Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
455/07.2TBFND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FÉLIX ALMEIDA
Descritores: PAGAMENTO VOLUNTÁRIO COIMA
CONFISSÃO IRRETRACTÁVEL
Data do Acordão: 11/05/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO FUNDÃO – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 32º DA CRP, L750,4 DO C. DA ESTRADA
Sumário: A restrição do 175º n.0 4. do C. da Estrada, apenas pode ser aportada a uma mera presunção -juris tantum – de que o pagamento voluntário da coima, implica a prática da contra-ordenação, mas não a de que tal pagamento implica necessariamente a presunção inilidível – juris et de jure – do cometimento da infracção.
Decisão Texto Integral: Nos presentes autos, o arguido LC... interpôs recurso da decisão proferida no Proc. Contra-ordenacional n.0 455/07.2TBFND, do 1º Juízo da Comarca de Fundão, a qual, tendo sido previamente efectuado o pagamento voluntário da correspondente coima de 120.00 €, pela prática de uma contra-ordenação. p. e p. pelos art.s 35º n0s 1 e 2, com referencia aos artºs 138º e 145º do C. da Estrada, lhe confirmou a sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 dias, suspensa na sua execuç~1o pelo período de 180 dias.

Assim, o arguido recorre, agora, para este Tribunal da Relação, pretendendo a anulação da decisão recorrida e que, consequentemente, os autos sejam reenviados à 1ª Instância, para aí se proceder a nova audiência de julgamento, garantindo-se, desse modo, todas as garantias de defesa.

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Para o efeito, apresenta, em síntese, as seguintes CONCLUSÕES:

1.       Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo não teve presente o ordenamento jurídico-constitucional Português.

2.      Face ao disposto nos art.s 20º, 32º n.02, 202º n0s 1. 2 e 10º, todos da Constituição da República Portuguesa. O Tribunal a quo não podia afirmar aquilo que afirmou na douta decisão recorrida;

3.      O art.0 175º n.0 4. do C. da Estrada preceitua que o pagamento vo1untário da coima não impede o arguido de apresentar a sua defesa, restrita à gravidade da infracção e à sanção acessória aplicável:

4.      Quanto a uma eventual confissão do arguido, o Tribunal a quo deveria ter tido presente todos os preceitos constitucionais acima citados e o artigo 3440 do Código de Processo Penal:

5.      Deveria na decisão recorrida ser declarado inconstitucional o último parágrafo do artº l750, do C. da Estrada, por comer uma presunção iniludível, que viola o amplo direito de defesa que assiste ao arguido;

6.      O Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, violou o disposto nos art.s 20º, 18º, 32º e 202º, todos da Constituição da República Portuguesa e o art.0 344º do Código de Processo Penal:

Deve a douta decisão recorrida ser anulada, ordenando-se quc os autos baixem ao Tribunal a quo. ordenando-se também no sentido de se proceder a audiência, garantindo-se, desse modo, todas as garantias de defesa.

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O      Ministério Público respondeu, pugnando pelo improvimento do recurso e, consequente manutenção da decisão recorrida.

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Junto desta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto, manifesta-se pela rejeição do recurso, por manifesta improcedência — art.0 420º n.010. do C. P. Penal – já que o arguido que proceda ao pagamento voluntário da coima não fica impedido de apresentar a sua defesa, restrita à gravidade da infracção e a sanção de inibição de conduzir aplicável (artº l75º n.0 4, do C. da Estrada); a não se entender assim, então, deve o mesmo improceder; mantendo-se a decisão de 1ª instância.

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Subiram, em recurso, os autos ao Tribunal Constitucional, que veio a declarar a inconstitucionalidade do citado artº 175º nº 4, na interpretação que mereceu vencimento no Acórdão desta Relação.

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Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

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A questão colocada prende-se apenas com a interpretação dada ao artº 175º nº 4 do C. Estrada, segundo a qual o pagamento voluntário da coima equivale a uma confissão irretractável da prática da contra-ordenação, que fez vencimento no anterior Acórdão deste Tribunal.

Desde início, que vimos defendendo solução contrária.

Assim que:

“…só em audiência de julgamento é atribuído à confissão, o seu valor especial de meio de prova e mesmo neste caso, fica sujeita ao controle do tribunal sobre o seu carácter livre, a veracidade dos factos confessados…”[1][1]  

Ora, não foi permitido à recorrente, pronunciar-se sobre a veracidade dos “factos confessados”, incluindo-os sem mais, no acervo factual provado.

Admitindo-se e concordando-se mesmo que em causa estará não o nº 1 do artº 32º da CRP, mas “apenas” o seu nº 10, aplicável aquele em processo penal e este em processo contra-ordenacional, teremos de admitir alguma hipocrisia se dissermos que sendo ao arguido conferidos os “direitos de audição e de defesa” – nº 10, citado – se haja de limitar, (ainda) esta defesa a questões subsequentes a uma anunciada e legalmente imposta condenação: o cerne da questão, o crime é indiscutido e indiscutível.

Só que, todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado de sentença de condenação, devendo ser julgado…com as garantias de defesa – artº 32º nº 2 da CRP.

Ora, a nosso ver, a falada restrição, apenas pode ser aportada a uma mera presunção -juris tantum – de que o pagamento voluntário da coima, implica a prática da contra-ordenação, mas não a de que tal pagamento implica necessariamente a presunção inilidível – juris et de jure – do cometimento da infracção.

Deste modo, a consagrada presunção constitucional de inocência é afastada e de modo inilidível, por normativo estradal!

A aplicação de normas sobre direitos, liberdades e garantias faz-se de modo directo, sendo que essa “aplicação directa não significa apenas que os direitos, liberdades e garantias se aplicam independentemente da intervenção legislativa (cf. artºs 17º e 18º/1. Significa que eles valem directamente contra a lei, quando esta estabelece restrições em desconformidade com a Constituição (cf. CRP, artº 18º/3)[2][2]   

 O segmento do artº 175º nº 4 CE, em que se diz que depois de paga a coima apenas se pode apresentar defesa “restrita à gravidade da infracção e à sanção de inibição de conduzir aplicável”, sem discutir a verificação/cometimento da infracção é inconstitucional, por afastamento injustificado da garantia de todos os direitos de defesa, “devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos” – artº 18º nº 2 CRP.

Em nosso entender, o indiciado infractor pode defender-se, sem quaisquer restrições, alegando mesmo a não verificação/prática da infracção, ainda que tenha ele-mesmo (quiçá, outrém, a fortiori) procedido ao pagamento voluntário da coima.

Destarte que o parágrafo último do artº 175º nº 4 do CE, versão actual do D. L. 44/05 de 23 de Fevereiro, é inconstitucional, face ao estabelecimento de uma presunção inilidível, que acarreta a derrogação do direito de defesa ampla do arguido.

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Termos em que se acorda, em consonância e na procedência do recurso, em anular o julgamento, devendo proceder-se a nova Audiência, com observância de todas as garantias de defesa do arguido/recorrente.

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Sem tributação.

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Coimbra,

Arlindo Félix de Almeida.

[1][1] CPP, Anotado de Simas Santos e Leal Henriques, 2ª, II, 364.
[2][2] Direito Constitucional e Teoria da Constituição de J.J. Gomes Canotilho, 7ª, 1179.