Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2634/09.9TJCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL
REPARAÇÃO DO DANO
Data do Acordão: 12/21/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 4.º JUÍZO CÍVEL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 227.º, N.º 1 DO CC
Sumário: 1. A responsabilidade pré-contratual, apesar de concebida inicialmente para os casos em que, mercê da conduta de um dos contraentes, o negócio veio a ser declarado nulo ou anulável ou de ruptura das negociações, alargou-se aos casos em que se estipulou um negócio válido e eficaz, surgindo, todavia, do processo formativo do contrato danos a reparar. Reporta-se às negociações em si, independentemente do futuro do contrato.

2. Nas negociações para a venda de um veículo automóvel com o conta-quilómetros viciado, deve o vendedor informar este facto, quando dele conhecido. Se o não fizer incorre na obrigação de indemnizar o comprador, que pode, através da regra da responsabilidade pré-contratual, ver-se ressarcido de todos os prejuízos que a conduta do vendedor lhe provocou.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

            A..., Lda., com sede na ..., intentou a presente acção declarativa de condenação, sujeita aos termos do processo sumário, contra B..., residente na ..., pedindo que o réu seja condenado a pagar-lhe a quantia de € 10.000,00, acrescida de juros de mora vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento, à taxa legal de 4%.

Alega para tanto que é uma sociedade comercial que se dedica à compra e venda de veículos automóveis usados e que, no exercício dessa actividade, negociou com o réu a entrega de um veículo automóvel de marca Jeep modelo Grand Cherokee, avaliado em € 12.500,00, contra a retoma de um veículo automóvel de marca Mercedes Benz, para o efeito avaliado em € 22.000,00, tendo as partes chegado a acordo no sentido de a autora vender ao réu o Jeep e retomar em troca o Mercedes, entregando ainda ao réu a quantia de € 9.500,00.

Concluído o negócio, e pagos os € 9.500,00 ao réu, a autora vendeu de seguida o veículo Mercedes à C..., pelo preço de € 25.000,00.

Invoca que para a avaliação do Mercedes em € 22.000,00 foi determinante o facto de este ostentar a quilometragem de120.000 quilómetros, tendo-se o réu, ciente da importância daquele facto, comprometido a entregar à autora o livro de revisões do veículo, que dizia existir a atestar o número de quilómetros apresentado pelo mesmo.

Mais alega que o réu sabia contudo que veículo em causa tinha o conta-quilómetros falsificado e percorrera na realidade um número de quilómetros muito superior ao ostentado, razão pela qual lhe não entregou o livro de revisões, apesar de muitas vezes interpelado para o efeito.

Perante esta recusa, os representantes da autora e da C... começaram a desconfiar da falsificação, tendo-se a C... apressado a vender o veículo, através de uma leiloeira, pelo valor de € 22.100,00, e entretanto apurado que o veículo teria na altura da venda cerca de 320.000 quilómetros. Como a leiloeira também se apercebeu da viciação do conta-quilómetros, devolveu o veículo à C... e solicitou-lhe a restituição do preço, o que esta fez, apenas tendo vindo a conseguir vender o Mercedes com a indicação de que o veículo tinha um número de quilómetros superior ao registado e pelo preço de € 17.486,00, já deduzidas do valor das taxas, comissões e IVA cobrados pela leiloeira. Por esse motivo, a C... pediu ao autor o pagamento da quantia de € 10.000,00, correspondente à diferença entre os € 25.000,00 pelos quais o adquiriu e o preço conseguido com a venda, abatidas as despesas com leilões, reparações da caixa de velocidades do veículo e encargos de conta caucionada, quantia que a autora pagou, até porque a C... era uma antiga e importante cliente.

Conclui que foi obrigada a suportar esta indemnização de € 10.000,00 mercê do engano que o réu provocou acerca do número de quilómetros do veículo, sendo por isso o réu responsável, nos termos do art. 227.º do Código Civil, pela reparação dos correspondentes prejuízos.

*

O réu contestou arguindo a excepção da ilegitimidade passiva, alegando para tanto que quando comprou o veículo Mercedes já este ostentava praticamente a quilometragem com o que o vendeu à autora, não tendo por isso qualquer responsabilidade em relação aos factos alegados pela autora.

Impugnou parcialmente a matéria de facto alegada pela autora, invocando ainda que apenas entregou o Mercedes à retoma porque a sua mulher se não adaptava à condução do mesmo, motivo porque, depois da retoma do Mercedes, e além do Jeep, comprou um Smart para aquela, e que nunca se comprometeu a entregar à autora o livro de revisões.

Conclui pela sua absolvição da instância ou, se assim se não entender, pela sua absolvição do pedido.

*

A autora apresentou articulado de resposta no qual defendeu a legitimidade passiva do réu.

             

No prosseguimento dos autos, foi dispensada a realização de audiência preliminar em consequência do que foi proferido despacho saneador, no qual se julgou improcedente a alegada excepção de ilegitimidade passiva e se seleccionou a matéria de facto assente e controvertida, de que não houve reclamação.

 Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, com recurso à gravação da prova nela produzida, finda a qual foi proferida decisão sobre a matéria de facto considerada como provada e não provada, com indicação da respectiva fundamentação, tal como consta de fl.s 103 a 108, sem que lhe tenha sido formulada qualquer reclamação.

No seguimento do que foi proferida a sentença de fl.s 109 a 119, na qual se decidiu o seguinte:

“Pelo exposto, julgo a presente acção parcialmente procedente, por provada e, consequentemente, condeno o réu a pagar à autora a quantia de € 7.000,00 (sete mil euros), acrescida de juros vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento, à taxa legal, actualmente de 4%, absolvendo o réu do remanescente do pedido.

Condeno a autora e o réu no pagamento das custas da acção, na proporção do decaimento (art. 446.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

Valor da acção: € 10.000,00 (art. 306.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

Registe e notifique.”.

            Inconformado com a mesma, interpôs recurso o réu, recurso, esse, admitido como de apelação, com subida nos próprios autos, de imediato e com efeito devolutivo (cf. despacho de fl.s 151), concluindo as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

1.

Através do presente recurso, o recorrente, pretende colocar em crise a questão da sua condenação parcial no pagamento da quantia de € 7.000,00 (sete mil euros) à recorrida pois, a decisão deveria ter sido no sentido da absolvição total do aqui recorrente.

2.

Existiu uma errada apreciação da prova produzida em audiência de discussão julgamento, bem como, uma errada interpretação dos requisitos atinentes à responsabilidade pré-contratual (culpa in contrahendo), interpretação essa em clara contradição com os factos dados como provados e até com a própria motivação da sentença, que levou à procedência parcial da acção contra o recorrente.

3.

Foram considerados provados os factos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 12, 20, 28 e 29 constantes da decisão recorrida.

4.

Discorda o réu da sentença proferida, no sentido de que deva ser responsabilizado no âmbito da responsabilidade pré-contratual, previsto no art. 227º do Código Civil.

5.

