Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
800/10.3PEAVR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CALVÁRIO ANTUNES
Descritores: PRESTAÇÃO DE TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
CONVERSÃO DA PENA DE MULTA
Data do Acordão: 10/10/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - AVEIRO – JUÍZO DE MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL – JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: ALTERADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 48º E 58º CP
Sumário: 1. A pena a considerar para efeitos de determinação da duração do trabalho a prestar a favor da comunidade é a pena de multa originária;
2. Assim, condenado o arguido em 200 dias de multa, a duração do trabalho a prestar deve ser de 200 horas.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:

1.1 No processo supra identificado, foi julgado o arguido A..., (),
tendo o tribunal recorrido decidido, condenar A... pela prática de um crime de porte e uso proibidos de arma de fogo e munições, previsto e punido pelo artigo 86°, n.º 1, al.s c) e d), e pelo artigo 90°, do RJAM:
I - na pena de 200 duzentos dias de multa à razão diária de €8,50 (oito euros e cinquenta cêntimos), perfazendo portanto a pena o total de €1.700,00, sendo o arguido advertido que o não pagamento da multa ou, a requerimento seu no prazo de pagamento voluntário, a sua substituição por trabalho a favor da comunidade, poderá implicar o cumprimento de prisão subsidiária (artigos 49° e 48° do Código Penal) e
II – na pena acessória de interdição de detenção, uso e porte de armas pelo período de dois anos e seis meses, a contar desde da data do trânsito em julgado desta sentença, devendo o arguido no prazo de quinze dias a contar da data de tal trânsito em julgado entregar no posto policial da área da sua residência quaisquer armas, munições, licenças e demais documentação às mesmas relativas que possua, sob pena de, caso omita tal entrega, incorrer no crime de desobediência qualificada (artigo 90°. nº3, do RJAM).
III - Mais decide-se declarar perdidas a favor do Estado a pistola e as munições, apreendidas as quais deverão permanecer à guarda da Policia de Segurança Pública, que promoverá o seu destine.
IV - É devido pelo arguido o pagamento de custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em duas unidades de conta.
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1.2. Antes de iniciado o prazo para pagamento voluntário da multa, requereu a substituição da mesma por trabalho a favor da comunidade (cópia de fls. 17).
O Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser deferida a requerida substituição por dias de trabalho, nos termos de cópia de fls. 23.
Foi solicitado aos Serviços de Reinserção Social a realização de relatório, que consta de fls. 87 e seguintes (por cópia), de acordo com o qual, além do mais, o arguido actualmente não trabalha, sofre de alguns problemas de saúde e vive com uma companheira, sem ocupação, sobrevivendo ambos da pensão do arguido, que é de € 189 a € 210,00. O arguido manifestou disponibilidade para trabalhar na Fundação ..., em trabalho no espaço exterior daquela instituição a qual está disposta a dar ocupação ao arguido.
Após foi decidido substituir a pena de multa aplicada no presente processo por 133 (cento e trinta e três) horas de trabalho a favor da comunidade, a prestar à entidade beneficiária, executando tarefas compatíveis com a sua saúde e aptidões , na Fundação referida (despacho cuja cópia se encontra a fls. 24/29).
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2.Inconformada com tal decisão, veio a Magistrada do M.P. interpor o presente recurso, formulando nas respectivas motivações as seguintes (transcritas) conclusões:

