aos presentes autos a listagem detalhada das chamadas e mensagens escritas recebidas pelo telemóvel n.º 96 412 56 94 no dia 24 de Janeiro de 2006 , com identificação do número chamador e informação acerca da identidade e domicílio dos titulares dos números chamadores constante de tal listagem que operem na rede da "B...".
Inconformado com o despacho de 7 de Fevereiro de 2006 dele interpôs recurso o Ministério Público, concluindo na sua motivação:
1º Vem o presente recurso interposto do despacho proferido a fls. 8 a 11 dos autos de inquérito em epígrafe, no qual a Mª juiz "a quo" decidiu não ordenar/ autorizar, tal como vinha promovido pelo Ministério Público, que a operadora de serviço telefónico móvel terrestre "B..." remetesse aos presentes autos a listagem detalhada das chamadas e mensagens escritas recebidas pelo telemóvel da aqui queixosa, com identificação do número chamador (vulgarmente conhecido como registo de trace back), por entender que tal ordem/autorização não se inscreve nas competências do juiz de instrução, listados nos artigos 268º e 269º do Código de Processo Penal.
2º Na medida em que os registos cuja obtenção se pretende respeitam a telecomunicações, que estas estão abrangidas por uma garantia de inviolabilidade e sigilo e por uma garantia de reserva de decisão judicial, com consagração constitucional e legal artigos 32º, n.º 4, e 34º, nºs 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa, artigo 17º, n.º 2, da Lei no 91/97, de 1 de Agosto, e artigo 4º da Lei no41/2004, de 18 de Agosto e que a obtenção de tais registos, relativos a dados de tráfego, se traduz numa ingerência nas comunicações, devem os mesmos ser obtidos de acordo com o regime decorrente dos artigos 187º a 190ºe 269º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal.
3º Do disposto nos artigos 187º, n.º 1, al. e), e 269º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, decorre ser da competência exclusiva do juiz de instrução, durante o inquérito, ordenar ou autorizar o registo de comunicações (realidade diversa da sua intercepção ou gravação), o que abrange a obtenção do registo de dados relativos a comunicações, que a lei ordinária qualifica como dados de tráfego e coloca a coberto da referida garantia de sigilo e inviolabilidade artigos 1º, n.º 1, 2º, n.º 1, al. d), e 4º, n.º s 1 e 2, da citada Lei n.º 41/2004.
4º Pelo exposto, o despacho recorrido fez errada interpretação e aplicação da norma decorrente dos artigos 187º, n.º 1, al. e), e 269º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, violando a. Assim, requer se a V. Exas. que, dando provimento ao presente recurso, anulem o despacho recorrido, substituindo o por outro que defira o promovido pelo Ministério Público, no sentido de que é da competência da Mª juiz de Instrução ordenar ou autorizar que a operadora de serviço telefónico móvel terrestre "B..." remeta aos presentes autos a listagem detalhada das chamadas e mensagens escritas recebidas pelo telemóvel da queixosa, com identificação do número chamador (vulgarmente conhecido como registo de trace back).
A Ex.ma JIC manteve o despacho recorrido , remetendo para os fundamentos já expostos no despacho recorrido.
O Ex.mo Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer nosentido do provimento do recurso.
Colhidos os vistos cumpre decidir.
Fundamentação
Do despacho recorrido consta , nomeadamente e no essencial , o seguinte: « As informações pretendidas pelo Ministério Público , repete-se e sublinha-se , não se prendem com o conteúdo de qualquer conversa telefónica ou de correio electrónico havida entre particulares , sendo certo que o âmbito da norma do art.269.º, n.º1 , al.c) do Cód. de Proc. Penal visa apenas tutelar especialmente o teor de conversas , mensagens e correio electrónico , porque apenas este contende com os valores cuja protecção se quis atribuir ao crivo do juiz de instrução. (...).
E , só quanto a este conteúdo , é que o crivo do juiz de instrução é chamado a intervir, como resulta do longamente explanado , podendo e devendo o Ministério Público, quanto ao resto e no que aqui interessa , diligenciar pela obtenção dos elementos julgados pertinentes para a investigação.».
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O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , o Ac. do STJ de 19-6-96 , no BMJ 458º , pág. 98 ).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso .
No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recorrente Ministério Público a questão a decidir é a seguinte:
- se , nos termos dos artigos 268.º e 269.º, n.º1 al.c) do C.P.P. , 32.º, n.º4 e 34.º, n.º 4 da C.R.P. , 17.º, n.º2 da Lei n.º 91/97 de 1 de Agosto e 4.º da Lei n.º 41/2004 , de 18 de Agosto , é da competência do Juiz de Instrução Criminal , em inquérito , ordenar ou autorizar à B... o fornecimento da facturação detalhada das chamadas e mensagens escritas recebidas por um telemóvel em certo dia , com identificação do número chamador e informação acerca da identidade e domicílio dos titulares dos números chamadores constantes de tal listagem que operem na rede da "B...".
Passemos , pois , ao conhecimento da questão.
O inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime , determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher provas, em ordem , em ordem à decisão sobre a acusação." ( art.262.º , n.º1do C.P.P.).
A direcção do inquérito cabe ao Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia criminal ( art.263.º, n.º1 do C.P.P.).
Pese embora seja esta a regra quanto à realização de actos no inquérito , o art.268.º do C.P.P. enumera vários actos que , durante o inquérito , competem exclusivamente ao juiz de instrução , e o art. 269.º, n.º1 , do mesmo Código , enumera as diligências que, embora realizadas pelo Ministério Público ou por órgãos de polícia criminal por sua delegação , terão que ser ordenados ou autorizados pelo juiz de instrução.
Nos termos deste art.269.º , n.º 1 , al. c) , durante o inquérito compete exclusivamente ao juiz de instrução ordenar ou autorizar a « intercepção gravação ou registo de conversações ou comunicações , nos termos dos artigos 187.º e 190.º » .
O art.187.º do C.P.P. estabelece as condições de admissibilidade da intercepção e da gravação de conversações ou comunicações telefónicas e o art.190.º, do mesmo Código, prevê a extensão do regime a comunicações efectuadas por meio técnico diferente do telefone.
O despacho recorrido entendeu que o art.269.º, n.º1 , al.c) do Cód. de Proc. Penal visa tutelar especialmente o teor de conversas , mensagens e correio electrónico , porque apenas este contende com os valores cuja protecção se quis atribuir ao juiz de instrução.
Apenas a intercepção , gravação ou registo do conteúdo das conversações ou comunicações deverá ser ordenada ou autorizada pelo Juiz de instrução , nos termos do art.269.º, n.º1 , al.c) do Cód. de Proc. Penal.
Já o recorrente Ministério Público defende que é competência do JIC não só a obtenção de elementos de conteúdo das conversações ou comunicações, mas também a obtenção de dados de tráfego, por esta se traduzir numa ingerência nas telecomunicações abrangida por uma garantia de inviolabilidade e sigilo com consagração constitucional . Como tal , só de acordo com o regime decorrente dos artigos 187.º a 190.º e 269.º, n.º1 , al. c) do Código de Processo Penal , podem ser obtidos os dados de tráfego.
Vejamos.
É pacifico que o processo penal é direito constitucional aplicado.
Assim , na interpretação do disposto no art.269.º , n.º1 , al.c) do Cód. De Proc. Penal não podemos deixar de atender à parte dos " direitos , liberdades e garantias" consagrados na Constituição da República Portuguesa.
A Constituição da República Portuguesa depois de proclamar , no seu art.1º , a dignidade da pessoa humana como valor no qual se funda a República Portuguesa , declara no seu art.26.º, n.º1 , como expressão directa da dignidade da pessoa humana que « A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade , à capacidade civil , à cidadania , ao bom nome e reputação , à imagem , à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.».
Em anotação a este preceito constitucional os Prof.s Gomes Canotilho e Vital Moreira salientam que o direito à reserva da vida privada se analisa principalmente em dois direitos menores: " (a) o direito de impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e familiar e (b) o direito a que ninguém divulgue as informações que tenha sobre a vida privada e familiar de outrem"- cfr. Constituição da República Portuguesa anotada, 3ª edição , pág. 181.
A interferência no direito à reserva da intimidade da vida privada pode resultar de uma violação de domicílio ou do segredo da correspondência ou das comunicações.
Porquanto a garantia de inviolabilidade da correspondência ou de outras comunicações proporciona a garantia de que a vida privada se pode exprimir através destes meios de comunicação , o n.º1 do art.34.º, da C.R.P. estabelece que " o domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis".
No âmbito desta protecção da intimidade da vida privada o n.º 4 do art.34.º declara que " é proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência , nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação , salvo os casos previstos na lei em matéria de processo criminal.".
O sigilo das telecomunicações é , assim , tendencialmente absoluto, só cedendo os casos previstos na lei em matéria de processo criminal , isto é , como meio de aquisição da prova.
A garantia da reserva da vida privada resulta , igualmente, da proibição de utilização de provas obtidas com violação do segredo da vida privada.
Para o processo penal a C.R.P . prevê no seu art.32.º , n.º 8 , que « são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção , ofensa da integridade física ou moral da pessoa , abusiva intromissão na vida privada , no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.».
O art.126.º, n.º 3 do Código de Processo Penal considera , por sua vez , que « ressalvados os casos previstos na lei , são igualmente nulas as provas obtidas mediante intromissão na vida privada , no domicílio , na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular. ».
Num parêntesis diremos que o art.17.º , n.º2 da Lei n.º 91/97 , de 1 de Agosto , que instituiu a Lei de Base das Telecomunicações, e reconhecia a inviolabilidade dos meios de comunicação privada e o sigilo das telecomunicações , mencionado nas conclusões do recurso do Ministério Público já foi revogado pela Lei n.º 5/2004 , de 10 de Fevereiro.