Na verdade, o recorrente discorda, nomeadamente e entre outras, da parte do conteúdo da Sentença proferida no processo acima referido, que se refere que: “ Descendo ao caso em apreciação, observamos que o réu violou claramente os deveres de informação que sobre ele impendiam na fase negociatória, uma vez que, apesar de suspeitar que o veículo tinha o conta-quilómetros falsificado, omitiu este informação à autora. E não apenas omitiu este esclarecimento, como ainda adoptou uma conduta claramente destinada a induzir e manter a autora em erro sobre um elemento essencial para a formação da sua vontade, pois comprometeu-se a entregar à autora o livro de revisões do veículo, e assim comprovar o número de quilómetros ostentado pelo mesmo, e nunca veio a cumprir com este compromisso.” E que “Ao violar as regras da boa fé que deveriam pautar o seu comportamento, o réu praticou um facto ilícito, que se presume culposo nos termos do art. 799º do código Civil, do qual resultaram danos, na medida em que, por ter adquirido o veículo com o conta-quilómetros viciado, a autora se viu obrigada a pagar a um seu fornecedor a quantia de € 10.000,00, constituindo-se por isso o réu no correspondente dever de indemnizar.”

6.

O recorrente, na data da venda do veículo de marca Mercedes, informou das características do veículo, nomeadamente o seu estado e ano de fabrico, tendo a Autora verificado a quilometragem que o veículo apresentava e tendo experimentado o veículo, sabendo que o mesmo era importado, conforme testemunhos do seu funcionário e do representante da C... (empresa à qual o veículo foi facturado), ou seja, conforme se pode aferir pelo depoimento das testemunhas D... (representante da C...), (depoimento gravado em CD de 02-03-2010, com Início Gravação aos 00:00:00, pelas 9:58:39 e Fim Gravação aos 01:21:35, pelas 11:20:16), E... (funcionário da autora), (depoimento gravado em CD de 02-03-2010, com Início Gravação aos 00:00:00, pelas 11:20:48 e Fim Gravação aos 00:19:56, pelas 11:40:44) e F... , (depoimento gravado em CD de 02-03-2010, com Início Gravação aos 00:00:00, pelas 12:12:31 e Fim Gravação aos 00:23:55, pelas 12:36:27).

7.

Quando o R. comprou veículo Mercedes já este ostentava praticamente a quilometragem com que o vendeu e não lhe foi dado o livro de revisões, informações essas, que foram reconhecidas em sede de audiência de discussão e julgamento, no depoimento de G..., comerciante que importou o veículo Mercedes e o vendeu ao recorrente e esta testemunha referiu que o recorrente o interpelou, via telefone e em data posterior à transacção, a informar que tinha vendido o veículo a um Stand e que, estes o confrontaram, surpreendentemente, com o facto de que o veículo teria o conta-quilómetros falsificado, ou seja, pelo depoimento desta testemunha se pode, facilmente, verificar que caso o recorrente estivesse de má fé contratual, não teria ficado tão surpreso e não teria indagado e interpelado o transmitente inicial, com vista a certificar-se da quilometragem do veículo. (depoimento gravado em CD de 17-03-2010, com Início Gravação aos 00:00:00, pelas 14:23:18 e Fim Gravação aos 00:23:43, pelas 14:47:04 e novamente com Início Gravação aos 00:00:00, pelas 14:47:05 e Fim Gravação aos 00:12:41, pelas 14:59:49).

8.

Portanto, o aqui recorrente, procedeu segundo as regras da boa fé, tanto nos preliminares como na formação do contrato, na medida em que deu a conhecer à recorrida todas as informações referentes ao veículo, não tendo agido com dolo.

9.

Aliás, “a responsabilidade pré-contratual pressupõe uma conduta eticamente censurável, e de forma acentuada, em termos idênticos aos do abuso do direito.” (Ac. deste STJ, de 9.2.1999, in CJSTJ, 1999, I, 84).

10.

Os autos mostram que, no que diz respeito à matéria dada como provada e levada ao quesito 22º, se entendeu demonstrado que o réu suspeitava (mas não sabia, conforme constava de tal quesito), que o veículo tinha percorrido um número de quilómetros muito superior a 200.000 e que, por isso tinha o conta-quilómetros falsificado.

11.

Contudo, o recorrente não suspeitava desses factos, pois caso assim fosse, não o teria adquirido à testemunha G..., que lhe vendeu o veículo com 118.391 quilómetros (nem mesmo o teria interpelado, mais tarde, sobre tal situação), como se verifica com o depoimento da testemunha H... , técnico de inspecções, que fez a inspecção para atribuição de nova matrícula ao veículo, depois de entrar em território nacional e que referiu que o mesmo estava em muito bom estado, tendo adiantado que os veículos Mercedes são, conforme reconhecido publicamente, de enorme fiabilidade e robustez, sendo máquinas que fazem milhares e milhares de quilómetros, sem demonstrar “cansaço” (depoimento gravado em CD de 02-03-2010, com Início Gravação aos 00:00:00, pelas 11:50:38 e Fim Gravação aos 00:16:03, pelas 12:06:44 e novamente com Início Gravação aos 00:00:00, pelas 12:06:45 e Fim Gravação aos 00:04:56, pelas 12:11:42).

12.

Nunca o recorrente sequer, prometeu à A. que lhe haveria de fornecer o livro de revisões, dado que, nunca tal foi questionado quer pela A., quer pela C..., durante o negócio e não podemos esquecer que o veículo foi dado como parcial retoma de outro.

13.

A esse respeito, atente-se no depoimento da testemunha F..., (depoimento gravado em CD de 02-03-2010, com Início Gravação aos 00:00:00, pelas 12:12:31 e Fim Gravação aos 00:23:55, pelas 12:36:27), a qual acompanhou todo o negócio ao lado do seu marido, ora recorrente.

14.

Esta última testemunha apresentou, claramente e de forma credível e isenta, os motivos para a troca da viatura Mercedes, referindo que já tinham tido antes uma Mercedes, mas esta não tinha sensores de estacionamento e então trocaram por aquela viatura, mas depois verificou que mesmo assim o veículo era demasiado grande para circular nas vias que a levavam ao local onde estudava, razão pela qual, ela e o recorrente decidiram comprar um jipe para ele (dado que, entretanto, este tinha ficado sem o carro da firma) e, posteriormente, um Smart para ela, ou seja, um carro mais pequeno.

15.

Porque não foi valorado o depoimento da testemunha e qual a testemunha mais isenta?

16.

Na realidade, se esta testemunha é mulher do recorrente, convém não esquecer que o representante da C... foi interveniente mais que interessado no negócio, sendo certo que, foi ele mesmo que fez o negócio, conforme reconheceu, dado que, o jipe a si pertencia, não se podendo esquecer da testemunha que é funcionário da Autora.

17.

O ora recorrente, não forçou, nem convenceu a recorrida a comprar o referido veículo com base na quilometragem que constava do respectivo conta-quilómetros, e tal se encontra demonstrado ou provado, sendo certo que, tal prova incumbia à autora, aliás, em termos de curiosidade sempre se referirá que será, no mínimo, curioso e difícil de acreditar que o réu, pessoa não ligada ao ramo automóvel, pudesse ter enganado comerciantes experientes de tal área, como o são a Autora (através do seu funcionário) e o representante legal da C... (o qual fornecia viaturas automóveis para a Autora).

18.