“1. Pela prática de um crime de porte e uso proibidos de arma de fogo e munições foi o arguido A... condenado na pena de duzentos dias de multa, à razão diária de € 8,50.
2. Porque o arguido o requereu, foi autorizada a substituição desta pena de multa por trabalho a favor da comunidade.
3. Assim, e "ao abrigo do disposto no artigo 58.°, n.º3, do Código Penal, aplicável por força do disposto no artigo 48º, n.º 2 do mesmo diploma" foi determinado que o arguido cumpra 133 (cento e trinta e três) horas de trabalho a favor da comunidade, em substituição daquela pena de 200 dias de multa.
4. Com efeito, entendeu a Exma. Juiz que tendo sido aplicada ao arguido uma pena de 200 dias de multa, a que correspondem 133 dias de prisão subsidiária (artigo 49.°, n.º 1 do Código Penal), teria este de cumprir 133 horas de trabalho a favor da comunidade
5. Entendemos que, no presente caso, não foi correctamente aplicado o disposto no citado artigo 48.°, n.º 2, do Código Penal.
6. Na verdade, quando aí se diz “é correspondente aplicado o disposto no artigo 58º, n.º3” quer-se dizer que este último normativo se aplica mutatis mutandis, ou seja, com as necessárias adaptações.
7. Ou seja, o que se pretende é que se aplique apenas a regra da correspondência aí prescrita, ou seja, uma hora de trabalho para cada dia de multa.
8. Aliás, se assim não fosse, bastaria ao legislador ter referido no citado artigo 48.°, n.º 2 que era aplicável o disposto no artigo 58.º, n.º3, sem a palavra "correspondentemente".
9. Ao dizer expressamente e sem mais "é correspondentemente aplicável o disposto no artigo 58.°, n.º 3, o legislador só pode ter querido dizer que, no caso da substituição da pena de multa pela prestação de trabalho a favor da comunidade, deverá aplicar-se a regra e proporção aí referidas, ou seja, uma hora por dia ( neste caso, dia de multa).
10. A regra deverá ser, pois, a de fazer corresponder uma hora a um dia (dia esse que poderá ser de prisão ou de multa, conforme estejamos a aplicar directamente o disposto no referido n.º3, ou por força da remissão do artigo 48.°, n.º 2).
11. Não sendo esta a vontade do legislador, deveria, então, ter dito que "era aplicável o disposto no artigo 58.°, n.º 3, depois e feita a conversão do artigo 49.°, n.º 1".
12. Não tendo utilizado esta fórmula, entendemos não ser aceitável a interpretação e aplicação efectuadas pela Exma. Juiz.
13. Assim, a decisão recorrida deveria ter ordenado o cumprimento, não de 133 horas de trabalho, mas antes, de 200 horas trabalho.
14. Não o tendo feito, entendemos que violou o disposto no citado artigo 48.°, n.º 2, do Código Penal.
Nos termos expostos e nos demais que V.ªs Exas. doutamente suprirão, julgando-se procedente o recurso e revogando-se o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que ordene a substituição da pena de 200 dias multa aplicada ao arguido, por 200 horas de trabalho a favor da comunidade, far-se-á justiça”
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3 Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, no douto parecer que emitiu, pronunciou-se no sentido da procedência do recurso (fls. 37/38).

Notificados, nos termos e para os efeitos consignados no artº 417.º, n.º 2, do C. P. Penal, o arguido nada veio dizer.
Foram colhidos os vistos legais.
Procedeu-se a conferência, com observância do formalismo legal, cumprindo, agora, apreciar e decidir.
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II. Fundamentação.
1. Delimitação dos poderes cognitivos do tribunal ad quem e objecto do recurso:

É hoje entendimento pacífico que as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, conforme Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98, sem prejuízo das de conhecimento oficioso.
Por isso, temos, como

Questões a decidir:

No caso concreto a questão a reclamar a nossa ponderação é a de definirmos se deve revogar-se o despacho recorrido no sentido propugnado pelo recorrente Ministério Público. Isto é se o número de horas de trabalho a favor da comunidade deve ser igual ao número de dias de multa ou não.
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2. O despacho recorrido é do seguinte teor (por transcrição):