Com o progresso tecnológico a inviolabilidade dos meios de comunicação privada e o sigilo das telecomunicações cada vez mais se relaciona com o tratamento de dados ou elementos envolvidos pelo lado dos utilizadores , nas suas relações com os prestadores de serviços de telecomunicações.
Assim , o art.4.º, n.º1 da Lei n.º 41/2004 , de 18 de Agosto ,que transpõe para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 2002/58/Código da Estrada, do Parlamento Europeu e do Conselho , de 12 de Junho , relativa ao tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas , estabelece que "as empresas que oferecem redes e ou serviços de comunicações electrónicas devem garantir a inviolabilidade das comunicações e respectivos dados de tráfego realizadas através de redes públicas de comunicações e de serviços de comunicações electrónicas acessíveis ao público.".
A Procuradoria Geral da República , no seu parecer n.º 16/94 ( cfr. Pareceres , Vol. VI , pág. 546) , citando Yves Poullet e Francoise Warrante , distingue fundamentalmente três espécies ou tipologias de dados ou elementos: " os dados relativos à conexão de rede , ditos dados de base ; os dados funcionais necessários ao estabelecimento de uma ligação ou comunicação e os dados gerados pela utilização da rede ( por exemplo, localização do utilizador, localização do destinatário, duração da utilização , data , hora , frequência) , dados de tráfego; dados relativos ao conteúdo da comunicação ou da mensagem , dados de conteúdo).".
Os "dados de tráfego" são definidos no art.2.al. d) da Lei n.º 41/2004 , de 18 de Agosto , como "quaisquer dados tratados para efeitos do envio de uma comunicação através de uma rede de comunicações electrónicas ou para efeitos da facturação da mesma", enunciando o n.º2 do art.6.º, desta Lei alguns dos elementos que integram aquele conceito.
Enquanto os dados de base , de ligação à rede , são elementos prévios e instrumentais de qualquer comunicação , que estão sujeitos ao sigilo se o utilizador tiver requerido um regime de confidencialidade ao serviço de telecomunicações , os dados de tráfego são já elementos inerentes à própria comunicação , permitindo em tempo real ou a posteriori identificar os utilizadores , o relacionamento directo entre uns e outros através da rede , a localização , a frequência , a data , a hora e a duração.
Os utilizadores são não só os assinantes que estabeleceram um contrato com os serviços de telecomunicações , como terceiros que estabeleceram ligação electrónica com o número dos assinantes.
A Procuradoria Geral da República , no seu parecer n.º 21/2000 (D.R., II Série , de 28 de Agosto) , na conclusão 2ª , decidiu que na fase de inquérito os elementos de informação , "... quando atinentes a dados de tráfego ou a dados de conteúdo , apenas poderão ser fornecidos às autoridades judiciárias , pelos operadores de telecomunicações , nos termos e pelo modo em que a lei de processo penal permite a intercepção das comunicações , dependendo de ordem ou autorização do juiz de instrução (artigos 187.º, 190.º e 296.º, alínea c) do Código de Processo Penal.".
Os Prof.s Gomes Canotilho e Vital Moreira defendem , também , que a garantia do sigilo das comunicações abrange não apenas o conteúdo das comunicações , mas o próprio "tráfego" como tal ( espécie , hora, duração, intensidade de utilização). Aqui as restrições estão autorizadas apenas em processo criminal ( n.º4) , e estão igualmente sob reserva de lei ( art.18.º- 2 e 3 ) , só podendo ser decididas por um juiz. - cfr. Constituição da República Portuguesa anotada, 1993, pág. 212.
O Tribunal da Relação de Coimbra , por acórdão de 7 de Março de 2001 ( C.J. , ano XXVI, tomo 2, pág. 44) , pronunciou-se já sobre esta questão , decidindo que a requisição da facturação detalhada de números de telefones , em inquérito, não é acto que possa ser validamente praticado pelo Ministério Público , necessitando de ser autorizada pelo Juiz de instrução.
E no mesmo sentido se pronunciaram ao acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 10 de Dezembro de 2003 e de 23 de Junho de 2004 ( www.dgsi.pt) , citados na motivação do recurso do Ministério Público.
Sendo a intervenção do juiz de instrução , no inquérito , direccionada para a defesa dos direitos fundamentais do cidadão , e estando em causa a reserva da vida privada dos utilizadores de telecomunicações através do pedido de informações e facturação detalhada inerentes à própria comunicação, em vista do interesse na realização da justiça , entendemos que para efeitos do disposto no art.269.º. n.º1 , al.c) do Código de Processo Penal a competência do juiz de instrução é extensiva à requisição ou autorização de obtenção daqueles dados ou elementos.
Deste modo entendemos que deve proceder o recurso.

Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso do Ministério Público e revogar o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que analise os fundamentos da pretensão do Ministério Público constantes de folhas 6 dos autos inquérito e, tendo em vista os pressupostos legais de admissibilidade, decida em conformidade.
Sem custas.
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Coimbra, 17 de Maio de 2006