Não existiu prova cabal que permita considerar-se que o recorrente suspeitava de que o veículo teria mais de 200.000 quilómetros e que o conta-quilómetros estaria falsificado (ponto 29 dos factos provados), bem como, também não se provou que o veículo teria percorrido cerca de 320.000 quilómetros até à efectivação do negócio, já que tal facto apenas assenta em “suspeitas” da testemunha representante da C..., sem qualquer suporte documental ou pericial (ponto 28 dos factos provados).

19.

Não se provaram as alegadas despesas havidas com o veículo, em virtude de não ter existido qualquer tipo de prova cabal em audiência (ponto 25 dos factos provados).

20.

Os contornos do alegado negócio entre a Autora e a C... não foram também devidamente esclarecidos, sendo certo que, se deu erroneamente como provada a matéria do ponto 27 dos factos provados, quando a testemunha representante da C... havia referido que “não tinha existido dinheiro no negócio, mas tão só facturação”, aliás, conforme dado como provado no ponto 12.

21.

Sem prescindir, mesmo que existisse uma suspeita, por parte do Réu, de que a quilometragem seria superior à do conta-quilómetros, sempre se dirá que o mesmo não era obrigado a informar tal suspeita, caindo nós no âmbito do denominado dolo “bonus”, conforme supra melhor explanado.

22.

Como se pode, pois concluir, como concluiu o Tribunal “a quo”, que o Réu sabia (com total certeza) que estava a ferir dolosamente, a essencialidade para a autora de uma das qualidades do veículo, a saber, a respectiva quilometragem?

23.

Era à recorrida, na qualidade de "deceptus" que incumbia provar que o declaratário (o Réu/recorrente) estaria a ignorar dolosamente e maldosamente a essencialidade do elemento sobre que incidiu o erro – arts 251°, 247° e 342º, nº 1, do CC.

24.

Só há dolo relevante, quando o declarante haja caído em erro por efeito da conduta artificiosa de outrem; como diz a lei (art. 254°,nº1 do Código Civil), isto é quando a vontade do declarante “tenha sido determinada por dolo”; o motivo a que o erro reporta há-de ser causal, isto é, determinante do negócio nos termos gerais do regime do erro), mas o dolo aqui exigido terá que ser um dolo “malus”, mas nunca um dolo “bonus”, pois este não é sequer suficiente para uma eventual condenação.

25.

Falece pois no caso "sub judice" a chamada "dupla causalidade", pois não se prova que a alteração de quilometragem tivesse sido pré-ordenada para influenciar a vontade em concreto da Autora, nem que a vontade da compradora haja sido determinada pela sugestão ou artifício fraudulento do vendedor, pelo que, se encontra completamente afastada, a hipótese de existir o chamado "dolo comissivo".

26.

Mas, assim não se entendendo, e sem prescindir, a aceitar a existência de dolo na formação do contrato, nunca se poderá afirmar que se trata de um “ dolus malus”, mas antes de um “dolus bonus”, uma vez que, o aqui recorrente, mesmo que suspeitasse da falsificação do conta-quilómetros (o que não é verdade), não tinha fundamentos técnicos plausíveis que o fizessem acreditar que a sua suspeição era fundada.

27.

Nesse sentido, o recorrente, não se pode presumir culposo, nos termos do disposto do art. 799º do Código Civil com base numa mera suspeição.

28.

Face, pois, à matéria de facto dada como assente, versus o conteúdo do pedido e o ónus da alegação, afirmação ou dedução, e outrossim do ónus da prova, jamais poderia a acção ser julgada, sequer parcialmente, como procedente.

29.

A douta sentença recorrida violou, a nosso ver, e entre outros os artigos 227º, 247º, 252º, 253º, n.2, e 342º, nº 1 todos do Código Civil do CC.

NESTES TERMOS, dando-se provimento ao recurso, revogando-se a douta sentença recorrida nos termos supra expostos e substituindo-a por outra que absolva o recorrente do pedido, V. Exas. farão, como sempre,INTEIRA JUSTIÇA!

Contra-alegando, a autora, pugna pela manutenção da decisão recorrida, com o fundamento em que a matéria de facto foi bem apreciada e da mesma não resultam os efeitos jurídicos visados pelo autor, o que acarreta a improcedência do recurso.

A recorrida alegou, ainda, que o recurso interposto pelo réu deve ser rejeitado por extemporâneo ou, assim não se entendendo, porque não deu cumprimento ao disposto no artigo 685.º - B, do CPC.

Em sede de questão prévia, cumpre analisar tais questões.

Sem razão o faz a recorrente.

Isto porque o recurso abrange a matéria de facto, pelo que dispunha o recorrente do prazo de 40 dias, para o interpor – cf. artigo 685.º, n.os 1 e 7, CPC.

Como o mesmo foi interposto no 40.º dia contado da notificação da sentença, tem-se o mesmo por tempestivo como, de resto, já se refere no despacho de fl.s 151.

Também no que concerne à falta de cumprimento do disposto no artigo 685-B, não assiste razão à recorrida, uma vez que o recorrente se refere a partes dos respectivos depoimentos para justificar a sua discordância com as respostas dadas aos quesitos em causa.

            Colhidos os vistos legais, há que decidir.        

            Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 684, n.º 3 e 690, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, são as seguintes as questões a decidir:

            A. Incorrecta análise e apreciação da prova – reapreciação da prova gravada, relativamente aos quesitos 4.º e 20.º a 22.º da base instrutória e;

B. Se em consequência disso deve improceder a acção, por inexistir qualquer comportamento fraudulento por parte do ora recorrente, tanto nas negociações como na conclusão do ajuizado negócio.

            É a seguinte a matéria de facto dada por provada na decisão recorrida:

1) A autora é uma sociedade comercial que se dedica à compra e venda de veículos automóveis usados (alínea A) dos factos assentes).

2) No dia 28.11.2007 o réu contactou a autora a fim de lhe adquirir um veículo de marca Jeep, modelo Grand Cherokee, de matrícula ...OM (alínea B) dos factos assentes).

3) A autora acordou com o réu ceder-lhe o veículo pelo preço de € 12.500,00 (alínea C) dos factos assentes).

4) E que este preço seria pago com a entrega de um veículo, de que o réu era dono, de marca Mercedes-Benz, matrícula ...68, chassis ..., importado de França poucos meses antes, à qual a autora atribuiu o valor de € 22.000,00 (alínea D) dos factos assentes).

5) A atribuição deste valor teve em consideração que a data da 1ª matrícula do veículo de marca Mercedes-Benz era 5.07.2002 e que o seu estado de conservação era bom (alínea E) dos factos assentes).

6) O veículo apresentava na altura, no respectivo conta-quilómetros, cerca de 120.000 quilómetros (alínea F) dos factos assentes).

7) A autora entregou ao réu a quantia de € 9.500,00, correspondente à diferença entre o preço do Jeep e a avaliação do Mercedes (alínea G) dos factos assentes).

8) Na avaliação do veículo de marca Mercedes, a autora teve sobretudo em consideração o facto de o veículo apresentar 120.000 quilómetros (resposta ao quesito 1º).

9) Se o número de quilómetros fosse superior a autora não teria pago aquele valor pelo veículo (resposta ao quesito 2º).

10) Facto de que o réu estava ciente (resposta ao quesito 3º).