“A... foi neste processo condenado pela prática de crime de porte e uso proibidos de arma de fogo e munições, por sentença de 02.03. 011, transitada em julgado em 26.04.2011, na pena unitária de 200 dias de multa à razão diária de €8,50 e na pena acessória de interdição de detenção, uso e porte de armas por 2 anos e 6 meses.
Antes de iniciado o prazo para pagamento voluntário da multa, requereu a substituição da mesma por trabalho a favor da comunidade (fls. 77-9).
O Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser deferida a requerida substituição por dias de trabalho, nos termos de fls. 80 e fls. 96, promovendo a substituição da pena de 200 dias de multa por 200 horas de trabalho a favor da comunidade.
Foi solicitado aos Serviços de Reinserção Social a realização de relatório, que consta de fls. 93 e seguintes, de acordo com o qual, além do mais, o arguido tem a 4ª classe, está reformado, trabalhou em hotelaria, padece de alguns problemas de saúde, com a sua companheira sobrevivem com pensões no valor mensal global de €399,00, manifestou disponibilidade para prestar trabalho para Fundação da sua área de residência, sendo que por tal entidade foi já expressa disponibilidade para dar ocupação ao arguido em trabalhos compatíveis com a sua situação de saúde no espaço exterior das instalações.
Atento o teor da referida informação dos Serviços de Reinserção Social, bem como o considerado na sentença acerca da situação do arguido (cfr. fls. 64-5,68), afigura-se que a substituição da multa por trabalho realiza de forma adequada e suficiente as finalidades de prevenção gerai e especial que no caso se suscitam, nada obstando à substituição da multa por trabalho "os termos do artigo 48° n." t. do Código Penal, disposição legal esta nos termos da qual “ a requerimento do condenado, pode o tribunal ordenar que a pena de multa fixada seja total ou parcialmente substituída por dias de trabalho em estabelecimentos, oficinas ou obras do Estado ou de outras pessoas colectivas de direito público, ou ainda de instituições particulares de solidariedade social, quando concluir que esta forma de cumprimento realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

Estabelece o n.º 2 do citado artigo 48° que "é correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 58° e no n.º 1 do artigo 59°".
Nos termos de tais disposições, "para efeitos do disposto no n.º 1 (substituição da pena de prisão por prestação de trabalho a favor da comunidade], cada dia de prisão fixado na sentença é substituído por uma hora de trabalho, no máximo de 480 horas"; "o trabalho a favor da comunidade pode ser prestado aos sábados, domingos e feriados, bem como nos dias úteis, mas neste caso os períodos de trabalho não podem prejudicar a jornada normal de trabalho, nem exceder, por dia, o permitido segundo o regime de horas extraordinárias aplicável"; "a prestação de trabalho a favor da comunidade pode ser provisoriamente suspensa por motivo grave de ordem médica, familiar, profissional, social ou outra, não podendo, no entanto, o tempo de execução da pena ultrapassar 30 meses”.
Salvo o devido respeito por diverso entendimento (expresso, no presente processo, pelo Ministério Público), a aplicação "correspondente" do disposto no citado n.º 3 do artigo 58° do Código Penal (por remissão pelo artigo 48°, n.º2) não equivalerá à conversão de cada dia da pena de multa em uma hora (ou dia? - cfr. letra do citado n.º1 do artigo 48°) de trabalho a favor da comunidade, não parecendo dever considerar-se tal correspondência aritmética, mas antes correspondência normativa.
Com efeito, afigura-se que tal equivalência aritmética conflituaria com a necessária unidade do sistema jurídico (cfr. artigo 9°, n.º1, do Código Civil), considerando a correspondência legalmente estabelecida entre a pena de multa e a eventual prisão subsidiária (esta equivalente ao número de dias daquela reduzido a 2/3 artigo 49°, n.º1, do Código Penal), sendo que no presente caso, em que foi aplicada a pena de 200 dias de multa, o eventual incumprimento de tal pena poderia implicar a conversão da mesma em 133 dias de prisão.
E a 133 dias de prisão. de acordo com o critério legal estabelecido no artigo 58°, n.º3, do Código Penal (norma de que resulta que são legalmente equiparáveis punições de um dia de privação da liberdade e de uma hora de prestação de trabalho a favor da comunidade - e não dia de trabalho, como textualmente refere o artigo 48°, n.º1, do Código Penal), corresponderiam 133 horas de prestação de trabalho a favor da comunidade.
A consideração da diversa natureza dogmática da pena (principal) de prisão a substituir por trabalho nos termos do artigo 58° do Código Penal e da prisão subsidiária que hipoteticamente poderia substituir a pena (principal) de multa, não pode fazer esquecer que em qualquer das hipóteses, "(. .. ) na sua execução, quer uma quer outra têm exactamente o mesmo conteúdo material (. .. ).' a privação de liberdade de um cidadão, decorrente de uma sanção derivada de uma condenação criminal, cumprida em estabelecimento prisional durante um determinado período de tempo" (Acórdão da Relação Coimbra de 09.12.2009 - em que se aprecia questão diversa - que pode ler-se em www.dgsi.pt/jtrc com o n.º de processo 126/05.4GTCBR.C1).
Ora - sempre ressalvando o devido respeito por diverso entendimento – não se afigura coadunável com o princípio da unidade do sistema jurídico e a presunção de (além do mais) coerência das soluções legislativas (artigo 9°, n.º1 e n.º3, do Código Civil) aceitar que da remissão pelo artigo 48°, n.03, para o artigo 58°, n.º3, possa resultar a conversão da pena de 200 dias de multa em 200 horas de trabalho.
Com efeito, a 200 dias de multa a lei equipara 133 dias de privação da liberdade e a mesma lei a 133 dias de prisão equipara 133 horas de prestação de trabalho a favor da comunidade.