11) O réu comprometeu-se a entregar à autora o livro de revisões do veículo, que dizia existir, e comprovar assim o número de quilómetros ostentado pelo mesmo (resposta ao quesito 4º).

12) No início de 2008 a autora facturou o veículo Mercedes a C..., Lda. pelo valor de € 25.000,00 (resposta ao quesito 5º).

13) A autora interpelou diversas vezes o réu, até por pressão da C..., para lhe entregar o livro das revisões (resposta ao quesito 6º).

14) Passado algum tempo, o réu disse à autora que não tinha livro nenhum e, como tal, não valia a pena pedir o livro, que não mais o incomodassem com isso (resposta ao quesito 7º).

15) Este comportamento gerou na autora e no representante da C..., Lda. a convicção que o veículo teria quilometragem superior a 120.000 quilómetros, pelo que encetaram diligências para apurar a verdadeira quilometragem do veículo (resposta ao quesito 8º).

16) O representante da C... deu então instruções à autora para que procedesse à venda do veículo pelos mesmos € 25.000,00 (resposta ao quesito 9º).

17) O que a autora recusou, atentas as suspeitas existentes (resposta ao quesito 10º).

18) Em 25.03.2008 a C..., Lda. encarregou a Leiloeira I... de proceder à venda do veículo (resposta ao quesito 11º).

19) Vindo esta leiloeira a vender o veículo por € 22.100,00 (resposta ao quesito 12º).

20) Na sequência das diligências que encetara, a autora recebeu entretanto uma informação dos representantes da Mercedes, datada de 26.03.2008, segundo a qual o veículo teria 226.875 quilómetros em 25.09.2006 (resposta ao quesito 13º).

21) Em 27.03.2008 a I... – Leiloeira informou o legal representante da C..., Lda. Que o veículo Mercedes tinha sido devolvido pelo comprador, por este ter tido conhecimento junto da Mercedes da viciação do conta-quilómetros (resposta ao quesito 14º).

22) Por esse motivo, o legal representante da C... recebeu novamente o veículo (resposta ao quesito 15º).

23) Em Agosto de 2008, o representante da C... conseguiu vender o veículo, com a indicação de que o veículo tinha um número de quilómetros superior àquele que apresentava registado, pelo valor de € 17.468,00 (resposta ao quesito 16º).

24) Seguidamente, solicitou à autora que esta lhe pagasse € 10.000,00 (resposta ao quesito 17º).

25) Este valor correspondia à diferença entre o valor pelo qual o veículo fora facturado à C... e aquele pelo qual o vendeu, deduzidas as despesas efectuadas com o veículo, sendo € 500,00 com despesas de leilões e transporte do veículo, € 1.000,00 com a reparação da caixa de velocidades do veículo e € 1000,00 pela imobilização do capital (resposta ao quesito 18º).

26) A C..., que era uma antiga e importante fornecedora da autora, ameaçava deixar de contratar com a requerente e publicitar este negócio (resposta ao quesito 19º).

27) Pelo que a autora pagou à C... o valor que aquela solicitou, de € 10.000,00 (resposta ao quesito 20º).

28) Na altura do negócio, o veículo tinha cerca de 320.000 quilómetros (resposta ao quesito 21º).

29) O réu suspeitava que o veículo teria então percorrido um número de quilómetros muito superior a 200.000 e que, por isso, tinha o conta-quilómetros falsificado (resposta ao quesito 22º).


A. Incorrecta análise e apreciação da prova – reapreciação da prova gravada – relativamente aos quesitos 4.º e 20.º a 22.º da base instrutória.

            Alega o recorrente que os depoimentos prestados pelas testemunhas D...; E...; F...; G... e H..., impõem que a tais quesitos seja dada a resposta de “Não Provado”.

            Por seu turno, a recorrida, defende que se devem manter as respostas que lhes foram dadas em 1.ª instância.

            Posto isto, e em tese geral, convém, desde já, deixar algumas notas acerca da produção da prova e definir os contornos em que a mesma deve ser apreciada em 2.ª instância.

Toda e qualquer decisão judicial em matéria de facto, como operação de reconstituição de factos ou acontecimento delituoso imputado a uma pessoa ou entidade, esta através dos seus representantes, dependente está da prova que em audiência pública, sob os princípios da investigação oficiosa (nos limites e termos em que esta é permitida ao julgador) e da verdade material, se processa e produz, bem como do juízo apreciativo que sobre a mesma recai por parte do julgador, nos moldes definidos nos artigos 653, n.º 2 e 655, n.º 1, CPC – as já supra mencionadas regras da experiência e o princípio da livre convicção.

Submetidas ao crivo do contraditório, as provas são pois elemento determinante da decisão de facto.

Ora, o valor da prova, isto é, a sua relevância enquanto elemento reconstituinte dos factos em apreço, depende fundamentalmente da sua credibilidade, ou seja, da sua idoneidade e autenticidade.

Por outro lado, certo é que o juízo de credibilidade da prova por declarações, depende essencialmente do carácter e probidade moral de quem as presta, sendo que tais atributos e qualidades, como regra, não são apreensíveis mediante o exame e análise das peças ou textos processuais onde as mesmas se encontram documentadas, mas sim através do contacto directo com as pessoas, razão pela qual o tribunal de recurso, salvo casos de excepção, deve adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido.

Quanto à apreciação da prova, actividade que se processa segundo as regras da experiência comum e o princípio da livre convicção, certo é que em matéria de prova testemunhal (em sentido amplo) quer directa quer indirecta, tendo em vista a carga subjectiva inerente, a mesma não dispensa um tratamento a nível cognitivo por parte do julgador, mediante operações de cotejo com os restantes meios de prova, sendo que a mesma, tal como a prova indiciária de qualquer outra natureza, pode e deve ser objecto de formulação de deduções e induções, as quais partindo da inteligência, hão-de basear-se na correcção de raciocínio, mediante a utilização das regras de experiência e conhecimentos científicos, tudo se englobando na expressão legal “regras de experiência”.

Estando em discussão a matéria de facto nas duas instâncias, nada impede que o tribunal superior, fundado no mesmo princípio da livre apreciação da prova, conclua de forma diversa do tribunal recorrido, mas para o fazer terá de ter bases sólidas e objectivas.

Não se pode olvidar que existe uma incomensurável diferença entre a apreciação da prova em primeira instância e a efectuada em tribunal de recurso, ainda que com base nas transcrições dos depoimentos prestados, a qual, como é óbvio, decorre de que só quem o observa se pode aperceber da forma como o testemunho é produzido, cuja sensibilidade se fundamenta no conhecimento das reacções humanas e observação directa dos comportamentos objectivados no momento em que tal depoimento é prestado, o que tudo só se logra obter através do princípio da imediação considerado este como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes de modo a que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da decisão.

As consequências concretas da aceitação de tal princípio definem o núcleo essencial do acto de julgar em que emerge o senso; a maturidade e a própria cultura daquele sobre quem recai tal responsabilidade. Estamos em crer que quando a opção do julgador se centre em elementos directamente interligados com o princípio da imediação (v. g. quando o julgador refere não foram (ou foram) convincentes num determinado sentido) o tribunal de recurso, como regra, não tem possibilidades de sindicar a aplicação concreta de tal princípio.

Na verdade, o depoimento oral de uma testemunha é formado por um complexo de situações e factos em que sobressai o seu porte, reacções imediatas, o contexto em que é prestado o depoimento e o ambiente gerado em torno de quem o presta, não sendo, ainda, despiciendo, o próprio modo como é feito o interrogatório e surge a resposta, tudo isso contribuindo para a convicção do julgador.

A comunicação vai muito para além das palavras e mesmo estas devem ser valoradas no contexto da mensagem em que se inserem, pois como informa Lair Ribeiro, as pesquisas neurolinguísticas numa situação de comunicação apenas 7% da capacidade de influência é exercida através da palavra sendo que o tom de voz e a fisiologia, que é a postura corporal dos interlocutores, representam, respectivamente, 38% e 55% desse poder - “Comunicação Global, Lisboa, 1998, pág. 14.

Já Enriço Altavilla, in Psicologia Judiciária, vol. II, Coimbra, 3.ª edição, pág. 12, refere que “o interrogatório como qualquer testemunho, está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá também aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras”.

Então, perguntar-se-á, qual o papel do tribunal de recurso no controle da prova testemunhal produzida em audiência de julgamento?

Este tribunal poderá sempre controlar a convicção do julgador na primeira instância quando se mostre ser contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos. Para além disso, admitido que é o duplo grau de jurisdição em termos de matéria de facto, o tribunal de recurso poderá sempre sindicar a formação da convicção do juiz ou seja o processo lógico. Porém, o tribunal de recurso encontra-se impedido de controlar tal processo lógico no segmento em que a prova produzida na primeira instância escapa ao seu controle porquanto foi relevante o funcionamento do princípio da imediação.

Tendo por base tais asserções, dado que se procedeu à gravação da prova produzida, passemos, então, à reapreciação da matéria de facto em causa, a fim de averiguar se a mesma é de manter ou de alterar, em conformidade com o disposto no artigo 712, n.º 1, al. a), do CPC.

Vejamos, então, tendo em atenção o que ora se deixou dito se as respostas postas em causa pelos ora recorrentes, nas respectivas alegações de recurso, são ou não de manter.

Alteração das respostas que foram dadas aos quesitos 4.º e 20.º a 22.º da base instrutória.

            Como acima já referido, pretende o ora recorrente que a todos estes quesitos seja dada resposta negativa.

           

Para melhor esclarecimento e facilitar a decisão desta questão, passa-se a transcrever o teor de tais quesitos:

“4.º:

O réu comprometeu-se a entregar à autora o livro de revisões do veículo, que dizia existir, e comprovar assim o número de quilómetros ostentado pelo mesmo?

20.º

Pelo que a autora pagou à C... o valor que aquela solicitou, de 10.000,00 € (este quesito deriva do 19.º, onde se questionava se a C... era uma antiga e importante cliente da autora e que ameaçava deixar de o ser por causa deste negócio e que veio a merecer resposta positiva)

21.º

Na altura do negócio, o veículo tinha cerca de 320.000 quilómetros?

22.º

O réu sabia que o veículo tinha então percorrido um número de quilómetros muito superior a 200.000 e que, por isso, tinha o conta-quilómetros falsificado?

Como consta de fl.s 103 e 104, a M.ma Juiz, deu-lhes as seguintes respostas:

Quesitos 4.º, 20.º e 21.º: Provado.

Quesito 22.º: Provado que o Réu suspeitava que o veículo teria então percorrido um número muito superior a 200.000 quilómetros e, por isso, tinha o conta-quilómetros falsificado.

Motivou tais respostas da seguinte forma (cf. fl.s 104 a 108):

“A convicção do tribunal assentou essencialmente no depoimento da testemunha D..., pessoa que, na qualidade de sócio-gerente da C..., Lda., participou no negócio em discussão, do qual teve por isso conhecimento directo, e que, apesar da sua relação com o negócio, apresentou um depoimento isento, credível e convincente.

A testemunha esclareceu, nomeadamente, que o Jeep que a autora transmitiu ao réu, à troca com o automóvel de marca Mercedes, pertencia à C..., e que acordou com a autora só receber o valor do Jeep quando esta vendesse o Mercedes; confirmou que um dos elementos mais importantes na avaliação de um veículo usado é, a par do aspecto geral, a respectiva quilometragem; mais esclareceu que o Jeep beneficiou de um desconto especial em virtude de ter sido vendido, por iniciativa do réu, que aparentava perceber de mecânica, sem garantia; declarou ter perguntado ao réu se o carro tinha livro de revisões, e que o mesmo lhe garantiu que sim, tendo-se comprometido a apresentá-lo, e que, apesar de o gerente da autora lho ter solicitado diversas vezes, até por pressão sua, e algumas das vezes em conversas telefónicas mantidas na sua presença, o réu nunca apresentou o dito livro; começando a suspeitar que o veículo teria mais quilómetros do que os ostentados no conta-quilómetros, o gerente da autora solicitou então informação à Mercedes e facturou o veículo (não o vendeu) à C... por € 25.000,00; confirmou também ter instado a autora a vender o veículo, já que não pretendia pagar-lhe o valor facturado, e que o seu gerente se recusou a pôr o veículo à venda nas respectivas instalações, atentas as suspeitas de adulteração do respectivo conta-quilómetros, tendo optado então por vender o carro em leilão; mais referiu que, concretizada a venda em leilão por € 22.000,00, veio o veículo a ser devolvido no dia seguinte pelo seu comprador, que entretanto apurara junto da Mercedes que o veículo teria seguramente quilometragem superior à ostentada; adiantou que só ao fim de alguns meses conseguiram vender o veículo, com a advertência de que o mesmo tinha quilometragem superior, pelo preço de € 17.000,00, e que solicitou então à autora € 10.000,00 porque, com o negócio final, acabou por receber apenas € 15.000,00, quando a autora lhe tinha facturado o valor de € 25.000,00, imputando a diferença nas despesas acrescidas que a situação lhe causou; mais confirmou que pressionou a autora a pagar-lhe aquele valor ameaçando deixar de negociar com ela.

A testemunha explicou ainda, de forma coerente, a razão pela qual estima que a quilometragem real do veículo seria de cerca de 320.000,00 quilómetros, baseando-se tal cálculo no facto de o carro, segundo a informação da Mercedes, ostentar à data da última revisão realizada em França 220.000,00 quilómetros, de ter decorrido desde essa data um ano e três meses e de o carro ter até então feito uma média de 100.000 quilómetros por ano.

Foi também relevante para a formação da convicção do tribunal o depoimento da testemunha E..., vendedor da autora que atendeu o réu quando ele ali se dirigiu com a intenção de adquirir o Jeep; observou na altura o Mercedes que este pretendia dar à retoma, tendo visto o conta-quilómetros e solicitado ao réu o livro de revisões, que este disse possuir e se prontificou a apresentar; declarou ainda que solicitou ao réu, por indicação da gerência da autora, e por contacto telefónico, a apresentação do livro de revisões mais duas ou três vezes; mais confirmou que a avaliação do veículo foi determinada pela quilometragem ostentada pelo mesmo.