No sentido ora defendido, pode ler-se em www.dgsi.pt/jtrc o Acórdão da Relação de Coimbra de 19.01.2011, proferido no processo n.º 2249/08.9PTAVR.C1, no qual se considerou:


"Está em causa interpretação do conteúdo do artigo 48°, nº 2 do Código Penal, no segmento do seu nº 2 e preceitua "é correspondentemente aplicável o disposto nos nºs 3 e 4 do artigo 58º”, regulando este preceito a substituição da pena de multa por prestação de trabalho a favor da comunidade a requerimento do arguido. Por seu turno o artigo 58°, nº 3 preceitua que " ... cada dia de prisão fixado na sentença é substituído por uma hora de trabalho".
Será, pois, pertinente transcrever em primeiro lugar o artigo 9° do Código Civil que versa sobre a interpretação da lei:
1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema juridico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições especificas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Como resulta do preceito qualquer esforço interpretativo da lei tem como ponto de partida o seu texto com o significado gramatical das palavras que emprega, o que se designa de elemento literal da interpretação.
A interpretação literal conduz-nos geralmente a um sentido possivel da lei, mas nem sempre garante que esse seja o significado definitivo. Esse há-de ser dado pela conjugação do elemento literal com o elemento lógico que se desdobra nos elementos racional, histórico e sistemático que muitas vezes na análise de interpretação se entrecruzam,
A única reticência legal ao crivo da interpretação lógica é que não pode ser acolhida aquela que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal ainda que imperfeitamente expressa.
A interpretação literal no caso conduz-nos a acolher em primeira linha a tese do recorrente no sentido de que cada dia de multa corresponde a uma hora de trabalho.
Mas será que essa interpretação corresponde e facto à razão de ser do preceito, será que assim o quis o legislador, será que o sistema de normas em que se integra não aparece assim desvirtuado?