Atendeu-se ainda ao depoimento da testemunha H..., técnico do centro de inspecções que fez a inspecção para atribuição de nova matrícula a que o veículo Mercedes foi sujeito, depois de entrar em território nacional, e que confirmou que o veículo ostentava na ocasião 118.391 quilómetros,

Foi, por fim, valorado o depoimento de G..., comerciante que importou o Mercedes e o vendeu ao réu; com interesse para a decisão de causa, declarou que quando foi buscar o veículo a França o mesmo ostentava a quilometragem com que foi sujeito à inspecção; mais referiu que fez um desconto mo Mercedes porque o réu prescindiu da garantia.

Menor relevo mereceu o depoimento da testemunha F..., esposa do réu, e que o acompanhou ao stand da autora na ocasião em que foi concretizado o negócio.

Esta testemunha referiu, no essencial, que o casal decidiu trocar o Mercedes pelo Jeep porque a depoente não se conseguia habituar a manobrar um veículo com as dimensões do Mercedes, e que com o negócio conseguiu comprar um Smart; declarou que não lhes pediram na altura, ou posteriormente, o livro de revisões, e que não tinham qualquer conhecimento da adulteração do conta-quilómetros, facto de que apenas vieram a saber através do representante da autora, que lhes telefonou a dar conta da situação; mais referiu que o seu marido não tem conhecimentos especiais sobre veículos ou sobre mecânica, e que por isso não terá prescindo.

Ora, apesar de a justificação para a apressada troca do Mercedes, que esteve em poder do réu e da testemunha apenas cerca de um mês, ter alguma plausibilidade, não pode deixar de se estranhar a pressa que tiveram em desfazer-se do veículo, tanto mais que antes daquele Mercedes já tinham tido um outro veículo da mesma marca e dimensões, que foi dado à retoma quando compraram o veículo ...; por outro, e mais decisivo, as declarações da testemunha, no que respeita à solicitação do livro de revisões, foram infirmadas por depoimentos mais isentos e convincentes, até porque provindos de pessoas menos interessadas na decisão da causa.

Concretizando, dir-se-á que a resposta aos quesitos 1) a 7) se baseou nos depoimentos das testemunhas D... e E..., bem como na factura junta como documento n.º 5 da petição inicial (factura emitida em nome da C..., no valor de € 25.000,00), havendo a salientar que a importância da quilometragem na avaliação de um veículo usado é facto que decorre das regras da experiência comum; a resposta aos quesitos 8) a 21) estribou-se no depoimento da testemunha D..., conjugado com os documentos n.ºs 6, 7, 8, 9 e 10 da petição inicial (ficha da leiloeira que vendeu o veículo, comunicação do resultado do leilão e respectivos custos, comunicação da Mercedes, histórico do veículo, e factura emitida em nome da C..., no valor de € 10.000,00); por fim, relativamente à resposta ao quesito 21), refere-se que se não pôde concluir que o réu sabia da adulteração do conta-quilómetros porque esta terá sido feita antes de o réu o ter adquirido, e mais concretamente antes da importação do veículo; no entanto, sabendo-se que o réu é pessoa que demonstra algum conhecimento e à vontade neste tipo de negócios (atente-se que prescindiu da garantia quer quanto ao Mercedes em discussão quer quanto ao Jeep), e atento o comportamento que assumiu relativamente ao livro de revisões, concluiu-se suficientemente demonstrado que pelo menos suspeitava de tal adulteração, pois de outro modo não teria enganado a autora quanto à suposta existência do livro de revisões, ou não teria protelado a sua apresentação, e provavelmente nem sequer se teria apressado a desfazer-se do Mercedes.”.

Vejamos, então, se dos depoimentos das testemunhas invocadas pelo recorrente (sem prejuízo de se considerar toda a prova produzida) e sem olvidar as considerações prévias, quanto a tal, já acima explanadas, existem motivos para que a supra mencionada factualidade seja modificada ou alterada.

Posto isto, vejamos, o que cada uma das testemunhas afirmou quanto à matéria em causa.

A testemunha D..., sócio-gerente da C... e que, nessa qualidade participou no negócio em questão, afirmou que o jeep era de sua propriedade e estava à consignação nas instalações da autora e que só recebia o dinheiro proveniente da venda do jeep depois de o Mercedes ter sido vendido, daí a razão de se ter procedido à facturação dos montantes envolvidos, tendo por referência o preço das respectivas vendas.

Concretamente sobre as questões em apreço, referiu, de forma categórica, que perguntou ao réu pelo livro de revisões, dado ser um carro importado e este lhe disse que o tinha e que posteriormente o entregaria, o que nunca veio a acontecer, não obstante as solicitações que para tal lhe foram feitas, tendo-se o réu comprometido a entregá-lo à sua frente.

Mais afirmou ser sua convicção que o réu percebia de mecânica, dado que prescindiu da garantia do Mercedes.

Quanto à quilometragem que calculou como sendo a real do carro, baseou-se na informação dada pela Mercedes acerca da quilometragem que o mesmo tinha um ano antes e o período entretanto decorrido.

Relativamente à convicção que formou quanto a afirmar que o réu sabia que o carro tinha mais quilómetros dos que aqueles que figuravam no conta-quilómetros, radica a mesma no facto de ter prometido entregar o livro de revisões, o que nunca veio a fazer e por ter prescindido da respectiva garantia.

A testemunha E..., vendedor da autora e que foi quem, num primeiro momento, atendeu o réu, referiu que pediu ao réu o livro de reclamações, como fazem sempre quando se trata de carros importados.

O réu disse que o tinha mas que não estava no carro e ficou de lho entregar mais tarde, o que nunca fez, não obstante lhe ter telefonado, duas ou três vezes a pedir-lho.

Pela testemunha H..., que fez a inspecção ao Mercedes, de relevante, quanto a tal, apenas confirmou que o veículo ostentava, na data da inspecção, a quilometragem que assinalou.

Por F..., mulher do réu, declarou que nunca pediram o livro de revisões ao marido nem nunca falaram da quilometragem do carro, a não ser posteriormente à venda, quando o gerente da autora telefonou ao seu marido a dar conta de que a quilometragem do carro estava alterada.

Mais referiu que o réu não percebe de mecânica e questionada porque motivo o mesmo prescindiu da garantia do carro disse que “são burrices que se fazem, pensava que o carro estava bom”.

Por último, a testemunha G..., pessoa a quem o réu adquiriu o veículo em causa, disse que quando o importou de França, este tinha “cento e tal mil kms”, o que concretizou em 110/112 mil.

Não se lembra se o veículo vinha acompanhado do livro de revisões, nem se recorda se alguém da autora lhe ligou a perguntar a quilometragem do carro mas que o réu, posteriormente, lhe disse que o carro tinha mais quilometragem do que a que indicava e que “já não queria o carro”.

Vendeu-o ao réu sem garantia, em função do que lhe fez um desconto de cerca de 4.000 mil euros, o que o levou a pensar que o réu percebia de mecânica.

Questionado acerca do desconto efectuado na venda ao réu, referiu que foi por o ter vendido sem garantia, mas não deu explicação convincente para tão grande desconto, quando confrontado com a afirmação que fez de que o carro aparentava não ter problemas e ter sido inspeccionado recentemente, obtendo matrícula portuguesa.

 

Analisando criticamente todos estes depoimentos e tendo, também, por referência a fundamentação dada pela M.ma Juiz para a formação da sua convicção acerca da factualidade dada por apurada, somos de opinião que o recurso interposto, no que toca à matéria de facto, é de improceder.