Foram estas questões que, afinal, se equacionaram no despacho recorrido.
A lei em princípio deve ser entendida da maneira que melhor corresponda à consecução do resultado que o legislador teve em vista. Se, portanto, o legislador quis atingir certo resultado, quis naturalmente, salvo casos anómalos, o meio que a esse resultado conduz. Mas um preceito legal não é uma ilha isolada enquadra-se num conjunto com princípio, meio e fim. Por isso, especialmente num código, a relacionação do preceito a interpretar com o conjunto é elemento essencial para esclarecer o seu sentido, assim o expressa Inocêncio Gaivão Teles, em Introdução ao Estudo d Direito, Vol. I, 11ª edição, págs. 248 a 250.
A disposição em causa integra-se no capítulo das penas e, entre as penas previstas, avultam as de prisão e multa que evidentemente têm diferente natureza.
Mesmo quando a lei prevê que a pena de multa possa ser convertida em prisão não estabelece a sua equiparação em termos de tempo, estipulando a redução da multa em um terço no artigo 49°, n° 1.

Cabe, pois, perguntar se existe alguma razão sustentável para equiparar em termos de tempo a prisão à muita quando se trata de a substituir por prestação de trabalho a favor da comunidade.
Quando o artigo 48°, nº 2 do Código Penal preceitua que é correspondentemente aplicável o artigo 58°, nº 3 do Código Penal não esclarece a questão porque o artigo 58°, nº 3 apenas preceitua que a cada dia de prisão corresponde um dia de trabalho continuando a não regular directamente a situação.
Existirá alguma razão juridicamente sustentável para que num caso a pena de prisão apenas possa corresponder a dois terços da pena de prisão e noutro possa corresponder à sua totalidade?
Cremos ser manifesto que não existe nenhuma razão para distinguir as situações e trata-se precisamente de um caso em que a interpretação sistemática dita, sem margem para dúvidas, que a expressão "correspondentemente aplicável" deva ser entendida com o subsídio do artigo 49°, n° 1 do Código Penal que expressa a ratio legis no que respeita à correspondência a estabelecer entre a pena de prisão é de multa, no pressuposto de que, sendo a pena de multa de menor gravidade, nunca pode corresponder a igual tempo de prisão, logo igual tempo de multa e prisão não poderão corresponder a igual tempo de prestação de trabalho."

Pelo exposto, decide-se substituir a pena de multa em que A... foi condenado no presente processo por 133 ( cento e trinta e três) horas de trabalho a favor da comunidade, a prestar executando tarefas compatíveis com a sua situação de saúde e com as suas aptidões na Fundação ..., na Gafanha da Nazaré.

Notifique-se Ministério Público e II. Defensor.

Após trânsito do presente despacho, comunique-se, nos termos do artigo 490°, n. °3, do Código de Processo Penal, sendo o arguido com a advertência de que deverá no prazo de dez dias após trânsito desta decisão apresentar-se perante a Equipa do Baixo Vouga da Direcção-Geral de Reinserção Social, devendo esta entidade informá-lo da data exacta em que iniciará a execução das horas de trabalho a favor da comunidade.
24-11-2011”
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3. Da interpretação a dar ao artigo 48º, nº 2 do C.P.