Efectivamente, só se concebe que o réu compre dois carros usados (e para mais importados) prescindindo da legal garantia, por ter conhecimentos de automóveis e da respectiva mecânica, através da simples visualização e experimentação dos mesmos.

Só concluindo que o poderia fazer sem grandes riscos é que o réu poderia prescindir da garantia, o que implica que “soubesse o que estava a fazer”, para mais, tendo-o feito em relação aos dois Mercedes referidos nos autos.

Daí que também é plausível que após algum uso, o réu viesse a ter a forte convicção de que a quilometragem do carro era superior à indicada, o que motivou que, logo um mês após a compra se tenha querido livrar dele.

De resto, essa é a versão que se coaduna com o que disse a testemunha G...: o réu referiu-lhe, após lho ter comprado, que o carro tinha mais quilómetros e que já não o queria.

Só um motivo muito forte (para o que não releva a versão da mulher do réu acerca da dificuldade de estacionar, dada a volumetria do carro, se não fora num sítio noutro o faria) justificaria que o réu tivesse esse carro em seu poder durante tão pouco tempo, até porque, numa situação de normalidade, antes de se comprar um carro, as pessoas pensarão bem acerca do que querem (e podem, algumas!) comprar, pelo que não se vislumbra outra razão que não a suspeita de que o veículo tinha mais quilometragem do que aquela que indicava.

Também é nesta linha que se entende o comportamento do réu relativamente ao livro de revisões.

É perfeitamente plausível que a autora quisesse ver o livro de revisões, a fim de controlar a quilometragem e estado do carro em causa, designadamente porque se tratava de um veículo usado e importado.

Pelo que se compreende que o réu quisesse dar a entender que possuía tal livro e assim poderia demonstrar as reais características da viatura em causa, nomeadamente a nível da quilometragem percorrida e respectiva manutenção, prometendo entregá-lo, mas sem que o tenha feito e, assim, conseguindo fazer o negócio.

Por outro lado, também não se percebe que a testemunha G... tivesse tão presente a quilometragem do carro quando o importou mas que não se recordasse se o mesmo vinha acompanhado do livro de revisões.

Por último, a questão do pagamento/facturação, a que alude o réu, é irrelevante.

Uma vez que os montantes não haviam sido efectivamente pagos, face ao acordo existente entre a proprietária do jeep e a autora: o jeep só seria pago depois da venda do Mercedes, dado que a autora ainda deu dinheiro ao réu, pela razão constante da al. G) dos factos provados, a facturação entre as empresas retrata o “deve e haver” entre uma e outra, de acordo com as quantias envolvidas.

Pelo que, não vemos razões para alterar o juízo crítico que da prova fez a M.ma Juiz de 1.ª instância, mantendo-se as respostas que ali mereceram os quesitos em causa.

Assim e face ao exposto, improcede o presente recurso, no que toca à matéria de facto dada como provada, ficando, como tal a constar a que assim foi considerada na sentença recorrida.

B. Se deve improceder a acção, por inexistir qualquer comportamento fraudulento por parte do ora recorrente, tanto nas negociações como na conclusão do ajuizado negócio.

O recorrente defende que não praticou qualquer facto ilícito uma vez que se limitou a contratar com a autora, informando-a das características do veículo, seu estado, ano de fabrico, que se tratava de veículo importado, tendo aquela verificado a quilometragem que o mesmo apresentava, que pensava ser a verdadeira e nunca lhe prometeu fornecer o livro de revisões.

Ainda que fosse verdadeira a afirmação de que o réu suspeitava de que a quilometragem que o veículo apresentasse não fosse a real, ainda assim nada lhe impunha que disso informasse a autora, pelo que sempre estaríamos perante uma situação de “dolus bonus”, não sancionada legalmente.

A sentença recorrida, ao abrigo da responsabilidade pré-contratual, considerou que o réu violou o dever de informar a autora acerca da suspeita que tinha acerca da real quilometragem do veículo, fazendo-o incorrer na obrigação de lhe reparar os danos causados com a sua conduta.

Em face da improcedência do recurso ora em apreço acerca da questão de facto, carecem de relevo as considerações que o recorrente faz quanto à não demonstração de que não suspeitava da adulteração do conta-quilómetros e da não promessa de entrega do livro de revisões.

Assim, analisaremos a questão sub judice, à luz da factualidade que considerámos provada.

Desde já se diga que concordamos com a solução a que se chegou na decisão recorrida, para cujos fundamentos se remetem, nos termos do disposto no artigo 713.º, n.º 5, CPC, designadamente quanto aos requisitos e objectivos tidos em vista com a consagração da figura em apreço.

No entanto, não deixaremos de lhe acrescentar o seguinte:

A responsabilidade pré-contratual ou por culpa na formação dos contratos, acha-se prevista no artigo 227.º, n.º 1, do CC, de acordo com o qual:

“Quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte.”.

Visa-se a protecção da confiança que cada um dos contraentes deposita no outro, nas expectativas legítimas que cada um deles vai criando quer quanto à validade e eficácia do negócio, quer relativamente à sua formação.

Visa a tutela da confiança do sujeito na correcção, na honestidade, na lisura, na lealdade e na colaboração activa da contraparte na satisfação das expectativas alheias.

Seguindo os ensinamentos de Menezes Cordeiro, in Da Boa Fé No Direito Civil, Almedina, 1997, a pág.s 583 e 584:

“A culpa in contrahendo funciona, assim, quando a violação dos deveres de protecção, de informação e de lealdade conduza à frustração da confiança criada na contraparte pela actividade anterior do violador ou quando essa mesma violação retire às negociações o seu sentido negocial profundo de busca de um consenso na formação de um contrato válido, apto a prosseguir o escopo que, em termos de normalidade, as partes lhe atribuam (…) a boa fé nas negociações preliminares exige que as partes, no espaço de liberdade que, por definição, informa as negociações, não assumam atitudes contrárias aos objectivos primordiais da ordem privada que, mesmo aí, mantêm sempre a sua aplicação”.

Radica a mesma na existência de deveres de protecção, de informação e de lealdade, incluindo-se nos segundos, a prestação de todos os elementos necessários à conclusão honesta do contrato, que tanto podem ser violados por acção (com o fornecimento de informações inexactas), como por omissão (pela sonegação de elementos que a contraparte tinha interesse em conhecer) – cf. autor e ob. cit., a pág. 583.

A mesma ideia é transmitida por M. Almeida Costa in RLJ, ano 116, a pág. 174, quando ali refere que “Quando uma das partes sabe ou deve saber que um facto – ignorado pela outra, mas que segundo as regras da boa fé exigem que lhe seja revelado – pode conduzir ao abortamento das negociações, impõe-se que, sem demora, preste essa informação. Se do atraso ou falta em que incorra derivar prejuízo, responde pré-contratualmente.”.

Tudo isto com vista a defender os valores sociais da segurança e da facilidade do comércio jurídico e da satisfação, através de uma colaboração activa, no sentido da satisfação das expectativas alheias, que exige o conhecimento real da situação que constitui o objecto das negociações – cf. autor ora citado, in Direito das Obrigações, 4.ª Edição, Coimbra Editora, 1984, pág.s 202 a 205.