A substituição da pena de multa por prestação de trabalho está pensada para os casos de pequena criminalidade em que foi aplicada tão-somente uma pena de multa, como é o caso.
Face ao que resulta das conclusões do recurso interposto e acima transcritas no caso em apreço se suscita apenas a questão de saber se o artigo 48º, nº 2 do Código Penal quando remete para a correspondente aplicação do artigo 58º, nº 3 deve ser interpretado no sentido de que a cada dia de multa corresponde um dia de trabalho (tese do recorrente) ou, porque o artigo 58º, nº 3 se refere apenas à pena de prisão deve ser considerada a correspondência estabelecida no artigo 49º, nº 1 entre multa e prisão com a prévia redução do tempo a dois terços para cálculo das horas de trabalho.
Na verdade, a discordância prende-se apenas com o número de horas de trabalho a favor da comunidade, aplicados em substituição da pena de multa imposta, pois que o M.P. concorda com a subsituação da pena de multa pela prestação de trabalho.
Vejamos então.
Para regular tal substituição estipula o artigo 48.º do Código Penal que:
“1 - A requerimento do condenado, pode o tribunal ordenar que a pena de multa fixada seja total ou parcialmente substituída por dias de trabalho em estabelecimentos, oficinas ou obras do Estado ou de outras pessoas colectivas de direito público, ou ainda de instituições particulares de solidariedade social, quando concluir que esta forma de cumprimento realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
2 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 58.º e no n.º 1 do artigo 59.º”.
Por sua vez, nos seus n.ºs 3 e 4, estatui o artigo 58º do mesmo C.P.
“3 - Para efeitos do n.º 1, cada dia de prisão fixado na sentença é substituído por uma hora de trabalho, no máximo de 480 horas.
4 – O trabalho a favor da comunidade pode ser prestado aos sábados, domingos e feriados, bem como nos dias úteis, mas neste caso os períodos de trabalho não podem prejudicar a jornada normal de trabalho, nem exceder, por dia, o permitido segundo o regime de horas extraordinárias aplicável”.
A letra do citado artigo 48.º do CP, como ponto de partida da interpretação da norma, aponta decisivamente no sentido de ser a pena de multa, e não a prisão resultante da sua conversão, o ponto referencial determinante do número de dias de trabalho a favor da comunidade.
Por isso a norma refere-se a «pena de multa» e não a pena subsidiária da multa ou a expressão equivalente.
Assim, haverá que partir apenas da pena de prisão ou da pena de multa, sem qualquer conversão, pois que quando a lei diz que é correspondentemente aplicável o disposta no artigo 58º nº 3 n.0 3, quer-se dizer que este último normativo se aplica, mutatis mutandis, isto é, deve aplicar-se apenas a regra da correspondência aí prescrita: no presente caso, o que se pretende é que a correspondência seja uma hora de trabalho para cada dia de multa.
Entendemos que se assim não fosse, bastaria ao legislador ter referido no citado artigo 48º nº 2 que era aplicável o disposto no artigo 58º nº 3, sem utilizar a palavra “correspondentemente”.
Por outras palavras ainda, sabendo o legislador que o artigo 48º está inserido na secção da multa, ao dizer expressamente e sem mais “é correspondentemente aplicável o disposto no artigo 58º nº 3, só pode ter querido dizer que, no caso da substituição da pena de multa pela prestação de trabalho a favor da comunidade, deveria aplicar-se a regra e proporção aí referida, ou seja, uma hora por cada dia (neste caso, dia de multa). (Neste sentido vidé Acs deste Tribunal da Relação de Coimbra de 09-04-2008, Processo: 2546/04.2 PCCBR-A.C1, Relator: BRÍZIDA MARTINS; Ac do TRC de 28-05-2008, Processo: 49/07.2PTCBR-A.C1,Relator: FERNANDO VENTURA e Ac dói TRC de 11-05-2011, Processo: 635/08.3GCAVR-A.C1, Relator: ALBERTO MIRA, todos in www.dgsi.pt e Ac. deste TRC de 26/9/2011, Processo nº 2380/09.3pbavr-A.C1, por nós relatado)
Consequentemente, não pode, deste modo, manter-se o despacho recorrido na parte em que, deferindo o requerimento do arguido A..., ficou decidido substituir a pena de 200 dias de multa, em que este foi condenado, pela prática de um crime de coacção, por 133 horas de trabalho a favor da comunidade, sendo o mesmo alterado.
Em face do exposto, o recurso merece provimento, substituindo-se a decisão recorrida por esta em que se substitui a pena 200 dias de multa, em que o arguido foi condenado, por 200 horas de trabalho a favor da comunidade.
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III – Decisão.

Posto o que precede, acordam os Juízes que compõem esta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, conceder provimento ao recurso interposto pelo, alterando-se a decisão recorrida, revogando-se parcialmente o mesmo, substituem a pena de 200 (duzentos) dias de multa imposta ao arguido A..., por 200 (duzentas) horas de trabalho a favor da comunidade.
No mais mantém-se a decisão recorrida.
Sem tributação.

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(Processado e revisto, pelo relator, o primeiro signatário)

Coimbra, 10/10/2012.