Pelo mesmo diapasão alinha Ana Prata, in Notas sobre a responsabilidade pré-contratual, pag. 49, que ali refere que, no âmbito de tal responsabilidade impendem sobre as partes os deveres de comunicação, informação e esclarecimento, em que se incluem tantos os elementos que constituem a viabilidade do negócio como os obstáculos a ela previsíveis, devendo comunicar à outra parte algum risco ou circunstância que, numa perspectiva de normalidade ponha em causa o sucesso do negócio.

Aqui chegados, uma dúvida se poderá colocar, qual seja a de saber se de responsabilidade pré-contratual se poderá falar, em casos, como o presente, em que o negócio se veio a concretizar.

A resposta tem de ser positiva.

Efectivamente, se no início, a figura da responsabilidade pré-contratual foi concebida para os casos em que, mercê da conduta de um dos contraentes, o negócio veio a ser declarado nulo ou anulável ou de ruptura das negociações, o certo é que a mesma se alargou aos casos em que se estipulou um negócio válido e eficaz, surgindo, todavia, do processo formativo do contrato danos a reparar.

Reporta-se às negociações em si, independentemente do futuro do contrato – neste sentido, Almeida Costa, Direito das Obrigações já citado, a pág. 203 e Meneses Cordeiro, ob. cit., a pág. 584 e tese acolhida também, entre outros, no Acórdão do STJ, de 14/07/2009, Processo 370/09.5YFLSB, disponível in http://www.dgsi.pt/jstj.

Traçado este quadro teórico, aderindo e remetendo, para os fundamentos expendidos na sentença recorrida, entendemos que o réu incorreu em responsabilidade pré-contratual ao não informar a autora de que suspeitava que a quilometragem que o veículo que lhe vendeu era superior à que este apresentava, sendo que a quilometragem de um veículo é (e foi) essencialíssimo para o cálculo do preço a ter em conta para a transacção.

Tanto mais que tendo-lhe sido solicitada a entrega do livro de revisões que o réu afirmava existir, o que não acontecia, assim faltando conscientemente à verdade, nunca o veio a entregar, só podendo configurar-se tal comportamento como visando ocultar à autora a real quilometragem do veículo e, assim, levá-la a concluir um negócio que, se soubesse a real situação do bem transaccionado não teria feito ou, pelo menos, não o teria feito nas condições, designadamente, de preço, pelo que o fez.

E nem se diga que não pode falar-se em responsabilidade do réu porque sobre este não impendia a obrigação de informar a autor da suspeita da viciação do conta-quilómetros da viatura em causa.

Efectivamente, reitera-se, a quilometragem de um veículo, é elemento relevante para a fixação do respectivo preço de venda e não se pode enquadrar no n.º 2 do artigo 253.º do CC, a viciação do conta-quilómetros de uma viatura a fim de dar a aparência que a sua quilometragem é inferior à real.

Como refere Almeida Costa, Direito das Obrigações, pág. 207, o cotejo entre o âmbito de aplicação dos artigos 227.º, n.º 1 e 253.º, n.º 2 do CC, implica que a responsabilidade pré-contratual se apoia em factos que não se qualifiquem como dolo tolerado.

Ora, não pode entender-se como dolo tolerado a sonegação da suspeita de que o veículo tinha quilometragem superior, para mais quando o próprio réu referiu possuir livro de revisões, a fim de comprovar a quilometragem que o veículo apresentava, sendo que não tinha tal livro nem o veio posteriormente a apresentar, não obstante as solicitações que a autora lhe fez para que o fizesse.

Em suma, o réu incumpriu com os deveres de informação e lealdade que lhe eram impostos pela boa fé, na formação do contrato que motivou os presentes autos do que, causalmente, resultaram os prejuízos reclamados pela autora, na medida em que foram reconhecidos na sentença recorrida, a qual, nesta parte, não foi posta em causa.

Prejuízos, estes, que existem e que resultam da diferença entre o preço pelo qual comprou o veículo ao réu e o veio a vender a um terceiro e demais despesas referidas no item 25 dos factos dados como provados na sentença recorrida.

Daí que se imponha a procedência parcial da acção, na medida dos demonstrados prejuízos sofridos pela autora, com a consequente manutenção da decisão recorrida.

Por último, incumbe-nos aferir se, no caso em apreço, deve atender-se ao regime da responsabilidade pré-contratual, que ora deixámos referido ou se, ao invés, a solução a dar-lhe deverá ser a do regime da compra e venda.

Ou seja, põe-se a questão de saber se a regra geral do artigo 227.º, n.º 1 do CC, que consagra a responsabilidade pré-contratual, não deve ceder perante o regime especial previsto para a venda de coisa defeituosa – para esta problemática, pode ver-se Pedro Romano Martinez, in Cumprimento Defeituoso Em Especial Na Compra E Venda E Na Empreitada, Almedina, 1994, pág.s 57 a 62, que propende para a aplicação das regras especiais da compra e venda, mas ressalvando a aplicação residual da culpa in contrahendo, relativamente a aspectos que forem alheios aos defeitos da prestação.

Efectivamente, a viciação do conta-quilómetros do veículo, visando criar a aparência de que a respectiva quilometragem é inferior à real, constitui um defeito da coisa vendida, cf. disposto no artigo 913, n.º 1 do CC.

Assim, seria aplicável à situação sub judice o disposto nos artigos 908.º a 915.º do CC, ou seja e pela ordem aí prevista, poderia a autora exigir a reparação da coisa, a sua substituição, a redução do preço e, por último, a resolução do contrato.

Todavia, no caso em apreciação, a reparação é impossível, já que é inviável “tirar” quilometragem ao veículo.

Também a sua substituição se torna impossível, dado que se trata de um carro em segunda mão, caso em que, como regra, se torna difícil substituir – neste sentido, veja-se Calvão da Silva, in Venda de Bens de Consumo, Almedina, Maio de 2003, a pág. 85.

Tanto mais que o réu nada alegou no sentido de poder fornecer à autora, nas mesmas condições, um veículo daquela marca e modelo e quilometragem que o que lhe vendeu apresentava.

A resolução do contrato também não se afigura viável, dado que a autora já vendeu a viatura a um terceiro.

Resta, pois, a hipótese de redução do preço.

Só que esta para além de difícil quantificação também poderia não cobrir todos os prejuízos que a autora sofreu mercê da conduta do réu.

Como resulta do item 25.º dos factos provados, para além da diferença de preço pelo qual o conseguiu vender a um terceiro, a autora teve de suportar as despesas ali referidas e que vão para além do quantitativo que se refere à diferença entre o preço que pagou ao réu e as quantias que teve de vir a suportar até o vender.

Ou seja, só através da regra da responsabilidade pré-contratual pode a autora ver-se ressarcida de todos os prejuízos que a conduta do réu lhe provocou.

Consequentemente, igualmente, quanto a esta questão tem o presente recurso de improceder, subsistindo a decisão recorrida, devendo os autores obter ganho de causa, com a inerente condenação dos réus como peticionado.

            Nestes termos se decide:       

Julgar improcedente a presente apelação e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida.

Custas pelo apelante.


Arlindo Oliveira (Relator)
Emídio Francisco Santos
António Beça Pereira